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Velhos deuses, novos enigmas
Mike Davis (*)
Na medida em que a globalização, a asfixia sindical e a automação refizeram o mundo do trabalho, deixando as gerações atuais e futuras entregues à subsistência em empregos contingentes e informais, ainda podemos defender a ideia da classe trabalhadora como o principal agente da mudança radical? Será que, como questionou Eric Hobsbawm em 1995, ainda existe uma "força histórica" para apoiar o projeto socialista? Com poucas exceções, os marxistas chegaram tarde a este debate existencial, muitas vezes armados com pouco mais do que consignas filosóficas. Este artigo argumenta que, para confrontar a questão, precisamos primeiro de especificar uma base de comparação: isto é, uma compreensão sofisticada de como a agência proletária foi construída na era do socialismo clássico. Partindo de pistas dispersas deixadas por Marx e seus sucessores, sobretudo Rosa Luxemburgo, este ensaio esboça uma teoria da formação de classes e da hegemonia socialista em consonância com a experiência histórica e revolucionária das vidas e ideias reais da classe trabalhadora. A tese básica é que a “agência”, em última instância, é condicionada pelo desenvolvimento das forças produtivas, mas ativada pela convergência (ou “sobredeterminação”) das lutas políticas, económicas e culturais. Mesmo na era clássica do socialismo, o poder dos trabalhadores não residia exclusivamente no ponto de produção das grandes fábricas; os movimentos urbanos e as campanhas internacionais de solidariedade também foram cadinhos da consciência de classe, o que tem talvez uma relevância ainda mais imediata no nosso admirável mundo novo sem empregos.
Numa entrevista de 1995, após a publicação da sua obra The Age of Extremes, Eric Hobsbawm foi questionado sobre a futura relevância das ideias socialistas. Dependaria, respondeu ele, de haver ou não uma “força histórica” para apoiar o projeto socialista. “Parece-me que a força histórica repousava não necessariamente nas ideias, mas numa situação material particular... sendo o grande problema da esquerda o da agência”. Diante da proporção decrescente de capital variável na produção moderna e, portanto, do peso social relativo do proletariado industrial, dizia ele
“podemos nos encontrar novamente num padrão diferente de sociedade, como o da sociedade pré-capitalista, em que a maior parte das pessoas não será assalariada - elas serão algo diverso ou, como você pode ver em grande parte do Terceiro Mundo, serão pessoas que estão operando na área cinzenta da economia informal, que não podem ser simplesmente classificadas como trabalhadoras assalariadas ou de alguma outra forma. Nessas circunstâncias, a pergunta claramente é: como pode esse corpo de pessoas ser mobilizado para realizar os objetivos que, inquestionavelmente, ainda estão presentes e, até certo ponto, são agora ainda mais urgentes na forma (1)?”
O declínio do poder económico e político da classe trabalhadora tradicional - agora incluindo BRICS aflitos como o Brasil e a África do Sul - tem sido de facto uma marca epocal (2). Na Europa e nos Estados Unidos, a erosão do emprego industrial por meio da arbitragem salarial, terceirização e automação foi acompanhada da crescente precariedade do trabalho nos serviços, da industrialização digital dos empregos de colarinho branco e da estagnação ou declínio do emprego público sindicalizado. O novo darwinismo social, enquanto inflama o ressentimento da classe trabalhadora contra as novas elites credenciadas e os ricos de alta tecnologia, também estreitou e envenenou as culturas tradicionais de solidariedade, levando ao surgimento de movimentos anti-imigrantes da neo-direita (3). Mesmo que o furacão do neoliberalismo houvesse de passar - e ainda há poucos sinais de que isso venha a acontecer - a automação, não apenas da produção e da gestão de rotina, mas, agora também, das especialidades profissionais e da pesquisa científica, ameaça os últimos vestígios de segurança no emprego nas economias centrais (4).
Hobsbawm, é claro, não levou em conta a mudança da manufatura global para o Leste da Ásia e o crescimento quase exponencial da classe trabalhadora fabril chinesa ao longo da última geração. Mas a substituição da força de trabalho humana pela próxima geração de sistemas e máquinas de inteligência artificial não excluirá a indústria da Ásia do Leste. A Foxconn, o maior fabricante do mundo, está atualmente a substituir trabalhadores de montagem no seu enorme complexo de Shenzhen e noutros lugares por um milhão de robôs (estes não se suicidam em desespero pelas suas condições de trabalho) (5). Em grande parte do Sul global, entretanto, as tendências estruturais afirmadas desde os anos 1980 derrubaram as ideias tradicionais sobre “estágios do crescimento económico”, à medida que a urbanização se dissocia do crescimento económico e a subsistência do emprego assalariado (6). Mesmo em países com altas taxas recentes de crescimento do PIB, como a Índia e a Nigéria, o desemprego e a pobreza dispararam, em vez de declinar, razão pela qual o “crescimento sem emprego” se uniu à desigualdade de rendimento no topo da agenda do Fórum Económico Mundial de 2015 (7). Enquanto isso, a pobreza rural global, especialmente em África, está sendo rapidamente urbanizada - ou talvez “abarracada” seja a melhor expressão - com poucas perspetivas de que os migrantes sejam reincorporados nas modernas relações de produção. O seu destino são os sórdidos campos de refugiados e as favelas periféricas sem emprego, onde os seus filhos podem sonhar em tornar-se prostitutas ou condutores de carros-bomba.
O somatório dessas transformações, em regiões ricas e pobres, é uma crise sem precedentes da proletarização - ou, para quem o preferir, da “subsunção real” do trabalho, protagonizada por sujeitos cuja consciência e capacidade de efetuar mudanças ainda são enigmas. Neilson e Stubbs, usando a terminologia do capítulo 25 de O Capital, sustentam que “o desdobramento desigual da dinâmica contraditória do mercado de trabalho de longo prazo do capitalismo está gerando uma população excedente relativamente massiva, distribuída em formas e tamanhos profundamente desiguais nos países do mundo. Já é maior do que o exército ativo e deve crescer ainda mais no futuro de médio prazo” (8). Seja como mão-de-obra contingente ou não coletivizada, como micro-empresários, criminosos de subsistência ou simplesmente como desempregados permanentes, o destino dessa “humanidade excedente” tornou-se o problema central do marxismo do século XXI. As antigas categorias de sentimento comum e destino compartilhado, pergunta-se Olivier Schwartz, ainda poderão definir uma ideia das "classes populares" (9)? O socialismo, como alertou Hobsbawm, terá pouco futuro a não ser que grandes setores dessa classe trabalhadora informal encontrem fontes de força coletiva, alavancas de poder, plataformas para participar numa luta de classes internacional.
Seria um erro gigantesco, no entanto, concluir, como o fazem os pós-marxistas, que o ponto de partida para a renovação teórica deve ser um funeral para a "velha classe trabalhadora", a qual, para o dizer de forma crua, foi despromovida na agência, não demitida da história. Maquinistas, enfermeiros, motoristas e professores continuam a ser a base social organizada que defende o legado histórico do trabalho na Europa Ocidental, na América do Norte e no Japão. Os sindicatos, ainda que enfraquecidos ou desmoralizados, continuam a articular um modo de vida “baseado num sentido coerente da dignidade dos outros e de um lugar no mundo” (10). Mas as fileiras de trabalhadores tradicionais e seus sindicatos não estão já em crescimento e os maiores incrementos na força de trabalho global são cada vez mais gente sem salário ou sem emprego. Como Christian Marazzi se queixou recentemente, não é agora fácil usar uma categoria como “composição de classe” “para analisar uma situação que é cada vez mais caracterizada pela fragmentação dos sujeitos constituídos no mundo do emprego e do não emprego” (11).
Num elevado nível de abstração, o atual período de globalização é definido por uma trilogia de economias ideal-típicas: a superindustrial (Ásia do Leste costeira), a financeira/terciária (Atlântico Norte) e a hiperurbanizada/extrativa (África Ocidental). O “crescimento sem emprego” é incipiente no primeiro, crónico no segundo e absoluto no terceiro. Podemos acrescentar um quarto tipo ideal de sociedade em desintegração, cuja principal tendência é a exportação de refugiados e trabalhadores migrantes. De qualquer forma, não podemos mais confiar numa única e paradigmática sociedade ou classe para modelar os vetores críticos do desenvolvimento histórico. Imprudentes consagrações, enquanto sujeitos históricos, de abstrações como "a multidão", simplesmente dramatizam a sua pobreza de pesquisa empírica. O marxismo contemporâneo deve ser capaz de prescrutar o futuro das perspetivas simultâneas de Shenzhen, Los Angeles e Lagos, se quiser resolver o enigma de como é que categorias sociais heterodoxas se poderão encaixar numa única resistência ao capitalismo.
Descrição dos trabalhos do proletariado
Mesmo as tarefas mais preliminares são já assustadoras. Uma nova teoria da revolução, para começar, pede referências na antiga, começando com o esclarecimento da “agência proletária” no pensamento socialista clássico. Resumindo a visão geral, Ellen Meiksins Wood define agência como “a detenção de um poder estratégico e uma capacidade de ação coletiva fundados nas condições específicas da vida material”, mas não há um texto canónico que exponha o ponto de vista amadurecido de Marx ou que ligue diretamente a capacidade de classe às categorias de O Capital (12). Como Lukács lamentou:
“A principal obra de Marx termina quando ele está prestes a embarcar na definição de classe [capítulo 52 de O Capital]. Esta omissão teria sérias consequências, tanto para a teoria como para a prática do proletariado. Pois, nesse ponto vital, o movimento posterior foi forçado a basear-se em interpretações, na colação de enunciados ocasionais de Marx e Engels e na extrapolação e aplicação independentes do seu método” (13).
Desde que Lukács tentou retificar essa “omissão”, em História e Consciência de Classe (1923), uma profusão de obras e rascunhos inéditos de Marx foram recuperados, interpretados e debatidos, mas o itinerário dos macro-conceitos chave - classe, agência histórica, o estado, modos de produção e assim por diante - exige uma exploração cuidadosa de três tipos muito diferentes de fontes: declarações filosóficas explícitas, principalmente anteriores a 1850; as conclusões político-estratégicas extraídas de análises parcialmente empíricas; e fragmentos ou alusões nos Grundrisse, Manuscritos Económicos de 1861-63 e O Capital que ampliam ou modificam ideias anteriores.
Mas uma tal reconstrução a partir de fontes fragmentárias, não importa quão fiel, não deve ser mal interpretada como o "verdadeiro Marx". É simplesmente um Marx possível. Marcello Musto argumentou que a falha de Marx em atualizar e sistematizar as suas ideias não foi apenas um resultado da doença e da constante revisão de O Capital, mas um resultado inevitável da "sua aversão intrínseca" à esquematização. A sua “paixão inextinguível pelo conhecimento, inalterada pelo passar dos anos, levando-o vezes sem conta a novos estudos; e, finalmente, a consciência que ele alcançou, nos seus últimos anos, da dificuldade de confinar a complexidade da história dentro de um projeto teórico; tudo isto fez da incompletude a [sua] fiel companheira” (14).
Tendo isso em conta, o presente ensaio não pretende ser um exercício rigoroso em marxologia; em vez disso, uso amplamente a extrapolação lukácsiana para sugerir uma sociologia histórica congruente com o tipo ideal de uma classe operária revolucionária nas épocas da Primeira e Segunda Internacionais (15). Sintetizo diversas afirmações sobre o papel revolucionário da classe trabalhadora fabril que foram efetivamente feitas por Marx, Engels, seus sucessores na Segunda Internacional e na escola de Lukács, ou poderiam plausivelmente ter sido feitas à luz de nossa compreensão atual da história do trabalho do século XIX e início do século XX. O resultado, ilustrado com vários exemplos, é uma argumentação exaustiva a favor da classe trabalhadora tradicional como a coveira do capitalismo. Imagine, se quiser, o proletariado sendo solicitado pelo Espírito Mundial para fazer um resumo das suas qualificações para o papel de Emancipador Universal (16).
