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O sentido da vida (Parte I)
Jonathan Latham (*)
Muitos autores adotam como data da revolução do DNA a da descoberta de sua estrutura por James Watson e Francis Crick em 1953. Mas na verdade ela teve início trinta anos antes, na mente de John D. Rockefeller, Sr.. Assim, é apropriado que o DNA dele derive seu nome. DNA é a sigla de Deoxyribonucleic acid (ácido desoxirribonucleico (1)) e ‘ribo’ a do Rockefeller Institute of Biochemistry (agora Universidade Rockefeller), onde a composição química do DNA foi descoberta na década de 1920. A Fundação Rockefeller havia se interessado pelo DNA porque seus curadores temiam uma revolução no estilo bolchevique. Uma intensa insatisfação pública já havia forçado o desmembramento da Standard Oil Company em 1911; assim, a Fundação procurou meios, nas palavras do curador Harry Pratt Judson, de “reforçar o poder policial do Estado”. A intenção era a de encontrar a última chave do comportamento humano, que permitiria controlar efetivamente as massas ressentidas e invejosas.
A Fundação adotava duas estratégias de controle distintas, mas complementares: controlar o comportamento humano no nível das estruturas sociais: família, trabalho e emoções, às quais a Fundação se referia por meio de termos como “psicobiologia”; e controlar o comportamento humano no nível molecular.
A “ciência do homem”
Para desenvolver métodos de controle no nível social, a Fundação por assim dizer fundou a disciplina da ciência social em princípios do século passado. Max Mason, nomeado diretor da Fundação em 1929, caracterizou esse duplo foco como o projeto da “ciência do homem”:
“[Ele] trata do problema geral do comportamento humano, com o objetivo de controlá-lo por meio do entendimento. As ciências sociais, por exemplo, se ocuparão da racionalização do controle social; as ciências médicas e naturais propõem um estudo estreitamente coordenado das ciências subjacentes ao entendimento e o controle pessoais” (Citação de Lily Kay, The molecular vision of life, 1993).
Para o ramo da ciência social a Fundação procurou inculcar na respectiva comunidade de pesquisa hábitos mentais mecânicos específicos e um éthos voltados para essa meta de controle: “a validação das descobertas da ciência social [deve se basear] no controle social efetivo”, escreveu o chefe do setor de Ciências Sociais da Fundação, Edmund E. Day. De acordo com Warren Weaver, então diretor da Fundação, isso significava “remodelar as ideias dominantes da natureza e conduta humanas” alinhando-as com as “necessidades gerenciais” da industrialização tais como a pontualidade e a obediência.
A “reestruturação das relações humanas em congruência com o capitalismo industrial”, como Lily Kay, biógrafa da Fundação, a descreveu, constituía uma agenda amplamente entendida na década de 1930 – e amplamente desaprovada. Um crítico contemporâneo chamou o trabalho da Fundação “uma manipulação capitalista superficialmente disfarçada da ordem social” (Kay, 1993),
Os Rockefellers constroem o gene
O segundo ramo da estratégia da “ciência do homem” era vista como baseada puramente na racionalidade científica. Para os curadores da Fundação Rockefeller, entretanto, a racionalidade significava eugenia. A teoria eugênica, por definição, implica que os seres humanos contêm determinantes ocultos para traços como a civilidade, a inteligência, e a obediência. Logicamente, tais determinantes deveriam ser descobríveis, pensavam os curadores da Fundação. Se a ciência pudesse perscrutar de maneira suficientemente profunda, iria descobrir tais mecanismos e moléculas responsáveis por essa ‘causação ascendente’ do comportamento. Uma vez identificados, tais elementos controladores – que inicialmente se presumia serem proteínas – poderiam se entendidos e usados.
Entretanto, fazer tais descobertas requeria uma nova ciência e um novo conceito: a ‘biologia molecular’. A biologia molecular foi um termo inventado pela Fundação para uma ciência reducionista “do muito pequeno” voltada para descoberta do gene. A Fundação contudo tentou outras abordagens para a biologia – até mesmo não reducionistas. Apoiou brevemente o biólogo matemático Nicolas Rashevsky antes de abandoná-lo (Abraham, 2004). Presumivelmente, enquanto uma ciência descritiva, a biologia matemática não atendia o desejo da Fundação de descobrir as forças controladoras deterministas.
