Marx, Lukács e o Prefácio de 1859

 

Rafael Rossi (*)

 

 

 

Por meio deste pequeno ensaio temos como objetivo expor as principais ideias contidas no Prefácio escrito por Marx em janeiro de 1859, portanto, época em que o pensador alemão já contava com 40 anos de idade, tendo também por base as elaborações de Gyorgy Lukács presentes em Para uma Ontologia do Ser Social, pois este filósofo húngaro, até onde sabemos, foi o primeiro a constatar a impostação ontológica do pensamento marxiano, isto é, fora o primeiro a expor – com o devido rigor e profundidade – que as categorias e a teoria social instaurada por Marx compreendem a explicitação teórica e ideológica do movimento da própria realidade social objetiva. O Prefácio aqui em discussão, por sua vez, se encontra compilado junto aos textos que viriam a ser conhecidos como uma Introdução à Crítica da Economia Política redigidos nos últimos meses de 1858 e janeiro do ano seguinte.

 

Nessa época, Marx já havia redigido algumas daquelas que mais tarde seriam consideradas suas principais obras: Crítica à Filosofia do Direito de Hegel (1843); A questão judaica (1843); Manuscritos Econômico-Filosóficos (1844); Teses Ad Feuerbach (1845); A Sagrada Família (1845); A Ideologia Alemã (1845-1846); Miséria da Filosofia (1847); Manifesto Comunista (1848); Trabalho Assalariado e Capital (1849); As Lutas de Classes na França (1850); Mensagem da Direção Central da Liga Comunista (1850); O 18 de Brumário de Luís Bonaparte (1852); Grundrisse (1857-1858) etc. e ainda estava por publicar importantíssimos escritos como O Capital (1867); Guerra Civil na França (1871) e Crítica ao Programa de Gotha (1875).

 

Nossa hipótese para discussão é de que neste escrito há indícios de ordem onto-metodológica que permitem compreender a correta relação entre as formas ideológicas – que compõem a superestrutura social – e a base econômica da existência social, sem, com isso, incorrer num reducionismo economicista hermético ou, ao contrário, ceder lugar à idealismos utópicos de toda estirpe.

 

Em primeiro lugar há que prestar atenção na primeira afirmação marxiana:

 

“Examino o sistema da economia burguesa na seguinte ordem: capital, propriedade, trabalho assalariado; Estado, comércio exterior, mercado mundial [...] estudo as condições econômicas da existência das três grandes classes nas quais se divide a sociedade burguesa moderna” (MARX, 2008, p. 45)

 

As categorias abordadas na análise marxiana são categorias que possuem existência real, quer dizer: propriedade, trabalho assalariado, capital e Estado, por exemplo, existem na realidade social objetiva. Não se tratam de especulações fantasiosas criadas pela “mentalidade” de Marx. Ao contrário, a sua teoria é a reprodução ideal, ou seja, no plano do pensamento, dos processos sociais reais que existem fora e independente da consciência humana. Isto permite, por exemplo, entender porque Lukács afirmou que todos os enunciados marxianos são “afirmações puramente ontológicas” (LUKÁCS, 2012, p. 281). A teoria para Marx é, dessa maneira “a reprodução ideal do movimento real do objeto pelo sujeito que pesquisa”, ou seja, “pela teoria, o sujeito reproduz em seu pensamento a estrutura e a dinâmica do objeto que pesquisa” e esta reprodução “será tanto mais correta e verdadeira quanto mais fiel o sujeito for ao objeto” (NETTO, 2009, p. 776). Lukács sintetiza essa ideia, afirmando que “[...] é a realidade social enquanto critério último do ser ou do não-ser social de um fenômeno” (LUKÁCS, 2012, p. 284).

 

Avançando em sua redação, Marx delineia, de modo bem sucinto, toda sua trajetória intelectual, passando do seu contato com a filosofia, sua atividade jornalística, seu envolvimento com polêmicas econômicas e sociais como as condições de existência dos camponeses de Mosela, por exemplo, até seu contato com Friedrich Engels e com a Economia Política. Por que esse interesse pela Economia Política? Justamente por ser esta a ciência que, naquele momento, tratava-se de estudar as condições materiais da produção da riqueza social.