Uma tal enumeração de capacidades atribuídas, começando com a capacidade dos trabalhadores de se tornarem conscientes de si mesmos como uma classe, é um constructo, montado para propósitos comparativos, que não reivindica acabamento empírico ou coerência teórica. No entanto, assume com Marx que a soma dessas capacidades é um potencial realista de auto-emancipação e revolução. Várias ressalvas são aqui devidas. Ao focar-me em recursos para a auto-organização e ação, bem como nos interesses que os mobilizam e nas tarefas históricas que os exigem, evito debates filosóficos sobre ontologia e consciência social, bem como controvérsias recentes de agência/estrutura entre teóricos sociais e historiadores (que Alex Callinicos tratou de forma tão magistral no seu Making History) (17).
A primeira é como as classes, por meio de conflitos moldados estruturalmente por regimes de acumulação, realmente se fazem umas às outras e se influenciam mutuamente nas suas capacidades relativas e autoconsciência. Um exemplo célebre é o décimo capítulo de O Capital, onde Marx relata como a vitória dos trabalhadores ingleses, ao forçar a imposição legal de uma jornada de trabalho de dez horas, foi rapidamente anulada pelo investimento dos empregadores numa nova geração de máquinas que aumentaram a intensidade do trabalho. (O texto teórico mais importante do operaísmo italiano, Operai e Capitale, de Mario Tronti [1966] desenvolveu a partir deste exemplo uma teoria abrangente da luta entre capital e trabalho como uma dialética de “composição e recomposição de classes”) (18).
A segunda dimensão é o caminho desigual e pontuado de crises da acumulação de capital ao longo do tempo: as mudanças na topografia económica da luta de classes. Marx viu na espiral do ciclo de negócios a abertura e o fechamento periódicos de oportunidades para o avanço proletário: por exemplo, a expansão da década de 1850 acalmou o conflito trabalhista na Grã-Bretanha, enquanto a depressão da década de 1870 reavivou a luta de classes à escala internacional (19). O Capital deu às "condições objetivas" um novo e mais poderoso significado como teoria das crises. Só com Lenine, contudo, tentariam os marxistas teorizar a guerra como um catalizador de mudança estrutural comparável ou ainda mais importante (20).
Em terceiro lugar, a capacidade, no sentido aqui empregue, é um potencial desenvolvível para atividades conscientes e consequentes, não uma disposição que surge automaticamente e inevitavelmente das condições sociais. Nem, no caso do proletariado, é capacidade sinónimo de dotação, tal como o poder de contratar e demitir que um capitalista recebe com a simples propriedade de meios de produção. As condições que conferem capacidade, além disso, podem ser estruturais ou conjunturais. As primeiras emergem da posição do proletariado no modo de produção: por exemplo, a possibilidade de organizar greves de massa que paralisam a produção em cidades inteiras, indústrias e até nações. As segundas são historicamente específicas e, em última análise, transitórias: como, por exemplo, a obstinada manutenção do controle informal sobre o processo de trabalho pelos maquinistas e construtores navais do período vitoriano. O conjuntural pode também denotar a interseção de histórias não sincronizadas, como a persistência do absolutismo no período intermédio da industrialização, que levou a Europa à poderosa coincidência entre lutas pelo sufrágio e conflitos industriais - não foi o caso dos Estados Unidos e de algumas outras colónias de povoamento branco.
Embora “as estruturas capacitem os agentes diferencialmente”, fica-se quase tentado a aplicar à história a segunda lei de Newton, uma vez que as condições estruturais geralmente produzem tendências e contra-tendências ao mesmo tempo. “A forma da fábrica”, por exemplo, “incorpora e, portanto, ensina noções capitalistas de relações de propriedade. Mas, como Marx assinala, também pode ensinar o caráter necessariamente social e coletivo da produção e, assim, minar a noção capitalista de propriedade privada” (21). Da mesma forma, em O Capital, a crescente composição orgânica (intensidade de capital) da produção é indeterminadamente compensada, em termos de valor, pelo barateamento dos bens de capital. Similarmente, os recursos podem ser empregues para fins alternativos, até mesmo opostos. A sede de conhecimento técnico e científico, por exemplo, é um pressuposto do controle da produção pelos trabalhadores, mas também serve às ambições de aristocratas do trabalho que esperam um dia poder tornar-se gerentes ou proprietários. Da mesma forma, a sociedade civil proletária auto-organizada pode reforçar a identidade de classe num sentido subordinado, corporativista, como uma subcultura em órbita ao redor das instituições burguesas, ou num sentido hegemónico, antecipatório, como uma contracultura antagónica.
Finalmente, o “proletariado clássico” é definido como as classes trabalhadoras europeias e norte-americanas da Segunda Revolução Industrial, de 1848 a 1921. Os marcos de referência são a insurreição socialista de junho de 1848 em Paris (uma estreia) e a chamada Ação de Março de 1921 na Saxónia (um final). A primeira abriu a era da revolução pós-burguesa; a segunda encerrou a Revolução Europeia de 1917 a 1921. Com a revolução alemã derrotada, o Comintern marxista voltou-se para sujeitos históricos - movimentos anticoloniais, proletariados “substitutos”, camponeses, desempregados, muçulmanos, até mesmo agricultores norte-americanos - não abrangidos pela visão teórica original de Marx e Engels (22).
Grilhetas e necessidades
1.
O proletariado moderno, nas palavras da Introdução de 1843, carrega "grilhetas radicais". A sua emancipação requer a abolição da propriedade privada e o eventual desaparecimento das classes.
Em contraste com o artesão obsoleto, o camponês pobre, ou até mesmo o escravo, o operário industrial não olha para trás, com uma nostalgia jeffersoniana ou proudhonista, visando uma restauração utópica da pequena produção, da economia natural e da competição igualitária. “O instinto humano de controlo sobre si próprio e do seu ambiente imediato, que para as classes anteriores significava essencialmente um impulso para aperfeiçoar o controle privado dos meios de subsistência pessoal e de criação de riqueza, para o proletariado é convertido num desejo de controlo e posse coletivos dos meios de produção” (23). Eles aceitam que o massacre das pequenas propriedades pelo capital é irreversível e que a democracia económica deve ser construída com base na abolição do sistema de salários, não na indústria em larga escala por si só. Entre todos os produtores subalternos e explorados, o proletário é o único que não tem qualquer interesse residual na preservação da propriedade privada dos meios de produção ou na reprodução da desigualdade económica.
Entretanto, é essencial distinguir entre as grilhetas carregadas pelo “proletariado filosófico” de Marx, nos escritos de 1843-45, e aquelas que mais tarde tolherão os trabalhadores no Volume 1 de O Capital (24). As primeiras foram definidas pela destituição absoluta, a exploração e a exclusão: “a classe da sociedade civil que não é uma classe da sociedade civil, uma propriedade que é a dissolução de todas as propriedades, uma esfera que tem um caráter universal pelo seu sofrimento universal”. A sua existência, de acordo com o jovem Marx, não era apenas uma “negação” da humanidade, mas uma condição cuja própria negação requer uma “revolução radical”, o derrube da “ordem mundial até então existente” (25).
Em O Capital, por outro lado, a posição estrutural torna-se tão importante quanto a condição existencial na definição da essência do proletariado. Marx demonstra que a pobreza dos proletários, embora menos extrema que a dos campos famintos, é de uma natureza mais radical, uma vez que emerge do seu papel como produtores de uma riqueza sem precedentes. Na Grã-Bretanha, a Revolução Industrial criou uma sociedade “na qual a pobreza é gerada em tão grande abundância como a riqueza”, enquanto na Alemanha o proletariado emergente “não era o pobre surgindo naturalmente, mas o artificialmente empobrecido” (26). Se a pobreza, como alegava André Gorz, é a “base natural” da luta pelo socialismo, trata-se desta “pobreza antinatural”, que cresce em sintonia com os poderes produtivos do trabalho coletivo (27).
Marx também faz uma distinção crucial entre o poder socializado da fábrica e o poder geral ou manual do trabalho. As “relações formais de produção” (trabalho assalariado e capital), decorrentes da expropriação dos pequenos produtores pelo capital agrícola e mercantil, moldam as amplas fronteiras de uma classe trabalhadora sem propriedade. Além disso, o “sistema de salários”, lembra-nos David Montgomery, “historicamente não tem sido coextensivo com a sociedade industrial” (28). Na Grã-Bretanha, a meio da era vitoriana, por exemplo, os empregados domésticos compunham o maior grupo individual da população assalariada e o trabalho manual continuava a florescer ao lado do sistema de fábrica. A Grande Exposição de 1851 glorificou a era do poder do vapor, mas as trezentas mil vidraças que cobriam o Palácio de Cristal foram sopradas manualmente (29).
Em contraste, as relações sociotécnicas de produção distinguem o proletariado fabril, o núcleo coletivizado da classe trabalhadora moderna, de acordo com Marx (30). Para o movimento dos trabalhadores adquirir uma forma universal, inclusive entre todas as variedades de trabalho assalariado, ele deve acumular poder, primeiro e acima de tudo, nos setores industriais avançados: têxteis, ferro e aço, carvão, construção naval, ferrovias e assim por diante. Só estes, nas palavras do Manifesto, possuem “iniciativa histórica” (31).
2.
A condição fundamental para o projeto proletário é o reino da liberdade imanente na própria economia industrial avançada. Para alcançar o objetivo principal do socialismo - a transformação do trabalho excedente em tempo livre igualmente distribuído - as grilhetas radicais devem ser traduzidas em necessidades radicais.
As revoluções dos pobres nos países atrasados podem tentar alcançar as estrelas, mas somente o proletariado nos países avançados pode realmente compreender o futuro. A integração da ciência na produção, imposta tanto pela competição intercapitalista quanto pela militância da classe trabalhadora, reduz a necessidade (se não a atualidade) da labuta alienada. Já em A Miséria da Filosofia (1847), Marx argumentou que “a organização dos elementos revolucionários como uma classe supõe a existência de todas as forças produtivas que poderiam ser engendradas no seio da velha sociedade” (32). Uma década depois, nos Grundrisse, ele previu que “na medida em que a grande indústria se desenvolve, a criação da riqueza real passa a depender menos do tempo de trabalho e da quantidade de mão de obra empregue” do que do “estado geral da ciência e do progresso da tecnologia, ou da aplicação desta ciência à produção”. Neste ponto, “o trabalho excedente da massa deixou de ser a condição para o desenvolvimento da riqueza geral, assim como o não trabalho de uns poucos deixou de ser condição para o desenvolvimento dos poderes gerais da mente humana”. Então, será tanto materialmente possível como historicamente necessário, para os próprios trabalhadores, apropriarem-se do seu próprio excedente de trabalho como tempo livre para “o desenvolvimento artístico, científico, etc., dos indivíduos... a medida da riqueza não é então mais, de modo algum, o tempo de trabalho, mas sim o tempo disponível” (33).