Testando e selecionando distintas abordagens, indivíduos e instituições, a Fundação finalmente desenvolveu uma estratégia para reinventar a ciência biológica, que, por volta de 1933, estava inteiramente elaborada. Sua atividade central consistia em financiar cliques científicas em um número relativamente pequeno de instituições de elite (como a Caltech e a Universidade de Chicago). Essas cliques treinaram centenas de cientistas cuja tarefa era encontrar as moléculas responsáveis pela causação ascendente; isto é, descobrir as moléculas e mecanismos específicos que determinavam a forma e a função dos organismos. Dessa forma, eles validariam a tese eugênica de Rockefeller.
Institucionalmente, tais esforços foram extremamente bem sucedidos. Depois de a procura por essas ‘moléculas-mestre’ ter finalmente se concentrado no DNA, George Beadle, ganhador do prêmio Nobel em fisiologia, e íntimo da Fundação Rockefeller, observou que, com exceção de um, todos os 18 prêmios Nobel concedidos para pesquisas em genética depois de 1953 tinham sido conquistados por cientistas na época, ou anteriormente financiados pela Fundação (Kay, 1993). Quando Beadle faleceu em 1989, graças em grande parte à Fundação Rockefeller, a biologia molecular havia se tornado a abordagem dominante de toda a biologia – da medicina, biologia do desenvolvimento, neurobiologia e agricultura.
Atualmente praticamente no mundo todo a ênfase irresistível da biologia na genética e no reducionismo é considerada lógica e inevitavelmente científica. Porém o que a história da Fundação Rockefeller mostra é que a virtual eliminação da biologia dos organismos como um todo e a desconsideração de diversas outras abordagens como a de Rashevsky, da biologia nutricional, e do determinismo ambiental, foi um golpe de estado cuidadosamente planejado. Foi uma flagrante captura da ciência visando substituir ideias rivais sobre a causação na biologia pelo determinismo genético.
O determinismo genético é a ideia de que os genes tem um nível privilegiado de causação, e assim, um status especial na biologia. Como demonstrado no artigo que faz par com este, "Genetics is giving way to a new science of life", a ideia é claramente falsa. A causação na biologia pode assumir muitas formas, e a genética é apenas uma delas, mas os robber barons (2) que compraram a biologia fizeram isso especificamente a fim de impor o paradigma do determinismo genético.
Outra consequência de seus esforços foi a de que eles simultaneamente se apropriaram e empobreceram a ideia de vida. Assim, quando Watson e Crick descobriram a estrutura do DNA em 1953, pensaram ter descoberto “o segredo da vida”. O triunfo da Fundação Rockefeller foi corroborado pelo fato de que ninguém os contradisse.
As origens do determinismo genético: Huxley e os vitorianos
O medo de massas ingovernáveis não era exclusivo da Fundação Rockefeller. Comentadores vitorianos dos livros de Charles Darwin, cinquenta anos antes, também viviam numa época tumultuada. O advento de novas tecnologias como o trem e o telefone, o crescimento das cidades, e a ascensão da classe mercantil que ameaçava deslocar a nobreza, estavam desestabilizando o mundo.
Os comentadores temiam que adicionar o darwinismo a esse fermento iria “sacudir a sociedade em seus próprios fundamentos” (Desmond, 1998). Escrevendo no período central da época vitoriana, eles temiam o darwinismo primariamente porque ele fornecia um conjunto de ideias poderosas que solapavam profundamente Deus e a Igreja, os dois alicerces sobre os quais seu mundo era, em grande parte, construído. Mais que isso, a evolução ameaçava especificamente destruir os antigos e sagrados conceitos de riqueza e mérito herdados. Para os vitorianos, tais conceitos eram virtualmente sinônimos dos benefícios da ordem e da hierarquia.
