Nosso inimigo, o Capital

Notas sobre o fim dos dias tranquilos

 

Jean-Claude Michéa (*)

 

 

 

«A economia é o método. Mas o nosso objectivo continua a ser o de mudar o coração e a alma humana.»

 

Margaret Thatcher (Sunday Times, 7 de maio de 1971)

 

 

«Mesmo que inúmeras outras consequências dêm testemunho desta ordem social, do seu carácter efémero e da sua aberração de um modo mais cru e mais manifesto, a sua natureza absurda, não aflora, em parte alguma, de modo tão definitivo, como na degenerescência impercéptível de povos inteiros, que demonstra com a maior evidência que a tendência imanente ao sistema capitalista não é senão a liquidação da espécie humana. A luta contra esta ordem constitui um imperativo para a conservação da humanidade.»

 

Rosa Luxemburgo, A estatística demográfica em França (1898)

 

 

«Assim que saímos dos massacres da Comuna, recordemos aos que teriam tendência para esquecê-lo, que tanto a esquerda de Versailles como toda a direita, tomou o comando do massacre de Paris e que o exército dos massacradores recebeu felicitações tanto de uns como dos outros, pelo que ambos merecem o ódio do povo.»

 

Manifesto dos proscritos da Comuna, Londres 1874

 

 

 

 

Prefácio

 

No seu prefácio da primeira edição de O Capital, publicada em Londres, em julho de 1867, Marx escrevia que o «objectivo fundamental desta obra é o de desvendar a lei económica do movimento da sociedade moderna». Tratava-se, pois, muito claramente, no seu espírito, de armar os trabalhadores da sua época contra os novos malefícios, servidões e alienações de um sistema social e económico inteiramente novo (sem o que ele ter-se-ia contentado com escrever uma obra intitulada A aliança do trono e do altar, ou, mais sobriamente, A Reacção). Compreende-se, então, que Marx jamais tenha pensado uma única vez – como, aliás, qualquer outro dos grandes socialistas e anarquistas do século XIX – em inscrever os seus combates políticos sob o signo da «esquerda», mesmo que fosse uma esquerda radical ou uma esquerda da esquerda. O slogan que mais fielmente traduz o espírito desta última, é a famosa palavra de ordem de Maio de 68: «Corre mais depressa, camarada, o velho mundo corre atrás de ti!» [o «velho mundo» no qual - ironizava Orwell, homem da esquerda progressista – poderia facilmente incluir-se «a guerra, o nacionalismo, a religião e a monarquia» bem como «os camponeses, os professores de grego, os poetas e os cavalos» (1)]. É óbvio que a verdadeira máxima socialista (veremos, mais tarde, o que engloba este termo) deveria ser, ao contrário, «Vai mais devagar, camarada, o novo mundo – o do aquecimento climático, da Goldman Sachs e da Silicon Valley – está à tua frente!» Ao escolher, como título deste ensaio, Nosso inimigo, o Capital, quis simplesmente lembrar a necessidade e a urgência de regressar ao tesouro perdido da crítica socialista original, convencido de que na hora da mundialização e do liberalismo triunfante é a prossecução contínua e insensata do lucro capitalista que ameaça destruir, a termo, a natureza da humanidade.

 

O ponto de partida deste pequeno livro foi a entrevista concedida ao jovem sítio socialista Le Comptoir. Redigida em janeiro e fevereiro de 2016, a entrevista é aqui reproduzida sem nenhuma modificação. A notas que a acompanham – bem como os escólios que se lhes seguem – foram escritos entre março e agosto de 2016 (2). O leitor não deverá inquietar-se com a estrutura arborescente que daí decorre (estrutura que torna possível um modo de exposição mais «dialéctico», ou se preferirem uma fórmula mais jovem «em 3D»). Os «escólios» foram construídos para poderem ser lidos como capítulos independentes e segundo uma ordem linear (incluindo as notas e os escólios). O leitor não terá necessidade de modificar o seu modo habitual de ler, e não precisa de se perder em inúteis vaivéns entre o texto e as notas que o prolongam. Agradeço evidentemente a toda a equipe do sítio Le Comptoir e muito particularmente a Kevin Victoire e Mikaele Faujour, pela sua iniciativa e a sua colaboração.

 

 

 

Questão 1

 

Os cinco últimos decénios foram marcados, no Ocidente, pelo surgimento da sociedade de consumo e a chegada da cultura de massa, que operaram uma uniformização inédita dos modos de vida. Pasolini, do qual você é um grande leitor, notava, há quarenta anos, que as classes populares foram «atingidas no fundo da sua alma nos seus modos de ser», que a alma do povo «não foi apenas arranhada, mas lacerada, violada, suja para sempre». Nestas condições, é ainda possível falar de povo e de decência comum (“common decency”)?

 

Convém, em primeiro lugar, recordar que aquilo a que você chama «sociedade de consumo» (tal como se instala nos Estados Unidos no início dos anos 1920) tem como condição prévia a necessidade inerente a toda a economia liberal de prosseguir, até ao infinito, o processo de valorização do capital. Necessidade contraditória -  já que vivemos num nundo fechado – mas que constitui, desde a revolução industrial, a principal chave de inteligibilidade (embora não exclusiva) do movimento das sociedades modernas (3). Num mundo em que cada um de nós acaba, mais cedo ou mais tarde, por ser posto em concorrência com todos – em conformidade com o principio liberal de extensão do domínio da luta – é, com efeito, vital, se queremos manter-nos na corrida, aumentar incessantemente o valor do nosso capital de partida (toda a atitude «conservadora» sendo necessariamente suicidária numa economia aberta e teoricamente concorrencial).

 

Bem entendido, esta injunção sistémica ao «crescimento» e à «inovação» não explica apenas a tendência dominante do capital – como o confirma um simples jogo de “Monopólio” – a concentrar-se num número cada vez menos numeroso de mãos (actualmente, 62 indivíduos detêm uma fortuna equivalente à da metade mais pobre da humanidade!). Conduzindo a subordinar toda a produção de bens e serviços à exigência prioritária do «retorno do investimento» (mesmo quando a maior parte das mercadorias assim produzidas se revelam perfeitamente inúteis ou mesmo tóxicas para o clima e para a saúde humana) esta tendência encoraja simultaneamente o sonho positivista de um mundo «axiologicamente neutro» (4) - cujo último imperativo categórico seria business is business – contribuindo assim para afogar as mais preciosas virtudes humanas (aquelas que fundam, por exemplo, o civismo quotidiano e as práticas de reciprocidade e de entreajuda) nas «águas geladas do cálculo egoísta» (Marx). É essa a razão pela qual as críticas dos primeiros socialistas raramente se resumiam apenas aos aspectos inigualitários e embrutecedores do novo modo de produção industrial (os famosos satanic mills de William Blake). Elas incidiam, de igual forma - senão sobretudo - sobre o tipo de sociedade atomizada, mobilizante (5) e agressivamente individualista que constitui o seu obrigatório reverso moral, psicológico e cultural [«esta sociedade – notava Pierre Leroux – onde toda a gente quere ser monarca» e que Proudhon descrevia, por seu turno, como o «reinado do absolutismo individual» (6)]. Uma vez reconhecido este elo estrutural entre «desmoralização e o isolamento que encerram cada um de nós na sua miséria privada» (Jaime Semprun) e esta guerra quotidiana de todos contra todos que constitui a essência do liberalismo económico, compreende-se melhor porque razões lógicas a expansão planetária das políticas liberais – sobre o pano de fundo da renúncia da inteligentsia de esquerda, a partir do final dos anos 1970, a toda a crítica radical ao sistema fundado sobre a acumulação do capital – só poderia conduzir a minar indefinidamente os próprios fundamentos (sejam antropológicos, morais ou culturais) de toda a vida realmente comum (7).

 

Dito isto, e a menos que adiramos inteiramente a visão odienta e de desprezo pelas classes «subalternas» que era a do inacreditável juiz Burgaud aquando do processo Outreau (visão onde não é aliás difícil encontrar o verdadeiro substrato psicológico e intelectual de todas as cruzadas mediáticas e universitárias contra o «populismo») parece-me prematuro concluir que as noções de «decência comum» (8) ou de «povo» (ele próprio reduzido, hoje, pela sociologia de Estado, a um conglomerado improvável de «minorias») pertenceriam hoje a um passado que já la vai. Porque se é efectivamente incontestável que porções inteiras do universo moral e cultural das pessoas comuns – para retomar a expressão de Orwell – se volatizaram hoje sob o efeito das dinâmicas «axiologicamente neutras» (9) da mundialização jurídica e mercantil (bastará observar a progressão constante dos comportamentos «autísticos» ou associais no espaço publico) parece-me não menos evidente que «esta dissolução de todos os espaços sociais» (Debord) está ainda muito longe de atingir esse estádio último de atomização do mundo que Marx associava, no livro I de O Capital, à própria axiomática do liberalismo político. A saber, o de uma sociedade onde «cada um só pensa em si mesmo e não se inquieta com os outros» e onde «a única força que põe em presença e em relação os indivíduos é a do seu egoísmo, do seu proveito particular e dos seus interesses privados» (em contrapartida, uma tal descrição aplicar-se-ia já muito melhor ao mundo impiedoso das elites modernas).

 

A maior parte dos estudos dedicados a este tema (essencialmente, é verdade, nos países anglo-saxónicos) confirmam, com efeito, muito claramente, que os valores tradicionais de solidariedade e de entreajuda - aqueles que o próprio Marx [reenvio aqui para os trabalhos decisivos de Teodor Shanin e de Kevin Anderson (10)] tinha acabado por considerar, nos últimos anos da sua vida, como uma das condições mais indispensáveis da revolução socialista – estão ainda massivamente presentes nos meios populares. Se alguém tiver dúvidas sobre isso, bastará que se coloque a seguinte questão: porque milagre as pessoas comuns – que, na sua imensa maioria, têm hoje que viver com menos de 2.000 euros por mês (11) - poderiam fazer face às inevitáveis áleas da vida quotidiana (perda de emprego, queda na precariedade, acidente de saúde, mudança de residência imposta pelas políticas liberais de «flexibilidade», rotura nas canalizações, assalto, reparação da velha viatura indispensável para ir para o seu trabalho, etc.?) se não subsistissem, em proporções ainda consideráveis, estas prática da entreajuda e do «pequeno jeito» - entre parentes, amigos, vizinhos ou colegas - que constituem a própria essência daquilo a que Marcel Mauss chamava o «espírito do dom»? Com toda a evidência, a ideia, hoje muito disseminada no clero universitário, de que «o povo já não existe», releva muito mais de wishful thinking da parte daqueles que receiam e têm tudo a temer do seu despertar político, do que de uma análise objectiva do mundo real.

 

 

 

Questão 2

 

Actualmente, o liberalismo cultural, durante muito tempo hegemónico, tem um chumbo na asa. Um certo número de vozes, cada vez mais amplo, de Zemmour a Finkielkraut, atacam, nos meios de comunicação social, o famoso «pensamento único» e quebram o politicamente correcto. No seio da esquerda governamental, a «linha Valls», securitária e pouco inclinada para o «societal», parece ter definitivamente levado a palma sobre a «linha Taubira», mais laxista. Todavia, a economia de mercado é cada vez menos contestada. Será que a fase «libertária» do capitalismo, que emergiu após o Maio de 68, e que você tem analisado abundantemente nas suas obras, passou a ser coisa do passado?

