A “espontaneidade” do capitalismo

 

 

Prabhat Patnaik (*)

 

 

A reestruturação pós-guerra do capitalismo, envolvendo a descolonização, a introdução da gestão keynesiana da procura e a instituição da democracia baseada no sufrágio universal dos adultos, representou várias concessões feitas pelo sistema para afastar a ameaça comunista, avolumada pelo prestígio ganho pela União Soviética, a marcha do Exército Vermelho em toda a Europa Oriental, os sacrifícios feitos pelos comunistas na luta antifascista por toda a Europa e, por fim, a Revolução Chinesa. É verdade que o acordo de Yalta havia obrigado a União Soviética a não apoiar o ascendente comunista na Europa Ocidental, em países como a França, a Itália e a Grécia, em troca da adesão da Europa Oriental ao campo socialista, pelo que aquela nem sequer pôde apoiar adequadamente os comunistas gregos, envolvidos então numa guerra civil contra opositores que gozavam do apoio total do imperialismo britânico. Mas mesmo assim o capitalismo metropolitano não poderia levar a ameaça comunista levianamente. A Guerra Fria foi desencadeada, além da reestruturação do sistema que acabamos de mencionar, para lidar com essa ameaça.

 

O ponto a observar aqui, no entanto, é que essa reestruturação não representou o desenvolvimento "espontâneo" do capitalismo; representou antes uma concessão específica extraída do capitalismo pela força das circunstâncias. O capitalismo, pela sua própria natureza, é um "sistema espontâneo" no sentido de que é impulsionado por suas próprias tendências imanentes. Os agentes humanos que aparentemente tomam as decisões que, no seu conjunto, produzem o comportamento e a dinâmica do sistema, não o fazem de acordo com suas próprias volições individuais, mas sob a coerção da concorrência. Por causa disso, pode-se visualizar o sistema como se este se autopropulsionasse por intermédio das ações coagidas de agentes humanos que são apenas os instrumentos dessa sua autopropulsão. É instrutivo que o próprio Marx tenha chamado ao capitalista, supostamente o herói do sistema, mero "capital personificado". O capitalista, em suma, foi visto como um alienado sob o sistema capitalista, sendo forçado a agir de maneiras ditadas pela competição - que desencadeia uma luta darwiniana entre os capitalistas - em vez de atuar de acordo com sua própria vontade.

 

Essas tendências imanentes, como a tendência à centralização do capital, a tendência para subjugar a produção pré-capitalista por meio de um processo de acumulação primitiva de capital, a tendência de transformar cada objeto em mercadoria, foram auxiliadas e estimuladas pelo Estado capitalista. O papel usual do Estado capitalista, por outras palavras, era acelerar e facilitar o funcionamento das tendências imanentes do capital, razão pela qual, dentro da ordem capitalista, era a economia que tipicamente conduzia a política.

 

Há contudo certas circunstâncias, das quais a conjuntura pós-guerra foi uma, em que o equilíbrio das forças de classe é tal que o Estado, mesmo um Estado comprometido com a preservação do capitalismo, age não necessariamente para promover as tendências imanentes do capitalismo, mas antes para restringir a sua operação. Uma tal contenção, no entanto, nunca poderá ser um fenômeno permanente, pois que, enquanto o sistema permanecer intacto, essas tendências se reafirmam, partindo, mais uma vez, da nova situação reestruturada. A reestruturação, em suma, significa apenas um deslocamento de estado, não um fim para as tendências imanentes. Qualquer tentativa persistente de contrariar essas tendências torna o sistema disfuncional, exigindo, ou uma sempre maior e maior intervenção do Estado de forma recursiva, o que, em última instância, levará a uma transcendência do próprio sistema; ou a uma reafirmação de suas tendências imanentes, após o deslocamento de estado inicial, o que terá então o efeito de reverter completamente a intervenção do Estado que havia sido projetada para conter essas tendências.