A evolução ameaçava até a deflagração de revoltas sociais diretamente: libertar os escravos, liberar os trabalhadores e emancipar a população feminina. Thomas Huxley, o principal defensor do darwinismo, calculava que iria ampliar o apoio popular para a ciência por meio de tais promessas. Ele dizia a entusiásticos trabalhadores vitorianos que a evolução das espécies demonstrava a inevitabilidade do aperfeiçoamento da sociedade.
Huxley entretanto não podia ir longe demais. Diferentemente de seus colegas abastados, ele precisava ganhar a vida com a ciência. Por outro lado, enquanto o efetivo porta-voz de Darwin, ele ocupava uma posição única capaz de moldar a percepção e interpretação do darwinismo. Assim, na presença dos despossuídos, ele enfatizava as qualidades revolucionárias da ciência; enquanto para os novos industriais apresentava a ciência como o motor de uma nova era industrial e, para o impassível establishment britânico enfatizava que a “a antiga lei sálica da natureza não será revogada, e não haverá mudança de dinastia”. A lei sálica é a antiga lei dos francos que garantia a herança apenas pela linha masculina.
Huxley e seus companheiros cientistas tornaram-se adeptos de tais manobras políticas. O exemplo-chave, pelo menos para a genética, consistia adotar teorias pré-científicas de herança, que eram familiares para o establishment, tais como a lei sálica, e mesclá-las com o darwinismo. Não havia evidências de que traços de caráter valorizados pelo establishment, como a intelectualidade e o refinamento social, poderiam ser biologicamente herdados. E mesmo se fossem, era certamente improvável que isso acontecesse apenas ao longo da linha masculina. E no entanto Huxley e seus colegas cientistas passavam por cima de tais inconsistências de maneira a apresentar a evolução de forma minimamente perturbadora para as crenças e os valores do status quo. Isso exigia que a natureza dos traços herdados fosse essencialmente determinista. As pessoas não adquiriam bons caracteres, nasciam com eles.
Tais interpretações significavam que a ciência prosperava, porém às custas de solapar as promessas anteriores de Huxley, de maior liberdade para as classes inferiores. Dessa forma, os cientistas usaram suas posições de especialistas para distorcer a ciência e conscientemente tomar o lado do establishment na luta pelo poder social que circundava a ciência vitoriana (Desmond, 1998).
Essas interpretações foram cruciais para o futuro da biologia. Fatores determinísticos herdados eram baseados no que Huxley chamava de “protoplasma”, e o protoplasma era um controlador do comportamento humano. O conceito de protoplasma é atualmente aceito por muitos historiadores como pai intelectual da teoria eugênica. Tornou-se a justificação intelectual da busca subsequente de Rockefeller pelas moléculas de controle social, mas, enquanto uma teoria construída por razões mais políticas que científicas, tinha pés de barro.
A entrada da grande indústria do tabaco
O desvio da biologia para longe do estudo de organismos como um todo, promovido pela Fundação Rockefeller (adotado também pela Fundação Carnegie) demonstrou ser relativamente fácil. Transformar esse entendimento em controle social foi um tanto mais difícil. A nova etapa requeria um novo ímpeto e anda mais dinheiro.
A partir da década de 1950 a indústria do tabaco distribuiu 370 milhões de dólares entre aproximadamente 1.000 cientistas nos estabelecimentos médicos dos Estados Unidos e Reino Unido. O plano de longo prazo era o de construir uma nova ciência molecular, a da variação genética humana (Wallace, 2009). O objetivo imediato era atribuir as doenças causadas pelo tabagismo a origens genéticas. A indústria do tabaco estava decidida a encontrar “defeitos genéticos” que pudessem causar câncer do pulmão e dependência. Os executivos pensavam – corretamente – que encontrar evidências, mesmo que limitadas, evitaria que a culpa fosse atribuída inteiramente a seus produtos. O determinismo genético poderia assim ser usado para neutralizar opiniões negativas do público, profissionais, e mesmo legais (Gundle et al., 2010).
