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Marx e a crise da democracia
Michael Krätke (*)
Democracia e capitalismo foram e são um casal difícil. A sua relação não é, de forma alguma, tão evidente e indissolúvel quanto se supõe comumente. O "capitalismo democrático" estabelecido depois de 1945 na Europa Ocidental e na América do Norte também entrou em crise em seus países centrais, onde, dentro de um prazo previsível, um capitalismo poderia ser estabelecido sem democracia política.
Em sua longa história, o capitalismo tem andado de mãos dadas com formas variadas de estado e de governo (cidades-estado, monarquias, estados absolutos, estados corporativos, despotismos...). Somente em alguns países capitalistas pôde ser estabelecida uma república democrática: nos EUA, na Suíça, na França. Em muitos países capitalistas europeus, uma república democrática com sufrágio universal foi imposta, pela primeira vez, já após a Primeira Guerra Mundial. Poucas foram duradouras. A história da democracia no capitalismo tem sido, até nossos dias, uma história de desintegração e colapso. A democracia está em perigo e as repúblicas podem entrar em colapso. Golpes bonapartistas, golpes militares, roturas constitucionais ou guerras civis podem levar a formas de estado e de governo autoritárias, totalmente compatíveis com o capitalismo.
Historicamente, o "capitalismo democrático" aparece mais como exceção do que como regra. De acordo com os padrões usuais (europeus), atualmente considera-se que, dos 192 estados reconhecidos como soberanos, cerca de 60 são aqueles que funcionam como democracias representativas. Em muitos outros, uma "democracia aparente" predomina, no melhor dos casos. No sistema capitalista mundial contemporâneo, algumas variantes de "capitalismo democrático" coexistem com muitas variedades de um capitalismo absolutamente "antidemocrático".
A República Popular da China oferece-nos um exemplo importante de um capitalismo que se administra sem democracia, no sentido ocidental. Exemplo de uma economia e uma sociedade controladas e protegidas pelo estado, de um regime autoritário de partido único, de um estado policial militar que, no entanto, recorre apenas seletivamente à violência aberta. A forma híbrida chinesa, de capitalismo privado dirigido e monitorizado pelo estado, anda de mãos dadas com uma forma de estado e de governo antidemocrática, que restringe toda a vida pública desse gigantesco país ao quadro de um partido estatal monopolista.
A "crítica da política" de Marx
Embora Marx não tenha deixado nenhuma teoria sistemática do estado, mas apenas fragmentos de uma teoria política, ele entendia bem a política do seu tempo. Não há praticamente nenhum evento ou movimento político do seu tempo que ele não tenha estudado ou comentado. Politicamente, antes de se tornar socialista e comunista, Marx era um democrata radical. Ele observou com precisão todos os movimentos - em muitos dos quais participou - e estudou a situação política dos países democráticos da época. Investigou detalhadamente três constituições democráticas modernas do alvorecer da república burguesa: a constituição revolucionária francesa de 1792 (Primeira República); a da Segunda República francesa (também conhecida como república de fevereiro), de 1848, na versão original e na revista de 1851, e a constituição liberal democrática espanhola de 1811-12 (em Espanha conhecida como la Pepa). A Constituição de Cádiz é considerada, ainda hoje, o exemplo modelar de uma forma de transição entre um Estado liberal e democrático com um chefe monárquico (1).
Em duas obras suas, As Lutas de Classes em França entre 1848 e 1850, de 1850, e O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, de 1852, Marx estudou cuidadosamente a breve história da Segunda República francesa, de 1848, emergente de uma revolta política contra a monarquia Bourbon restaurada e derrubada pelo golpe de estado de Luís Napoleão, em dezembro de 1851. Esta república baseava-se na igualdade de sufrágio universal e direto, para homens adultos somente, independentemente das diferenças em posses ou propriedades. Marx considerou a combinação de capitalismo e democracia como altamente instável. Com ela havia se instalado uma contradição entre a igualdade formal de direitos políticos e liberdades dos cidadãos e a sua desigualdade económica e social efetiva, que não ocorria apenas entre os cidadãos, mas também entre as grandes classes da sociedade burguesa. Ou seja, a república democrática civiliza as formas da luta política, substitui a guerra civil e a luta na rua pela luta eleitoral e pelo debate público. Mas "as classes cuja escravidão social [a constituição] deve perpetuar, o proletariado, os camponeses, a pequena burguesia, com o sufrágio universal tomam o poder político". "E à classe cujo antigo poder social [a constituição] sanciona, a burguesia, tira a garantia desse mesmo poder. Restringe o seu domínio às condições democráticas, que contribuem em todos os momentos para a vitória das classes inimigas e questionam as bases da própria sociedade burguesa" (2).