 

É exatamente isso que vemos acontecer no capitalismo metropolitano no cenário pós-segunda guerra mundial. Havia dois fenômenos a observar aqui. Um deles foi a manutenção persistente de um alto nível de emprego. A taxa de desemprego oficial no início dos anos 1960, na Grã-Bretanha, foi inferior a 2 por cento e nos Estados Unidos cerca de 4 por cento, que eram valores muito mais baixos do que o capitalismo havia alguma vez alcançado historicamente em tempo de paz. O capitalismo necessita sempre de um considerável exército industrial de reserva, não apenas pela razão óbvia de manter baixos os salários reais e, portanto, manter todo o sistema de exploração, não apenas para manter a disciplina de trabalho, ao pendurar sobre os ombros dos trabalhadores a espada de Dâmocles do potencial desemprego, mas também por uma razão adicional menos discutida. Trata-se de assegurar a estabilidade daquilo que Keynes denominou de "unidade salarial", ou seja, impedir um aumento dos salários que poderia causar inflação de custos, o que, mesmo quando ocorre a uma taxa constante, sem qualquer aceleração, constitui ainda assim uma ameaça ao valor do dinheiro sob o capitalismo e, portanto, inviabiliza esse sistema predominantemente monetário. Um estado sustentado de esgotamento da dimensão relativa do exército industrial de reserva, como o que experimentou o capitalismo do pós-guerra, era simplesmente incompatível com a preservação do sistema capitalista.

 

Se o desemprego tivesse que ser permanentemente mantido baixo, então o processo de reestruturação do capitalismo teria de ser prosseguido, por exemplo, por meio do investimento público, que estaria mais disposto a aceitar uma "política de salários e rendas", substituindo cada vez mais o investimento privado. Uma tal iniciativa voluntarista de levar por adiante esta reestruturação, no entanto, teria finalmente de conduzir a uma transcendência do capitalismo. Mas se, à medida que o sistema se fosse tornando disfuncional por causa da interferência do Estado com a sua lógica imanente, fosse evitada qualquer interferência acrescida que pudesse levar, em última instância, à sua transcendência, então essa disfuncionalidade forçaria uma reversão da própria interferência do Estado, como ela havia ocorrido, com isso sendo revertida qualquer tentativa de "melhorar" o funcionamento do sistema.

 

Uma desestabilização da "unidade salarial", por meio da inflação de custos, causada pela manutenção de níveis persistentemente baixos de desemprego, ocorreu no final da década de 1960; mas uma vez que não foi convertida, com sucesso, em ocasião para uma interferência adicional no sistema, trouxe finalmente ao poder de Estado Ronald Reagan, Margaret Thatcher e outros semelhantes. E eles usaram esse poder para lançar um ataque contra a classe trabalhadora e para concentrar novamente o Estado na tarefa de promover as tendências imanentes do capital.

 

O segundo fenômeno a observar, que também ocorreu durante a chamada "Era de Ouro do Capitalismo", que foi uma sequela da sua reestruturação, foi uma imensa centralização do capital. Havia dois fatores a contribuir para isso, embora a importância de cada um deles variasse ao longo do período. Para vermos o seu papel, vamos tomar o mundo capitalista avançado como um todo (incluindo o Japão). Uma vez que os anos de alto crescimento do pós-guerra também significaram altas taxas de investimento, isso implicou altas taxas de poupança. Além disso, a poupança privada tinha de ser ainda mais elevada para financiar as des-poupanças governamentais sob a forma de défices fiscais, especialmente nos Estados Unidos, que utilizaram esta arma para financiar uma vasta gama de bases militares em todo o mundo, e posteriormente a Guerra do Vietname, uma vez que o arranjo de Bretton Woods que decretou ser o dólar dos E.U.A. "tão bom quanto o ouro" permitiu-lhes fazê-lo.

 

Estas poupanças foram mantidas em montantes concentrados em bancos. Mas enquanto os bancos intermedeiam entre os aforradores e os investidores, o desejo do governo norte-americano de "empréstimos sem custo" (imprimindo dólares em vez de obrigações flutuantes) significava que os bancos, especialmente aqueles que operavam na Europa, tinham balanços que, do seu ponto de vista, eram ótimos. Eles foram inundados com dólares que quiseram "investir" em fontes de renda certa e ativos de capital interessantes, mas os acordos monetários internacionais, no âmbito do sistema de Bretton Woods, que permitiram que os países impusessem controlos de capital para garantir que o financiamento permanecesse "nacional", de forma a que os Estados-Nação pudessem realizar a "gestão da procura" keynesiana, sairam-lhes ao caminho. Esses arranjos tiveram que ser desmantelados, a Finança teve que ter a liberdade de investir em qualquer lugar que quisesse, ou seja, de tornar-se "global". Para esse fim, todos os países tiveram que ser abertos aos livres fluxos de capital, em especial financeiro, e de mercadorias.