O financiamento pela indústria do tabaco não produziu qualquer determinante genético do câncer ou da dependência. A estratégia, entretanto, conseguiu desviar a atenção do público. Geneticistas foram então encorajados por indústrias e governos a aplicar seus métodos para outras doenças físicas (tais como o diabetes), e pelas mesmas razões (Vrecko, 2008).
Assim, embora adeptos da eugenia, como Adolf Hitler, houvessem tornado a palavra abominável para a maioria das pessoas por volta das décadas de 1920 e 1930, a onda do sequenciamento genético finalmente convenceu o público de que o DNA era uma molécula-mestre, um controlador da saúde e do comportamento, até mesmo com relação às atividades e decisões diárias (3). O estudo dos genes e genomas promoveu a aceitação da premissa eugênica, por assim dizer, pela porta dos fundos. As pessoas foram convencidas a atribuir numerosas moléstias e estados de saúde, e não apenas o câncer de pulmão, a suas próprias “fraquezas” genéticas. Dessa forma, a genética se estabeleceu como causa primária presumida da maioria das variações humanas, as doenças crônicas foram normalizadas, e o DNA foi coroado como “o Rei das moléculas” por um cientista agraciado com o prêmio Nobel (Mullis, 1997).
O domínio sempre crescente da ciência
Thomas Huxley uma vez declarou, num editorial de 1865, que a ciência não tinha intenção “de se contentar com algo menos que uma vitória absoluta [sobre a Igreja] e a dominação incontrolada sobre todo o reino do intelecto” (citado em Desmond, 1998). Assim, enquanto Charles Darwin inicialmente evitou defender publicamente o que ele supunha serem as implicações intelectuais de suas ideias, pelo receio de que isso impediria sua aceitação, seus apóstolos raramente demonstraram tal contenção.
De Huxley e Herbert Spencer, via E. O. Wilson, Richard Dawkins, Steven Pinker, e muitos outros, as supostas propriedades do DNA formaram a base de grandes cadeias de implicação. Sociobiology: the new synthesis (1975), de E. O. Wilson, e The selfish gene (1976) e The extended phenotype (1982), de Dawkins’s extrapolaram a biologia para muito além dos domínios anteriormente aceitos do corpo, incorporando, no que se refere aos seres humanos, os desejos, “maus comportamentos”, a ética e as estruturas sociais. Apoiando-se em débeis associações estatísticas entre marcadores genômicos de DNA e traços humanos, geneticistas alegaram que centenas de atributos humanos têm explicações genéticas, pelo menos em grau significativo, incluindo: orientação sexual e religiosa, preferências eleitorais, sonambulismo, empreendedorismo, sexismo, violência e muitos outros (p. ex., Kales et al., 1980). Tais alegações forneceram um suprimento contínuo de manchetes apelativas sugerindo que os genes desempenham papéis poderosamente deterministas no comportamento (3).
O fracasso das “moléculas-mestre” para a explicação da vida
Em 2016, Gary Greenberg, Professor Emérito da Wichita State University, do Kansas, resenhou um livro a seu ver decididamente desnecessário. Seu título era How many nails does it take to seal the coffin? (Quantos pregos são necessários para fechar um caixão?) O caixão no caso é a ciência da genética comportamental. O autor da resenha citou seu camarada coveiro Richard Lerner, da Tufts University por conta das “conceptualizações contrafactuais do papel dos genes no comportamento e no desenvolvimento” (Lerner, 2007) e o agente funerário Douglas Wahlsten (2012) pela afirmação de que “perdeu-se toda a esperança” na busca de efeitos genéticos sobre o comportamento humano (Greenberg, 2016).
A questão básica identificada por Greenberg, Lerner e outros é a de que se a busca, ao custo de muitas centenas de bilhões de dólares, não encontra evidência alguma de influências genéticas (com exceção de raras condições, como a síndrome de Down), então a única conclusão razoável é a de que as influências genéticas não existem, ou são minúsculas. E contudo o zumbi genético, para a exasperação deles, continua vivo, pela simples razão de ser prodigamente financiado.
