Primeiros pensamentos para uma fenomenologia dos bens comuns

 

 

Ugo Mattei (*)

 

 

Os bens comuns não são concessões. São recursos que pertencem ao povo como uma questão de necessidade vital. Todos têm o direito a uma parte igual dos bens comuns e devem ser autorizados por lei a reivindicar acesso igual e direto a ela. Todos têm igual responsabilidade para com os bens comuns e compartilham uma responsabilidade direta de transferir a sua riqueza para as gerações futuras. Os bens comuns se opõem radicalmente tanto ao Estado quanto à propriedade privada, moldados ambos pelas forças do mercado, e são fontes poderosas de emancipação e justiça social. No entanto, eles foram enterrados pelo discurso académico dominante, fundamentado no positivismo científico. Eles precisam de ser emancipados por uma autêntica mutação na sua percepção fenomenológica, a fim de poderem produzir emancipação.

 

A justiça social é buscada, nas democracias ocidentais, pelas instituições (atualmente em declínio) do Estado de Bem-Estar Social. O acesso a programas de justiça social é geralmente entendido como sendo proporcionado por “direitos de segunda geração”, que requerem uma obrigação específica do Estado de respeitá-los e garanti-los.

 

Essa visão, que coloca o ónus específico de satisfazer os direitos sociais sobre o governo, tem sido central para a evolução da jurisprudência ocidental. Desde a Revolução Científica e a Reforma, a justiça social foi expulsa do domínio central do direito privado. A noção escolástica do direito no século XVI - que se baseava em dois conceitos de justiça, a justiça distributiva e a justiça comutativa - foi abandonada no início da jurisprudência ocidental moderna. Começando com Grotius, no século XVII, as preocupações com a justiça eram equiparadas a questões de justiça nas trocas contratuais entre indivíduos. A distribuição era vista como aplicável a toda a sociedade e não apenas a suas partes, e era assumida como um facto social. Assim, as preocupações da justiça distributiva foram expulsas da ciência jurídica.

 

Outra mudança significativa ocorreu no século XVII, com a chamada revolução científica, que deu origem ao paradigma do positivismo e à sabedoria dominante da modernidade (Capra, 2009). De acordo com essa visão, os factos devem ser separados dos valores, sendo o mundo do “ser” claramente diferente daquele do “deveria ser”. A economia, desenvolvida como um ramo autónomo do conhecimento no século XVIII, compartilha tal visão. (Blaug 1962). A distribuição é considerada inteiramente no domínio de valores políticos (deveria ser) e não de fatos mensuráveis (é). Consequentemente, questões relacionadas a como os recursos devem ser distribuídos em uma sociedade justa foram expulsas, não apenas da lei, mas também do autoproclamado discurso científico da economia.

 

A justiça distributiva tornou-se, assim, uma questão de política a ser tratada (se for o caso) por instituições estatais de direito público e por regulação. O nascimento do Estado de Bem-Estar Social no início do século XX foi considerado como uma intervenção excepcional na ordem baseada no mercado, por meio de regulamentação, principalmente por meio de impostos, com o objetivo específico de garantir alguma justiça social aos membros mais fracos da sociedade. No Ocidente, desde então, a justiça social nunca foi capaz de capturar novamente o núcleo do discurso dos direitos e, consequentemente, permaneceu à mercê da crise fiscal: sem dinheiro, sem direitos sociais! (Mattei e Nicola 2006).

 

O conceito de bens comuns pode fornecer exatamente as ferramentas necessárias, tanto legal quanto politicamente, para lidar com a marginalização incremental da justiça social. Estando fora do duopólio Estado / Mercado, os bens comuns, como estrutura institucional, apresentam um paradigma jurídico alternativo, proporcionando uma distribuição mais equitativa dos recursos. Se adequadamente teorizado e politicamente percebido, os bens comuns podem desempenhar a função crucial de reintroduzir a justiça social no âmago do discurso jurídico e económico, capacitando as pessoas para a ação direta.

 

Vendo os bens comuns

 

A visão atual apresenta a oposição entre “o público” (o domínio do governo) e “o privado” (o domínio do mercado e da propriedade privada) como esgotando todo o leque de possibilidades, em uma espécie de jogo de soma zero. Essa oposição estéril é um produto da tradição modernista que ainda hoje domina o direito e a economia. Esconde os bens comuns da visão pública.