 

Ambos estes fenômenos, um relativo à disfuncionalidade que as altas taxas de emprego e as medidas do Estado-Providência introduziram no capitalismo, cuja lógica imanente militava contra elas, e a outra um desvio em relação a uma tendência imanente do próprio capital, a tendência à centralização do capital, tornaram insustentável o regime econômico do imediato pós-guerra nos países capitalistas. Um regime de "globalização", que significava acima de tudo a globalização do capital, especialmente do capital financeiro, o substituiu.

 

Uma vez que existem muitos equívocos sobre este regime de globalização, é melhor começar por remover alguns deles. Uma vez que a globalização está associada à busca de um conjunto de políticas que se denominam "neoliberalismo" e que pretendem que o seu objetivo é reverter a intervenção do Estado e restaurar a supremacia do mercado, há a impressão de que aquilo a que estamos assistindo sob a atual globalização é a um "recuo do Estado".

 

Nada poderia estar mais longe da verdade. O que a globalização produz não é um retrocesso do Estado, mas uma mudança na natureza da sua intervenção. Uma vez que o capital é globalizado, enquanto o Estado continua a ser um Estado-Nação, o Estado deve se curvar, voluntariamente ou não, diante das exigências do capital, pois caso contrário haveria uma fuga de capitais do país em questão. Isto tem uma implicação importante. Anteriormente, sob os regimes dirigistas, o Estado, embora comprometido com a preservação e a promoção da ordem capitalista e, portanto, possuindo o caráter de classe de um Estado burguês (ou de um Estado burguês-terratenente, nos países do terceiro mundo onde a burguesia, chegando mais tarde à cena histórica, teve que entrar numa aliança com a propriedade feudal para defender a propriedade capitalista), parecia estar acima da sociedade e cuidar dos interesses de todas as classes; mas agora se dedica exclusivamente a promover os interesses do capital financeiro internacional, e da oligarquia corporativa-financeira interna integrada com ele (juntamente com seus aliados terratenentes). Na verdade, a essência da transição do arranjo do pós-guerra para a atual globalização está precisamente nisso, numa mudança básica na natureza do Estado burguês (ou do burguês-terratenente).

 

Antes de discutir o significado desta mudança, gostaria de esclarecer um ponto. O fim da Segunda Guerra Mundial deu início a uma era em que as rivalidades inter-imperialistas foram silenciadas e os E.U.A. surgiram como o líder indisputado do mundo capitalista. Este silenciamento das rivalidades interimperialistas toma um novo impulso na era da globalização. De fato, se a era do pós-guerra pré-globalização tinha assistido a um silenciamento das rivalidades interimperialistas por causa do domínio inquestionável dos E.U.A. (o que alguns escritores chamaram de estado de "superimperialismo"), o silenciamento das rivalidades interimperialistas na era atual da globalização provém de uma fonte completamente diferente, ou seja, do fato da internacionalização do capital.

 

Quando Lênin falou do imperialismo, ele tinha visto os diferentes capitais financeiros como sendo baseados na nação e ajudados pelo Estado-Nação, com os interesses financeiros e industriais dentro de um determinado país estreitamente integrados entre si e em rivalidade com a oligarquia financeira similarmente integrada pertencente a outra nação avançada. Há uma mudança básica, a esse respeito, entre o seu tempo e o nosso. O capital financeiro de hoje é globalizado e, portanto, internacional, sendo dele componentes os capitais financeiros localizados em diferentes países, não apenas os países avançados, mas mesmo países do terceiro mundo como a Índia. Os interesses financeiros localizados em determinados países não estão a prosseguir, em articulação com os seus homólogos industriais nos mesmos países, uma específica agenda "nacional" de construção para si próprios de um território económico maior, com a ajuda do seu próprio Estado-Nação, à custa de oligarquias financeiras pertencentes a outros países avançados. Pelo contrário, qualquer divisão do mundo em territórios económicos pertencentes a potências capitalistas rivais, que impeça o livre fluxo de capital, em especial financeiro, através das fronteiras nacionais, é contrariada pelo capital financeiro internacional. Este capital não está necessariamente ligado à indústria (pelo contrário, sua busca é predominantemente por ganhos de capital) e não está relacionado com quaisquer interesses estratégicos "nacionais".