 

Parece-me que aí reside uma das ilusões de óptica que fazem o charme da sociedade do espectáculo! E como esta ilusão tem a sua origem primária em certas particularidades da situação política actual, parece-me indispensável regressar, por momentos, às raízes reais desta última. No início do ano de 1996, nas suas Remarques sur la paralysie de decembre 1995, os redactores da Encyclopédie des Nuisances tinham anunciado, com a sua habitual lucidez, «que não haveria qualquer “saída da crise”; que a crise económica, a depressão, o desemprego e a precariedade de todos, etc., se haviam tornado o próprio modo de funcionamento da economia planetarizada; que isto seria cada vez mais assim». Vinte anos depois, somos obrigados a admitir que este juízo (que, na época, tinha suscitado o sorriso trocista daqueles que sabem) foi não só inteiramente confirmado pelos factos, como encontra um eco cada vez mais audível em todas as classes populares europeias (e hoje também nos Estados Unidos), como testemunham abundantemente os progressos constantes da abstenção, do voto branco e o número de votos obtidos pelos partidos «antissistema» ou «populistas». Tudo se passa, com efeito, como se as classes populares estivessem, por toda a parte, em vias de tomar consciência, mesmo que seja sob formas mistificadas, de que os dois grandes partidos do bloco liberal (aqueles que podemos chamar, a justo título, os «partidos dinásticos») não têm, em suma, mais nenhum ideal a propor-lhes, senão a dissolução contínua dos seus modos de vida específicos – e dos seus últimos adquiridos sociais – no movimento sem fim do crescimento mundializado, seja este repintado de verde, ou com as cores do «desenvolvimento durável», da «transição energética» ou da «revolução digital».

 

Face a esta situação nova, em que os de baixo estão cada vez menos sensíveis - a experiencia assim os obriga - às virtudes da alternância única, a ala esquerda e a ala direita do castelo liberal (cujas únicas diferenças se resumem às ambições pessoais dos seus dirigentes e às particularidades ainda marcadas dos seus eleitorados históricos) encontram-se, pouco a pouco, constrangidas a reflectir sobres as diferentes maneiras possíveis de governar de outro modo. Dito de modo diferente, de prolongar ainda por alguns decénios mais a sobrevivência de um sistema que mete água por todos os lados. Uma das situações mais promissoras, a médio prazo, seria incontestavelmente a de um «compromisso histórico» de um tipo novo, quer este compromisso tomasse a forma de uma «grande coalizão» à alemã, de uma frente republicana, à francesa (12), ou mesmo, se uma situação internacional favorável o permitisse, de uma nova «união sagrada (13). É, pois, primariamente à luz deste contexto histórico inédito (provavelmente, também, das ameaças de crise económica e financeira mundial que se acumulam no horizonte – reenvio aqui para as análises decisivas de Ernst Lohoff e Norbert Trenkle em La Grande Dévalorisation, Post Éditon, 2014) que convém, em minha opinião, explicar a colocação em surdina, pela ala esquerda do grande bloco liberal, de certos aspectos mais fracturantes, e portanto, mais provocatórios, do seu programa «societal». Com efeito, seria difícil convencer estas categorias populares que votam tradicionalmente à direita, designadamente, nos meios rurais (no século XIX chamava-se muitas vezes rurais aos deputados de direita) de apoiar duradouramente um governo de coalizão, se a ala esquerda de tal governo, não renunciasse, pelo menos temporariamente, a agitar perante elas a capa vermelha da abolição de todos os «tabus» da moral comum, de todas as fronteiras protectoras ainda subsistentes e de todos os modos de viver partilhados, tão bem analisados por E. P. Thompson, que fundamentavam a sua identidade regional e popular (14). (Notemos, entretanto, que esta furiosa cruzada contra todos os «tabus» do passado nunca foi ao ponto de pôr em causa o velho costume familiar da herança, ao qual os intelectuais de esquerda – mesmo os mais fiéis à «desconstrução» - continuaram sempre pessoalmente muito afeiçoados).

 

No entanto, esta reconfiguração do campo político – a termo, uma vez mais, assaz plausível (é ela, em todo o caso que goza do favor dos mercados financeiros) – não deve conduzir-nos a validar a ilusão de que a fase «libertária do liberalismo», para retomar a vossa expressão, está ultrapassada. Num mundo em que todos os evangelistas proclamam, a toda a hora, que a sua essência profunda é a de mudar incessantemente, deveria ser mais evidente do que nunca – salvo se mantivermos a crença de que, na época da mundialização capitalista, o objectivo real da esquerda liberal moderna seria o de defender a Igreja católica, o mundo rural e os «valores tradicionais» - que o capitalismo liberal (ou, se preferirmos, a contra-cultura liberal) representa, por definição, a única forma de construção psicológica e intelectual que está em condições de legitimar em tempo real e na totalidade das suas manifestações, a dinâmica planetária do capitalismo. E isso precisamente porque a neutralidade axiológica deste último o conduz, forçosamente, a emancipar-se de «todo o limite moral ou natural» (Marx) (15). Não é, aliás, por acaso que esta cultura de esquerda (como Georges Perec foi um dos primeiros a sublinhar) fornece, desde há muito tempo, ao universo mistificador da publicidade moderna – dito de outro modo, ao discurso da mercadoria sobre si mesma – o essencial da sua linguagem, dos seus códigos e do seu imaginário United Colors of Benetton (16).

 

Quanto a todos esses universitários pós-modernos, alimentados pelo leite materno de Foucault e Derrida, que acreditam ainda, ou fingem acreditar, que a ideologia natural do liberalismo seria uma mistura «neo-reacionária» (para retomar aqui o termo popularizado pelo spin doctor Daniel Lindeberg) de conservadorismo de «austeridade calvinista» e de nostalgia «hétero patriarcal» (em Why I Am not a Conservative – um texto escrito em 1960 – Friedrich Hayek havia, entretanto, fornecido, na sequência de Ayn Rand, todos os esclarecimentos necessários sobre este ponto) aconselho-os a virar, por um momento, os seus olhares para Silicon Valley, que constitui, desde há decénios, a síntese mais perfeita da cupidez dos negócios liberais e da contra cultura dos sixties (Steve Jobs e Jerry Rubin, representam exemplos notáveis). Como é sabido, é com efeito nesta nova Meca do capitalismo mundial – graças, entre outros, ao financiamento da Google – que se desenvolve o delirante projecto «trans-humanista», animado pela eterna ilusão de ter finalmente descoberto uma fonte inesgotável de valorização do capital (utilizando todos os recursos da ciência e da tecnologia modernas – ciências cognitivas, nanotecnologias, inteligência artificial, biotecnologias, etc. – ao serviço prioritário da fabricação de um ser humano «aumentado» e, se possível, imortal), tal como um novo ambiente robotizado que deverá reger a vida quotidiana, mesmo nos seus aspectos mais íntimos. Como não ver que este projecto prometaico – que todos ao Attali do mundo nos apresentam já como o «capitalismo do futuro» (17) - se acomoda infinitamente melhor ao relativismo moral da esquerda pós-moderna, à ideologia do No border (18) ou aos incessantes apelos de uma Christiane Taubira (de quem nos esquecemos demasiadas vezes ter sido a musa de Bernard Tapie) em favor de uma «revolução antropológica» permanente, que ao cansaço retórico eleitoral do «sobressalto republicano» que Manuel Valls é hoje provisoriamente obrigado a ter em conta. Ou, a fortiori, à ideologia «neoconservadora» religiosa dessas pequenas cidades da América profunda que fazem tremer todo o leitor do Libération.

 

Se quisermos escapar ao confucionismo sabiamente mantido pelos media, e por aquilo a que Engels chamava «a cauda da extrema esquerda da burguesia», é indispensável reaprender a distinguir as intuições e as ideias que emergem directamente da experiência quotidiana das classes populares, com todas as ambiguidades e ilusões que podem naturalmente estar ligadas ao carácter contraditório desta experiência (é o que poderia chamar-se, simplificando, «o pensamento de baixo») dessa ideologia dominante que constitui, na realidade, a sua negação. Dito de outro modo, esse «pensamento de cima». Sempre regido pelos interesses materiais e «morais» da elite no poder e que tem por função primordial, definir, a todo o momento - sob o tom oficialmente «neutro» da informação «objectiva» e da especialização «sábia» [encontre esta a sua fonte privilegiada nas construções dos economistas de direita ou nas dos sociólogos de esquerda (19)] – não apenas as «boas» respostas - aquelas que são política e economicamente «correctas» - mas igualmente e sobretudo as «boas» fórmulas de linguagem em que convém imperativamente expressar estas últimas (toda a gente terá notado a quantidade de energia desenvolvida desde há alguns meses pelo valoroso pessoal mediático – com o apoio de «peritos» psicológicos – para desviar do seu sentido inicial, termos como «radicalidade» e «radicalização» (20).

 

Só, então, poderemos começar a reconhecer que o liberalismo económico de Adam Smith, de Turgot e de Voltaire, longe de ir buscar as suas fontes ao pensamento «reaccionário» de um Bossuet ou de um Filmer, encontra, pelo contrário, o seu prolongamento filosófico mais natural, no liberalismo político e cultural das Luzes (de que não me passa pela cabeça negar, por um só instante, os inúmeros aspectos emancipadores, sobretudo onde ainda reina um sistema patriarcal e teocrático) e na ideia progressista correspondente, segundo a qual todo o passo em frente constitui sempre um passo na boa direcção (contestar um tal dogma equivaleria a admitir que, sobre um certo número de pontos, era melhor ontem, proposição que todo o intelectual de esquerda, no sentido contemporâneo do termo, deve rejeitar com o mesmo horror com que um teólogo rejeitaria a ideia de que Cristo não tivesse sido concebido por uma virgem) (21). Esta análise permite compreender, de passagem, como tendo decidido pôr termo, ao longo dos tenebrosos anos 1980, ao compromisso político e filosófico que, desde o caso Dreyfus, encadeava ainda parcialmente a crítica socialista e a modernidade liberal – isso a fim de poder adoptar, num segundo tempo, os magníficos hábitos novos do liberalismo cultural «californiano» (vitória póstuma, em suma, de Jean-Jacques Servant-Schreiber) - a esquerda mitterradiana se condenou inelutavelmente (como Rawi Abdelal mostrou exemplarmente em seu Capital Rules, Harvard University Press, 2009) a tornar-se um dos focos mais activos da contra-revolução liberal europeia. Dito de outro modo, uma das fontes privilegiadas de todas as justificações intelectuais e morais desta fuga em frente desesperada que define a sociedade capitalista. Não foi, aliás, o excelente Emmanuel Macron - que jamais perde uma oportunidade de recordar tudo o que deve à sua formação althusseriana – quem proclamou orgulhosamente que, hoje, ser de esquerda é, em primeiro lugar, fazer tudo o que estiver ao «alcance de cada jovem para ter vontade de ser tornar milionário»?

 

E caso esta análise possa ainda parecer excessiva, existe, de resto, um critério simples, muito simples e, a meu ver, infalível, que permite determinar, em relação a qualquer sociedade dividida em classes antagónicas, qual é a sua verdadeira ideologia dominante e, por consequência, qual é o único sentido pertinente do termo «politicamente correcto». No século XVI, por exemplo – quando a legitimação do poder da nobreza repousava, antes de mais, sobre a ideologia cristã – era frequente (e sobretudo mais prudente) que um pensador radical dissimulasse o seu ateísmo sob a máscara de uma adesão sincera à religião oficial. A atitude inversa – um verdadeiro crente fazendo-se passar, a qualquer preço, por ateu – teria representado um sinal evidente de alienação mental. Apliquemos este critério aos debates ideológicos da França liberal contemporânea. Notaremos que não é pouco frequente que um intelectual suspeito de professar ideias «reaccionárias», «racistas» ou «nauseabundas» (podemos encontrar todas a listas de proscritos no Le Monde ou no Libération) procure desesperadamente convencer os seus interlocutores que continua fiel aos «valores» fundamentais da esquerda (ou, pelo menos, que ninguém poderia suspeitá-lo de ser um homem de direita ou de extrema direita). É muito mais difícil de imaginar a situação inversa. Dito de outro modo, a de um intelectual de esquerda ou de extrema esquerda, considerado como tal, que se esforçasse a convencer o seu auditório de que é vítima de um mal-entendido e que sempre defendeu ideias de direita ou de extrema direita.