Mas uma tal apropriação nunca poderá ocorrer se o objetivo for enquadrado simplesmente como justiça redistributiva, igualdade de rendimento ou prosperidade compartilhada (34). Essas são precondições para o socialismo, não a sua substância. O novo mundo se definirá antes pela satisfação de “necessidades radicais” geradas pela própria luta pelo socialismo e incompatíveis com a alienação da sociedade capitalista. “Elas incluem a necessidade de comunidade, de relações humanas, de trabalho como fim (desejo primordial da vida), universalidade, tempo livre, atividade livre e desenvolvimento da personalidade. São necessidades qualitativas - em contraste com as necessidades de produtos materiais, que diminuem relativamente numa sociedade de produtores associados (à medida que desaparece a necessidade de 'possuir')” (35). Não é o desenvolvimento do consumo ou a “riqueza” capitalista que cria necessidades radicais de tempo livre e trabalho liberado, mas sim os contravalores e sonhos incorporados em movimentos de massas radicais. Para criar raízes na vida quotidiana, essas necessidades devem ser prefiguradas, sobretudo nas atitudes socialistas em relação à amizade, à sexualidade, aos papéis de género, ao sufrágio das mulheres, ao nacionalismo, à intolerância racial e étnica e ao cuidado das crianças. A conhecida aversão de Marx e Engels a projetos utópicos e especulações futuristas demonstrou a sua disciplina científica, mas não tinha a intenção de impedir o imaginário socialista, muito menos a de desencorajar a profusão de instituições alternativas - desde universidades laborais até cooperativas de consumo, clubes de caminhadas ou clínicas psicanalíticas gratuitas - por meio das quais o movimento dos trabalhadores abordará as necessidades existentes e vislumbrará novas necessidades (36).
3.
O proletariado tem um interesse fundamental no desenvolvimento das forças de produção, na medida em que isso equivale a menos trabalho, mais tempo livre e garantia de segurança económica. Mas um ciclo virtuoso de desalienação e crescimento qualitativo nos padrões de vida pressupõe uma base material de abundância; numa situação de escassez transitória, a violência estrutural ainda seria inerente às relações económicas. É por isso que Marx chamou o estágio entre capitalismo e socialismo de "ditadura do proletariado".
Apoiado na tecnologia moderna e dentro de uma união de países avançados, um governo dos trabalhadores poderia sustentar o crescimento económico, ao mesmo tempo em que melhorava drasticamente a qualidade de vida, sobretudo através da redução da jornada de trabalho. Uma vez que os próprios trabalhadores participariam na tomada de decisões de pequena e grande escala sobre investimento, metas de produção e intensidade de trabalho; haveria ampla motivação para a inovação tecnológica contínua, tornando as máquinas escravas dos trabalhadores, e não o inverso (37).
Em que nível de desenvolvimento económico estaria uma sociedade madura para o socialismo? Em 1870, apesar do impressionante progresso industrial na América do Norte, Alemanha e França, Marx julgou que apenas a Inglaterra tinha “as condições materiais para a destruição do latifúndio e do capitalismo” (38). No entanto, ao mesmo tempo, ele continuou a conceber a revolução como um processo global ou pelo menos multinacional. Lenine foi ainda mais enfático sobre o caráter necessariamente "europeu" de uma vitória socialista, sendo uma revolução alemã condição sine qua non da sua possibilidade. Somente após a sua morte, no início de 1924, coincidindo com o Plano Dawes que estabilizou a burguesa República de Weimar, os bolcheviques foram forçados a confrontar o seu futuro sem o deus ex machina de uma revolução no Ocidente.
Como Lenine e outros, tanto defensores como opositores, já haviam previsto, um governo operário num país atrasado, com uma enorme população rural, agricultura não mecanizada e exportações de baixo valor, enfrentaria enormes dificuldades para gerar investimento industrial doméstico, especialmente voltado para a infraestrutura e o capital fixo, sem forçar os campos a darem a maior parte dos seus excedentes aos setores modernos. Por outras palavras, antes de se poder tornar um emancipador geral, a classe trabalhadora, uma minoria pequena, embora altamente organizada em tais sociedades, teria que atuar no lugar da burguesia como confiscadora ou exploradora coletiva. Isso arriscaria provocar o equivalente a uma greve geral rural, à medida que os camponeses mais ricos, os produtores mais eficientes, perdessem qualquer incentivo para manter a produção e começassem a acumular alimentos para venda no mercado negro - exatamente o que aconteceu durante a guerra civil e novamente, com o final da Nova Política Económica (NEP). Em resposta, o Estado teria que ceder (a estratégia "direitista" de Bukharine) ou recorrer à pura coerção (a política de Lenine em 1918-1919 e a de Estaline a partir do final da década de 1920).
A "acumulação socialista primitiva", como Yevgeni Preobrazhensky lhe chamava em 1925, foi tanto uma necessidade quanto uma tragédia para o domínio proletário numa economia atrasada. Mas estratégias alternativas como a NEP corriam o risco de reabilitar as relações de propriedade capitalistas e, como muitos argumentaram, uma burguesia rural que ameaçava romper a “aliança entre cidade e campo” (39). A única maneira de cortar esse nó górdio seria o investimento estrangeiro e a ajuda técnica de países socialistas mais avançados, retornando assim a teoria da revolução, em círculo completo, à premissa de um avanço socialista no coração industrial da Europa, a oeste do Elba.
4.
Em contraste com o capitalismo, que desperdiça ou reprime o pensamento cooperativo no processo de trabalho, a capacidade proletária para a auto-organização e a colaboração criativa tornar-se-á uma importante força de produção numa sociedade socialista. Associação livre, ciberneticamente potencializada, impulsionará o avanço da sociedade.
Nos seus comentários dispersos sobre as pré-condições materiais para o socialismo, Marx não conseguiu fazer uma distinção clara entre o desenvolvimento das forças produtivas per se e a criação de capacidades sociais em contraparte para a coordenação e o planeamento económico. Este último envolve, por um lado, instituições de democracia económica e controlo operário e, por outro, tecnologias que processam dados económicos massivos em tempo real e os apresentam em formatos que permitem a participação popular na tomada de decisões. Pode-se argumentar que a informática necessária para o planeamento democrático emergiu apenas recentemente na forma de sistemas de informação computacional, reengenharia de processos de negócios, painéis gerenciais, smartphones, internet das coisas, bens comuns colaborativos, produção entre-pares e coisas desse género. Da mesma forma, as plataformas de observação e os paradigmas científicos para a compreensão dos impactos geoambientais da economia (especialmente sobre os ciclos de carbono e de nutrientes), possibilitando assim o planeamento da sustentabilidade, só agora estão a ser implementados.
5.
O sistema de fábrica organiza a força de trabalho como uma coletividade sincronizada que através da luta e da organização consciente pode se tornar uma comunidade de solidariedade. “Como escolas de guerra”, disse Engels, "os sindicatos são insuperáveis" (40).
Em O dezoito de Brumário de Louis Bonaparte, Marx famosamente comparou as camadas atrasadas do campesinato francês a um “saco de batatas”. “O seu modo de produção”, escreveu ele, “isola-as umas das outras, em vez de trazê-las para interações complexas” (41). Em resultado disso, acrescentou Hobsbawm, a consciência camponesa tende a ser inteiramente localizada ou constituída em oposição abstrata à cidade, frequentemente em linguagem religiosa milenarista. “A unidade da sua ação organizada é o poço da paróquia ou o universo. Não há nada entre os dois” (42). O proletariado industrial (no qual Marx inclui trabalhadores de fábricas, trabalhadores da construção, mineiros, trabalhadores na agricultura capitalista e trabalhadores dos transportes), por outro lado, é apenas constituído en ensemble, como coletividades integrais no seio da divisão social do trabalho. O socialista francês Constantin Pecqueur, no seu livro de 1839 sobre a natureza revolucionária da era do vapor, já havia exaltado a fábrica pela sua "socialização progressiva" da força de trabalho e a sua criação de uma "vida pública proletária" (43).
A mutualidade, como já foi anteriormente notado, não é diretamente dotada, e a consciência de classe, como David Montgomery nos lembra, “é sempre um projeto”. Trabalhadores em novas indústrias ou fábricas estão inicialmente atomizados, numa situação competitiva que os capitalistas tentam prolongar através do favoritismo, de salários à peça ou divisões étnicas do trabalho (44). As formas mais elementares de solidariedade devem ser conscientemente construídas, começando com os grupos de trabalho informais (definidos por tarefas ou habilidades comuns), que são as “famílias” a partir das quais uma sociedade fabril é construída. Forjar laços de interesse comum entre grupos de trabalho e departamentos foi sempre um trabalho árduo e paciente que exigia negociação, educação e confronto; os dirigentes de base que se comprometeram nessa via arriscavam a demissão, a lista negra, até mesmo a prisão ou a morte (45). Além disso, os primeiros passos para uma organização inclusiva tinham caráter geralmente defensivo: protestar, por exemplo, contra uma redução de salários, a introdução de maquinaria perigosa ou alguma outra queixa notória. Mas, como Marx enfatiza em A miséria da filosofia, o sindicato (ou, nalguns casos, a organização clandestina do local de trabalho) tornou-se uma meta em si mesma, irredutível às suas funções puramente instrumentais. É assim como, digamos, uma igreja ou uma aldeia. “Isso é tão verdade que os economistas ingleses se espantam de ver os trabalhadores sacrificarem boa parte dos seus salários em favor de associações que, aos olhos desses economistas, são estabelecidas exclusivamente em favor dos salários” (46).
6.
Enquanto a militância sindical pode atingir o seu mais alto desenvolvimento nas aldeias mineiras ou vilas industriais, o socialismo é, em última instância, o filho das cidades, esses cemitérios do paternalismo e da crença religiosa. Nas cidades, uma esfera pública proletária pode florescer.
Em A condição da classe operária na Inglaterra, o jovem Engels retrata um proletariado cujo "fazer" é tanto o resultado da urbanização quanto da industrialização.
“Se a centralização da população estimula e desenvolve a classe detentora de propriedade, ela força o desenvolvimento dos trabalhadores ainda mais rapidamente... As grandes cidades são os locais de nascimento dos movimentos trabalhistas; nelas, os trabalhadores começaram a refletir sobre sua própria condição e a lutar contra ela; nelas, a oposição entre o proletariado e a burguesia se manifestou pela primeira vez… Sem as grandes cidades e a sua influência forçada sobre a inteligência popular, a classe trabalhadora seria muito menos avançada do que é... [As cidades] destruíram os últimos resquícios da relação patriarcal entre trabalhadores e empregadores” (47).
Engels, que muitas vezes se queixou da piedade sufocante de sua própria origem burguesa, ficou surpreendido com a indiferença casual e quase universal dos trabalhadores de Londres para com a religião organizada e o dogma espiritual. “Todos os escritores da burguesia são unânimes neste ponto, que os trabalhadores não são religiosos e não frequentam a igreja” (48). Enquanto isso, em Paris, onde a Deusa da Razão foi brevemente entronizada em Notre Dame em 1792, o anticlericalismo militante estava profundamente arraigado na pequena burguesia republicana e também entre os artesãos socialistas. Mas o exemplo mais dramático, e talvez surpreendente, foi Berlim, a Chicago da Europa, onde em 1912 os socialistas estavam ganhando 75% dos votos e os distritos mais pobres eram considerados completamente “descristianizados”. A classe trabalhadora de Berlim, como a África, era uma fronteira missionária (49).