 

O silenciamento das rivalidades interimperialistas na conjuntura atual, em suma, está enraizado na própria natureza do capitalismo contemporâneo, caracterizado pelo surgimento da centralidade do capital financeiro internacional; não deriva simplesmente, como nos anos do imediato pós-guerra, do puro equilíbrio de poder entre os países capitalistas avançados.

 

Alguns viram neste desfecho uma validação da posição de Karl Kautsky na polémica sobre o imperialismo que travou contra Lênin; isso, no entanto, é um erro. Kautsky argumentou, contra Lênin, que era possível um estado de "ultra-imperialismo", em que se realizasse uma divisão pacífica do mundo através de um acordo mútuo entre as potências capitalistas rivais, de modo que as guerras entre esses poderes para adquirir territórios econômicos maiores para as suas respetivas oligarquias financeiras não seriam inevitáveis. Contra essa posição, a tréplica de Lênin foi que, uma vez que qualquer acordo desse tipo refletiria necessariamente o equilíbrio prevalecente entre as potências rivais, e uma vez que o desenvolvimento capitalista implicava necessariamente um desenvolvimento desigual, resultando daí uma mudança no equilíbrio dessas forças, esses acordos rapidamente ficariam dessincronizados com a correlação de forças alterada entre estes poderes rivais, sendo necessárias novas tentativas para redesenhá-los, e, portanto, renovando-se assim as amargas rivalidades interimperialistas.

 

Tanto Lênin como Kautsky viam o capitalismo como sendo dominado por capitais nacionais rivais; suas diferenças estavam em saber se tais capitais poderiam chegar a um acordo ou estavam condenados a uma amarga rivalidade interimperialista. Todo esse mundo, no entanto, está muito distante do presente mundo do capital financeiro internacional. O silenciamento das rivalidades interimperialistas hoje não se dá por causa de qualquer acordo entre capitais nacionais rivais, mas porque a globalização implicou a transcendência de um mundo entregue a tais capitais nacionais, onde cada um deles seguia sua própria estratégia nacional de engrandecimento. Ver, no atual silenciamento das rivalidades interimperialistas, uma validação da posição de Kautsky equivale, portanto, a uma má compreensão do capitalismo contemporâneo.

 

Há três características principais do capitalismo contemporâneo e, portanto, da atual globalização nele baseada, que devem ser aqui referidas. A primeira delas é um enorme aumento no peso do setor financeiro, de tal ordem que muitos têm falado do período atual como sendo um de "financiarização", análogo à "industrialização" que tinha ocorrido anteriormente. O aumento do peso do setor financeiro é onipresente, embora obviamente muito mais pronunciado nos países avançados, de onde as atividades industriais e de determinados setores de serviços têm se deslocado para as economias do terceiro mundo como a China e a Índia.

 

O segundo processo em curso sob a globalização é, na verdade, esta mudança na localização de toda uma gama de atividades, dos países avançados de altos salários para países com salários baixos no terceiro mundo, para atender a uma procura não local mas global. Uma tal mudança em resposta às diferenças salariais é precisamente o que não ocorrera ainda historicamente, pois então não teríamos a dicotomia aguda que existe hoje entre os países desenvolvidos e os subdesenvolvidos. Central para esta dicotomia é uma diferença no nível de vida médio das pessoas, de que a diferença salarial é uma expressão. Se o trabalho tivesse sido legalmente autorizado a mover-se livremente do mundo subdesenvolvido para o desenvolvido, ou se o capital, legalmente autorizado a mover-se livremente do mundo desenvolvido para o subdesenvolvido, o tivesse feito realmente, então essas diferenças salariais teriam desaparecido.