 

Os bens comuns fornecem serviços que muitas vezes são tomados como garantidos por seus usuários: muitos daqueles que se beneficiam dos bens comuns não levam em conta seu valor intrínseco, apenas o reconhecem quando os bens comuns são destruídos e os substitutos precisam ser encontrados. Até certo ponto, os bens comuns são semelhantes ao trabalho doméstico, nunca percebidos quando o trabalho está sendo feito. Somente quando ninguém está lá para lavar a louça, você percebe seu valor. Em outras palavras, você não sente falta de algo até que ele desapareça. Um exemplo é o papel desempenhado pelos manguezais nas regiões costeiras. Ao tomar decisões de desenvolvimento, as pessoas consideram sua existência como algo natural e simplesmente não consideram seu importante papel na proteção das aldeias costeiras das ondas do tsunami. Somente quando um tsunami ataca, destruindo aldeias, o valor dessa vegetação torna-se aparente (Brown, 2009). Seria muito caro construir uma barreira artificial semelhante.

 

Ver os bens comuns e apreciar plenamente seu papel na ecologia da vida na Terra é crucial e absolutamente necessário para qualquer empreendimento académico sério. Os bens comuns não podem ser circunscritos para fins de análise; eles reivindicam uma abordagem totalmente holística. É por isso que as ciências sociais dominantes, tendo internalizado a visão de soma zero do mercado e do governo, estão mal equipadas para lidar com a questão.

 

Pode-se dizer que os bens comuns desaparecem como resultado de sua incompatibilidade estrutural com os aspectos mais profundos da “legalidade” ocidental, uma legalidade fundada na combinação universalizante do individualismo com a dicotomia Estado / propriedade privada. Séculos antes do nascimento do Estado moderno, na antiga Roma, os primeiros clãs rotineiramente estendiam suas propriedades, usurpando os bens comuns. Engels descreve a privatização dos bens comuns como o padrão económico mais fundamental do desenvolvimento europeu. Assim, a lei ocidental desempenhou um papel muito importante na destruição dos bens comuns, não em protegê-los, seguramente. Esse parece ainda ser o padrão de desenvolvimento no capitalismo cognitivo (Boyle, 2003): pense na prossecução de trocas entre-pares na Internet.

 

Mas sempre foi problemático para os comuneiros encontrar alguém que os representasse em tribunal, para processar aqueles que tentam se apoderar dos bens comuns. Tanto historicamente como hoje, aqueles que mais se beneficiam dos bens comuns não são “proprietários” no sentido técnico, mas geralmente agricultores pobres (ou hoje jovens internautas) sem meios para acessar o sistema judicial. Lembremo-nos da facilidade com que os agricultores na Inglaterra foram vítimas das vedações, na primeira e crucial fase do capitalismo inicial, que forneceu a força de trabalho proletária necessária para os fabricantes em ascensão. As vedações e o recrutamento violento de camponeses despossuídos para se tornarem uma força de trabalho capitalista teriam, simplesmente, sido impossíveis, sem a aliança fundamental entre a propriedade privada e o estado (Tigar, 1977).

 

A visão dominante dos bens comuns como uma exceção mal teorizada à forçada alternativa exclusiva entre governo e mercado está enraizada nas próprias origens e na própria estrutura da visão ocidental dominante da lei. É assim que um fato social se torna real.

 

Rasgando o manto diáfano da dicotomia entre estado e mercado

 

A propriedade privada e o estado são as duas principais instituições jurídicas e políticas que mantêm a visão dominante do mundo. Mas o debate estadual versus privado apresenta uma falsa dicotomia, uma distinção sem uma diferença. O estado não é mais a representação democrática do agregado de indivíduos, mas sim um ator no mercado entre muitos outros. O conluio ou fusão de interesses estatais e privados, com os mesmos atores (corporações) em ambos os lados da equação, deixa pouco espaço para uma estrutura de “bens comuns”, não importa quão convincentes possam ser as evidências sobre os benefícios a retirar daí.