 

Eis o que deveria definitivamente relativizar, ao que me parece, a ideia «pós-moderna» segundo a qual, Silicon Valley e o capitalismo mundial só poderiam prosperar à sombra do «patriarcado» e do «racismo» e dos valores cristãos mais austeros e mais «conservadores» (valores que todo o anticapitalista deveria trabalhar prioritariamente por desconstruir). E dar, uma vez mais, razão a Marx, quando ele definia o liberalismo político e cultural da burguesia «republicana» (a esfera da circulação das mercadorias – como escreveu em O Capital – é na verdade um verdadeiro éden dos direitos naturais do homem e do cidadão) como o único complemento filosófico coerente de toda a economia baseada na apropriação privada dos grandes meios de produção e na acumulação indefinida do capital. É por isso que jamais lhe assomou ao espírito a ideia barroca – tal como nem a Proudhon nem a Bakounine – de se definir como um «homem de esquerda».

 

 

 

Questão 3

 

A crise da esquerda suscita a interrogação sobre os seus métodos, sobre a sua pedagogia, a sua capacidade de mobilização e também sobre os seus fracassos, num contexto que, em teoria, deveria ser propício à adesão às ideias socialistas e ao anticapitalismo. Quais são, para si, as razões deste fracasso?

 

Esta «crise da esquerda», num contexto económico e social que, como você recorda, deveria ser, pelo contrário, «propício à adesão aos ideais socialistas e anticapitalistas», pode, à primeira vista, parecer assaz bizarra. Não foi George Orwell que observou, em 1937, que «todo o ventre vazio é um argumento em favor do socialismo» (22)? Mas a chave do mistério encontra-se na própria observação de Orwell. Acontece, de facto, que a «esquerda» e o «socialismo» relevam, na realidade, de duas histórias logicamente distintas e que só parcialmente se sobrepõem. A primeira – nascida no quadro emancipador e tumultuoso da Revolução Francesa – articula-se, com efeito, sobre esta noção de «Progresso» (ela mesma tomada de empréstimo às correntes dominantes da Filosofia da Luzes) que, durante muito tempo, permitiu aos seus fiéis justificar ideologicamente todos os combates contra o poder da nobreza e das «forças do passado» - compreendendo aí as tradições populares – de que a Igreja católica representava, então, o símbolo privilegiado (daí, entres outros motivos, este anticlericalismo visceral que confere à esquerda francesa a sua coloração específica que não se encontra nas nações protestantes). É, aliás, o papel central desempenhado pela noção de «Progresso» (ou de «sentido da história») no imaginário da esquerda que permite explicar que, ainda hoje, se mantenham em uso os conceitos de «reacção» e de «reaccionário» - que só deveriam manter um sentido preciso no contexto do século XIX e daquilo a que Arno Mayer chamava «a persistência do antigo regime» - que continuam a definir o núcleo duro de todas as análises e o princípio de todas as excomunhões.

 

Ora, como cada um de nós pode verificar claramente, não há absolutamente nada no ADN original da esquerda que possa convidá-la a pôr radicalmente em causa a subordinação integral da vida humana – a começar pela dos trabalhadores – às supremas exigência impessoais da acumulação sem fim do capital [sendo que a servidão continua ainda a ser definida na ideologia liberal dos direitos do homem, como uma relação de dependência pessoal concebida segundo o modelo das relações feudais (23)]. Mas, para além disso, desde que se tenha compreendido que o modo de produção capitalista, longe de ter sua fonte num imaginário «conservador», não poderia, pelo contrário, reproduzir-se senão colonizando incessantemente novas regiões do globo e novas esferas da vida humana (este «constante abalo de todos os sistemas sociais, esta agitação e insegurança perpétuas que – escrevia Marx em 1847 – distinguem a época burguesa de todas os precedentes»), seremos, em vez disso, conduzidos a concluir que um programa de esquerda imunizará sempre menos os seus utilizadores contra as «utopias de um progresso mercantil, povoado de cidadãos consumidores responsáveis» (segundo a fórmula de Jaime Semprun) do que todas as ideologias «reaccionárias» reunidas (é reconhecida, aliás, a admiração absoluta que Marx devotava à obra de Balzac).

 

Quanto às diferentes correntes socialistas – cuja unidade filosófica se devia, em primeiro lugar, à sua vontade comum de «promover a emancipação social dos proletários» (24) - elas aparecem, em primeiro lugar, como o fruto, nas condições específicas da revolução industrial nascente, do protesto dos trabalhadores, ingleses, franceses e alemães, contra a nova organização capitalista do trabalho, fundada «sobre o movimento incessante do ganho sempre renovado» (Marx, Le Capital, Livro I, 1867) e contra a forma de sociedade atomizada, desumanisante e «benthamiana» (25) que era o seu complemento natural. Daí, não só a sua crítica constante da sede insaciável de lucro da nova «aristocracia do dinheiro» e da colocação em concorrência contínua de todos contra todos (primariamente das classes trabalhadoras do mundo inteiro, entre si, mas igualmente de todos entre nós), mas também, convém lembrá-lo nestes tempos ingenuamente liberais, a crítica dessa visão profundamente abstracta da liberdade e da igualdade que subtendia os princípios de 1789 (e de que a Lei Le Chapelier havia já mostrado, em 1791, todas as suas implicações sociais reiais). Quer isto dizer que a relação à modernidade industrial dos primeiros socialistas era nitidamente menos entusiasta do que a da esquerda republicana, mesmo se, certamente, algumas passarelas políticas entre o socialismo e a pequena burguesia jacobina de extrema esquerda tenham existido desde sempre, por exemplo, durante a Comuna de Paris (26). E a sua própria concepção do «Progresso» - mesmo sem evocar aqui autores como Gustav Landauer ou William Morris – revelava-se bastante mais complexa e dialéctica do que a que sustentava os discursos positivistas da esquerda do século XIX (27). Esta última, aliás, quase nunca ultrapassava a deploração humanitária das condições de vida do novo proletariado industrial. Numa palavra, os fundadores do socialismo tinham sempre o cuidado de distinguir a República liberal e burguesa dos «Azuis» (aquela que, sejam quais forem as liberdades que reconheça aos indivíduos atomizados, deixa necessariamente intactos o sistema de acumulação do capital e as desigualdades de classes) da República social invocada pelos «Vermelhos», da qual esperavam que desse – segundo o apelo lançado, durante a Comuna, pelo socialista libertário André Léo (pseudónimo de Victoire Béra) - «a terra aos camponeses e o utensílio ao operário».

 

Bem entendido, a maior parte destes primeiros socialistas – partidários, por definição, de uma sociedade sem classes (28) - jamais hesitariam em unir as suas forças às forças liberais e republicanas, sempre que estas tivessem que afrontar a reacção clerical e monarquista, mesmo que devessem, assim, como escrevia Lissagaray em 1976, «defender esta República que os perseguia». Com efeito, é evidente que este aspecto particular da herança das Luzes – a luta contra todas as formas de sobrevivência das instituições inigualitárias do Antigo Régime [que os socialistas não confundiam com a liquidação liberal das tradições comunitárias camponesas nem das estruturas de entreajuda próprias do companheirismo operário (29)] – reencontrava-se integralmente no seu próprio programa (jamais pretendi que a intersecção do programa liberal e do programa socialista formasse um conjunto vazio!). Mas era, em geral, sem a menor ilusão sobre a atitude que esta burguesia republicana de esquerda adoptaria sempre que o combate puramente político para a extensão das liberdades fundamentais do cidadão viesse a colocar na ordem do dia a questão crucial da emancipação social dos trabalhadores. Como escrevia ainda Lissagaray na sua Histoire de la Commune, tratava-se, para os socialistas, de trabalhar, em todas as circunstâncias, para «fazer estoirar o cenário político oficial» (aquele, indispensável, mas mínimo e abstracto, que a ideologia dos «direitos do homem» contribui para instituir) a fim de colocar em primeiro plano a «questão do proletariado».

 

De igual modo, o apoio crítico que os operários socialistas davam regularmente à esquerda, no seu combate contra a «Reacção», jamais os conduziu a fundir-se com ela, sob o pretexto de uma defesa comum, mas abstracta, dos «valores republicanos», E quando, poucos anos apenas depois do massacre dos operários parisienses – massacre efectuado sob o comando impiedoso dos principais chefes da esquerda liberal do tempo, de Adolphe Thiers a Jules Favre (30) - alguns militantes socialistas, perante a ameaça de uma restauração da monarquia, chegaram a encarar a possibilidade de uma aliança mais orgânica com a esquerda (ou, pelo menos, com a sua ala mais radical), os Communards refugiados em Londres iriam rapidamente ripostar, no seu apelo de junho de 1974 – sob a caneta, entre outros de Édouard Vaillant – recordando àqueles que seriam tentados a esquecê-lo que a esquerda de Versailles, não menos que a direita, comandou o massacre de Paris e que o exército dos massacradores recebeu felicitações de ambos os lados. Versaillais de esquerda e Versaillais de direita devem merecer por igual o ódio do povo, já que, contra ele, radicais e jesuítas estão sempre de acordo» (Nos nossos dias, um tal apelo seria recebido pelos crédulos leitores do Le Monde ou do Libération como uma direitização da sociedade e um regresso a um «populismo» particularmente «nauseabundo»).

 

É, pois, unicamente, mais uma vez, no contexto muito particular do caso Dreyfus, e sob a influência de Jaurès que viria a tomar forma, apesar da viva resistência inicial de Guesde, Vaillant e Lafargue (e, sobre um outro plano, do movimento anarcossindicalista), o novo projecto de uma integração definitiva do movimento operário socialista no campo supostamente homogéneo da esquerda «republicana» e das «forças do progresso». Projecto que acabará por impor-se definitivamente no quadro da ascensão do fascismo nos anos 1930. É assim que, em fevereiro de 1921, numa resolução do seu conselho nacional, a própria SFIO recordava ainda que era um partido da «luta de classes e da revolução» e que, a esse título, «nem os blocos de esquerda nem o ministerialismo – condenados, um e outro, tanto na teoria como na prática – teriam a menor oportunidade de êxito nas suas fileiras». Ora, como Rosa Luxemburgo havia imediatamente compreendido (ao mesmo tempo que aprovava, sem qualquer ambiguidade, o corajoso apelo de Jaurès a intervir em favor do capitão Dreyfus) tratava-se de um projecto cujas implicações políticas, a prazo, poderiam revelar-se desastrosas. É por isso que, após ter precisado que «nós, na Alemanha, ainda não temos o mau hábito de confundir os «radicais de extrema esquerda» com a «social-democracia» (pedrada lançada nos jardins de todos os Olivier Besancenot do futuro) e recordado depois que «o imperecível mérito histórico dos velhos partidos dos guesdistas e dos blanquistas (e também, em certa medida, dos alemanistas) era o de ter sabido separar a classe operária dos republicanos burgueses, ela não hesitava em colocar os partidários de Jaurès perante as suas imensas responsabilidades históricas: «A táctica política da ala jauresiana – escrevia ela – apesar da sua convicção sincera e da sua dedicação à causa do proletariado, conduzem directamente à reintegração da classe operária no campo republicano, dito de outro modo, à aniquilação de toda a obra realizada pelo socialismo desde há um quarto de século» (‘A crise socialista em França’ (1900), in Le socialisme en France, Agone, 2013) E afim de arrefecer, de passagem, o entusiamo republicano de Jaurès, e dos seus amigos Millerand e Viviani, perante a perspectiva de uma participação iminente dos socialistas num governo de esquerda, ela acrescentava, de um mesmo fôlego, esta precisão tão útil como profética: «A entrada dos socialistas num governo burguês não é, como se pensa, uma conquista parcial do Estado pelos socialistas, mas uma conquista parcial do partido socialista pelo Estado burguês» [análise que não deveria aplicar-se, às alianças municipais (31)].