Não é apenas no estudo dos comportamentos humanos que as evidências genéticas, há muito procuradas, estão cronicamente em falta. Em 2013, o chefe do Broad Institute do MIT, que é a mais globalmente destacada instituição dedicada ao estudo da genética humana, chamou a influência genética nas doenças humanas um “fantasma” (Zuk et al., 2013). Essa guinada de 180º veio na esteira de uma série de críticas convincentes com foco em 1) a falta de replicabilidade das supostas predisposições genéticas nos seres humanos (Ioannidis, 2007); 2) falta de evidências de efeitos amplos sobre a saúde (Manolio et al., 2009; Dermitzakis e Clark, 2009); 3) falta de dimensão nos efeitos exceto em relação a muito poucas predisposições genéticas individuais (Ioannides e Panagiotou, 2011); e 4) falta geral de rigor experimental (4) nos métodos e hipóteses genéticos (Buchanan et al., 2006; Wallace, 2006; Charney e English, 2012).
A mídia (inclusive a científica) quase não reportou tais críticas, que contudo criaram um turbilhão na disciplina da genética humana. Por interessante que seja observar bilhões de dólares no financiamento de pesquisas médicas gerar nada além de resultados negativos (5) (v. Manolio et al., 2009), a questão realmente importante é a que agora assombra a ideia subjacente da molécula-mestre, uma vez que o determinismo genético tornou-se o paradigma central de toda a biologia.
Os defeitos fundamentais desse conceito de molécula-mestre foram resumidos talvez da maneira mais sucinta possível por Richard C. Strohman da University of California, Berkeley, num artigo de 1977, ‘The coming Kuhnian revolution is biology’: “Pegamos uma teoria e paradigma genéticos bem sucedidos e extremamente úteis e o extrapolamos ilegitimamente enquanto uma paradigma da vida.” Porém, escreveu Strohman, o paradigma mais amplo “tem pouco poder e deve mais cedo ou mais tarde falhar”. É interessante observar que a mesma falha lógica foi identificada por Lily Kay em sua história da Fundação Rockefeller de 1933. Concluindo, ela notou a natureza autolimitante de seu método reducionista. “Por estreitar seu domínio epistêmico, a nova biologia deixou importantes fenômenos vitais fora de seu discurso sobre a vida”.
O fracasso é agora completamente visível. Graças às emergentes descobertas de pesquisa tais como as descritas em Genetics is giving way to a new science of life, tornou-se difícil não reconhecer que o reducionismo genético não conseguiu explicar “fenômenos vitais importantes”, como: o crescimento, a auto-organização, a evolução, a consciência, a aprendizagem, a saúde e a doença. Esses são elementos-chave da vida que um paradigma bem sucedido deveria explicar, o que o determinismo genético nunca fez.
Seu substituto emergente é um paradigma da vida muitíssimo diferente, que concebe os sistemas vivos como cooperativas e não ditaduras. Fique claro que alguns fatos a respeito do DNA não estão em disputa. O DNA existe. A mutação ou adição de genes pode ter efeitos profundos nas propriedades dos organismos, porém isso não torna o DNA especial. A remoção ou adição (quando possível) da maioria dos outros componentes dos organismos, tais como o RNA, ou proteínas, ou mesmo a água, tem o mesmo efeito. Assim, mesmo as plantas transgênicas, que podem parecer exemplos claros de causação ascendente, são consistentes com o novo paradigma, pois os transgenes incluídos são cuidadosamente projetados de forma a atuar como módulos isolados, traços que operam independentemente de todo o sistema de controle de níveis que os organismos tipicamente usam para administrar e integrar a atividade dos genes e a função bioquímica.
Porém o que motiva esse novo paradigma em última análise é a falta de necessidade conceitual do DNA para animar os organismos. Os biólogos moleculares rotineiramente sustentam que o DNA tem propriedades de “expressão”, de controles, e de governança celular, em algum sentido que outras moléculas não tem. Essas são as propriedades que um paradigma de molécula-mestre requer, mas afirmá-las não resgata o determinismo genético, trata-se meramente de vitalismo pré-científico.
O que a ciências está nos dizendo, portanto, é que em sistemas vivos, tudo depende de tudo, e a vida emergiu por si própria do lodo. O DNA não indicou o caminho.