Se o secularismo representava um modo de “integração negativa” na sociedade capitalista, outro era o surgimento de instituições alternativas que disputavam os valores burgueses em praticamente todo o espectro da vida quotidiana. As ideias do socialismo e do anarco-comunismo incorporaram-se nas contraculturas populares letradas e bem organizadas, que projetavam as solidariedades do local de trabalho e da vizinhança para todas as esferas da recreação, educação e cultura. Por volta de 1910, praticamente todas as cidades ou vilas industriais tinham um impressionante edifício central para reuniões de trabalhadores, escritórios de sindicatos, jornais do partido e coisas desse género. A típica maison du peuple ou casa del pueblo tinha uma biblioteca, um teatro ou cinema, instalações desportivas e, às vezes, uma clínica médica. Algumas eram visionárias catedrais do povo: La Maison du Peuple de Bruxelas, a Urania em Viena e a Volkshaus em Leipzig. (Os construtivistas da antiga União Soviética deram o próximo passo e fizeram dos clubes de trabalhadores – sedeados em obras-primas modernistas como o Zuev e o Rusakov em Moscovo - os eixos da nova cultura e das suas esperanças utópicas.)
O exemplo mais célebre de uma contracultura proletária foi o vasto universo de clubes de ciclismo, de caminhadas e de canto, as equipes desportivas, escolas para adultos, sociedades de teatro, grupos de leitores, clubes juvenis, grupos naturalistas e similares, patrocinados pelo SPD e pelos sindicatos alemães. No período das leis anti-socialistas (1878 a 1890), essas associações de trabalhadores forneceram um abrigo legal crucial para as reuniões de trabalhadores e o treino de ativistas. No seu importante livro The Alternative Culture (1985), Vernon Lidtke contestou a alegação de alguns historiadores de que esse “mundo proletário próprio” eventualmente se tornou hermético demais para constituir uma ameaça radical ao sistema Guilhermino. “Essa alternativa pode ser chamada radical não porque propunha derrubar o Kaiserreich com um só golpe audaz, mas porque incorporava, nos seus princípios, uma conceção da produção, das relações sociais e das instituições políticas que rejeitava as estruturas, práticas e valores existentes, em quase todos os pontos”. Certamente, o estado via as atividades culturais socialistas como uma ameaça subversiva, especialmente para a doutrinação nacionalista da juventude. Assim, “na véspera da guerra, em 2 de julho de 1914, o Kaiser aprovou uma medida para estabelecer uma organização nacional de jovens obrigatória para todos os meninos entre os treze e dezassete anos”, sob o comando de oficiais aposentados (50).
A real fraqueza da contracultura alemã, diz Lidtke, era a ênfase posta pelo SPD em democratizar a alta cultura burguesa, em vez de explorar a “possibilidade de que os trabalhadores... pudessem desenvolver uma cultura única do movimento trabalhista, que se inspirasse diretamente na vida dos próprios trabalhadores” (51). Isto não era um problema na Catalunha, onde o anarco-sindicalismo era culturalmente libertário e dificilmente haveria qualquer estrato burocrático ou reformista no movimento operário. Em nenhum lugar da Europa havia sindicatos e bairros tão fortemente unidos na luta como em Barcelona, onde a Confederación Nacional del Trabajo (que em 1918 tinha 250.000 membros na cidade e seus arredores fabris) um dia organizava uma greve e no dia seguinte proveria “escoltas armadas para grupos de mulheres da classe trabalhadora que requisitavam comida nas lojas” (52). A maioria do proletariado fabril - desprezado pela classe média catalã - era imigrante de Múrcia e Andaluzia e, com a ajuda de ricas tradições comunitárias, construiu a sua própria sociedade alternativa, antinacionalista e fluente no esperanto, nas favelas mais tuberculosas e violentas da Europa.
Sobredeterminações
7.
O movimento operário pode e deve enfrentar o poder do capital em todos os aspetos da vida social, organizando a resistência nos terrenos do económico, do político, do urbano, do social-reprodutivo e do associativo. É a fusão ou síntese dessas lutas, ao invés de sua simples adição, que investe o proletariado com agência histórica.
Marx e Engels, por exemplo, acreditavam claramente que a consciência socialista das massas seria uma liga dialética do económico e do político, de batalhas épicas sobre direitos, bem como sobre salários e jornadas de trabalho, de amargas lutas locais e grandes causas internacionais. Desde a formação da Liga Comunista em 1847, eles argumentaram que o trabalho assalariado constituía a única força social séria capaz de apresentar e prosseguir um programa democrático consistente de sufrágio e direitos, assim fornecendo a cola hegemónica para unir uma ampla coligação de trabalhadores, camponeses pobres, minorias nacionais e estratos radicalizados da classe média. Enquanto a mente da pequena burguesia liberal facilmente amputou os direitos políticos das queixas económicas, a vida dos trabalhadores refutou qualquer distinção categórica entre opressão e exploração. O "crescimento" da democracia política para a económica e da luta de classes económica para a questão do poder estatal - o processo que Marx caracterizou como "revolução permanente" nos contextos de 1848 e do Cartismo - foi o principal motivo de uma crise pré-revolucionária.
Mas porque as lutas económicas e os conflitos políticos são sincronizados apenas episodicamente - geralmente durante a depressão ou a guerra -, havia também uma forte tendência à sua bifurcação. As ilusões inversas, mas simétricas, do economicismo/sindicalismo (progresso apenas da organização económica) e do cretinismo parlamentar (reformas sem apoderamento no local de trabalho) sempre exigiram uma limpeza regular no jardim vermelho. Assim, para Rosa Luxemburgo, a lição central da revolução de 1905 na Rússia foi a necessidade de entender o económico e o político como momentos de um único processo revolucionário:
“Numa palavra: a luta económica é o transmissor de um centro político para um outro; a luta política é a fertilização periódica do solo para a luta económica. Causa e efeito aqui mudam continuamente de lugar; e assim o fator económico e o político, no período da greve de massas, agora amplamente distintos, completamente separados, ou mesmo mutuamente excludentes, como o plano teórico os conceberia, formam apenas os dois lados entrelaçados da luta de classes proletária na Rússia. E a sua unidade é precisamente a greve de massas. Se a sofisticada teoria propõe fazer uma inteligente dissecação lógica da greve de massas com o propósito de chegar à «greve de massas puramente política», será por essa dissecação, como com qualquer outra, que não se percebe o fenômeno em sua essência viva, mas vai matá-lo completamente” (53).
No seu notável livro sobre a construção da classe trabalhadora coreana, a mais militante da Ásia, Hagen Koo enfatiza o diálogo contínuo entre as lutas de base na fábrica e a resistência populista ao Estado: um exemplo moderno da sobredeterminação do económico pelo político e vice-versa - e, neste caso, também pelo indigenismo cultural. Sem tradição herdada da classe trabalhadora e confrontados com um regime repressivo e pró-patronal dotado de um enorme aparato de segurança, os trabalhadores coreanos, em especial mulheres jovens nas indústrias manufatureiras leves, extraíram força inesperada da sua aliança com o extraordinário movimento de minjung (massas) surgido em meados da década de 1970:
“Esse amplo movimento populista foi dirigido por intelectuais e estudantes dissidentes e visava forjar uma ampla aliança de classes entre trabalhadores, camponeses, moradores urbanos pobres e intelectuais progressistas contra o regime autoritário…. Introduziu nova linguagem política e atividades culturais reinterpretando a história coreana e reapropriando-se da cultura indígena da Coreia do ponto de vista do minjung.… Assim, cultura e política têm papéis críticos na formação da classe trabalhadora sul-coreana, não nos papéis habituais a ela atribuídos na literatura sobre desenvolvimento do Leste Asiático - como fatores de docilidade e quietude laboral - mas como fontes de resistência e crescente consciência” (54).
8.
A proximidade espacial na cidade industrial entre produção e reprodução, moinho satânico e favela, reforçou a consciência de classe autónoma. As lutas de classes urbanas, especialmente aquelas que lidavam com emergências de abrigo, comida e combustível, eram tipicamente conduzidas por mães da classe trabalhadora, os heróis esquecidos da história socialista.
O pecado original dos partidos da Segunda Internacional era seu apoio tépido ou mesmo oposição ao sufrágio e à igualdade económica das mulheres. No entanto, como nos lembra David Montgomery, “mulheres casadas, cuidando de seus filhos em bairros sombrios e congestionados, enfrentando credores, funcionários da caridade e a sinistra autoridade do clero eram lembradas da sua pertença de classe tão regularmente quanto os seus maridos, filhas e filhos (55). As mães, além disso, eram as típicas organizadoras das greves às rendas, das manifestações contra a escassez de combustível e dos tumultos do pão, a forma mais antiga de protesto plebeu. A Revolução Russa de 1917, devemos lembrá-lo, começou no Dia Internacional da Mulher, quando “milhares de donas de casa e mulheres trabalhadoras enfurecidas pelas intermináveis filas de pão se derramaram pelas ruas de Petrogrado, gritando 'Abaixo os altos preços' e 'Abaixo a fome' (56). Na sua analiticamente aguda história do socialismo europeu, Geoff Eley dá à vizinhança de favela igual peso à fábrica na formação da consciência socialista. “Não menos vital eram as formas complexas pelas quais os bairros falavam e reagiam. Se o local de trabalho era uma fronteira de resistência, onde poderia ser imaginada a agência coletiva, a família - ou, mais apropriadamente, as solidariedades de bairro da classe trabalhadora, criadas para a sua sobrevivência - era a outra… O desafio para a esquerda era organizar-se em ambas as frentes da desapropriação social” (57).
Poderes
9.
Ler “deflagrou insurreições na mente dos trabalhadores” (58). A luta em grande parte bem-sucedida pela alfabetização da classe trabalhadora no século XIX, acompanhada por uma revolução tecnológica nos media impressos, trouxe o mundo - como notícias, literatura, ciência ou simplesmente como sensação - para a rotina diária do proletariado. O rápido crescimento da imprensa trabalhista e socialista no último quartel do século alimentou a consciência política cada vez mais sofisticada nas fábricas, favelas e bairros operários.
Nas formações sociais anteriores, os produtores diretos tinham pouco acesso ou necessidade de aprendizagem formal - geralmente uma prerrogativa da igreja ou de uma classe de escribas -, mas a Revolução Francesa gerou um apetite popular insaciável por alfabetização e educação. Os trabalhadores industriais, assim, herdaram uma rica tradição autodidata dos intelectuais artesãos de Paris e Lyon, que foram os pioneiros do socialismo, e de seus colegas ingleses, que adaptaram a economia política clássica à agenda do Cartismo. Como Marx sempre reconheceu, o desenvolvimento da “teoria do valor-trabalho” ricardiana no sentido de uma crítica poderosa da exploração, geralmente atribuído a ele, foi realmente alcançado por intelectuais plebeus como John Bray, o tipógrafo nascido na América, o operário escocês John Gray, bem como o marinheiro sentenciado em tribunal marcial e jornalista rebelde Thomas Hodgskin. Da mesma forma, vários dos cientistas ingleses mais importantes do século XIX eram plebeus autodidatas, nomeadamente Michael Faraday (um aprendiz de encadernador), Alfred Russell Wallace (agrimensor) e o teórico da Idade do Gelo, James Croll (empregado universitário).
Por volta de meados do século, largos setores da classe trabalhadora, especialmente na Inglaterra e nos Estados Unidos, estavam tão avidamente a par das notícias e eventos da atualidade quanto as classes médias. De facto, os jornais, escreveu Marx nos Manuscritos de 1861-63, agora “fazem parte dos meios necessários para a subsistência do trabalhador urbano inglês” (59). No início dos anos 1840, os cartistas, por si sós, publicaram mais de cem brochuras e revistas (60). O próprio Marx, é claro, foi um jornalista (como também Trotsky) - o único emprego que ele alguma vez teve - e o surgimento de partidos socialistas de massas no final do século XIX teria sido inimaginável sem o dramático crescimento da imprensa operária e da contranarrativa da história contemporânea que ela apresentou.