 

A sabedoria convencional apresenta o mercado e o estado como estando radicalmente em conflito. Assume, de forma críptica, que eles têm uma relação de soma zero: mais estado é igual a menos mercado e menos mercado é igual a mais estado. Nesse esquema redutor, o estado e a propriedade privada tornam-se quintessenciais de dois polos opostos, público e privado. É claro que esse quadro é totalmente falso, nos níveis histórico e moderno, porque as duas entidades, como instituições sociais e vivas, só podem estar estruturalmente ligadas em uma relação de simbiose mútua. A oposição fabricada e contrastante entre as duas reflete a escolha ideológica da tradição individualista. Esse conflito emergiu nas próprias origens do individualismo liberal, como visto em Locke e Hobbes, os dois campeões, respectivamente, da propriedade privada e da soberania do estado.

 

Essa redução esconde uma estrutura compartilhada de propriedade (mercado) e soberania (estado) baseada na concentração de poder. Estruturas privadas (corporações) concentram as suas tomadas de decisão e o poder de exclusão nas mãos de um sujeito (o proprietário) ou dentro de uma hierarquia (o CEO). Da mesma forma, as estruturas públicas (burocracias) concentram o poder no topo de uma hierarquia soberana. Ambos os arquétipos são inseridos em uma estrutura fundamental: a regra de um sujeito (um indivíduo, uma empresa, o governo) atuando sobre um objeto (um bem privado, uma organização, um território). Tal pretensa oposição entre dois domínios que compartilham a mesma estrutura é o resultado do moderno pensamento cartesiano reducionista, quantitativo e individualista.

 

O sujeito individual, deixado sozinho, narcisista e carente, encontra nos produtos, mercadorias e objetos externos a satisfação de seus desejos. Este horizonte relacional empobrecido, que produziu nossa alienação da natureza (“nós a possuímos, portanto, não fazemos parte dela”) é cientificamente construído como “objetivo” e medido por um sistema de preços a ser pago pela satisfação de várias e cada vez mais complexas “necessidades”. A típica “ficção” individualista da tradição liberal, por exemplo, o mito de Robinson Crusoe, induz as necessidades do mercado, apagando a consciência da experiência comunitária. Quanto mais necessidades o indivíduo solitário tiver, mais dinheiro poderá ser coletado para satisfazê-las. Assim, o paradigma qualitativo baseado em relações significativas se submete a um outro quantitativo.

 

Infelizmente, a ecologia e o pensamento “sistémico” - os paradigmas que poderiam revelar o impacto devastador da acumulação individualista na vida comunitária - estão notavelmente ausentes na política contemporânea, em parte porque esta olha para as “ciências sociais” (particularmente a microeconomia, a ciência política e o marketing) como os seus únicos repositórios de ideias. Ao contrário da célebre frase do microbiologista Garrett Hardin sobre a “tragédia dos bens comuns” (Hardin 1968) - “um bem comum é um lugar sem lei e portanto em ruína” - mecanismos estatais e de mercado que dependem do “indivíduo” como seu objeto são, de facto, os culpados desta ruína hoje em dia (Feeney et al. 1990).

 

Duas visões mundiais em conflito: competição versus cooperação

 

O egoísmo individual é a suposição central que sustenta a análise de Hardin. Somente a aplicação grosseira do modelo do Homo economicus explica os resultados (e o sucesso académico) da chamada “tragédia dos comuns”. O Homo economicus originou-se do trabalho de John Stuart Mill e foi incorporado à economia política dominante no século XVIII. Adam Smith e David Ricardo, ambos se focaram nos indivíduos como maximizadores da sua utilidade de curto prazo. A parábola de "tragédia" de Hardin continuou essa tradição quando lançou os bens comuns como um lugar sem lei. Segundo Hardin, um recurso comum, tão livremente apropriado, estimula o comportamento individual oportunista de acumulação e, em última instância, o consumo destrutivo e “ineficiente”. Esse raciocínio evoca a imagem de uma pessoa convidada para um buffet onde a comida é livremente acessível e, em vez de compartilhar a refeição com os restantes comensais, se apressa a tentar maximizar a quantidade de calorias que pode armazenar à custa dos outros, consumindo com eficiência a maior quantidade possível de alimentos no menor tempo possível.