 

Ao contemplar o triste campo de ruínas que se estende hoje sob os nossos olhos, compreendemos, então, melhor, até que ponto as sombrias previsões de Rosa eram perfeitamente justificadas (apenas com a precisão, certamente, de que há já muito tempo que a conquista da esquerda pelo Estado burguês revelou-se total e não apenas parcial). Não que o balanço desta nova esquerda, nascida do caso Dreyfus, seja inteiramente negativo. Longe disso. A aliança do movimento operário e da esquerda republicana burguesa [esta tendo sido, durante muito tempo, simbolizada, em França, pelo partido radical (32)] não só permitiu, com efeito, acabar, em toda a parte, com os últimos vestígios do Ancient Régime, como salvar, por diversas vezes, a República liberal da garras do fascismo e do lobby colonial. Tornou igualmente possível, durante longo tempo, no quadro do compromisso fordista e keynesiano, uma melhoria real das condições de vida das classes trabalhadoras, mesmo se o preço desta melhoria fosse quase sempre o de uma integração crescente dos sindicatos na gestão directa do sistema capitalista (de onde, a sua incapacidade dramática, ainda hoje, de romper intelectualmente com a ilusão de que o crescimento material ilimitado seria, para retomar a fórmula de George W. Bush, «a solução e não o problema»). O grande busílis é o de que este compromisso entre a classe operária e a burguesia progressista tornava, do mesmo passo, filosoficamente problemático todo o esforço sério dos novos partidos de «esquerda» para atacar em comum – e não apenas em palavras – as raízes profundas do sistema económico e social que, desde a sua origem, repousa sobre a valorização do capital, pela exploração contínua do trabalho vivo, a pilhagem suicidária do planeta e o reinado cada dia mais desumanisante da mercadoria e da alienação consumista.

 

Foi, por isso, suficiente que, no início dos anos 1970, a crise geral do modelo fordista de acumulação do capital conduzisse progressivamente as classes dominantes ocidentais a traçar uma cruz definitiva sobre o complexo keynesiano (dito de outro modo, sobre a redistribuição às classes populares, através dos mecanismos do Estado-providência, de uma parte não desprezável dos «frutos do crescimento») para precipitar o que ainda sobrava da «esquerda socialista» e do velho movimento operário organizado num estado de crise ideológica profunda. E como, por outro lado, se generalizava entre os inúmeros «arrependidos» da inteligência trotskista e maoísta, a ideia de que toda a vontade de se opor à dinâmica cega da acumulação do capital conduziria inevitavelmente ao goulag ou transformaria a França numa nova Coreia do Norte [Michel Foucault (33) e Bernard-Henri Lévy desempenharam aqui o papel decisivo que se conhece], todas as condições estavam reunidas – sobre o pano de fundo do declínio do Império soviético – para que a velha esquerda liberal e republicana do século XIX (aquela que simbolizaram, da melhor maneira, François Mitterrand e Jacques Delors – dignos herdeiros, sobre este ponto, de Adolphe Thiers, Clémenceau e da «République des Jules») retomasse definitivamente a direcção das operações. E empreendesse assim o apagamento dos últimos restos da aliança outrora feita, sob a presidência de Émile Loubet, com o movimento socialista oficial (e isto, sob a máscara -seguramente concertada com a fuga em frente contínua da economia mercantil – deste «liberalismo dos costumes», cuja função primordial, como lembrava recentemente Jean-Pierre Garnier, era a da perpetuação do liberalismo «tout court») (34).

 

Nestas condições, e perante a amplitude do fracasso, moral, político e intelectual da esquerda moderna (não será sintomático, por exemplo, que quando ainda acontece que um intelectual da «esquerda pós-moderna» utilize a palavra «trabalhador», seja apenas para se referir aos «trabalhadores do sexo»?) poderemos ainda racionalmente acreditar que seja suficiente ressuscitar «a radicalidade» original – regressar, noutros termos, a uma esquerda que seja «realmente de esquerda» - para se encontrar, desde logo, em condições de reganhar a confiança, ou mesmo simplesmente a atenção, destas classes populares, hoje refugiadas no absentismo ou no voto neo-boulangista? Infelizmente, temo que se trate de uma ilusão sem futuro. Porque, das duas, uma. Com efeito, aquilo que de entende como a «esquerda da esquerda» (ou «esquerda radical») é simplesmente e reconstituição da antiga aliança defensiva que o movimento socialista e a burguesia «progressista» haviam estabelecido, no tempo do caso Dreyfus, e que logrou manter-se globalmente até ao final do século XX, graças, entres outras coisas, às virtudes unificadoras do combate contra o colonialismo e o fascismo (35). Mas isso equivale a esquecer, por um lado, que a luta unitária do «campo republicano» e das «forças do progresso» contra uma direita então incontestavelmente monarquista, clerical e «reaccionária», já havia esgotado há muito tempo a sua razão de ser histórica inicial (a menos que suponhamos que o objectivo oculto de Alain Juppé ou de Christine Lagarde seria, ainda hoje, o de fazer regressar um Bourbon ao trono ou o de restabelecer na plenitude o poder temporal da Igreja). E, por outro lado, que a base económica do compromisso «fordista-keynesiano», sobre o qual se apoiaram, durante longo tempo, as políticas de redistribuição sociais-democratas (dito de outro modo, um modo de acumulação do capital que repousava ainda essencialmente sobre o valor produzido na economia «real» e não – como se tornou massivamente o caso a partir dos anos 1980 – sobre o valor que resulta do endividamento estrutural e dos circuitos sofisticados do «capital fictício» que permite capitalizar por antecipação) começou precisamente a desfazer-se no curso dos anos 1970.

 

Ou, então, pelo contrário, queremos apenas designar como esquerda «verdadeiramente de esquerda» uma esquerda definitivamente liberta da hipoteca socialista, e, portanto, livre de incarnar de novo este simples «partido do Movimento» - oposto a todos os «partidos da Ordem», e a todas as sobrevivências do «velho mundo» - dos tempos da Restauração e do Segundo Império. Mas sucede precisamente que o reinado de François Mitterrand já terá cumprido a realização do velho tríptico republicano - «Liberté, Égatité, Fraternité» - que rapidamente se tornou a única divisa concebível de uma esquerda que hoje se pretende «cidadã». E, por outro lado, tudo isto supõe uma renúncia definitiva a toda a crítica radical – ou mesmo simplesmente coerente – com vista a uma organização socialista da sociedade posto ser evidente que a dinâmica revolucionária (segundo as palavras de Marx) desta forma de organização não poderia ser apreendida na sua dialéctica real, nem apreendida de forma realmente crítica, a partir da única antítese metafísica e abstracta entre «Progresso» e «Reacção».

 

É, de resto, esta impossibilidade, comum a todos os pensamentos de tipo «progressista», de entender o sistema capitalista senão como uma «força do passado», fundada sobre um imaginário «tradicional» e «patriarcal» - e todo o leitor de Orwell terá imediatamente reconhecido nesta forma extrema de cegueira a própria marca da esquizofrenia ideológica - que explica igualmente que uma esquerda de «movimento» experimentará sempre as maiores dificuldades filosóficas para compreender este modo de produção planetário e culturalmente uniformizante, na sua dimensão constitutiva de «facto social total» (36). Dito de outro modo, para compreender que é sempre, em última instância, a mesma lógica indissocialvelmente cultural e mercantil [aquilo a que Debord chamava o «Espectáculo» e Marx «esta circulação do dinheiro como capital que possui a finalidade em si mesmo» e que não conhece «nenhum limite» (37)] que pode tornar perfeitamente inteligível, não só o reforço contínuo das desigualdades de classe e a queda na precariedade de um número cada vez maior de pessoas comuns, como os problemas escolares e da vida moderna em geral, o apagamento de todas as fronteiras que ofereçam ainda um mínimo de proteção às classes mais pobres, o recurso crescente à procriação alheia, à televigilância e mesmo à «reprodução artificial do humano» (38), a betonização insensata das terras cultiváveis e a destruição correlativa da agricultura camponesa pela Monsanto e pelo produtivismo da União Europeia (39), a corrupção crescente do desporto profissional de alto nível, a proliferação dos cancros infantis e o aquecimento climático, ou ainda os progressos contínuos do incivismo quotidiano, da insegurança, da mundialização do crime organizado e do tráfico humano de todos os géneros. Não existe, hoje, a menor dúvida de que as categorias populares – principalmente porque são as primeiras vítimas – ressentem já de um modo muito mais profundo do que todos os sociólogos de esquerda reunidos os efeitos humanamente desastrosos desta integração dialéctica cada vez mais profunda entre o económico, o político e o cultural. Por consequência, a menos que a esquerda moderna «consiga mudar de povo» - seguindo o conselho recente de Éric Fassin (o voto dos estrangeiros constituindo, para este clone de esquerda de Agnès Verdier-Molinié, o ponto de partida desta estratégia) – é bem mais necessário que ela comece a compreender que, se este seu «reluzente liberalismo» cultural, que se tonou hoje o seu marcador eleitoral e o seu último valor de refúgio, suscita uma tal rejeição por parte das classes populares, é porque estas já compreenderam, há muito tempo, que ele é o corolário societal lógico do liberalismo de Milton Friedman e Emmanuel Macron (aquilo a que Jacques Julliard chama judiciosamente «a aliança, em suma, das páginas salmonadas do Le Figaro com as páginas arco-íris do Libération» (40).

 

 

 

Questão 4

 

Segundo o seu ponto de vista, quais são as pistas que, fazendo apelo a uma «autocrítica», permitiriam a superação deste fracasso?

 

Ao ponto a que chegámos, não será simplesmente uma «autocrítica» que permitirá à esquerda remontar o plano inclinado em que se afundou e reencontrar a estima das classes populares. Excepto, bem entendido, se esta autocrítica significasse uma mudança total de paradigma e sob reserva de que tal mudança pudesse ter lugar num período de tempo relativamente curto (sabendo, aliás, que isso implicaria pôr em causa o estatuto e os privilégios de todos aqueles – eleitos de toda a espécie, inúmeros dirigentes «associativos», intelectuais de profissão, etc. – que têm um interesse pessoal evidente na manutenção das clivagens oficiais). Esta necessidade de agir sob o signo da urgência nada tem de retórico. Desde 2008, com efeito, a economia mundial entrou naquilo a que Immanuel Wallerstein chamava «a fase terminal da sua crise estrutural» (41) . Fase que certamente poderá prolongar-se por algumas dezenas de anos e se caracteriza, em primeiro lugar, pelo facto - já sublinhado por André Gorz – de que a dinâmica de acumulação do capital, porque repousa essencialmente sobre a produtividade da indústria financeira, «não se perpetua e não funciona senão sobre bases fictícias cada vez mais precárias» (42). Isto significa, em outros termos, que pertencemos a este momento da história (que já fora previsto, em 1913, por Rosa Luxemburgo) que se apresentaria como um longo «período de catástrofes» em que a desconexão progressiva do sistema capitalista da vida humana vai começar a colocar-se sob formas cada vez mais concretas e cada vez mais prementes. Se, por consequência, apostamos em que esta saída do capitalismo, a prazo inevitável, se opere de modo tão civilizado e pacífico quanto possível (o que hoje ninguém pode prever), tornou-se mais indispensável do que nunca – como Engels escrevia em 1895 - «que as massas cooperem, que já tenham compreendido por si mesmas, daquilo de que se trata, e intervenham com o seu corpo e a sua vida» (43). Ora, uma reunião tão ampla das classes populares [reunião que deveria ser tão sólida e coerente que pudesse atrair para a sua órbita ideológica – como em Maio de 1968 (44) – uma grande parte das classes médias urbanas] não terá nenhuma oportunidade de ver a luz do dia enquanto estas classes não virem apresentar-se uma alternativa mais plausível do que a que é hoje imposta pelo bloco liberal, que supostamente opõe, desde o princípios dos tempos, os heróicos defensores da sociedade aberta e do mundo moderno (o partido da inteligência) aos que preferem o recolhimento sobre si mesmos, a «rejeição do outro» e todas as formas de passadismo. Será que ainda lhes resta um mínimo de senso psicológico elementar, podemos por vezes perguntar-nos, ao ver o tom desdenhoso e de desprezo a que se dá a maior parte dos intelectuais e artistas de esquerda, desde que se trate de dar lições às categorias mais modestas (45)?