Em Dez dias que abalaram o mundo, John Reed ficou maravilhado com a guerra de imprensa entre classes e frações:
“Em todas as cidades, na maioria das vilas, ao longo da frente, cada fação política tinha o seu jornal - por vezes vários. Centenas de milhares de panfletos foram distribuídos por milhares de organizações e despejados nos exércitos, nas aldeias, nas fábricas e nas ruas. A sede de educação, por tanto tempo frustrada, explodiu com a revolução num furor de expressão. Só do Instituto Smolny, nos primeiros seis meses, saíam todos os dias toneladas de literatura, camionetas e comboios carregados dela, saturando a terra. A Rússia absorveu material de leitura como a areia quente bebe água, insaciável” (61).
10.
O proletariado, disse Wilhelm Liebknecht aos socialistas alemães, era o "portador da cultura moderna" (62). O seu interesse pela ciência, em particular, prefigurou o papel do trabalho numa futura comunidade.
Da mesma forma, trabalhadores vitorianos lotavam salas de leitura, institutos de mecânica, bibliotecas baratas, ateneus e auditórios públicos. Os institutos de mecânica, inspirados pelas famosas palestras do Dr. George Birkbeck aos artesãos de Glasgow de 1800 a 1804, alimentaram a fome popular de entender a ciência das novas máquinas e motores principais. O primeiro instituto foi criado em Glasgow em 1821; quando Marx se mudou para o Soho, havia mais de setecentos (63).
Na década de 1850, as secções cientificamente letradas das classes trabalhadoras ofereciam enormes audiências para controvérsias na vanguarda do conhecimento, especialmente durante a guerra cultural que se seguiu à publicação de A Origem das Espécies. Os mecânicos e artesãos londrinos que se reuniram nas Palestras a Trabalhadores de Thomas Huxley, foram, segundo o próprio Huxley, “tão atentos e inteligentes quanto o melhor público a quem eu já lecionei… Evitei deliberadamente a impertinência de falar com eles de cima para baixo” (64). Wilhelm Liebknecht, o veterano de 1848, mais tarde fundador do SPD, recordou com carinho ter assistido com Karl Marx a seis dessas palestras, ficando depois acordado toda a noite discutindo Darwin com entusiasmo. Todo o lar de Marx, de facto, foi apanhado pelos grandes debates. (A Sr.ª) Jenny Marx gabou-se a um amigo suíço da extraordinária popularidade das “Noites de domingo para o povo”. “Em relação à religião, um grande movimento está atualmente em desenvolvimento na velha e abafada Inglaterra. Os principais homens de ciência, com Huxley (o discípulo de Darwin) à frente, juntamente com Tyndall, Sir Charles Lyell, Bowring, Carpenter, etc., dão palestras muito esclarecedoras, verdadeiramente livres e ousadas, para as pessoas no St. Martin's Hall (de gloriosa memória valsante) e, o que é mais, nas tardes de domingo, exatamente no momento em que os cordeiros geralmente pastam nos pastos do Senhor; o salão estava cheio e o entusiasmo do povo era tão grande que, na primeira noite, quando fui para lá com as meninas, duas mil pessoas não conseguiram entrar na sala, que estava lotada” (65).
11.
O proletariado organizado possui poderes sem precedentes de rotura económica e sócio-espacial. A greve geral era a "bomba atómica" da classe trabalhadora vitoriana.
O sistema fabril e o mercado mundial dão origem a nós geoestratégicos cruciais como redes ferroviárias, cadeias de abastecimento para a produção, redes elétricas, centros de ferramentas e matrizes, complexos da indústria bélica e assim por diante, cuja toma ou paralisação, por grupos relativamente pequenos de trabalhadores, podem paralisar economias inteiras. A greve de massas, iniciada por meio milhão de mineiros britânicos e trabalhadores têxteis em 1842 (os motins de Plug), era rara na época de Marx, tornando-se porém cada vez mais comum no final do século, com a greve geral belga (pelo sufrágio universal) em 1893 e a greve Pullman em 1894, apenas alguns meses antes da morte de Engels. Os radicais europeus e norte-americanos, no entanto, dividiram-se sobre as dinâmicas sociais e as implicações estratégicas de tais revoltas. Para Bernstein e outros “revisionistas” na Segunda Internacional, o advento da greve geral ratificou a crença num caminho pacífico para a revolução, com o poder sindical mobilizado para garantir que uma futura maioria social-democrata pudesse implementar a sua plataforma no Parlamento, de forma não violenta. (Na verdade, o próprio Marx especulara precisamente sobre a existência de uma tal possibilidade na Inglaterra e talvez nos Estados Unidos).
Para os anarco-sindicalistas, por outro lado, a greve geral prometia libertar a espontaneidade militante e a imaginação social muito para além da capacidade que os políticos socialistas e os chefes sindicais têm para a canalizar e controlar. No limite, Georges Sorel teorizou a greve geral como a porta apocalíptica para um novo mundo e o necessário "mito em que o socialismo se encontra totalmente compreendido" (66).
Rosa Luxemburgo, no entanto, rejeitou as interpretações revisionistas e sindicalistas das grandes ondas grevistas do início do século XX. Analisando a primeira revolução russa, bem como as enormes manifestações socialistas contemporâneas por sufrágio universal na Europa Central, ela escreveu que a greve não era "um ato isolado, mas um período inteiro da luta de classes", no qual, “a incessante ação recíproca entre as lutas políticas e económicas” criou cenários explosivos e imprevisíveis que desafiaram a extraordinária inventividade dos militantes de base. Ela foi uma das primeiras socialistas a prestar atenção à microestrutura da radicalização proletária (aquilo que Trotsky mais tarde designaria como "o trabalho molecular do pensamento revolucionário") e, longe de construir um culto fetichístico da espontaneidade, como muitas vezes foi acusada, as suas cruciais reflexões sobre a auto-organização proletária faziam parte de uma crítica devastadora da auto-imagem que o SPD fazia dos seus dirigentes eleitos como o quartel-general de um exército obediente de sindicalistas e eleitores socialistas (67). (Ironicamente, foi Lenine, não Luxemburgo, quem afirmou, à luz das insurreições de 1905, que os trabalhadores eram "instintivamente, espontaneamente, social-democratas") (68).
12.
Os trabalhadores podem administrar as fábricas. Até à Primeira Guerra Mundial, grande parte da ciência da produção aplicada continuava sendo quase propriedade dos metalúrgicos e de outros artesãos.
Dada a especialização inerente à divisão industrial do trabalho e a perda de habilidades complexas que acompanham a mecanização do processo de trabalho, onde encontrarão os trabalhadores a competência para administrar a economia numa comunidade socialista? Em Os Princípios do Comunismo, Engels é contundente. “A gestão comum da produção não pode ser efetuada pelas pessoas como elas são hoje, cada uma delas sendo designada para um único ramo de produção, algemada a ele, explorada por ele, cada uma delas tendo desenvolvido apenas uma das suas habilidades à custa de todas as outras, conhecendo apenas um ramo, ou apenas um galho de um ramo da produção total”. A sua solução foi um sistema de educação universal que desenvolvesse indivíduos com competências multifacetadas. “A organização comunista da sociedade dará aos seus membros a possibilidade de um exercício polivalente de habilidades que receberam um desenvolvimento integral” (69).
Mas como seria, então, colmatada a lacuna entre a força de trabalho desqualificada do capitalismo e a de uma sociedade socialista polivalente? A resposta, que Engels não fornece, era a nova elite de desenhadores, modelistas, instaladores, torneiros e outros trabalhadores metalúrgicos de precisão trazidos pela Revolução Industrial. A progressiva subordinação da maioria da força de trabalho à maquinaria foi acompanhada pelo aumento do conhecimento e do poder negocial dos trabalhadores que construíram, instalaram e mantiveram as máquinas: um fenómeno que David Montgomery caracterizou como "o cérebro do gestor sob o boné do operário". Embora as suas habilidades fossem novas, o seu controlo do conhecimento artesanal, em grande parte secreto, era padronizado de acordo com os artesãos a quem haviam sucedido, com longos aprendizados, rituais tribais e padrões estritamente mantidos de uma “justa jornada de trabalho” (70). Antes de os engenheiros de formação universitária se tornarem uma parte crucial da hierarquia industrial, nas décadas de 1910 e 1920, e de a administração científica captar e decompor substancialmente o conhecimento artesanal, o controlo capitalista completo do processo de trabalho (a "apropriação real", nos termos de Marx) era impossível (71).
Os ofícios do metal ocupavam uma posição crítica, mas frequentemente ambígua, no movimento trabalhista como um todo. Nelson Lichtenstein observa: “Por causa de sua autoconfiança e do seu lugar vital na ordem de produção, artesãos qualificados podiam ser encontrados na vanguarda daqueles que representavam um desafio radical à ordem industrial existente e, quase simultaneamente, também entre aqueles trabalhadores que eram mais empreendedores e ciosos da sua carreira na sua mentalidade” (72). Antes da Primeira Guerra Mundial, relutavam em se juntar às lutas dos semiqualificados, mas durante os cataclísmicos anos de 1917 a 1919 - quando mulheres e jovens eram recrutados em massa para as fábricas de guerra - os metalos forneceram liderança aos movimentos de conselhos de trabalhadores em Barcelona, Berlim, Glasgow, Seattle e Viena, bem como aos partidos proto-comunistas que emergiram das greves gerais e insurreições. Em Petrogrado, de 1917, brevemente em Turim, em 1920, e novamente em Barcelona, em 1936 e 1937, comités de trabalhadores e delegados sindicais revolucionários administraram as fábricas por conta própria, confirmando os piores pesadelos dos patrões (73).
Uma classe para si
13.
Devido à sua posição na produção social e à universalidade de seus interesses objetivos, o proletariado possui uma “capacidade epistemológica” superior para ver a economia como um todo e desvendar o mistério do aparente movimento do capital (ver as teses de Lukács).
A burguesia e o proletariado são as únicas “classes puras” da sociedade moderna, mas não são simétricas na sua formação interna ou na sua capacidade para a consciência. A competição entre empresas e setores é a lei do capitalismo, mas a competição entre trabalhadores pode ser melhorada pela organização. Marx foi explícito: “Se todos os membros da burguesia moderna têm os mesmos interesses, na medida em que formam uma classe contra outra classe, eles têm interesses opostos e antagónicos na medida em que se colocam face a face uns contra os outros” (74). O interesse próprio racional, argumentou Lukács, seguindo Marx, significa que os proprietários individuais de capital “não podem ver e são necessariamente indiferentes a todas as implicações sociais de suas atividades”. O “véu estendido sobre a natureza da sociedade burguesa” - isto é, a negação de sua própria historicidade - “é indispensável à própria burguesia… Desde muito cedo, a história ideológica da burguesia não passava de uma resistência desesperada a todos os vislumbres sobre a verdadeira natureza da sociedade que ela criara e, portanto, a uma compreensão real de sua situação de classe” (75). Para além disso, assim que o capital teve de confrontar um proletariado em ascensão, tirou a sua toga republicana e, pelo menos no continente, correu para os braços do absolutismo ou abraçou ditadores como Napoleão III e, mais tarde, Mussolini, Hitler e Franco.