 

Mas isso não aconteceu. O capital dos países avançados moveu-se para as economias colonizadas ou semi-colonizadas apenas em setores como as plantações e a mineração, que produziam mercadorias primárias, ou em setores como o comércio e as finanças, que eram necessários para atender a essa divisão internacional de trabalho, mas não para atividades industriais centrais, durante todo o período colonial (excluindo alguma adição de valor aos produtos primários, como a juta). A globalização atual significou uma rotura com esse padrão, com o capital internacional agora deslocalizando atividades de manufatura para a China e "terceirizando" várias atividades do setor de serviços para a Índia. As actividades espontaneamente difundidas desta forma ainda constituem, essencialmente, "actividades de ordem inferior" em termos de intensidade tecnológica; mas essa difusão é, no entanto, um fato significativo.

 

O terceiro processo em curso sob a globalização atual é um assalto em grande escala do capital à pequena produção tradicional, que inclui a agricultura camponesa. Isso toma a forma de uma desapropriação direta de tais produtores (comprando seus ativos a preços de liquidação, geralmente com a conivência do Estado), ou de um apertão nos seus rendimentos, que é apenas um processo mais lento de desapropriação. Se a deslocalização de atividades da metrópole para o terceiro mundo marca uma rotura com o padrão colonial, a desapropriação dos pequenos produtores (aquilo que Marx chamou de processo de "acumulação primitiva de capital") é uma continuação do padrão colonial. Ela havia sido interrompida sob o dirigismo pós-colonial, porque os novos Estados independentes do terceiro mundo haviam procurado proteger, promover e defender a pequena produção contra a investida do capital (mesmo admitindo um processo de diferenciação interna entre esses produtores); mas com a agenda neoliberal adotada sob o regime da globalização, essa proteção pelo Estado é retirada, sendo uma consequência direta disso a crise agrária e os suicídios massivos de camponeses que vemos hoje na Índia. A crise não se limita apenas à economia agrária; aflige toda a gama de pequenos produtores tradicionais, desde pescadores até artesãos e tecelões.

 

A globalização teve um profundo impacto nos países socialistas, embora de modos diferenciados. Já mencionei noutra ocasião a nova alienação, diferente da alienação sob o capitalismo, mas uma alienação ainda assim, que caracterizou os países socialistas com ditaduras unipartidárias e o "centralismo democrático" como princípio de organização do partido no poder. No entanto, o colapso ou o apagamento do socialismo, embora causados em última análise por essa alienação, foram mediados pelo fato de esses países terem sido atraídos para o vórtice da globalização. Ironicamente, portanto, não foi a chamada "Era de Ouro do Capitalismo" que provocou o fim do socialismo; mas sim a globalização que trouxe o fim tanto do socialismo como da "Era de Ouro do Capitalismo". A alienação sob o socialismo forçou esses países a entrar na globalização, que deu o golpe de misericórdia ao seu caráter socialista.

 

Na União Soviética e na Europa Oriental, a facilidade de acesso ao crédito internacional, numa altura em que bancos de países avançados, plenos de fundos, se empenhavam ativamente no aliciamento de crédito, encorajando uma vaga de empréstimos externos destinada a aumentar o consumo interno como forma de reforçar a credibilidade e a popularidade dos regimes. Essa estratégia funcionou por um tempo, mas quando chegou o momento de pagar, tais regimes foram deixados lívidos. Na verdade, antecipando as dificuldades de câmbio, muitas empresas de exportação estatais na União Soviética atrasaram o retorno de seus ganhos em divisas externas (o que constituía uma fuga de capital de fato), colocando a economia de joelhos. Foi então que vários apparatchiks do partido se converteram em capitalistas surripiando propriedade do Estado, ou seja, através de um processo de "acumulação primitiva de capital" em detrimento da propriedade de Estado que tinha sido pago pelo povo.

 

Na China, por seu lado, aproveitou-se a nova disposição dos capitais produtivos dos países avançados para deslocalizar fábricas para o terceiro mundo, aproveitando os seus baixos salários, para a partir daí dar resposta à procura global. Esse movimento foi aproveitado para criar um excedente de exportação e, a partir daí, acumular crédito externo. Mantiveram-se restrições sobre os fluxos de capital financeiro e, implicitamente, mesmo sobre as importações, sendo o consumo interno mantido baixo. As elevadas taxas de crescimento induzido pelas exportações foram utilizadas, não tanto para aumentar o consumo interno per capita, como para aumentar o emprego e deter mais títulos sobre o mundo exterior, em especial os E.U.A..