No século XIX, a democracia ainda era uma ideia escandalosa e contestada; no melhor dos casos, foi considerada uma experiência política perigosa. Precisamente o que temiam os liberais contrários à democracia era o que Marx e Engels esperavam dela: que, mais cedo ou mais tarde, ela explodiria essa contradição. Na república democrática, nessa "última forma de estado da sociedade burguesa", a luta de classes teria que ser travada definitivamente até o fim (3).
Marxistas posteriores continuaram esta análise: como é possível que se tenha implantado uma república democrática, exigida, na verdade, pelo movimento operário, ao qual proporciona liberdade de movimentos e campo de jogo político, permitindo-lhe que use com sucesso as eleições e os parlamentos para influenciar a legislação e a política estatal? A resposta (de Kautsky, Otto Bauer e outros) foi: a classe dominante domina, mas não governa e, para dominar, não precisa de estar no governo. Para influenciar a luta política e o processo de decisão política de acordo com os seus objetivos, pode confiar em seu poder social e económico, pode usar os meios de comunicação de massa e os partidos de massa agrários burgueses, bem como a classe dos políticos e funcionários profissionais. Favorecida pela religião quotidiana do capitalismo, conduz com sucesso a luta pela hegemonia na sociedade burguesa, agora em república democrática, respeitando a igualdade de direitos políticos sem nenhum problema. Tem mesmo de fazê-lo porque, nessa forma política, em democracia, todo o domínio de uma minoria só é possível por meio de um "governo maioritário", que deve basear-se numa maioria dos eleitores, dedicados e apoiantes. Portanto, sem domínio da burguesia não pode haver democracia estável, e menos ainda formarem-se blocos duradouros, tais como aqueles que representam os partidos agrários burgueses de massas de ideologia democrática, que sempre reúnem camponeses (4). Haverá democracia enquanto os proletários ascendentes não tenham sucesso político e não se tornem demasiado fortes, colocando em risco a hegemonia burguesa. Mesmo nesse caso, um frágil "equilíbrio das forças de classe" ainda poderia existir, por algum tempo, permitindo que os adversários mantivessem a forma da república democrática com sufrágio universal.
Crise da democracia, crise do capitalismo
Em 1936, surgiu uma das últimas grandes obras da era do marxismo clássico, o livro de Otto Bauer Entre duas guerras mundiais? O autor, teórico proeminente do austro-marxismo e do marxismo social-democrata, entrelaça a análise de três crise: a do capitalismo, a da democracia e a do socialismo.
Sem a crise económica global, diz Bauer, a democracia não teria entrado em crise na Alemanha e na Áustria. A crise do pós-guerra e, em seguida, a crise económica mundial que eclodiu no outono de 1929, enfraqueceram a crença das massas no estado democrático, que já não podia ou queria ajudá-las. De igual modo, essas crises abalaram a crença popular na invulnerabilidade da ordem capitalista – e, com ela, da hegemonia da burguesia. Na crise, os capitalistas não estavam mais dispostos a manter os "compromissos e concessões para com aqueles a quem têm de pagar o seu domínio em democracia", nem estavam sequer em posição de ser capazes de o fazer. Como a sua hegemonia tinha sido tocada, eles teriam que fazer muitas mais concessões e chegar a muitos mais compromissos em seguida, que não queriam ou não podiam permitir-se pagar. Voltaram-se, assim, contra a ordem democrática, que era um obstáculo ao descarregamento da crise política sobre as costas das massas (5). A igualdade nos direitos políticos e a posição de poder no estado nela sustentada, incluindo elementos como a segurança social para todos, que o movimento operário reformista havia imposto sob o estado democrático, eram verdadeiros obstáculos a uma política anti-crise inteiramente favorável aos interesses dos capitalistas.
Da mesma forma, pode-se supor que a grande crise económica mundial, que começou em 2007-2008 como uma crise financeira global, também está relacionada com o surgimento atual de crises nas democracias parlamentares dos países capitalistas centrais. E a crise da social-democracia europeia, seu declínio evidente em quase todos os países europeus, é uma parte desta crise da democracia. É que a crença das pessoas na eficácia de uma política reformista que também beneficie as classes de baixo forma parte da cultura política de uma democracia burguesa funcional. Sem esta crença popular, sem melhorias tangíveis na situação da maioria da população que se encontra em crise, não se pode avançar pela via reformista "social-democrata" para conter, ou seja, manter latente, a grande contradição da democracia observada por Marx.