As consequências societais do determinismo genético
Verdadeiros ou falsos, todos os sistemas de crenças têm consequências. Quando as notícias da teoria evolucionária de Darwin chegaram à Alemanha, na década de 1860, Ernst Haeckel, o grande biólogo alemão, construiu as primeiras árvores da vida, com os seres humanos no ápice da criação (sem que houvesse razão científica para isso). Muito semelhantemente a Huxley, Haeckel também ampliou as implicações do darwinismo para uma luta genética determinista, que nesse caso teria impelido “os povos irresistivelmente avante”. O darwinismo previu, disse ele, um novo destino teutônico.
Já na época da morte de Charles Darwin (1882) dizia-se que seu pensamento (predominantemente de acordo com as interpretações de Huxley) podia ser encontrado “sob cem disfarces em obras sobre as leis e a história, em discursos políticos e religiosos ... se tentarmos nos afastar dele devemos nos afastar inteiramente de nossa época” (John Morley, 1882, citado em Desmond, 1998).
Assim o sistema de crenças de acordo com o qual o seres humanos são controlados por uma molécula-mestre interna entrelaçou-se com uma miríade de áreas de pensamento social. Situa-se muito além do âmbito desse artigo a descrição das consequências do determinismo genético tanto no nível pessoal quanto no social (ver, p. ex., Nelkin e Lindee, The DNA mystique), porém as duas guerras mundiais, o holocausto, o racismo, o colonialismo, a eugenia, a iniquidade foram fortalecidos em consequência da ideia do determinismo genético, ou poderiam nunca ter acontecido sem ela. A razão disso é a de que o determinismo genético transformou “superior” e “inferior”, “normal” e “anormal”, em propriedades científicas intrínsecas e imutáveis dos organismos ou grupos biológicos, no lugar do que eram anteriormente: preconceitos questionáveis ou presunções duvidosas.
O determinismo genético tornou-se assim a ideia definidora do século XX. Nada resistiu. Ela direcionou a biologia, e até a própria ciência. O processo começou com a capacidade de instituições externas de impor à ciência uma agenda extensa e de longo prazo. Isso por si só constitui uma observação de tirar o fôlego, perturbadora e profunda, que contradiz inteiramente a pressuposição normal de que a ciência é conduzida por indivíduos brilhantes, inovações técnicas, e rigor intelectual coletivo. Em vez disso, entender o que ocorreu com o DNA é tão simples como seguir o dinheiro.
A ciência, e portanto toda a sociedade, foi enganadoramente atraída para uma interpretação da vida muito especificamente centrada no DNA, com base num pensamento mágico a respeito das propriedades dos genes. Tendo as condições iniciais sido estabelecidas, entretanto, uma observação-chave é a de que a pesquisa biológica promoveu o pensamento social marcado pelo determinismo genético, e o pensamento genético determinista por sua vez fez a ciência geneticamente determinista parecer mais válida e desejável. Criou-se assim um circuito auto-sustentado de retroalimentação.
Um exemplo de como o determinismo genético participou desse circuito foi exposto numa carta de 1975 de destacados geneticistas para a New York Review of Books. Tratava-se de uma réplica a uma resenha acrítica do livro de E. O. Wilson Sociobiology: a new synthesis. A carta dos geneticistas apresenta razões para o establishment político financiar a sociobiologia e a genômica: fornecer interpretações da atividade humana que criam e portanto determinam as normas comportamentais e sociais. Como dizem os autores: “para Wilson, o que existe é adaptativo, o que é adaptativo é bom, portanto o que existe é bom”. Os autores estavam afirmando, muito antes de a estratégia da indústria do tabaco ser desmascarada, que qualquer afirmação científica de que a uma aberração social como a “guerra”, ou um mau comportamento individual como a “violência”, tem raízes genéticas os fazem parecer naturais ou normais. Assim, o que é uma “descoberta” científica simples e apolítica, digamos uma predisposição genética à obesidade, dá origem a inferências altamente valorizadas pelas instituições (como a indústria de alimentos) que causam obesidade mas desejam resistir à pressão sobre elas para que mudem suas práticas.