 

A diferença entre os dois casos, a União Soviética e a China, pode ser explicada pelo fato de que na primeira, ao contrário da segunda, as reservas de mão-de-obra já haviam sido esgotadas, o que constituiu em si mesmo um feito notável. Ou colocando a questão no jargão usado com frequência, a economia soviética estava numa fase de reprodução expandida intensiva, enquanto a chinesa estava numa fase de reprodução expandida extensiva.

 

Alguns autores argumentam que as reservas de mão-de-obra na China estão agora esgotadas e que os salários começaram a subir em consequência disso; mas qualquer que seja a estreiteza existente no mercado de trabalho na China, ela é confinada às áreas costeiras não caraterizando o interior; e algum aumento nos salários que tenha ocorrido é devido a imposição administrativa e não a qualquer estreiteza do mercado laboral. Além disso, há mesmo um limite para a medida em que os salários podem ser aumentados desta maneira, uma vez que, na era da globalização, os trabalhadores chineses também estão competindo contra os trabalhadores de outros países do terceiro mundo que ainda estão sobrecarregados com substanciais reservas de mão-de-obra e salários de simples subsistência. Por outras palavras, não obstante o elevado crescimento da China, a capacidade da estratégia que tem vindo a prosseguir para aumentar as condições de vida da massa do seu povo continua a ser questionada. Com a taxa de crescimento, ela própria, em abrandamento, sob o impacto da crise capitalista mundial, essas dúvidas só aumentaram.

 

Muito se escreveu ultimamente sobre a Rússia e a China emergirem como novos centros de poder, desafiando a posição do mundo capitalista avançado, especialmente dos E.U.A.. Contudo, a ambição dos novos ricos da China, como da Rússia (e da Índia), é mudarem a sua riqueza, os seus filhos e, eventualmente, a si próprios, para o mundo capitalista avançado, especialmente os E.U.A.. Quando a ambição das elites nesses países é migrar para a metrópole capitalista, é difícil visualizar esses países emergindo como ameaças à metrópole capitalista. E sob o impacto da atual crise capitalista, uma vez que a detenção de dólares é susceptível de se tornar ainda mais atraente para as elites de todo o mundo, visualizar uma exacerbação da rivalidade econômica entre a metrópole capitalista, por um lado, e os chamados países “emergentes", por outro, parece ainda mais rebuscado, não importando quão sérias as contradições entre eles possam parecer, de tempos a tempos.

 

A globalização teve um profundo impacto sobre as condições das várias classes e, portanto, sobre o posicionamento geral das classes dentro das economias. Este impacto parece ter sido uniforme entre os países e lança muita luz sobre vários desenvolvimentos contemporâneos. Vou-me assim debruçar um pouco mais sobre ele.

 

O ganhador mais significativo do regime de globalização é, naturalmente, a oligarquia empresarial-financeira dentro de cada país, que está integrada nos fluxos globais de capital. Essas oligarquias constituem o proverbial "um por cento" que foram alvo do movimento "Occupy" e de outros movimentos desse tipo. A preocupação recente com a crescente desigualdade de riqueza e renda na maioria dos países do mundo, de que é um indicador a receção concedida ao livro de Thomas Piketty Capital no século XXI, tem a ver com o imenso enriquecimento dessas oligarquias no período da globalização.

 

Por outro lado, houve um agravamento absoluto nas condições de vastas massas de "trabalhadores", entre as quais eu conto tanto os trabalhadores empregados como os desempregados (incluindo os que sofrem de "desemprego disfarçado"), os camponeses, os trabalhadores agrícolas e os pequenos produtores tradicionais. Para os trabalhadores dos países avançados, isso está claramente estabelecido, sendo também esperado, uma vez que o deslocamento de certas atividades do setor de manufatura e serviços para países do terceiro mundo, por causa de seus baixos salários, necessariamente reduz os salários desses trabalhadores, gerando desemprego entre eles. De fato, Joseph Stiglitz sugeriu que os salários reais de um trabalhador norte-americano masculino médio em 2011 eram marginalmente mais baixos do que em 1968.