O proletário, pobre e descamisado, tem melhor visão. “Como a burguesia”, diz Lukács, “tem a vantagem intelectual, organizacional e qualquer outra, a superioridade do proletariado deve residir exclusivamente na sua capacidade de ver a sociedade a partir do centro, como um todo coerente”. Numa famosa, mas variadamente interpretada, passagem de História e Consciência de Classe, ele introduz a ideia de “consciência de classe imputada” - as possibilidades objetivas e amadurecidas que o proletariado deve reconhecer agindo em conformidade, a fim de trazer a revolução. Em períodos pré-crise, entretanto, a classe trabalhadora tende a ser dominada pelas “atitudes pequeno-burguesas da maioria dos sindicalistas” e mistificada pela “separação conceitual e real dos vários teatros de guerra”. (“O proletariado acha a desumanidade económica a que é sujeito mais fácil de entender do que a política, e a política mais fácil do que a cultural” (76).
O principal obstáculo à consciência de classe é, além disso, menos a ideologia burguesa (ou a laboração ponderada dos "aparatos ideológicos de Estado" de Althusser) do que "o real funcionamento quotidiano da economia e da sociedade. Estes têm como efeito causar a internalização das relações mercantis e a reificação das relações humanas” (77). Na depressão e na guerra, porém, as contradições fissuram este palácio cristalino de realidades económicas e políticas reificadas, e o significado profundo do momento histórico “torna-se compreensível na prática”. É finalmente “possível ler da história o curso correto de ação a ser seguido”. Quem é esse leitor? “Os conselhos de trabalhadores trazem consigo a derrota política e económica da reificação” (78).
14.
Uma vontade coletiva revolucionária é cristalizada (e "cursos corretos de ação" decididos) principalmente através da rude democracia direta em períodos de extrema atividade de massas. A consciência de classe não é o programa do partido, mas sim a síntese das experiências proletárias e das lições aprendidas na guerra de classes prolongada.
Se os sindicatos e partidos de esquerda constituíram as instituições quase permanentes da esfera pública proletária, a luta de classes gerou episodicamente formas ad hoc tais como comités de greve geral, conselhos de trabalhadores e sovietes que expandiram dramaticamente a participação popular no debate e na tomada de decisões para incluir o proletariado não partidário e os trabalhadores desorganizados, bem como, em certos casos, os desempregados, os estudantes, as mães da classe trabalhadora e os soldados e marinheiros. Seja em Bremen, Glasgow, Petrogrado ou Winnipeg (com sua greve geral em 1919), a “democracia do movimento” reproduziu muitas das características clássicas de 1792 e 1871: grandes disputas de oratória, audiências indisciplinadas e vozes fortes da plateia, delegados reportando de volta às suas organizações fabris ou de bairro, reuniões durante toda a noite, uma enxurrada de panfletos e manifestos, o trabalho incessante dos comités, a organização de piquetes e guardas de trabalhadores, rumores e batalhas contra os rumores e, é claro, a competição entre partidos e fações.
A previsível oposição de chefes sindicais conservadores e socialistas moderados a táticas radicais, como ocupações de fábricas e greves de massas, e especialmente ao armamento dos trabalhadores, precipitou o surgimento de novas lideranças, muitas vezes a partir das bases anónimas. Um exemplo paradigmático foi o movimento clandestino antiguerra dentro das enormes fábricas de armamentos de Berlim. O núcleo (que, segundo Pierre Broué, "nunca contou com mais de cinquenta membros") era constituído por habilidosos torneiros, partidários da extrema esquerda, que construíram
“um tipo único de organização, nem um sindicato nem um partido, mas um grupo clandestino tanto nos sindicatos como no Partido [SPD]… Eles poderiam colocar em ação, com a ajuda de algumas centenas de homens que influenciavam diretamente, dezenas e centenas de milhares de trabalhadores, permitindo que eles tomassem suas próprias decisões sobre iniciativas ativas… Desconhecidos em 1914, no final da guerra eles seriam os dirigentes aceites dos trabalhadores de Berlim e, apesar da sua relativa juventude, os quadros do movimento socialista revolucionário” (79).
De facto, Broué considerava-os “a melhor gente da social-democracia”. Apesar da lenda de serem um partido ultracentralizado operando com perfeita disciplina conspiratória, os bolcheviques, com apoio maioritário nas grandes fábricas e na frota báltica, eram os promotores mais consistentes da democracia direta no mais amplo movimento revolucionário de 1917. Por exemplo, quando liberais e socialistas moderados propuseram uma Conferência de Estado Democrática para projetar um novo regime parlamentar, Lenine (que acabara de escrever O Estado e a Revolução) pediu uma mobilização total para expandir a participação popular:
“Vamos levar o assunto mais aos que estão abaixo, às massas, aos empregados de escritório, aos trabalhadores, aos camponeses, não apenas aos nossos partidários, mas particularmente àqueles que seguem os socialistas-revolucionários, aos elementos não partidários, aos ignorantes. Vamos elevá-los para que possam fazer um julgamento independente, tomar suas próprias decisões, enviar suas próprias delegações à Conferência, aos Sovietes, ao governo e o nosso trabalho não terá sido em vão, não importa qual venha a ser o resultado a Conferência” (80).
No seu célebre estudo do processo revolucionário em Petrogrado, Alexander Rabinowitch colocou o estereótipo bolchevique de pernas para o ar. Explicando a atratividade do partido para a maioria da classe trabalhadora da cidade, ele apontou para “a sua estrutura interna e método de operações relativamente democráticos, tolerantes e descentralizados, bem como o seu caráter essencialmente aberto e de massas… dentro da organização bolchevique de Petrogrado, em todos os níveis, em 1917, continuavam discussões e debates livres e animados sobre as questões teóricas e táticas mais básicas” (81). De facto, era exatamente assim que Preobrazhenski olhava retrospetivamente para outubro, quando tentava explicar, em 1920, a relação entre a recente erosão da democracia partidária e o “declínio da espontaneidade” no proletariado:
“Comparando a vida do partido no final de 1917 e 1918 com a vida partidária em 1920, ficamos impressionados com a maneira como ela desapareceu precisamente entre as massas partidárias... Anteriormente, os comunistas de base sentiam que não estavam apenas implementando decisões partidárias, mas que estavam também a originá-las, que eles mesmos estavam a formar a vontade coletiva do Partido. Agora, eles implementam decisões partidárias tomadas por comités que muitas vezes não se preocupam em submeter as decisões a assembleias gerais” (82).
15.
O trabalho deve governar, porque a burguesia é incapaz de cumprir as promessas de progresso. Se o projeto socialista for derrotado, o resultado será a retrogressão da civilização como um todo.
O trabalho, argumentou Marx, pode arrancar reformas significativas do capital nos períodos de expansão, mas cada recessão elimina esses ganhos e revela níveis crescentes de desemprego e miséria. Embora tenha deixado pistas confusas sobre os mecanismos exatos da crise económica, não pode haver dúvida de que as suas teorias da revolução e da ascenção da consciência de classe assumiram a existência de uma crescente intensidade, frequência e alcance geográfico das crises industriais, talvez até uma “crise económica final”. Essa, é claro, era uma previsão genericamente acertada do ciclo económico de 1870 a 1940. Nenhum marxista, porém, previu a longa expansão do pós-guerra - ou, de fato, as revoltas radicais de estudantes e trabalhadores em 1968 e 1969, com relativo pleno emprego na Europa e na América do Norte. O "trabalhador abastado" tornou-se brevemente uma explicação académica popular para a desradicalização dos movimentos trabalhistas em alguns países avançados. Mas a história completou um círculo inteiro no início do século XXI; uma economia mundial que não pode criar empregos ao ritmo do crescimento populacional, garantir a segurança alimentar ou adaptar os nossos habitats a mudanças climáticas catastróficas, pode razoavelmente ser julgada como um fracasso.
16.
Graças ao mercado mundial e à emigração em massa, o proletariado industrial é objetivamente constituído como uma classe internacional com interesses comuns que cruzam fronteiras nacionais e étnicas. Grandes campanhas internacionais, além disso, cristalizam a compreensão do proletariado sobre a sua vocação histórica mundial.
Concluindo o seu discurso na ceia inaugural dos Democratas Fraternos em Londres, em setembro de 1845, o cartista George Julian Harney declarou: "Repudiamos a palavra 'estrangeiro' - ela não existirá no nosso vocabulário democrático!" Engels, que relatou a reunião (chamou-lhe "um festival comunista") no Rheinische Jahrbücher, notou que a observação de Harney foi recebida com "grandes vivas" pelos delegados de nove nações. Houve repetidos brindes a Tom Paine, Robespierre e aos recém-deportados cartistas. “As grandes massas dos proletários”, escreve Engels, “são, por sua própria natureza, livres de preconceitos nacionais e toda a sua disposição e movimento são essencialmente humanitários, antinacionalistas” (83). Isto soa hoje incrivelmente ingénuo, mas pode ter sido uma observação razoavelmente precisa na véspera da “primavera dos povos”.
De facto, o movimento dos primeiros trabalhadores geralmente seguia os trilhos bem conhecidos da democracia revolucionária, celebrando a fraternidade internacional na crença confiante de que a revolução social seria necessariamente uma revolução mundial nos moldes de 1789. Grupos revolucionários conspiratórios como A Sociedade das Estações de Louis Auguste Blanqui e Armand Barbès eram desafiadoramente cosmopolitas na sua composição. Artesãos e trabalhadores migrantes transportavam ideias subversivas de um lado para outro, entre as principais cidades e centros industriais. Artesãos alemães, o maior grupo de trabalhadores imigrantes na Europa da Santa Aliança, estabeleceram postos avançados radicais na Grã-Bretanha, Suíça e América do Norte. Mas foi Paris, na década de 1840, a verdadeira capital do primeiro proletariado alemão, onde cerca de cinquenta mil “imigrantes indocumentados” de expressão alemã labutavam, em quartéis e em oficinas (84).
Nos seus escritos e discursos sobre a Guerra Civil Americana e a fundação da Primeira Internacional, Marx argumentou que a solidariedade internacional é o mais crucial desencadeador da consciência de classe e que a mobilização do trabalho à escala nacional é acelerada pela organização internacional dos seus destacamentos mais avançados. Mas ele também advertiu que nenhum movimento trabalhista poderia emancipar-se enquanto participasse política ou materialmente na opressão de outra nação ou raça. Em alguns dos seus mais ardentes artigos e discursos, ele argumentou que a liberdade negra era a pré-condição para uma política independente da classe trabalhadora norte-americana, assim como a liberdade irlandesa o era para uma classe trabalhadora radical britânica. No continente, a independência da Polónia, é claro, sempre foi a pedra de toque do internacionalismo democrático e depois socialista.
Em biologia, aprende-se sobre uma determinada espécie de lagarta que só pode cruzar o limiar da metamorfose ao ver a sua futura borboleta. A subjetividade proletária não evolui por etapas incrementais, mas requer saltos não-lineares, especialmente por meio do auto-reconhecimento moral através da solidariedade com a luta de um povo distante. Mesmo quando isso contradiz o seu interesse próprio de curto prazo, como nos famosos casos do entusiasmo dos trabalhadores de algodão de Lancashire por Lincoln e mais tarde por Gandhi, esses esforços não apenas antecipam um mundo além do capitalismo como avançam concretamente na marcha da classe trabalhadora em direção a ele.
O socialismo, por outras palavras, requer atores não-utilitários, cujas motivações e valores finais surgem de estruturas de sentimento que outros considerariam espirituais. Marx, com razão, flagelou o humanismo romântico em abstrato, mas o seu panteão pessoal - Prometeu e Espártaco, Homero, Cervantes e Shakespeare - afirma uma visão heróica das possibilidades humanas. Poderão essas possibilidades ser concretizadas no mundo de hoje, um mundo onde a "velha classe trabalhadora" foi despromovida na agência? Este artigo não responde a essa pergunta. Espero que ajude a estimular um debate contínuo que possa apontar o caminho a seguir.