 

A “tragédia dos comuns” destaca duas visões de mundo em conflito. A cosmovisão dominante é, substancialmente, o darwinismo social, que faz da “competição”, da “luta” e da “emulação” entre pessoas físicas e jurídicas a essência da realidade. A visão de mundo recessiva, uma compreensão ecológica e holística do mundo, baseia-se em relacionamentos, cooperação e comunidade. Este modelo, ainda presente na organização das comunidades da “periferia”, continua sofrendo um ataque impiedoso do ajuste estrutural e dos planos abrangentes de “modernização” e “desenvolvimento” do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. Como muitos dos artigos deste volume – The Wealth of the Commons - testemunham, tais esforços encorajam a “mercantilização” da terra e do conhecimento local, bem como ajustes culturais (imposição de direitos humanos, estado de direito, igualdade de género, etc.) que servem como retórica justificativa para a continuidade na pilhagem (Mattei & Nader 2008).

 

Elinor Ostrom e a sua equipe de cientistas sociais conseguiram reunir uma enorme quantidade de evidências empíricas para mostrar que os acordos de propriedade cooperativa são de facto bem-sucedidos e que os indivíduos não destroem necessariamente seus recursos comuns. O trabalho de Ostrom marca inegavelmente uma viragem crítica na teoria económica. Ele refutou a tragédia de Hardin, mas não compreendeu que as corporações e os estados, se não mesmo os indivíduos, se comportam de maneiras que, efetivamente, produzem tragédia. Sem considerar a feroz luta histórica, política e legal entre os comuneiros, por um lado, e a aliança profana entre o estado e a propriedade privada (capital), por outro, as descobertas de Ostrom permanecem limitadas em sua aplicabilidade.

 

A chamada “acumulação original” descrita por Marx tem sido um fenómeno institucional conduzido por uma aliança entre estruturas estatais centralizadas e uma grande concentração de capital realizada pela propriedade privada e pelas estruturas corporativas. Esse processo vitimou o ser humano comum (“não institucional”), produzindo e justificando ideologicamente um processo de brutal exploração institucional das multidões por uns poucos. Tal fenómeno não estava, de forma alguma, limitado às leis das “vedações” em Inglaterra. As doutrinas da terra nullius endossadas por John Locke e outros estudiosos, durante o período da expansão colonial no exterior, confirmaram a natureza institucional do comportamento “produtor de tragédia” (Mattei e Nader 2008). Aos nativos era praticamente negada a condição humana (foram "reduzidos" a um estado natural) porque não haviam adotado a instituição civilizadora da propriedade privada. Em tempos mais recentes, os padrões de dominação, as configurações institucionais e as narrativas das vedações assumiram formas mais subtis, mas continuam enclausurando os bens comuns.

 

A parábola de Hardin mantém um tremendo poder preditivo, apesar da crítica de Ostrom e de todas as suas deficiências intelectuais, por exemplo, afirmando que o comum é um lugar sem lei precisamente porque, via de regra, "meros humanos", atuando fora do contexto institucional da modernidade, respeitam efetivamente os bens comuns. Enquanto isso, “humanos institucionais” operando via estados e corporações continuam a produzir resultados trágicos. Assim, a panóplia dos exemplos fornecidos por Ostrom de indivíduos de carne e osso que cooperam em vez de competir parece impotente para minar o argumento de Hardin. Os exemplos não levam em conta adequadamente as realidades institucionais e as estruturas reais de poder nas quais a tomada de decisões ocorre. De facto, a crítica de Ostrom sobre a tragédia dos bens comuns corre o risco de desviar a atenção do problema e proteger poderosos atores económicos e políticos da responsabilidade por “tragédias”.

 

Frequentemente, os estudiosos aceitam a dicotomia especiosa entre estado e mercado, como discutido acima, e assim declinam desenvolver uma compreensão fenomenológica mais profunda dos bens comuns que poderia romper radicalmente com o discurso da mercantilização. Entender os bens comuns como mercadorias na verdade limita a nossa compreensão dos muitos tipos de bens comuns (naturais, sociais, culturais, baseados em conhecimento, históricos) e enfraquece seu potencial revolucionário, bem como as legítimas reivindicações por uma redistribuição radical e igualitária de recursos. Grande parte da literatura sobre os bens comuns deve ser exaustiva e criticamente examinada de modo a evitar a reprodução da visão mecanicista tradicional, a separação entre objeto e sujeito e a mercantilização daí resultante (Rota 1991).