A crise do "capitalismo democrático" hoje
Entre os cientistas sociais de todas as cores predomina um amplo consenso em torno de que a ordem do "capitalismo democrático" do pós-guerra, tão estável durante tanto tempo, chegou ao fim. Parece que a disposição e a vontade da classe dominante, quanto ao cumprimento dos compromissos e concessões que tinham assegurado o seu domínio nos países capitalistas centrais durante o pós-guerra, desapareceu, o mais tardar, a partir do período da crise 1971-1984. A questão, entretanto, é porque demorou tanto tempo, mais de 25 anos, até a crise da democracia se tornar evidente. Colin Crouch explica-o como sendo um processo de lenta erosão da democracia, que deixa intactas as formas externas das instituições democráticas (eleições, partidos, parlamento, a opinião pública...), enquanto que as decisões reais são cada vez mais concentradas nas mãos dos oligarcas capitalistas (6). No entanto, este processo lento foi acompanhado por algumas manobras dramáticas de mudança, com as quais, embora sem questionar as instituições democráticas, se anunciava uma mudança política e se reabria a luta pela hegemonia, com uma ideologia parcialmente nova e de extrema-direita: o neoliberalismo. Margaret Thatcher, Ronald Reagan e até mesmo Helmut Kohl foram vistos e elogiados pelos seus partidários como precursores de uma mudança ideológica e pioneiros de uma outra forma de fazer política.
A mudança em direção a um "estatismo autoritário", que muitos marxistas haviam previsto, de momento ainda não ocorreu. Wolfgang Streeck, com os olhos postos na crise política que começou em 2007-2008, constatou que, após uma breve fase da política financeira expansiva, impôs-se uma política de austeridade rigorosa - com o foco colocado na consolidação dos orçamentos públicos - pelo menos nos países da zona do euro. Ele considera isso a continuação da reversão, iniciada pelas classes dominantes na década de 1970, contra o capitalismo do pós-guerra envolvido pelo estado social. Com justeza, Streeck observa que a globalização do capitalismo, novamente acelerada na década de 1990, deu um impulso adicional a este ataque frontal ao estado social e à luta pela hegemonia da visão neoliberal do mundo (7). No entanto, os sintomas de uma crise da democracia política são bastante novos: em todos os lugares surgem movimentos populistas contra a velha política e as velhas elites estabelecidas, mas (com exceções) não são, de modo algum, antidemocráticos ou anticapitalistas. A presente crise do "capitalismo democrático" parece consistir em que, nem aos velhos partidos de massas burgueses/pequeno-burgueses de direita, nem aos partidos de massas pequeno-burgueses/proletários de esquerda, lhes ocorreu nada para tratar a grande crise 2007-2008, exceto a eterna repetição de velhas formas vazias. Todavia, quando os grandes opositores sociais carecem de ideias, resulta difícil lutar pela hegemonia; um compromisso político só pode ser encontrado entre posições até certo ponto claramente distinguíveis. Nesse vazio deixado por um neoliberalismo e uma social-democracia desacreditados, surgem com força todos os tipos de catecismos e utopias radicais, mais ou menos selvagens e totalmente inconsistentes. No entanto, a crença na democracia está tudo menos morta, enquanto que a crença no capitalismo como a melhor das ordens pensáveis, encontra-se ferida. Não é um mau ponto de partida para uma esquerda na Europa, desde que lhe ocorra algo que valha a pena desejar e querer.
(*) Michael R. Krätke (n. 1950) é doutorado em Economia Política pela Universidade de Berlim e atualmente professor de Economia Política na Universidade de Lancaster (Inglaterra). Edita a revista SPW – Zeitschrift für sozialistische Politik und Wirtschaft, sendo um dos maiores conhecedores vivos da obra de Marx e da história do marxismo. Acaba de publicar o livro Kritik der politischen Ökonomie heute. Zeitgenosse Marx [Crítica da Economia Política hoje. Marx contemporâneo] (VSA Verlag 2017). A tradução deste artigo é de Ângelo Novo, a partir da versão em língua castelhana publicada em Sin Permiso. Uma versão mais abreviada surgiu no n.º 218 da revista catalã Nous Horitzons, que comemora o bicentenário do nascimento de Karl Marx.
________________ NOTAS:
(1) Marx estudara Direito em Berlim, especialmente com os discípulos de Hegel e com o professor de Direito Público Eduard Gans. Seja dito de passagem que, no curso de Direito de sua época, também se estudava o cameralismo, como era chamado então a Economia Política na Alemanha. Marx estabeleceu a sua primeira relação com a Economia Política entre os cameralistas e Hegel, que foi um excelente conhecedor e crítico dos economistas clássicos ingleses.
(2) Karl Marx, «Die Klassenkämpfe in Frankreich 1848 bis 1850», Karl Marx y Friedrich Engels, Werke (MEW), vol. 7, p. 43.
(3) Karl Marx, «Kritik des Gothaer Programms», MEW, vol. 19, p. 29.
(4) Otto Bauer, «Kapitalsherrschaft in der Demokratie», Werkausgabe, vol. 9, pp. 202-219.
(5) Cf. Otto Bauer, «Zwischen zwei Weltkriegen?», Werkausgabe, vol. 4, pp. 134-35.
(6) Cf. Colin Crouch, Post-Democracy, Cambridge, 2005.
(7) Cf. Wolfgang Streeck, Buying Time. The Delayed Crisis of Democratic Capitalism, Londres, 2016.
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