 

O caso mais intrigante é o dos trabalhadores do terceiro mundo: por que razão as suas condições se agravariam sob um regime de globalização? A razão simples é que o aperto sobre os pequenos produtores tradicionais, devido à retirada dos apoios do Estado (sob a forma de cortes nos subsídios aos seus insumos e de negação de preços garantidos, como o que os Commodities Boards forneceram na Índia, no período pré-liberalização), obriga muitos deles a abandonar as suas profissões e a procurar emprego fora. Mas a remoção de restrições à mudança tecnológica e estrutural na economia (de que é um exemplo recente óbvio, a permissão do investimento direto estrangeiro no retalho multimarcas na Índia) aumenta a taxa de crescimento da produtividade do trabalho, restringindo a taxa de crescimento do emprego, que não dá assim resposta suficiente à taxa de crescimento dos que procuram emprego devido tanto ao aumento natural da força de trabalho, como ao deslocamento dos pequenos produtores tradicionais. Isto aumenta o tamanho da reserva industrial em relação à mão-de-obra (embora o desemprego não se manifeste necessariamente de forma aberta), o que não é apenas uma causa de empobrecimento per se, mas também puxa para baixo os salários reais dos trabalhadores organizados. A privatização de serviços essenciais, como a educação e a saúde, cujos custos consequentemente aumentam, contribui para este processo de empobrecimento. O aumento da fome na Índia durante o período das políticas neoliberais, fato incontroverso, testifica isso mesmo.

 

Entre estes dois grupos, no entanto, há uma "classe média" (eu uso o termo apenas em um sentido descritivo) que se tem dado bem no período da globalização, em todos os lugares, e tornou-se sua devota. Nos países avançados, os que se empregam no setor financeiro constituem o seu núcleo, enquanto que nos países do terceiro mundo, além desse segmento, pertencem também ao núcleo os empregados em ocupações mais bem remuneradas nos setores para os quais atividades das metrópoles estão sendo deslocalizadas. A procura por uma série de bens e serviços (especialmente serviços) que surgem devido aos maiores rendimentos disponíveis desse "núcleo" geralmente gera mais emprego de classe média (como um efeito "multiplicador"), de modo que uma classe média relativamente rica se desenvolve sob a globalização, constituindo uma importante fonte de apoio social para ela, não apenas por si própria, mas também pela geração de expectativas entre aqueles situados mais abaixo de que a sua progénie poderá também subir até às suas fileiras, algum dia.

 

Ainda não está claro se a proporção dessa "classe média" no total da força de trabalho aumentou durante a globalização. Mas, a julgar pelo exemplo indiano, é improvável que tenha havido muito aumento na proporção da classe média na força de trabalho. Sua maior visibilidade se deve ao fato de se ter destacado do resto da força de trabalho, em termos de sua renda relativa.

 

O período da globalização é assim marcado por uma contradição intensificada entre os trabalhadores, de um lado, e os beneficiários de classe média da globalização, por outro. Este é um fenômeno visível em toda parte. No Reino Unido, os trabalhadores votaram pelo "Brexit", enquanto Londres, onde a classe média bem instalada se concentra, em torno da City, votou em sentido contrário. Na Índia, a aquisição da terra do campesinato, com diferentes graus de coerção, para um "desenvolvimento" cujos principais condutores e beneficiários são a classe média, exemplifica esta contradição.

 

Como é provável que esta contradição se desenvolva nos próximos tempos e, mais geralmente, a nova conjuntura que está a surgir na sequência da crise capitalista atual e da desilusão generalizada com a globalização, será um tema que abordarei proximamente. Mas antes de terminar, gostaria de fazer uma alegação adicional.