 

Reabilitando o senso comum

 

Uma compreensão fenomenológica dos bens comuns nos força a ir além da oposição reducionista “sujeito-objeto”, que produz a mercantilização de ambos. Isso nos ajuda a entender que, ao contrário dos bens privados e públicos, os bens comuns não são mercadorias e não podem ser reduzidos à linguagem da propriedade. Eles expressam uma relação qualitativa. Seria redutivo dizer que temos um bem comum. Deveríamos antes ver até que ponto nós somos os comuns, na medida em que fazemos parte de um ambiente, um ecossistema urbano ou rural. Aqui, o sujeito faz parte do objeto. Por essa razão, os bens comuns estão inseparavelmente relacionados e ligam indivíduos, comunidades e o próprio ecossistema.

 

Esta revolução holística tem raízes antigas, desde as investigações ontológicas de Aristóteles até aos filósofos posteriores como Husserl e Heidegger, que empregaram conceitos como “fundierung” (Heidegger 1962) e “relevância” para assinalar o fim de um mundo "objetivo" onde os sujeitos estão separados de seus objetos de observação e os indivíduos são separados de seu próprio ambiente. Novas atitudes holísticas emergiram, também, nas ciências naturais através da física e da biologia de sistemas, que se baseiam no mapeamento qualitativo das relações, e não em medidas quantitativas e no reducionismo positivista de Galileu, Descartes e Newton (Capra, 2004). A mecânica quântica, em particular, e a relatividade de Einstein, causaram uma revolução epistemológica que disciplinas como a ciência cognitiva e os estudos da consciência estão tentando resolver. Apesar da riqueza da revolução holística ocorrida nessas disciplinas, essa mesma revolução ainda precisa de ser adotada nas ciências sociais.

 

Os bens comuns só podem ser descritos a partir de uma perspectiva fenomenológica e holística, o que é incompatível com o reducionismo acima mencionado e com a idéia de autonomia individual como desenvolvida na tradição capitalista baseada em direitos. A este respeito, os bens comuns são uma categoria ecológico-qualitativa baseada na inclusão, acesso e deveres comunitários, enquanto a propriedade e a soberania estatal são categorias económico-quantitativas baseadas na exclusão (escassez produzida): uma retórica de direitos centrados no indivíduo e a concentração violenta de poder em algumas mãos.

 

Estas ideias exigem que os juristas abordem a tarefa difícil e urgente de construir as bases de uma nova ordem jurídica capaz de transcender os dualismos (propriedade / Estado, sujeito / objeto, público / privado) inerentes à ordem atual. A nova ordem deve superar o domínio da propriedade privada, do individualismo e da competição, concentrando-se no coletivo e nos bens comuns. O desafio é criar um ambiente institucional que possa permitir a sustentabilidade a longo prazo e a plena inclusão de todos os comuneiros globais, incluindo os mais pobres e mais vulneráveis. Para tanto, precisamos primeiro de uma emancipação epistémica (e política) dos apetites predatórios do estado e da propriedade privada, os dois componentes fundamentais da sabedoria ocidental dominante.

 

Uma mutação política

 

Hoje, podemos ver através de exemplos ao nosso redor - do aquecimento global ao colapso económico - que os bens comuns nos oferecem uma mudança fundamental e necessária na percepção da realidade. Nesse contexto, os comuns nos ajudam a rejeitar as ilusões do liberalismo e do racionalismo modernos. É por isso que não podemos nos conformar em ver os “bens comuns” como um mera terceira via entre a propriedade privada e o estado, como a maior parte do atual debate parece sugerir. Os comuns não podem ser reduzidos a administrar as sobras do banquete histórico ocidental, que é a preocupação da cena política contemporânea. Pelo contrário, acreditamos que os bens comuns devem ser elevados como uma estrutura institucional que genuinamente questiona os domínios da propriedade privada, seus aparatos ideológicos e o estado - não uma terceira via, mas um desafio à aliança entre a propriedade privada e o estado.