 

Nestas condições, e se não queremos ver representada, nos nossos dias, a enésima versão do tocador de Flauta de Hamelin – desta feita com Marine no papel de caçadora de ratos – torna-se cada vez mais urgente, por um lado, trabalhar para nos libertarmos de um sistema de classificação totémica, que toda a gente vê que já não funciona, a não ser no interesse da classe dominante, e, por outro lado, começar a reaprender – segundo a bela fórmula de Juan Carlos Monedero, um dos mais lúcidos teóricos do partido Podemos, em Espanha - «a desenhar, com as nossas mãos um raio que mostre quem são os de baixo e quem são os de cima» (análise que levou Pablo Iglésias a observar, com humor, que podia «definir-se o Podemos, dizendo que fizemos tudo o que a esquerda dizia que jamais poderia ser feito». Naturalmente, este apelo a regressar, após três decénios de hegemonia ideológica absoluta da esquerda liberal e «cidadã», às clivagens «transversais» do socialismo original (não é por acaso que uma das referências maiores do Podemos – para além do apoio decisivo aos movimentos revolucionários da América Latina – é a obra de Antonio Grasmci) não cai do céu. Ele encontra, na realidade, a sua origem política mais concreta nesse espantoso Movimento de 15 de maio de 2011 – a ocupação da Puerta del Sol, em Madrid – que tinha conduzido uma parte do povo espanhol, sobre um fundo de crise e precariedade crescentes, a inverter, de um só golpe, todas as tábuas da lei política oficial, ousando, pela primeira vez, depois de longos anos, proclamar com orgulho: «Nós não somos nem de esquerda nem de direita, somos os de baixo, contra os que estão em cima!» Palavra de ordem que reencontrava espontaneamente as da Comuna de Paris («trabalhadores, não vos enganeis: é a grande luta. É o parasitismo e o trabalho, a exploração e a produção que estão em causa. Se quereis finalmente o reino da Justiça, sejam inteligentes, de pé!». E, todavia, os meios de comunicação franceses tinham, desde logo, procurado dissimular a própria existência do movimento do 15 de maio, chamando-lhe «movimento dos indignados» [sugerindo, por essa via, que este movimento devia muito mais às ideias de Stéphane Hessel do que às de Antonio Gramsci ou de Ernesto Laclau (46)].

 

Isto não significa, evidentemente, que o Podemos esteja isento de toda a crítica. Com efeito, a base política e social real da classe dominante é muito mais ampla do que esse modesto 1% que denuncia o Podemos, no rasto do movimento Occupy Wall Street. Desprezar este facto só pode conduzir a graves desilusões, visto que isso equivale forçosamente a subestimar as capacidades de mobilização, inclusive militares, da oligarquia reinante (47). Pode igualmente lastimar-se que o programa do Podemos seja ainda extremamente discreto, pelo menos para já, sobre os meios concretos (por exemplo, o recurso sistemático às moedas locais e aos circuitos curtos) que deveriam subtrair a vida das pessoas comuns e das comunidades locais ao domínio destruidor do mercado capitalista mundial e da burocracia europeia (deste ponto de vista – e apesar da aposta no decrescimento prometida por Monedero – Pierre Thiesser disse, sem dúvida, tudo o que havia a dizer no n.º de fevereiro de 2016 da revista Décroissance).

 

Pode inclusivamente acontecer que a experiência do Podemos – na falta da solidariedade popular internacional que tanta falta já fez ao povo grego – acabe por se desfazer (é, aliás, uma eventualidade que os seus líderes têm a inteligência e a coragem de encarar). E isso sem mesmo ter em conta o facto previsível – como Carolina Bescansa, uma das dirigentes do Podemos, sublinhava ironicamente – «que todos aqueles que eram beneficiários desta situação, quando ela dominava o tabuleiro político», defenderão «encarniçadamente o eixo esquerda direita» e não deixarão de acusar alguém que «conteste ou ponha em causa ser esse o melhor eixo de diferenciação para explicar aquilo que se passa, de ser populista, de direita, esquerdista, comunista, bolivariano, fascista, pró-iraniano, etc.».

 

Resta que o Podemos é, hoje, o único movimento radical europeu dispondo de uma base de massas que compreendeu claramente que, se queremos reunir uma larga maioria de classes populares à volta de um programa de desconstrução gradual do sistema capitalista (não simplesmente aumentar a sua base eleitoral), é preciso pôr radicalmente em questão o velho sistema de clivagens «fundado na confiança cega na ideia de progresso» (Juan Carlos Monedero) com os seus pressupostos filosóficos cada vez mais paralisantes [do tipo «partido de amanhã», de Silicon Valley, contra «partido de ontem», o da agricultura camponesa ou da cultura do livro (48)] que não cessam de oferecer, desde há trinta anos, à esquerda europeia, o meio ideal para dissimular a sua reconciliação com o capitalismo, sob a capa sedutora de uma luta «cidadã» permanente contra todas as ideias «reaccionárias» e «passadistas» (ou mesmo vermelhas acastanhadas).

 

Seja qual for o destino que aguarda o Podemos, o imenso mérito histórico deste movimento é, desde já, ter sabido cumprir esta verdadeira revolução cultural (o retorno, para lá da oposição esquerda direita, às clivagens anticapitalistas que eram as do socialismo, do anarquismo e do populismo originais) que permite manter à tona o projecto de unir a grande maioria das classes populares (49) à volta de um programa verdadeiramente emancipador. Na ausência de uma tal revolução cultural, nada poderá garantir que o naufrágio inevitável do sistema económico e financeiro mundial - ou as catástrofes ecológicas que se avizinham - possa dar lugar a uma sociedade livre, igualitária e decente (segundo a expressão de George Orwell), em vez de um mundo sombrio e desesperante, à Mad Max ou à Blade Runner. Nos tempos que correm, que não inclinam ao optimismo, o simples facto de que o Podemos existe, é, só por si, uma lufada de ar fresco.

 

 

 

 

 

 

 

(*) Jean-Claude Michéa (n. 1950), filho de resistentes comunistas, foi ele próprio militante do PCF até 1976. Professor de filosofia aposentado no Liceu Joffre (Montpellier), é um pensador anticapitalista independente, influenciado por George Orwell e pela escola antropológica seguidora de Marcel Mauss. Desde há muitos anos leva a cabo uma luta sem quartel contra a esquerda oficial, rendida à religião do progresso e à mercantilização completa da vida social. Entre as suas obras destacam-se: L'Enseignement de l'ignorance et ses conditions modernes, Climats, 1999; Impasse Adam Smith. Brèves remarques sur l'impossibilité de dépasser le capitalisme sur sa gauche, Climats, 2002, reedição Paris: Champs-Flammarion, 2006; Orwell éducateur, Climats, 2003; L'Empire du moindre mal: essai sur la civilisation libérale, Climats, 2007, reedição Paris: Champs-Flammarion, 2010; La double pensée. Retour sur la question libérale, Champs-Flammarion, 2008; Le complexe d'Orphée: la Gauche, les gens ordinaires et la religion du progrès, Climats, 2011; Les mystères de la gauche: de l'idéal des Lumières au triomphe du capitalisme absolu, Climats, 2013; La Gauche et le Peuple: lettres croisées, Flammarion, 2014. O presente texto constitui o núcleo central da sua última obra, Notre ennemi, le capital, Flammarion, coll. «Climats», 2017. Tradução de João Esteves da Silva.

 

 

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NOTAS:

 

(1) Essais, articles, lettres, vol. II, Ivrea Editions, Encyclopédie des Nuissances, 1995, p. 180.

 

(2) [NOTA DO EDITOR] Publicamos na íntegra as notas de rodapé que o autor acrecentou à sua entrevista, mas não os “Escólios”, que são extensos ensaios, totalmente independentes, não sendo razoável incluí-los num artigo de revista eletrónica.

 

(3) Um conhecimento básico das bases do cálculo exponencial (saber ensinado na classe terminal do secundário) é suficiente para mostrar, de uma vez por todas, até que ponto é aberrante a ideia de subordinar a sorte da humanidade a um crescimento contínuo. «Com um aumento do PIB, por cabeça, a uma taxa de 3,5% – observa Serge Latouche em L’Âge des limites, Mille et une Nuits, 2012 - chegamos a uma multiplicação por 31 num século, por 972 em dois séculos e por 30.000 em três séculos! Será possível acreditar num crescimento infinito num planeta finito?» É, todavia, sobre este dogma insensato que se apoiam a «ciência» económica oficial e os «peritos» que se sucedem no que Marx chamava «a imprensa às ordens da Bolsa».

 

(4) No seu Dicionário Filosófico, Voltaire regozijava-se, sem reservas, com este ideal de neutralidade axiológica em virtude das supostas virtudes pacificadoras que animavam o liberalismo económico nascente. Por volta do ano 1750 – escrevia ele – a nação, saciada de versos, de tragédias, de comédias, de óperas de romances, de histórias romanescas, de reflexões morais ainda mais romanescas e de disputas teológicas sobre a graça e sobre as suas convulsões, pôs-se finalmente a raciocinar sobre os trigos (artigo sobre «O Trigo»). Notemos que este artigo fundamental desapareceu misteriosamente de quase todas as edições correntes do Dicionário Filosófico. Entretanto, continuou sem resposta a seguinte questão: «A neutralidade axiológica é axiologicamente neutra?» (Cf. Philippe Chanial, La sociologie comme philosophie politique, La Découverte, 2011, p. 33).

 

(5) Recordemos que a «mobilidade» (quer se trate dos capitais, das mercadorias ou dos humanos) define, desde Adam Smith, a condição sine qua non de todos os equilíbrios entre a oferta e a procura (convém abolir – escrevia, por exemplo, este último na Riqueza das Nações (1776) – tudo o que pode «entravar a livre circulação do trabalho e dos capitais, tanto de um emprego para outro, como de um lugar para outro»). É por isso que Kristin Ross pôde detectar neste apelo ao nomadismo generalizado (do Medef, da extrema esquerda moderna) o «primeiro imperativo categórico da ordem económica liberal».

 

(6) É por isso, pelo menos ambíguo (embora certamente revelador), escrever, como o faz Olivier Besancenot, que «os revolucionários são pelo florescimento individual». V. Revolution!, Flammarion, 2003, p. 29.

 

(7) Sobre a impossibilidade, para a filosofia liberal, de pensar, de um modo coerente, a instância da vida comum (ela só pode reconhecer a vida pública – inteiramente regida pelo Direito – e a vida privada, de que teoricamente nada tem a dizer) remeto para o meu ensaio ‘Droit, liberalisme et vie commune’ (de novembro de 2015) publicado pelo Journal du MAUSS no outono de 2016.

 

(8) Para uma ilustração precisa desta noção de «decência comum» que hoje suscita infalivelmente «o riso trocista e sarcástico» (Orwell) das almas bem-nascidas, podemos reportar-nos ao testemunho, em todos os pontos admirável, de Joaquim Serrat (Chemins d’espoir et d’exile, Les Éditions Libertaires, 2015). A originalidade desta obra é a de descrever a guerra civil espanhola através da vida quotidiana de uma família – a do autor – e de uma pequena aldeia anarquista na província de Teruel. Testemunho verdadeiramente orwelliano pela sua decência intelectual e que permite medir, de passagem, tudo o que separa a sensibilidade anarquista original – a de um Proudhon, de um Gustav Landauer ou de um Kropotkine – de um neoanarquismo das novas classes médias nas grandes metrópoles. É este desvio da tradição anarquista original que Murray Bookchin denunciava já, em 1995, em Social Anarchism or Lifestyle Anarchism.

 

(9) A recente proposta das instituições europeias de incluir no cálculo do PIB o volume de negócios da delinquência e da prostituição, oferece, caso fosse necessário, uma ilustração límpida desta neutralidade axiológica constitutiva do «crescimento» ou, se preferimos, da acumulação do capital. Para nada dizer das estupeficantes revelações, feitas em 2009, por Antonio Maria Costa, num silencio mediático bastante ensurdecedor. Para este responsável do Gabinete das Nações Unidas contra a Droga e o Crime, foram perto de 352 biliões de US dólares que, pertencentes às diferentes máfias do planeta, fizeram o seu branqueamento, aquando da crise de 2008, no quadro dos esforços para salvar o sistema financeiro mundial.