Não causa surpresa portanto que a publicação de Sociobiology tenha sido acompanhada de um crescimento súbito do financiamento para a pesquisa genética, tanto nas ciências sociais quanto nas ciências médicas. Tal crescimento aconteceu embora a pesquisa na genética humana raramente tenha valor para a procura de curas ou tratamento de moléstias (Chaufan & Joseph, 2013). Em última análise, mesmo se existissem predisposições genéticas à obesidade, todas as pessoas deveriam fazer exercícios e não comer demais.
Assim, explicações biológicas expandiram amplamente o domínio intelectual nos campos das questões sociais, econômicas, políticas, religiosas, e até mesmo filosóficas e éticas. Confirmando a previsão da carta ao New York Review of Books, a sociobiologia praticamente eliminou interpretações acadêmicas tradicionais da atividade humana tais como o marxismo ou o desconstrutivismo, que tornaram a vida desconfortável para os poderes dominantes.
Como Dorothy Nelkin e Susan Lindee observaram em relação à academia:
“Nas últimas décadas muitas universidades pararam de oferecer os cursos panorâmicos sobre a civilização ocidental que antes pareciam explicar tanto sobre a cultura e o passado humanos. O pós-colonialismo, o pós-modernismo, a teoria literária e outras linhagens da vida acadêmica questionaram a legitimidade das grandes narrativas inseridas na noção de “civilização ocidental”. Muitos estudantes universitários nunca farão um curso desse tipo. Mas a maioria terá introdução à biologia... que tornou-se o equivalente cultural do antigo currículo da civilização ocidental: na explicação da cultura e do passado humanos, o conhecimento biológico é visto como profundamente relevante para questões sociais, desenvolvimento econômico, relações internacionais e debates éticos. A biologia no nível introdutório é apresentada como um empreendimento de busca da verdade válido, não enviesado por compromissos religiosos, políticos, ou filosóficos. Ela situa os seres humanos num universo significativo, fornecendo maneiras de entender as relações entre grupos étnicos e raciais e entre a identidade e o corpo” (prefácio da segunda edição de The DNA mystique: the gene as a cultural icon, 2004).
Qualquer pessoa desconhecedora das estratégias da Fundação Rockefeller e da indústria do tabaco bem pode imaginar ser a sociobiologia “válida” e “não enviesada”. Claramente entretanto, dada sua história, e as novas descobertas científicas, as explicações genéticas são exatamente aquelas cujos compromissos políticos são mais bem ocultos, e torna-se altamente relevante que sejam propostas na academia, no campo das políticas públicas, e do debate público por cientistas cujos financiadores (governos ou grandes empresas) se beneficiam dessa castração do discurso público.
Pode-se dizer que o resultado final da ampliação intelectual da biologia proposta por Huxley já foi atingido. Estudantes ignorantes da história do pensamento e imersos em explicações genéticas não corroboradas ou inverificáveis tornaram-se o núcleo intelectual de uma sociedade mal educada e complacente. Uma sociedade que participa criativamente de seu próprio engano ao conceber moléstias como “genéticas”, mesmo em casos onde a única evidência clara de causação é ambiental (5). Uma sociedade geneticamente determinista é portanto incapaz de se entender como estando diretamente em risco por atividades empresariais irresponsáveis e indiferença governamental. É fundamentalmente indefesa contra poluidores, produtores de junk food, perturbação de comunidades, e outras ameaças à integridade humana.
Num quadro político mais amplo, a história do século XX mostra que uma sociedade geneticamente determinista também é vulnerável a fascistas, racistas, ditadores e belicistas. Tudo isso também é produto de um século e meio de manipulação da ciência biológica. Será forte demais essa tese? Não acho. Consideremos, como um estudo de caso, Adolf Eichmann e o transporte de judeus para campos de extermínio durante a Segunda Guerra Mundial. O mundo predominantemente culpou Eichmann pessoalmente e Israel o executou. Hannah Arendt, entretanto, famosamente atribuiu seus crimes a uma mítica “banalidade do mal”. Todos estavam errados. Eichmann e seus superiores estavam seguindo os ditames, como eles os viam, da ciência e da genética. Os judeus eram, para eles, um problema genético de pureza racial e a única solução para um problema genético é a exterminação e a prevenção da reprodução (ver especialmente The war against the jews: 1933-1945). Dadas as premissas, a solução final era perfeitamente lógica.