 

A mutação que precisamos de realizar, não apenas teoricamente, mas também politicamente, é alterar a sabedoria dominante - da dominação absoluta do sujeito (como proprietário ou estado) sobre o objeto (território ou ambiente) - para um foco na relação entre os dois (sujeito-natureza). Precisamos de um novo senso comum que reconheça que a sobrevivência de cada indivíduo depende de seu relacionamento com os outros, com a comunidade e com o meio ambiente. A primeira mudança necessária para uma visão holística requer uma reorientação da quantidade (uma ideia fundamental da revolução científica e da acumulação capitalista) para a qualidade.

 

Um sistema legal baseado nos bens comuns deve usar o “ecossistema” como um modelo, onde uma comunidade de indivíduos ou grupos sociais está horizontalmente ligada e o poder é disperso. Em geral, deve rejeitar a ideia de hierarquia em favor de um modelo participativo e colaborativo, que impeça a concentração de poder e coloque os interesses da comunidade no centro. Somente em uma tal estrutura os direitos sociais podem realmente ser satisfeitos. Nessa lógica, os bens comuns não são um mero recurso (água, cultura, internet, terra, educação), mas sim uma concepção compartilhada da realidade que desafia radicalmente a tendência aparentemente irrefreável de fechamento e corporativização.

 

Mesmo ainda hoje, apesar da dramática crise de 2008, a intervenção do estado, apelidada de política keynesiana, serviu para transferir enormes quantias de dinheiro público para o setor privado. A lógica de saque, compartilhada tanto pelo setor privado quanto pelo setor estatal, não poderia ser mais aberta. O que precisamos é, antes, de uma extensão muito grande do quadro de bens comuns: “menos governo, menos mercado, mais bens comuns”. Esta é, creio eu, a única maneira de ressuscitar uma narrativa alternativa de inclusão social.

 

 

 

 

 

 

(*) Ugo Mattei (n. 1961) é um jurista de origem italiana, atualmente professor na Universidade de California, Hastings College of Law. Tem pautado a sua carreira académica pela defesa dos bens comuns. É autor de diversas obras, entre as quais Plunder: When the Rule of Law is Illegal (com Laura Nader), Willey-Blackwell, 2008; Beni comuni. Un manifesto, Laterza, Bari-Roma, 2013; The Ecology of Law. Towards a Legal System in Tune with Nature and Community (com Fritjof Capra), Barrett-Koheler, Oakland, 2015. Este ensaio está incluído no volume coletivo editado por David Bollier e Silke Helfrich The Wealth of the Commons. A world beyond market & state. A tradução é de Ângelo Novo.

 

 

 

Referências Bibliográficas

 

Blaug, Mark. 1962. Economic Theory in Retrospect, 1st ed.

 

Capra, Fritjof. 2004. The Web of Life. A New Scientific Understanding of Living Systems.

 

Heidegger, Martin. 1962. Being and Time. John Macquarrie and Edward Robinson, translators.

 

Mattei, Ugo & Nader, Laura. 2008. Plunder. When The Rule of Law is Illegal.

 

Mattei, Ugo & Nicola, Fernanda. 2006. “A Social Dimension in European Private Law? The Call for Setting a Progressive Agenda.” 45 New England L. R. 1-66.

 

Mattei, Ugo. 2011. Beni comuni. Un manifesto. Laterza, Bari, Roma.

 

Boyle, James. 2003. “The Second Enclosure Movement and the Construction of the Public Domain.” In 66 Law and Contemporary Problems 33-75.

 

Brown, Lester R. 2009. Plan B 4.0. Mobilizing to Save Civilization. New York, NY: Norton.

 

Feeney, David and Berkes, Fikret and McCay, Bonnie J. and Acheson, James M. 1990. “The Tragedy of the Commons: Twenty-two years Later.” Human Ecology. 18(1).

 

Hardin, Garrett. 1968. “The Tragedy of the Commons.” Science (December 13, 1968): 1243-1248.

 

Rota, Gian Carlo. 1991. The End of Objectivity. The Legacy of Phenomenology, Lectures at MIT, 1974- 1991. Second Preliminary Edition, in collaboration with Sean Murphy and Jeff Thompson.

 

Tigar, Michael. 1977. Law and the Rise of Capitalism. New York, NY. Monthly Review Press.