 

(10) Marx aux antipodes. Nations, ethnicité et societés non occidentales (Kevin Anderson, Syllepse, 2015), e Late Marx and Russian Road (sob a direção de Teodor Shanin, Monthly Review Press, New York, 1983.

 

(11) Deste ponto de vista, fica-se confundido perante a incrível incompetência política do slogan orgulhosamente brandido por alguns estudantes e alunos do liceu aquando das manifestações de abril de 2016: «Eu, por menos de 1.200 euros por mês, não saio da cama!». Por mais justificável que seja, em termos absolutos, um tal slogan (que se apresentava como uma versão oficialmente mais radical das palavras do «rapeur» marselhês SCH), como poderia ser recebido, pelas pessoas mais modestas – aquelas não têm outra escolha possível senão levantar-se todas as manhãs – senão como uma afronta pessoal e como um novo sinal desse incrível desprezo de classe que a esquerda das novas classes médias (se é que ainda existe uma outra) ostenta de uma forma tristemente habitual. Foi deste modo que cresceu a Frente Nacional.

 

(12) Uma das principais dificuldades práticas que suscita um governo de coalizão é que ele conduz mecanicamente cada um dos partidos em presença a dividir por dois o número de lugares de poder, de subvenções a repartir e de privilégios a distribuir. Para superar esta dificuldade, as duas alas do castelo liberal são sistematicamente constrangidas a fazer progressivamente arranjos das suas margens respectivas. Isso é forçosamente ainda mais verdadeiro por parte da ala esquerda do castelo, pela sua relação constitutiva com a ideologia, que faz com que não hesite em agitar cinicamente, perante os eleitores, uma série de bandeiras vermelhas (perda da nacionalidade, estado de urgência, etc.) destinadas antes de mais a provocar artificialmente as inevitáveis reações pavlovianas que permitirão isolá-la ainda mais do eleitorado popular (a «esquerda da esquerda» domina sempre na perfeição, como se sabe, a arte suicidária de cortar a sua relação com o povo). Compreende-se então melhor que todos aqueles que têm boas razões para pensar que não terão lugar no salva-vidas, possam descobrir bruscamente uma alma de revoltosos, por meio da qual os cordeiros de ontem se transformam provisoriamente em «lobos». Mesmo um Benoît Hamon ou uma Cécile Duflot.

 

(13) Nunca devemos esquecer que a guerra continua sempre a ser o último recurso de que dispõem as sociedades liberais para permitir que a acumulação de capital prossega até ao infinito a sua corrida suicidária. Sejam quais forem os méritos do New Deal, a sociedade norte-americana tinha ainda, em 1939, uma taxa de desemprego de 14%. Só com a economia de guerra é que o desemprego engendrado pela grande depressão de 1929 foi totalmente absorvido. (É preciso dizer que, na época da acumulação fordista, existia ainda uma forte correlação directa entre criação de emprego e «crescimento».)

 

(14) As regiões onde a Frente Nacional realiza, até ver, os seus resultados eleitorais mais fracos (Bretanha, Landes, País Basco, Córsega, etc.) são aquelas onde a identidade local e regional (e, entre outros, o sentido da entreajuda quotidiana) continua a ser mais forte. Não é, portanto, como proclama estupidamente a extrema esquerda, a persistência destes valores ditos identitários que facilita o florescimento da extrema direita. É, pelo contrário, a sua dissolução lógica sob o efeito do desenvolvimento das relações mercantis. Quanto à ideia, não menos estúpida - e magistralmente refutada por Vincent Descombes em Les embarras de l’identité (Gallimard, 2015) – segundo a qual a ideia de identidade seria forçosamente «substancialista» e «fixista», Orwell já havia respondido por antecipação em Le lion et la licorne (1941), a todos os Amselle e Martelli do seu tempo: «O que é que a Inglaterra de 1940 tem que ver com a de 1840? E mais, o que é que você tem em comum com a criança de 5 anos da qual a vossa mãe guarda preciosamente uma fotografia? Nada, a não ser que sois exactamente a mesma pessoa. (Seria igualmente absurdo pretender que a língua francesa não existe, sob o pretexto de que nunca deixou de incorporar termos de línguas estrangeiras. Se, de resto, estas noções de identidade nacional e de continuidade histórica reenviassem apenas a um «mito populista», não se vê porque razão uma Christiane Taubira poderia ainda exigir – sob os aplausos unânimes desta mesma esquerda liberal – o arrependimento colectivo dos franceses de hoje pelos crimes cometidos, nos séculos XVI e XVII, por um certo número dos seus antepassados. Sobretudo quando pensam como ela que a França moderna é, em primeiro lugar, um país de mestiçado cuja maior parte dos seus habitantes são, na realidade, de origem estrangeira («somos todos imigrados!»). É por este género de contradição lógica que pode medir-se o declínio intelectual da esquerda moderna (o record do ilogismo sendo hoje provisoriamente detido pelo colectivo da «luta contra a islamofobia» que defende hoje a «não mistura» entre homens e mulheres, entre brancos e não brancos, etc. – em nome da «luta contra todas as discriminações»).

 

(15) «O capital não é uma coisa, mas um processo que só existe pelo seu movimento. Quando a circulação para, o valor desaparece e todo o sistema se afunda. Por exemplo, em Nova Iorque, logo após os atentados do 11 de setembro, toda a actividade parou. Ao fim de três dias, toda a gente se apercebeu de que o capitalismo naufragaria se o movimento da cidade não retomasse. O presidente da câmara da cidade, Rudy Giuliani, e o Presidente Bush exortaram, então, os habitantes a usarem os seus cartões de crédito, voltarem à Broadway e a fazerem as suas compras, tendo aparecido inclusivamente uma publicidade aérea para encorajar os americanos a retomarem os voos. O capitalismo não é nada se não mexe» (David Harvey, Pour Lire le Capital, La ville Brule, 2012, p. 19).

 

(16) Na sua obra-prima Captains of Consciousness. Advertising and the Social Roots of Consumer Culture (New York, 1976), Stuart Ewen esclarece de um modo impressionante – através de um estudo minucioso das transformações do capitalismo norte-americano desde os anos 1920 – os fundamentos económicos da consciência da esquerda moderna, principalmente na sua relação privilegiada com o imaginário da moda e da publicidade. É um ponto que Georges Perec havia já admiravelmente descrito, em 1965, no seu romance Les Choses (Jérôme e Sylvie incarnando, de modo profético, os futuros eleitores da esquerda liberal dos nossos dias). Tal como, alguns anos mais tarde, o desenhador Gérad Lautier, com as suas sulfurosas ‘Tranches de Vie’ (banda desenhada desopilante que diz certamente mais sobre a essência da sociedade liberal moderna do que toda a literatura pedante da sociologia oficial). A obra de Stuart Ewen foi republicada em 2014 – sob o título La Societé de l’indécence. Publicité et la génese de la société de consommation (Édtions Le Retour aux Sources), com um notável prefácio de Lucien Cerise.

 

(17) «Google, Facebook, Amazon e consortes são o novo rosto da exploração capitalista», escreveu com razão Evgeny Morozov (Libération, 14 de maio de 2016) e acrescenta ele, «a esquerda não compreende muito bem este novo capitalismo apoiado sobre a informação e a exploração dos dados. Prefere acreditar que estas plataformas são apenas um fantástico meio para os movimentos sociais difundirem as suas ideias e mobilizarem os seus fiéis». Resta saber se este fascínio da esquerda moderna pelo universo do digital e por Silicon Valley (bastará que o reportemos aos discursos futuristas de Najat Vallaud-Belkacem, que faz parte do círculo muito fechado dos «Young Leaders» da French-American Foundation, fundada em 1976 por Gerald Ford e Valéry Giscard d’Éstaing) é verdadeiramente devida a um erro de orientação.

 

(18) A palavra de ordem liberal «Nem Pátria, nem fronteira» (complemento indispensável do «laisser faire, laisser passer» do intendente Gournay) aparece pela primeira vez na obra do fisiocrata Guillaume-François Le Trosne, De l’inteteêt social par rapprort à la valeur, à l’industrie et au commerce intérieur et exteriueur (1777). Le Trosne definia inclusivamente a nova classe mercantil como uma «classe cosmopolita» por natureza.

 

(19) Este ponto é essencial. O domínio real da ideologia dominante tem menos que ver, com efeito, com o número de intervenções mediáticas – medido pelo CSA – deste ou aquele político ou representante do mundo intelectual, que vem expor as suas opiniões como tais, do que com esta propaganda quotidiana inconfessada que consiste em fazer passar, por debaixo da mesa, os elementos da linguagem da ideologia dominante sob o tom distanciado e neutro da experiência imparcial: o economista que vem explicar, sob a capa da objectividade do saber científico (à maneira de Jean Tirole) que uma política de austeridade liberal permitirá «relançar o crescimento e criar empregos», o politólogo que vos ensina que a globalização é irreversível ou o sociólogo que pretende demostrar, com o apoio das estatísticas do Estado, que a delinquência moderna encontra as suas verdadeiras causas na pobreza e na discriminação (todo o leitor de Laurent Mucchielli sabe muito bem que a fraude fiscal dos ricos, a delinquência informática e as práticas mafiosas dos sectores industrial e financeiro constituem apenas um mito popular particularmente «nauseabundo»). Trata-se de uma arte de que, nos nossos dias, France Info possui a mestria.

 

(20) É certo que a imprensa de direita está condenada a viver numa esquizofrenia perpétua. À semelhança do Le Figaro, ela tem, com efeito, que brincar permanentemente entre a economia de mercado (aquela que obriga a abrir as lojas sete dias por semana) e os valores «tradicionais» - querem destruí-los. Deste ponto de vista, há pelo menos que reconhecer uma certa coerência ao Le Monde e ao Libération.

 

(21) Em Un million de révolutions tranquilles: Comment les citoyens changent le monde (obra indispensável, publicada em 2016 pela Liens qui libèrent) Benédicte Manier cita o caso do Rajastão – região particularmente desfavorecida da Índia, na qual reinava, até meados dos anos 1980, a miséria e a má nutrição, e onde um jovem funcionário do Ministério da Saúde chamou a si, em 1985, a tarefa de fazer construir um sistema de irrigação, os johads, cujo uso remontava ao século XIII e que havia sido suprimido, sob a influência da «modernização», pelas administrações coloniais britânicas. Um quarto de século mais tarde, «o distrito beneficia 10.000 estruturas de encaminhamento e retenção de águas (lagos, barragens, canais) que servem mais de 700.000 habitantes e um milhar de aldeias», sendo que a miséria e a má nutrição desapareceram quase completamente (inversão tão espectacular que as estatísticas do Banco Mundial não deixam evidentemente de contabilizar a crédito da mundialização liberal). E como Benédicte Manier faz questão de sublinhar, «nas assembleias, os aldeões reencontram um sentido de igualdade e de comunidade de interesses», incluindo nas relações entre os dois sexos. Podemos, todavia, perguntar-nos porque milagre teórico um intelectual «progressista» poderia ainda recusar-se a ver em Ragendra Singh um desses sinistros partidários do «era melhor antes» e, nesta reabilitação dos saberes práticos e de certos costumes ancestrais, o signo desesperante de que a besta imunda continua a ser fecunda.

 

(22) Le Quai de Wigan, 1937.