(*) Mike Davis (n. 1946) é um ensaísta, teórico urbanístico, historiador e ativista político norte-americano, natural e residente no sul do estado da Califórnia (San Diego). Teve uma carreira académica muito tardia e irregular, tendo sido também operário e camionista. Militou na radical Students for a Democratic Society (SDS), no Congress of Racial Equality (CORE) e na secção regional californiana do Partido Comunista dos E.U.A., onde se cruzou com Angela Davis. É atualmente professor no Departamento de História da Universidade da California em Irvine. Define-se como socialista internacionalista e marxista ambientalista. A parte central da sua obra insere-se na tradição visionária de arquitetos/urbanistas como Lewis Mumford ou Garrett Eckbo. É editor da New Left Review e colaborador frequente de outras publicações como Socialist Review, The Nation, New Statesman ou Tom Dispatch. É ainda autor de numerosas obras, sempre de grande poder narrativo e argumentativo, em diversas áreas de investigação, com destaque para Prisoners of the American Dream (1986), City of Quartz: Excavating the Future in Los Angeles (1990), Ecology of Fear (2001), Late Vitorian Holocausts (2001), Dead Cities and Other Tales (2003), Planet of Slums: Urban Involution and the Informal Working Class (2006), Buda's Wagon: A Brief History of the Car Bomb (2007), In Praise of Barbarians: Essays against Empire (2007), Evil Paradises: Dreamworlds of Neoliberalism (2007). Tem escrito também algumas obras de ficção para jovens adultos. O texto que aqui apresentamos foi publicado originalmente no volume 1, n.º 2 (verão de 2017) da revista Catalyst. Uma versão bem mais extensa e desenvolvida constitui o ensaio de abertura do seu último livro Old Gods, New Enigmas: Marx's Lost Theory (Verso Books, 2018). A tradução é de Ângelo Novo.
_____________ NOTAS:
(1) “History in the ‘Age of Extremes’: A Conversation with Eric Hobsbawm” (1995), International Labor and Working-Class History, 83 (March 2013), p. 19.
(2) Mesmo na China, o seu crepúsculo pode estar no horizonte. O crescimento geral da classe trabalhadora chinesa, à medida que o campo foi enviando dezenas de milhões de suas filhas e filhos para trabalhar nas zonas costeiras de processamento de exportação, disfarça o declínio simultâneo do setor industrial estatal e as imensas dispensas verificadas entre os veteranos trabalhadores industriais. Veja-se Ju Li, “From ‘Master’ to ‘Loser’: Changing Working-Class Cultural Identity in Contemporary China”, International Labor and Working-Class History, 88 (Fall 2015): pp. 190–208.
(3) Estudos existem, por exemplo, que contrastaram o sentido amplamente inclusivo de “nós” da classe trabalhadora organizada francesa nos anos 1970, com a atual raiva contra os imigrantes muçulmanos e os jovens desempregados em geral. "Eles" agora inclui aqueles "abaixo" do proletariado tradicional, não só aqueles "acima" dele. Veja-se Michele Lamont e Nicolas Duvous, “How Has Neo-liberalism Transformed France’s Symbolic Boundaries?”, Culture and Society, 32, no. 2 (Summer 2014): pp. 57–75; Olivier Schwartz, “Vivons-nous encore dans une society des classes?” La Vie des Idées, September 22, 2009.
(4) A ameaça iminente de automação para a classe trabalhadora é uma história antiga. Os primeiros a dizer adeus ao proletariado foram Stuart Chase e o movimento da tecnocracia no início da década de 1930, seguidos por Norbert Weiner, Ben Seligman e o Comité sobre a Tripla Revolução, nos anos 1960, depois André Gorz em 1980. Todas as evidências apontam agora, contudo, para que o lobo esteja realmente à porta.
(5) Martin Ford, Rise of the Robots: Technology and the Threat of a Jobless Future (New York: Basic Books, 2015), p. 10.
(6) Existem, é claro, muitos precedentes para desvincular a tríade de urbanização, industrialização e modernização. Trotsky, por exemplo, caracterizou a Rússia czarista como um caso de “industrialização sem modernização”. (Veja-se a discussão fascinante in Baruch Knei-Paz, The Social and Political Thought of Leon Trotsky, Oxford: Oxford University Press, 1978, pp. 94–107.)
(7) Michael Goldman, “With the Declining Significance of Labor, Who Is Producing Our Global Cities?,” International Labor and Working-Class History, 87 (Spring 2015), pp. 137–64 (em Bangalore); Olu Ajakaiye et al., “Understanding the Relationship between Growth and Employment in Nigeria”, Brookings Paper, May 2016.
(8) David Neilson e Thomas Stubbs, “Relative Surplus Population and Uneven Development in the Neoliberal Era: Theory and Empirical Application,” Capital and Class, 35, no. 3 (2011): p. 451.
(9) Schwartz, ibid.. Os seus estudos etnográficos sobre o impacto do neoliberalismo na consciência dos mineiros, motoristas de autocarro e maquinistas nas duas últimas gerações são essenciais para qualquer compreensão de Nicolas Sarkozy ou Marine Le Pen.
(10) Simon Charlesworth, A Phenomenology of Working-Class Experience (Cambridge: Cambridge University Press, 2000), p. 2. Este é um relato dilacerante do custo humano da desindustrialização e da destruição de uma cultura tradicional do trabalho.
(11) Christian Marazzi, “Money and Financial Capital,” Theory, Culture, Society, 32 (2015): pp. 7–8, 42.
(12) Ellen Meiksins Wood, The Retreat from Class: A New “True” Socialism (London and New York: Verso, 1986), p. 5.
(13) Georg Lukács, History and Class Consciousness: Studies in Marxist Dialectics (Cambridge, MA: MIT Press, [1923] 1971), p. 46.
(14) International Review of Social History, 52 (2007): p. 478.
(15) Lukács, History and Class Consciousness, p. 46.
(16) Estas notas podem ser consideradas uma expansão aventureira das teses expostas em “The Special Class”, capítulo 2 de Hal Draper, Karl Marx’s Theory of Revolution, Vol II: The Politics of Social Classes (New York: Monthly Review, 1978), pp. 33–48. A trilogia de Draper, juntamente com sua The Marx-Engels Cyclopedia em dois volumes, são recursos insuperáveis para navegar e entender o legado político-teórico de Marx.
(17) Alex Callinicos, Making History: Agency, Structure, and Change in Social Theory (Leiden, Netherlands: Brill, [1987] 2005.
(18) Secções do famoso trabalho de Tronti apareceram em inglês, mas no geral aguardamos a conclusão da próxima tradução da editora Verso. Nesse ínterim, o seu ensaio seminal “Lenin in England” oferece uma versão anterior desse argumento.
(19) Num dos seus primeiros artigos em Londres ("Review / May to October, 1850"), Marx primeiro argumentou que as revoluções de 1848 foram inflamadas pela crise económica de 1847 e que o momento revolucionário terminou com o retorno da prosperidade no final de 1849. Mais tarde, ele incorporou este artigo como Parte Quatro de As Lutas de Classes em França.
(20) O texto chave é V. I. Lenin, “The Impending Catastrophe and How to Combat It”, Collected Works, Vol. 25 (Moscow: Progress Publishers, [1917] 1964), pp. 323–69.
(21) David Shaw, “Happy in Our Chains? Agency and Language in the Postmodern Age”, History and Theory, 40 (December 2001): pp. 19, 21.
(22) A época da guerra de resistência e da libertação nacional sob a liderança comunista é ainda mais rica em analogias para pensar sobre a formação de classes e a capacidade revolucionária contemporânea, mas tratemos as primeiras coisas primeiro.
(23) Marc Mulholland, “Marx, the Proletariat, and the ‘Will to Socialism’”, Critique, 37, no. 3 (2009): pp. 339–40.
(24) “A cabeça dessa emancipação é a filosofia, o seu coração é o proletariado. A filosofia não pode ser feita uma realidade sem a abolição do proletariado, o proletariado não pode ser abolido sem que a filosofia se torne uma realidade.” V. I. Lenin, Collected Works, Vol. 4 (Moscow: Progress Publishers, 1960), p. 187.
(25) V. I. Lenin, “1844 Introduction,” Collected Works, Vol. 3 (Moscow: Progress Publishers, 1960), p. 186.
(26) Ibid., 186–87; V.I. Lenin, Collected Works, Vol. 6 (Moscow: Progress Publishers, 1961), p. 176.
(27) André Gorz, Strategy for Labor (Boston: Beacon Press, 1967), p. 3.
(28) David Montgomery, “Commentary and Response”, Labor History, 40, no. 1 (1999): p. 37.
(29) Raphael Samuel, “Mechanization and Hand Labour in Industrializing Britain,” in Lenard Berlanstein (ed.), The Industrial Revolution and Work in Nineteenth-Century Europe (London: Routledge, 1992), p. 38. Do ponto de vista do trabalho necessário, criador de valor de uso na sociedade, no entanto, o trabalho doméstico não remunerado das mães e esposas da classe trabalhadora pode ter contribuído com a maior parte. Não encontrei nenhuma estimativa vitoriana, mas para os E.U.A., nos anos 1950 e 60, Nordhaus e Tobin estimaram que o trabalho doméstico não remunerado equivalia a 50% do PIB. Veja-se William Nordhaus and James Tobin, “Is Growth Obsolete?” in Economic Research: Retrospect and Prospect, vol. 5, editado pelo National Bureau of Economic Research (New York: National Bureau of Economic Research, 1972).
(30) Para um tratamento sofisticado desta distinção e suas implicações para a formação de classes, veja-se David Neilson, “Formal and Real Subordination and the Contemporary Proletariat: Re-coupling Marxist Class Theory and Labour-Process Analysis”, Capital and Class, 31, no. 1 (Spring 2007): pp. 89–123.
(31) Isso não é afirmar que os trabalhadores industriais eram inicialmente os mais conscientes ou politicamente radicais; o oposto era às vezes verdadeiro, com artesãos semi-proletarizados e artesãos de pequenas lojas - alfaiates e tipógrafos acima de tudo - continuando a formar um meio revolucionário até a década de 1870 ou até mais tarde.
(32) Em "Princípios do Comunismo", um rascunho do Manifesto do Partido Comunista, Engels proclamou: "Enquanto não for possível produzir tanto que, não só exista o suficiente para todos, mas também um excedente para o aumento do capital social e para o desenvolvimento das forças produtivas, deverá haver sempre uma classe dominante, que dispõe das forças produtivas da sociedade, e uma classe pobre e oprimida”. Karl Marx e Friedrich Engels, Collected Works, vol. 6 (New York: International Publishers, [1845–48] 1976), p. 349.
(33) Grundrisse, pp. 704–08. Inversamente, a supressão do tempo livre e sua conversão em labuta disciplinada era vista pela burguesia como o próprio fundamento da indústria, se não da civilização. Marx cita o precoce economista Cunningham (1770): “Há um consumo muito grande de luxos entre os trabalhadores pobres deste reino; particularmente entre a população industrial, que eles também consomem seu tempo, o mais fatal de todos os seus consumos”. Karl Marx e Friedrich Engels, Collected Works, vol. 34 (New York: International Publishers, [1863–64] 1993), p. 294.