Porém a questão perfeitamente lógica para nós (e assunto de ‘O sentido da vida, parte II) é, porque quase ninguém vê isso? Porque é tão difícil criticar ou questionar a genética? Não apenas atribuímos aos genes um nível privilegiado de causação na biologia, totalmente injustificado, mas também lhe concedemos um nível privilegiado de discurso na sociedade. O predomínio da genética é portanto um fenômeno que não tem origem na ciência.
No último ensaio desta série vou tratar de forma mais elaborada desse tema propondo uma nova teoria explicativa da fascinação de nossa sociedade pelo determinismo genético e por moléculas-mestre. A teoria explica o status icônico e o caráter atraente para a ciência do DNA em termos de seu papel metafísico de representante do universo. Como o outro representante do universo, o Deus judaico-cristão, o DNA possui as propriedades de liderança e autoridade sobre a natureza desordenada. O DNA, como o verdadeiro sentido da vida, dessa forma legitima a autoridade em nossa sociedade científica. Portanto, os atores históricos, tais como a Fundação Rockefeller, que ajudou a criar esse papel para o DNA, estavam, exatamente como todo mundo, sob o domínio de forças que não compreendiam inteiramente.
Essa teoria tem várias implicações importantes. Ela sugere que a partir do momento em que o determinismo genético se estabeleceu na mente do público, as sociedades ocidentais foram aprisionadas em uma espiral descendente de política autoritária e pensamento genético determinista. Essa espiral já ameaça o funcionamento da democracia. Se não for contida, pode extinguir inteiramente os valores democráticos. Mais otimisticamente, a teoria oferece uma maneira conceitualmente simples de reverter a espiral, que consiste em enfatizar que todos os organismos são sistemas e não ditaduras. Torna-se necessário, para a própria sobrevivência da sociedade democrática, confrontar tais hábitos de pensamento determinista que, afinal, carecem de base na realidade.
21 de março de 2017
(*) Jonathan Latham é um botânico, biólogo e ensaísta bio-político britânico, radicado nos E.U.A.. Possui mestrado em genética de culturas e um doutorado em virologia. Foi associado de pesquisa pós-doutorado no Departamento de Genética da Universidade de Wisconsin, Madison. Publicou artigos científicos em disciplinas tão diversas como a ecologia vegetal, a virologia vegetal, a genética e a engenharia genética. É co-fundador e diretor executivo do Bioscience Resource Project e editor da sua publicação Independent Science News. É também editor do Poison Papers Project que denuncia e documenta malefícios das indústrias química e bio-técnica, bem como dos seus reguladores. O original deste ensaio foi publicado em Independent Science News . A sua anunciada segunda parte ainda não foi publicada. O Comuneiro não deixará de a seguir. A tradução é de Marcos Barbosa de Oliveira.
_______________ NOTAS:
(1) [Nota do tradutor] Em português, a sigla ADN também é usada.
(2) [Nota do editor] Robber barons ou barões gatunos é uma expressão usada correntemente para designar os grandes magnatas capitalistas norte-americanos do final do século XIX que usaram práticas predatórias agressivas para atingir posições monopolistas e influenciar as decisões políticas em seu favor. A expressão dirigia-se sobretudo a figuras como Cornelius Vanderbilt, Andrew Carnegie, John D. Rockefeller e J. P. Morgan.
(3) V. Jonathan Latham, “Science and Social Control: Political Paralysis and the Genetics Agenda”, Independent Science News.
(4) V. Evan Charney, “Still Chasing Ghosts: A New Genetic Methodology Will Not Find the «Missing Heritability»”, Independent Science News.
(5) V. Jonathan Latham “The Great DNA Data Deficit: Are Genes for Disease a Mirage?”, Independent Science News.
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