 

(23) Como escreve Marx no capítulo de O Capital consagrado à colonização «em vez de ser uma coisa, o capital é uma relação entre as pessoas que se estabelece por intermédio das coisas». De onde advém a decepção que sobreveio, no início do século XIX, a sir Robert Peel, que «transportou com ele, a partir de Inglaterra, para Swan River na Nova Holanda, víveres e meios de produção, no valor de 50.000 libras esterlinas. Mr. Peel, teve além disso a precaução de levar consigo três mil indivíduos da classe operária, homens, mulheres e crianças. Uma vez chegado ao seu destino, Mr. Peel ficou sem nenhum empregado doméstico que lhe fizesse a cama ou lhe trouxesse água da ribeira. Mr. Peel, que tinha previsto tudo, esqueceu que devia levar para Swan River, as relações de produção inglesas!». É sobre um esquecimento análogo que se funda, nos nossos dias, a ideologia dos direitos do homem. De facto, esta ideologia torna logicamente concebível uma queixa por racismo, sexismo ou homofobia (e devemos felicitarmo-nos por isso), mas nunca para a extorsão da mais-valia.

 

(24) Victor Considérant, artigo «Le socialisme devant le vieux ou le vivant devant les morts», in Pierre Larousse, Grand dictionnaire universel du XIX siècle, 1866-1877.

 

(25) Em Justice. What’s the Right Thing to Do (Albin Michel, 2016), Michael Sandel resume perfeitamente a filosofia política de Bentham: «Em resumo, o que é uma comunidade? Para Bentham é um “corpo fictício”, composto pela soma dos indivíduos que ela compreende. Cidadãos e legisladores deveriam, por consequência, perguntar-se: se fizéssemos a soma das vantagens de uma política dada e subtraíssemos todos os custos poderíamos dizer que ela produz mais felicidade do que qualquer outra?» Este primado estrutural de um ideal puramente calculador (ou gestionário) sobre qualquer outra forma de reflexão moral, filosófica ou religiosa (primado que se supõe incarnar «o fim das ideologias») constitui um dos traços mais característicos da sociedade liberal moderna. E isso tanto mais quanto é certo que a ideia de felicidade reenvia em Bentham a um simples cálculo dos «prazeres e das penas».

 

(26) Sobre todas estas questões, poderá ler-se o belo livro de Michèle Riot-Sarcey, Le procés de la Liberté. Une histoire souterraine du XIX siécle en France,La Découverte, 2016.

 

(27) Mesmo no seu período mais «ocidentalista», Marx tinha já do Progresso uma imagem bastante mais complexa do que a da Filosofia das Luzes. No seu célebre artigo, de 22 de julho de 1853, sobre «Os resultados eventuais do domínio britânico na Índia», ele comparava o progresso a «um destes tenebrosos ídolos pagãos que se deliciavam a beber o néctar no crânio das suas vítimas».

 

(28) Uma «sociedade sem classes» não significa uma sociedade tornada misteriosamente «transparente» a si mesma, na qual todos os conflitos, desacordos e divisões tivessem desaparecido e, com eles, a instância mesma do político (além de que, mesmo numa tal sociedade, seria preciso contar com o ciúme amoroso – se René Girard tiver razão – e com aquilo a que Molière chamava «os insuportáveis»). Trata-se, antes de mais, de uma sociedade na qual o poder económico e jurídico de dispor a seu bel prazer do tempo de trabalho dos outros - e de os dominar e explorar – tivesse progressivamente desaparecido. De sorte que a velha figura do inimigo - para retomar uma distinção de Chantal Mouffe – teria, a pouco e pouco, dado lugar à simples noção de adversário (o que constitui, de toda e evidência, um verdadeiro progresso humano). Sobre esta expressão agonística presente em toda a comunidade humana – inclusivamente compreendida no próprio cerne da lógica do dom – poderá reler-se o ensaio precursor de Jean-Luc Boilleau Conflit et lien social. La rivalité contre la domination (La Découverte, révue du MAUSS, 1995).

 

(29) Sobre este conflito permanente entre o direito burguês o os costumes populares, poderá ler-se a magnífica recolha de ensaios de Edward P. Thompson, Les usages de la coutume. Traditions et résistances populaires en Angleterre, XVII-XIX siécles (Les Éditions de EHESS-Gallimard-Seuil, 2015).

 

(30) Uma das grandes preocupações da historiografia «progressista» do século XX terá sido a de dissimular, por todos os meios, o facto de que Adolphe Thiers era, em 1871, o chefe da esquerda liberal. A direita do tempo, quanto a ela, não se enganava. É assim, por exemplo, que duas semanas após o desencadear da insurreição parisiense, a condessa de Ségur não se coibia de invectivar: «M. Thiers - queixava-se ela ao Visconde de Pirray – não quer fazer nada que contrarie os vermelhos; e, mais ainda, concertado com o seu amigo vermelho Grévy, ele impede os membros da direita de falar (carta de 31 de março de 1871). E ainda, em 8 de abril, a condessa não podia impedir-se de escrever: «Santo Thiers tem para com estes abomináveis celerados ternuras paternais». E, de facto, o funeral de Adolphe Thiers, a 8 de setembro de 1877, deu lugar a um dos maiores ajuntamentos históricos da esquerda parisiense – com Victor Hugo e Gambetta à cabeça. «Desde a rua Lepeletier até ao Père-Lachaise – conta Jules Ferry – um milhão de homens, em pé, de cabeça descoberta, com a imortal na botoeira, saudando com um só grito rouco, grave, resoluto, formidável, dos dois lados da avenida: Vive la Republique!»

 

(31) «Enquanto o Governo incarna o poder de Estado centralizado, a municipalidade desenvolve-se a partir da administração local autónoma à custa do poder central, enquanto emanação deste poder. Enquanto, para o Governo, os instrumentos específicos do domínio da classe burguesa, a saber, o militarismo, o culto, a política comercial, a política estrangeira, constituem a sua essência própria, pelo contrário, o município é chamado a preencher tarefas culturais e económicas, funções que correspondem aos mecanismos de uma sociedade socialista. É por isso que o governo central e a comuna representam historicamente, na sociedade actual, dois polos opostos: a luta permanente entre o «maire» e o prefeito é, em França, a expressão concreta deste contraste histórico». Esta ideia de que a autonomia local deve ser o ponto de partida de toda a forma de organização socialista – era esse o programa da Comuna - está no cerne de toda a tradição do socialismo democrático e libertário (alguns, à imagem de Kropotkine, irão mesmo até evocar um socialismo «municipal»). A organização «federalista» - segundo o termo utilizado por Proudhon e retomado à sua conta pelos «federados» de 1871 – decorre logicamente desta ideia comunalista.

 

(32) O facto de que a nova esquerda, saída do caso Dreyfus, tenha acabado por ser massivamente dominada, no caso particular da França, pelo PCF e pela SFIO, dito de outro modo, pelos dois grandes partidos que conservavam ainda uma referência teórica ao ideal socialista (o partido radical, outrora o pivot central de todo o bloco das esquerdas, tinha entrado, a partir de 1936, num declínio irreversível) contribuiu fortemente, no inconsciente colectivo dos franceses, para manter um elo, por mais ténue que fosse, entre o nome de «esquerda» e a crítica da ordem capitalista. Isso explica, sem dúvida, em parte, a dificuldade ressentida por muita gente, ainda hoje, em admitir que, desde a origem, o nome de «esquerda» (como notava, com razão, Marc Crapez) rimou muito menos com «Povo» do que com «Progresso» (de onde, entre outras coisas, este desprezo constante do «partido da inteligência» pelo que Olivier Besancenot chama, de modo significativo – na Revolução! – as camadas rurais refractárias ao progresso»). Daí a profunda desorientação dos militantes da «esquerda da esquerda», nos nossos dias, perante a contradição cada vez mais evidente, à medida que a lógica capitalista desenvolve os seus efeitos, entre estas duas noções outrora percebidas como indissociáveis. Deste ponto de vista, o facto de que o partido «socialista» tenha resolutamente escolhido, desde há trinta anos, privilegiar a defesa do «crescimento» do «progresso» (ou da «modernização») em detrimento na noção de classes populares, prova, pelo menos, que se manteve fiel ao seu ideal vanguardista da esquerda do século XIX. Sobre este tema, podemos reportarmo-nos ao notável ensaio de David Noble, Le Progrès sans le peuple (Agone, 2016). A 1.ª edição norte-americana desta obra data de 1993.

 

(33) «Não me falem mais de Marx!», irritava-se ele já em 1975. «Não quero voltar a ouvir falar desse senhor. Dirijam-se àqueles cujo ofício é esse e são pagos para o efeito. Pela minha parte, acabei totalmente com Marx» (cf. Critiquer Foucault. Les annés 1980 et la tentative néolibérale, obra colectiva dirigida por Daniel Zamora, Éditions Aden, 2014, p. 41). De facto, o apoio entusiástico que o autor de Surveiller et punir dedicou ao livro de André Glucksmann, Les Maîtres penseurs (apoio que deu origem à sua ruptura com Gilles Deleuze e Claude Mauriac) marcou uma viragem decisiva na intelligentsia francesa em direcção aos dogmas da «nova filosofia» e do liberalismo (podemos reportarmo-nos, sobre este ponto, ao capítulo que Michael Christofferson consagra a Foucault na sua obra Les Intellectuels contre la gauche, Agone, 2009). Alguns talvez se recordem do juízo profético de Sartre. O pensamento de Foucault - escrevia ele desde 1966 – é a «última barragem que a burguesia poderá ainda erigir contra Marx». A universidade francesa está aí para confirmá-lo.

 

(34) Zelium, fevereiro de 2016.

 

(35) Notemos que, à partida – diferentemente de uma grande parte das organizações socialistas e anarquistas – a esquerda francesa, com Jules Ferry à cabeça, defendia com entusiamo o princípio da colonização (a ideia de uma missão civilizadora da França republicana), de que encontramos hoje um pálido substituto no culto dos «direitos do homem» e da «ideologia humanitária» que decorre logicamente da teoria do «progresso», elaborada pela filosofia liberal das Luzes. Foi só quando os custos de manutenção do Império colonial se tonaram demasiado onerosos de suportar pela Metrópole da colonização republicana, pois que exigiria, com efeito - mesmo sob uma forma inigualitária e limitada – a construção de escolas, hospitais, ou de infraestruturas rodoviárias, que a classe dominante acabou por se decidir a abandonar a gestão directa dos territórios coloniais («La Corrèze antes do Zambèze», segundo a palavra de ordem do «cartíérismo» dos anos 1950) em proveito da sua gestão indirecta infinitamente mais flexível e mais rentável, pelo sistema da dívida, da troca desigual, e da corrupção das elites locais. É fundamentalmente à luz destes novos dados que deve compreender-se a ligação progressiva da intelligentsia de esquerda – não sem longas hesitações (pensemos na defesa persistente da «União francesa» pelo PCF de Thorez e Duclos ou em François Mitterrand sustentando, ainda em fevereiro de 1958, que «o abandono da Argélia seria um crime») - às diferentes lutas anticoloniais.

 

(36) A partir do momento em que o capitalismo se torna «um facto social total», as categorias que permitiriam pensar o funcionamento dos seus estádios anteriores devem ser parcialmente redefinidas: «A sociedade burguesa - como escrevem Jacques Guigou e Jacques Wajnsztejn - torna-se a sociedade do capital que engloba a sociedade civil. O discurso do capital substitui a ideologia burguesa e impõe a sua neutralidade axiológica através da sua utilização da tecnociência e dos seus sistemas de peritos» (Crise financière et capital fictif, Harmattan, 2008, p. 31). É certamente aqui que os intelectuais de esquerda devem entrar em jogo. E, de facto, não é difícil reconhecer sob a sua desconstrução «pós-moderna» de todos os antigos tabus da ideologia burguesa, um dos mais sofisticados novos discursos do capital (como testemunha o facto de que a carreira de um universitário francês – pelo menos no domínio das ciências sociais – depende, nos nossos dias, do número de genuflexões que aceitar fazer perante a obra de Foucault e Derrida). Sobre esta contrarrevolução cultural, poderá ler-se o livro decisivo de Renaud Garcia, Le Désert de la critique. Déconstrution et politique, L’Échappeé, 2015.