(34) “O problema, como ele o vê, não é uma redistribuição mais justa ou igual da riqueza existente. Para Marx, o comunismo é a criação de novas riquezas, novas necessidades e condições de satisfação”. Shlomo Avineri, The Social and Political Thought of Karl Marx (Cambridge: Cambridge University Press, 1968), p. 64.
(35) Michael Lebowitz, “Review: Heller on Marx’s Concept of Needs”, Science and Society, 43, no. 3 (Fall 1979): pp. 349–50; Agnes Heller, The Theory of Need in Marx (London Allison & Busby, 1976).
(36) Marx e Engels distinguiram entre os falanstérios fourieristas e as colónias owenistas, que se colocavam à margem da luta de classes, e instituições cooperativas que eram partes integrantes dos movimentos dos trabalhadores.
(37) Sob o capitalismo “o trabalhador olha para a natureza social do seu trabalho, na sua combinação com o trabalho dos outros com vista a um propósito comum, como o faria para um poder estranho… A situação é bem diferente nas fábricas possuídas pelos próprios trabalhadores, como em Rochdale, por exemplo”. Karl Marx, Capital, Vol. II (Moscow: Progress Publishers, 1962), p. 85.
(38) Marx, “The General Council to the Federal Council of French Switzerland”, Karl Marx e Friedrich Engels, Collected Works, vol. 21 (New York: International Publishers, [1867–70] 1985), p. 86.
(39) Leon Trotsky, Platform of the Joint Opposition, capítulos 1 e 3 .
(40) Karl Marx e Friedrich Engels, Collected Works, vol. 1v (New York: International Publishers, [1844–45] 1975), p. 511.
(41) Karl Marx e Friedrich Engels, Collected Works, vol. 11 (New York: International Publishers, [1851–53] 1980), p. 187.
(42) Eric Hobsbawm, “Class Consciousness in History,” in István Mészáros (ed.), Aspects of History and Class Consciousness (London: Routledge, 1971), p. 9.
(43) Constantin Pecqueur, Economie sociale… sous l’influence des applications de la vapeur (Paris: Desessart, 1839), xii, pp. 62–63. Pecqueur, defensor de uma versão bastante sinistra do socialismo de Estado, foi ocasionalmente celebrado - por escritores franceses - como o "Marx francês". (Veja-se Joseph Marie, Le socialisme de Pecqueur, Paris 1906, pp. 66–67, 108–10.)
(44) Para um famoso estudo de um local de trabalho hobbesiano, maximamente fragmentado por raça, género e habilidade, ver Katherine Archibald, Wartime Shipyard: A Study in Social Disunity (Berkeley: University of California Press, 1947).
(45) O relato clássico, no século XX, do sindicalismo local como uma aliança elaboradamente forjada de culturas é Roger Friedlander, The Emergence of a UAW Local, 1936–1939: A Study in Class and Culture, (Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 1977).
(46) Marx e Engels, Collected Works, vol. 6, p. 211.
(47) Friedrich Engels, The Condition of the Working-Class in England, in Marx e Engels, Collected Works, vol. 4, p. 418.
(49) Hugh McLeod, Piety and Poverty: Working-Class Religion in Berlin, London and New York, 1870–1914 (New York: Holmes and Meier, 1996), 11, capítulo 1. Em Wedding, por exemplo, apenas 3% da população eram considerados comungantes.
(50) Vernon Lidtke, The Alternative Culture: Socialist Labor in Imperial Germany (Oxford: Oxford University Press, 1985), pp. 7–8, 17. No seu capítulo sobre canções e Liederbucher, Lidtke dá exemplos maravilhosos de socialistas satirizando o patriotismo guerreiro no estilo “burlesco” que Brecht mais tarde transferiu para o teatro.
(51) Ibid., p. 194.
(52) Chris Ealham, Class, Culture and Conflict in Barcelona, 1898–1937 (London: Routledge, 2005), p. 36.
(53) Rosa Luxemburgo, “The Mass Strike,” in The Essential Rosa Luxemburg, editado por Helen Scott (Chicago: Haymarket Books, [1906] 2008), p. 145. Num estudo estatístico de greves durante a revolução de 1905, Lenine empiricamente sufragou a análise de Luxemburgo. (CW 16, pp. 393–422.)
(54) Hagen Koo, Korean Workers: The Culture and Politics of Class Formation (Ithaca, NY: Cornell University Press, 2001), pp. 18–19.
(55) David Montgomery, The Fall of the House of Labor (Cambridge: Cambridge University Press, 1987), p. 1.
(56) Karen Hunt, “The Politics of Food and Women’s Neighborhood Activism in First World War Britain”, International Labor and Working-Class History, 77 (Spring 2010): p. 8.
(57) Geoff Eley, Forging Democracy: The History of the Left in Europe, 1850–2000 (Oxford: Oxford University Press, 2002), p. 58.
(58) Jonathan Rose, The Intellectual Life of the British Working Classes (New Haven, CT: Yale University Press, 2008), p. 8; Dennis Sweeney, “Cultural Practice and Utopian Desire in German Social Democracy: Reading Adolf Levenstein’s Arbeiterfrage (1912)”, Social History, 28, no. 2 (2003): pp. 174–99.
(59) Karl Marx, Economic Manuscripts of 1861–63, in Marx e Engels, Collected Works, vol. 34, p. 101 (“Relative Surplus Value”).
(60) Gregory Vargo, “‘Outworks of the Citadel of Corruption’: The Chartist Press Reports the Empire”, Victorian Studies, 54, no. 2 (Winter 2012): p. 231. Veja-se também Stephen Coltham, “English Working-Class Newspapers in 1867”, Victorian Studies, 13, no. 2 (December 1969).
(61) John Reed, Ten Days That Shook the World (London: Penguin Classics, 2007) p. 24.
(62) Gerhard Ritter, “Workers’ Culture in Imperial Germany”, Journal of Contemporary History, 13 (1978): p. 166.
(63) Martyn Walker, “‘Encouragement of Sound Education amongst the Industrial Classes’: Mechanics’ Institutes and Working-Class Membership, 1838–1881”, Educational Studies, 39, no. 2 (2013): p. 142. Walker desmascara a alegação de que os institutos eram dominados pelas classes médias: em vez disso, argumenta ele, representavam uma “convergência de interesses de classe”. “Os radicais da classe trabalhadora alinhavam-se com simpatizantes da classe média em relação à política e à autoajuda” (145).
(64) Citado em Ed Block, “T. H. Huxley’s Rhetoric and the Popularization of Victorian Scientific ideas: 1854–1874”, Victorian Studies, 29, no. 3 (Spring 1986): p. 369.
(65) Ralph Colp, “The Contacts Between Karl Marx and Charles Darwin”, Journal of the History of Ideas, 35, no. 2 (1974): pp. 329–38; e Jenny Marx, Letter to Johann Becker (29 de Janeiro, 1866), Karl Marx e Friedrich Engels, Collected Works, vol. 42 (New York: International Publishers, 1987), p. 568.
(66) Georges Sorel, Reflections on Violence (Glencoe, IL: Free Press, 1950), p. 145.
(67) Luxemburgo, “Mass Strike”, pp. 141, 147. Para a bem conhecida crítica de Trotsky sobre a "espontaneidade" veja-se “Who Led the February Insurrection?”, The History of the Russian Revolution (New York: Simon and Schuster, 1937), pp. 142–52. Além da revolução no império russo, um milhão de trabalhadores manifestou-se no reino austríaco e no alemão (especialmente na Saxónia). "Estima-se que 250.000 se manifestaram só em Viena". Veja-se Christoph Nonn, “Putting Radicalism to the Test: German Social Democracy and the 1905 Suffrage Demonstrations in Dresden”, International Review of Social History, 41 (1996): p. 186.
(68) Lenine, “The Reorganization of the Party” Collected Works, Vol. 10 (Moscow: Progress Publishers, [1905] 1962), p. 32; Phil Goodstein, The Theory of the General Strike from the French Revolution to Poland (New York: Columbia University Press, 1984), p. 153.
(69) Marx e Engels, Collected Works, vol. 6, p. 354.
(70) Veja-se Montgomery, Fall of the House of Labor, “Chapter 1: The Manager’s Brain Under the Workman’s Cap”. Engenheiros e químicos, no entanto, foram organizadores integrais das novas indústrias do século XX, particularmente dos produtos químicos e da maquinaria elétrica.
(71) O “desaparecimento do trabalhador qualificado polivalente”, escreve Gorz, “também implicou o desaparecimento da classe capaz de assumir o projeto socialista e traduzi-lo em realidade. Fundamentalmente, a degeneração da teoria e prática socialista tem aqui as suas origens”. Veja-se André Gorz, Farewell to the Working Class, (London: Pluto Press, 2001), p. 66.
(72) Nelson Lichtenstein, Walter Reuther: The Most Dangerous Man in Detroit (Urbana-Champaign: University of Illinois Press, 1995), p. 20.
(73) Vejamos um exemplo mais recente. Em 1974, como parte de uma greve geral contra a tentativa de Harold Wilson de trazer líderes católicos moderados para o governo do Ulster, os trabalhadores lealistas fecharam a fábrica elétrica de Ballylumford, que gerava a maior parte da eletricidade de Belfast. Engenheiros do Exército Britânico - totalmente desconcertados com os resultados de anos de ajustes ad hoc feitos pelos trabalhadores da energia - não conseguiram pôr a fábrica em funcionamento e Wilson foi humilhantemente forçado a abandonar as suas reformas. Um livro sobre a greve relatou pânico subsequente na OTAN, quando os seus planeadores perceberam que os trabalhadores comunistas em empresas francesas e italianas poderiam, sem dúvida, fazer a mesma coisa. Veja-se Don Anderson, 14 May Days (Dublin: Gill and MacMillan, 1994).
(74) Marx e Engels, Collected Works, vol. 6, p. 176.
(75) Lukács, pp. 63 e 66.
(76) Ibid, pp. 69 e 76–77.
(77) Stephen Perkins, Marxism and the Proletariat: A Lukácsian Perspective, Pluto, London 1993, p. 171.
(78) Lukács, History and Class Consciousness, traduzido por Rodney Livingston (Cambridge, MA: MIT Press, 1972), pp. 74, 80.
(79) Pierre Broué, The German Revolution, 1917–1923 (Chicago: Haymarket Books, [1971] 2006), p. 68.
(80) Lenin, “The Tasks of the Revolution”, in Collected Works, Vol. 26 (Moscow: Progress Publishers, [1917] 1964), p. 60.
(81) Alexander Rabinowitch, The Bolsheviks Come to Power: The Revolution of 1917 in Petrograd (Chicago: Haymarket Books, 2004), pp. 311–12.
(82) Preobrazhensky, citado na recensão de A. Marshall’s a The Preobrazhensky Papers in Critique, 43, no. 1 (2015): pp. 92–93.
(83) Discurso de George Julian Harney, reproduzido em Engels, “The Festival of Nations in London”, in Marx e Engels, Collected Works, vol. 6, p. 11.
(84) Jacques Grandjonc, “Les étrangers a Paris sous la monarchie de Juillet et la seconde République”, Population, 29 (March 1974): p. 84 (edição francesa). Stanley Nadel, observando que "o viajante médio permaneceu em Paris por um período limitado, aperfeiçoando seu ofício e depois prosseguindo", calculou que "entre 100.000 e meio milhão de veteranos das oficinas de Paris haviam retornado à Alemanha antes do final de década [1840]”. Veja-se Stanley Nadel, “From the Barricades of Paris to the Sidewalks of New York: German Artisans and the European Roots of American Labor Radicalism”, Labor History, 30, no. 1 (Winter 1989): pp. 49–50.
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