 

O colapso do socialismo em todo o mundo causou tanta consternação quanto desespero, entre aqueles que viram nele a única esperança para a liberdade humana. Em particular, o que causou decepção foi o fato de tão pouco do legado da Revolução de Outubro ter sobrevivido no seu país de origem. Isso contrasta com as revoluções anteriores, burguesas, onde mesmo quando a revolução aparentemente sofreu um revés, deixou, no entanto, um resíduo de aquisições progressivas. A restauração da monarquia na Grã-Bretanha, em 1688, não implicou uma negação dos ganhos da revolução burguesa inglesa, assim como o Thermidor, ou mesmo Napoleão, não implicaram uma negação dos ganhos da revolução burguesa francesa. No caso da Revolução de Outubro, em contraste, verificamos que os registos estão sendo limpos no país da revolução, com pouco para mostrar como seu legado particular; e muito disso é verdade também na Europa Oriental, onde o próprio fascismo ou semifascismo se passeiam triunfantes, em países que até recentemente eram parte do campo socialista.

 

Mas essa completa eliminação do legado da revolução tem uma explicação analítica que, longe de causar desespero, deve trazer mais entusiasmo. O que ela mostra é que não há meio caminho entre o capitalismo e o socialismo, que com o capitalismo temos apenas uma de duas situações: ou ele é derrubado e sua "espontaneidade" transcendida, ou se reafirma completamente com sua "espontaneidade", destruindo os vestígios de tudo o que havia sido alcançado antes pelo projeto socialista. O capitalismo, nesse sentido, é um modo de produção único, um fato frequentemente ignorado em manuias sobre o materialismo histórico, que listam os diferentes modos de produção como se fossem entidades mais ou menos comparáveis.

 

Isso também significa que a revolução para transcender o capitalismo será muito diferente de todas as revoluções anteriores, não apenas no sentido de que levaria a humanidade da sua "pré-história" à sua "história" como Marx havia dito, mas sobretudo no sentido de que levaria a humanidade de um "sistema espontâneo" para um governado pela intervenção coletiva consciente do povo. O fato de as revoluções burguesas de outrora, ao contrário da Revolução de Outubro, terem deixado um legado, mesmo quando pareciam ter fracassado, é em si mesmo uma expressão dessa "espontaneidade" do sistema, cujas tendências imanentes já haviam desgastado os sinais vitais do modo de produção anterior, mesmo antes de ser tentada a revolução política para mudar o caráter de classe do Estado. Não é assim com o socialismo que não cresce "espontaneamente" dentro do sistema capitalista (como fez o capitalismo dentro do sistema feudal) e que de fato não é "espontâneo" no sentido de estar ligado a tendências imanentes.

 

Nos meus dias de estudante costumávamos ter intensas discussões sobre se a União Soviética era um país socialista, se representava alguma forma de capitalismo de Estado ou algum outro modo de produção intermédio entre capitalismo e socialismo. Toda essa discussão, porém, passou ao lado do essencial sobre o capitalismo, ou seja, a sua "espontaneidade", da qual resulta que a transição do capitalismo para o socialismo, embora não possa ser reduzida a um único episódio revolucionário, constitui, no entanto, como disse Eugène Pottier la lutte finale (ou a "luta final").

 

 

 

 

 

(*) Prabhat Patnaik (n. 1945) é um economista marxista e reputado comentarista político indiano. Natural do Estado de Odisha, o sistema de bolsas permitiu-lhe prosseguir estudos até ao doutoramento na Universidade de Oxford, tendo ensinado também em Cambridge. De regresso à Índia em 1974, foi professor na Universidade Jawaharlal Nehru, Nova Delhi, até à sua recente jubilação. Especializou-se em Macroeconomia e Política Económica. De 2006 a 2011 serviu como vice-presidente do Comité de Planeamento do Estado de Kerala. É editor da revista Social Scientist, membro do grupo de estudos International Development Economics Associates (IDEAs) e autor de numerosos livros, de entre os quais: Time, Inflation and Growth (1988), Economics and Egalitarianism (1990), Whatever Happened to Imperialism and Other Essays (1995), Accumulation and Stability Under Capitalism (1997), The Retreat to Unfreedom (2003), The Value of Money (2008), Re-envisioning Socialism (2011), Marx's Capital: An Introductory Reader (2011) e (com sua esposa Utsa Patnaik) A Theory of Imperialism (2016). O presente texto constitui a base da terceira conferência dada pelo autor no Safdar Hashmi Memorial Trust (SAHMAT), num ciclo comemorativo do centenário da revolução soviética. A conferência ao vivo, com um conteúdo bastante mais rico e abrangente, pode ser assistida em linha.