 

(37) No capítulo de O Capital consagrado à «luta por um dia de trabalho normal», Marx descreve, com precisão, os efeitos desumanizantes desta lógica da ilimitação e define a essência do sistema capitalista: «É evidente que (aos olhos do capitalista), o trabalhador, durante toda a sua vida, não é senão uma força de trabalho e, em consequência, todo o seu tempo disponível é, em direito e naturalmente, um tempo de trabalho que pertence ao capitalista e à capitalização. O tempo para a educação, para o desenvolvimento intelectual, para o cumprimento das suas funções sociais, para a relação com parentes e amigos e para o livre jogo das forças do corpo e do espírito, mesmo para a celebração do domingo, nos países que o santificam, tudo isso é puro desperdício! Mas, na sua paixão cega e desmesurada, na sua glutonice pelo trabalho extremo, o capital supera não apenas os limites morais, mas ainda os limites fisiológicos extremos do dia de trabalho. Ele usurpa o tempo que exigem o crescimento, o desenvolvimento e a manutenção do corpo em boa saúde. Ele rouba o tempo que deveria ser ocupado a respirar o ar livre e a gozar da luz do sol» (O Capital, Livro I, 3.ª secção, Capítulo X). Sobre esta lógica da ilimitação do capitalismo e suas consequências para a subjectividade humana (a transformação do indivíduo em empresário de si mesmo) poderão descobrir-se análises interessantes em Pierre Dardot et Christian Laval, Ce cauchemar qui n´en finit pas, La Découverte, 2016, p. 94-107.

 

(38) Alexis Escudero, La Reproduction arfificielle de l’humain (Le monde à l’envers, 2014). Notemos que esta obra que desvenda de um modo magistral as novas estratégias «transumanista» que o capitalismo se propõe afinar (eugenismo, manipulação genética dos embriões, mercantilização do ser vivo, etc.) valeu instantaneamente ao autor um ódio tão insensato como revelador – que foi ao ponto da agressão física – nos meios de extrema esquerda «antifa», anarcoliberal e siliconista. De resto, foi honra de uma grande parte do movimento libertário – aquela para a qual a rejeição do fascismo e do estalinismo nunca foi uma simples postura valorisante de um fundo comum rentável – a de ter imediatamente suscitado múltiplos insultos, ameaças e agressões, como as que Escudero tem sido o alvo recorrente, da parte destes guardas vermelhos do capital. Ver Apelo “Contre la censure et l’intimidation dans les espaces d’expression libertaire”  de 29 de dezembro de 2014.

 

(39) Recordemos que, em França, vinte e seis metros quadrados de terras cultiváveis desaparecem em cada segundo, principalmente sob o avanço do betão (legitimado, muitas vezes cinicamente, em nome do direito ao «alojamento»). Bem entendido, trata-se de um fenómeno planetário que afecta quase todos os países do Sul e cujos efeitos negativos se fazem sentir não só sobre o plano alimentar como também no humano (entre 2006 e 2011 passaram para o controlo de firmas e governos estrangeiros mais de 200 milhões hectares de terras agrícolas que pertenciam a pequenos proprietários). Como nota, por exemplo, Saskia Sassen (Expulsions. Brutalité et complexité dans l’economie global, Gallimard, 2016, p. 124): «o facto de se ser expulso da sua casa, da sua terra e do seu trabalho, tem como efeito dar um espaço operacional alargado às redes criminosas e de tráfico de seres humanos, bem como um acesso mais fácil à terra e às reservas de água subterrânea aos adquirentes estrageiros, sejam empresas ou governos». Basta então apresentar como «reaccionária» ou «xenófoba» toda a vontade de reconhecer o menor valor positivo às noções de «identidade» ou de «pertença», ou de se «estar em casa» - à imagem da que anima os movimentos revolucionários da América Latina – para conferir imediatamente e este processo de despossessão metódica dos camponeses pobres pelo capitalismo mundial – seja na Índia, no Brasil ou no Mali – o nobre ar de uma cruzada «progressista» (Cf. Roger Martelli, L’identité c’est la guerre, Les Liens qui libèrent, 2016).

 

(40) «Aqueles que fazem revoluções por metade – dizia Saint Just – limitam-se a cavar o seu próprio túmulo». É esse o destino que espera – que mais não seja, no plano eleitoral – todos aqueles que ainda acreditam, à imagem da «esquerda da esquerda», que se poderia romper com a economia capitalista, contribuindo para reforçar todas as suas condições de funcionamento «morais» e «culturais». Um pouco, em suma, como se se denunciasse rigorosamente o fórum de Davos, continuando a tomar a sério as mundanidades de Cannes.

 

(41) Immanuel Wallerstein, Randall Collins, Michael Mann, Giorgi Derluguian, Craig Calhoun, Le capitalisme a-t-il un avenir?, La Découverte, colecção «L’Horizon des possibles», 2014, p. 20 (La Découverte/Poche, 2016).

 

(42) André Gorz, “Le travail dans la sortie du capitalisme”, Revue EcoRev, publicado a título póstumo em 7 de janeiro de 2008.

 

(43) Friedrich Engels, “Introdução” de 1895 a Karl Marx, As lutas de classes em França.

 

(44) Em Maio de 1968, a hegemonia cultural do movimento operário era ainda de tal ordem que a maioria dos estudantes contestatários (cujo recrutamento era, todavia, muito mais selectivo do que hoje) estavam prontos a inventar origens proletárias para conferir maior peso às suas palavras («os operários tomarão das mãos frágeis dos estudantes a bandeira da luta»). Perto de 50 anos mais tarde, cada um de nós pode ver o que resta, nas novas classes médias metropolitanas – e na sua progenitura – desta imagem outrora gloriosa do mundo operário (o declínio do P.C.F. não sendo, evidentemente, estranho a esta evolução ideológica).

 

(45) Na representação elitista que «o partido da inteligência» forma habitualmente das classes populares, a célebre emissão radiofónica de Orson Welles sobre A guerra dos mundos, em outubro de 1938, ocupa certamente um lugar de escolha. A acreditar na lenda, os habitantes da “América profunda” eram tão destituídos de sentido crítico que foram tomados por um pânico generalizado pela simples audição desta emissão (pânico que teria mesmo provocado, segundo “testemunhas”, engarrafamentos, pilhagens, acidentes, falsos partos, crises cardíacas, suicídios, etc.). Mas, como o sociólogo da ciência Pierre Lagrange pôde estabelecer de modo notável no seu livro La guerre des mondes a-t-elle eu lieu? (Robert Laffont, 2005) tratou-se de uma simples lenda urbana. Na realidade, toda esta história é parte de um rumor ao qual só os intelectuais da Costa Leste (os meios de comunicação estavam, na época, muito menos desenvolvidos do que hoje) foram suficientemente ingénuos para dar crédito, tanto o rumor os confortava nos preconceitos de classe sobre o povo da América profunda. A tal ponto que, ainda hoje, este incrível boato passa, para muitos historiadores, por uma verdade estabelecida. Eis o que deveria incitar os missionários do partido da inteligência, a começar pelos artistas do showbiz, a um pouco mais de modéstia (e de maior benevolência e compreensão na sua relação com as classes populares). O boi não é sempre aquele que se pensa ser.

 

(46) «A aparição dos Ciudadanos vem recolocar-nos numa lógica que, desde o início, consideramos como pedante: a de um eixo direita esquerda tradicional. Nós pensamos que, sobre esta base, não há possibilidade de mudança da Espanha. O perigo, hoje, é o de ser reenviado a este eixo e fracassar na definição de uma nova centralidade» (Pablo Iglesias, Le Monde diplomatique, Julho de 2015). Contemos, pois, com a extrema esquerda francesa para reactivar este eixo por todos os meios ao seu alcance (se for preciso, agitando o espectro da «direitização») garantindo assim para si própria poder continuar tranquilamente em actividade (segundo dizia Guy Debord, «a prolongar por mais um milénio as queixas do proletário, com o fim de lhe manter um defensor»). E contemos, como é evidente, com os grandes média franceses para mentir desavergonhadamente apresentando o Podemos como o partido radical da esquerda espanhola. E se, apesar de todos os avisos de Pablo Iglesias, uma tal equação acabar por se instalar duradouramente no espírito das classes populares (sinal de que a operação Ciudadanos – montada pela classe dirigente espanhola – terá atingido os seus fins) será certo que o Podemos perderá rapidamente uma grande parte da sua originalidade intelectual e, portanto, do seu poder de aglutinação.

 

(47) Já em 1956, no seu ensaio The Power Elite, Wright Mills havia descrito a extensão real da classe dominante moderna. À medida que os meios de informação e de poder se centralizam, certos homens vêm ocupar na sociedade norte-americana lugares de onde podem, por assim dizer, olhar de alto o mundo quotidiano dos homens e das mulheres comuns e transformá-lo pelas suas decisões. Porque estes homens não são o simples produto do seu ofício; eles dividem o trabalho e atribuem-no a milhares de outros homens; não são limitados por simples responsabilidades familiares, podem evadir-se. Sejam quais forem os seus lugares de residência, nunca estão encerrados numa única comunidade; «não têm que fazer face aos problemas quotidianos»; em certa medida, são eles que criam estes problemas e obrigam os outros a enfrentá-los (A elite do poder, Maspero, 1969). É pouco provável que estas novas categorias sociais – organicamente ligadas ao domínio do capital e do 1% que representa o seu núcleo mais activo – aceitem, de bom grado, um questionamento radical dos seus privilégios e do seu modo de vida essencialmente parasitário («tanto mais que Wright Mills não hesita em incluir nesta elite do poder as celebridades profissionais que vivem da constante exposição de si mesmas»). A boa consciência verdadeiramente pinochetista com a qual uma maioria das classes médias inglesas (venham da direita ou da esquerda) pôde recusar – desde o dia seguinte ao referendo sobre o Brexit – reconhecer o menor valor democrático ao veredicto das urnas é um sinal particularmente revelador e inquietante.

 

(48) «Porque razão uma tal deferência pelo mercado, uma tal reverência pela tecnologia, quando sabemos com que temos que lidar? Este livro mostra que o medo não basta para explicar esta paranóia colectiva, mesmo que seja um dos seus ingredientes. O que nos paralisa, em primeiro lugar, são as ideias que herdámos, algumas delas inventadas nos tempos da primeira revolução industrial - uma época de oposição generalizada ao desenvolvimento tecnológico sem freios – precisamente com o fim de oferecer uma resposta à resistência suscitada pela ofensiva tecnológica. Entre elas figura o conceito de um progresso necessário e necessariamente benéfico e a ideia de que a competitividade fundada sobre este progresso seria a via mais segura para a prosperidade. Estas noções, embora em fim de curso, continuam a desarmar a oposição» (David Noble, Le progrès sans le peuple, Agone, 2016, p. 11).

 

(49) Que seja sempre possível unir a grande maioria das classes populares sobre um certo número de medidas anticapitalistas mínimas, é o que o exemplo islandês prova amplamente. A «revolução das caçarolas», após a crise de 2008, conseguiu deitar abaixo o governo liberal da época – que imaginava, à semelhança dos seus clones europeus, transformar as dívidas dos bancos privados da ilha em dívidas públicas –, a organização, em março de 2010, de um referendo (93% dos eleitores recusaram então pagar em lugar dos bancos corrompidos) e a execução correlativa de um certo número de reformas claramente antiliberais, tornadas possíveis pelo facto de a Islândia continuar a não pertencer à comunidade europeia. Este movimento antiliberal revelou-se rapidamente incapaz de ir muito mais longe – na ausência de uma organização capaz de «federar o povo» de forma duradora – e de começar a encarar as condições concretas de uma desconexão da vida comum (ou da «sociedade civil») da lógica capitalista. As suas medidas muito moderadas (mas já contrárias a todos os dogmas do FMI e do Banco Mundial) puderam, em todo o caso, permitir a redução da taxa de desemprego de mais de 10%, em 2008, a um nível actual de 1,7%. É o suficiente para explicar o silêncio quase total dos grandes média franceses – todos dedicados à defesa da SPP (la Seule Politique Possible) – sobre esta breve revolta popular, todavia tão rica de ensinamentos para todos os povos do planeta.