 

Note o leitor que ainda neste período histórico a Economia Política ainda não tinha se tornado tão-somente Economia. A Economia Política e seus clássicos, como Adam Smith e David Ricardo não procuravam “constituir simplesmente uma disciplina científica entre outras: almejavam compreender o modo de funcionamento da sociedade que estava nascendo das entranhas do mundo feudal” e, por isso mesmo, “nas suas mãos, a Economia Política se erguia como fundante de uma teoria social, um elenco articulado de ideias que buscava oferecer uma visão de conjunto da vida social” (NETTO, BRAZ, 2012, p. 29).

 

Contudo, ao redor de 1848 há uma crise que terminaria com a dissolução da Economia Política. Nas décadas perto deste ano há uma profunda mudança no comportamento da burguesia. Inicialmente um caráter eminentemente revolucionário pôde ser evidenciado em suas revoluções que intentavam a destruição de todo edifício social e político que configurava o Antigo Regime e, portanto, de todas as relações sociais de produção pré-capitalistas. Uma vez que a burguesia instaura-se no poder ela “renuncia aos seus ideais emancipadores e converte-se numa classe cujo interesse central é a conservação do regime que estabeleceu” (NETTO, BRAZ, 2012, p. 32). Tem início, por sua vez, o período caracterizado por Marx e discutido por Lukács em vários momentos, de decadência ideológica burguesa. À burguesia não resta, agora, qualquer possibilidade e interesse, de fato, revolucionário, mas sim em conservar e proteger com toda a violência que puder a ordem societária vigente.

 

Por isso podemos entender que, hoje, a única classe realmente com interesses essencialmente revolucionários é a classe dos proletários, tenham eles consciência ou não disto, já que se conformam na única classe que possuem como objetivo a revolução total deste sistema social para garantir a sua emancipação e a emancipação de todas as demais classes. A Economia, após 1848, abandona a preocupação em compreender profundamente o movimento da própria realidade e se torna “basicamente instrumental”. A Economia:

 

“[...] renuncia a qualquer pretensão de fornecer as bases para a compreensão do conjunto da vida social e, principalmente, deixa de lado procedimentos analíticos que parte da produção – analisa preferencialmente a superfície imediata da vida econômica (os fenômenos da circulação), privilegiando o estudo da distribuição dos bens produzidos entre os agentes econômicos e quando, excepcionalmente, atenta para a produção, aborda-a de modo a ladear a teoria do valor-trabalho” (NETTO, BRAZ, 2012, p. 34, grifos nossos).

 

Esses processos históricos são decisivos para compreendermos o interesse de Marx pela Economia Política e seu desprezo pela Economia. Continuando em nossa análise, o pensador revolucionário irá afirmar que:

 

“Minhas investigações me conduziram ao seguinte resultado: as relações jurídicas, bem como as formas do Estado, não podem ser explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução geral do espírito humano; essas relações têm, ao contrário, suas raízes nas condições materiais de existência, em suas totalidades, condições estas que Hegel, a exemplo dos ingleses e dos franceses do século 18, compreendia sob o nome de “sociedade civil”. [...] O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de guia para meus estudos, pode ser formulado, resumidamente, assim: na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais ela se haviam desenvolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações convertem-se em entraves. Abre-se, então, uma época de revolução social”. (MARX, 2008, p. 47, grifos nossos)

 

Este parágrafo é de absoluta relevância para nosso debate. Trata-se da dependência ontológica do Estado e das relações jurídicas para com as condições materiais de existência. Isto significa que para compreendermos as atividades humanas, dentre elas a educação, por exemplo, temos de buscar suas raízes, ou seja, temos de analisar suas vinculações com a maneira como os seres humanos produzem a existência social. Há uma vinculação essencial entre as dimensões sociais e as condições materiais da existência. Abandonar esta relação é abandonar também as possibilidades de compreensão do fenômeno social a ser estudado.  

 

Tal dependência ontológica encontra respaldo no fato de que os seres humanos precisam, necessariamente, produzir a existência social e as condições para a sua reprodução. Roupas, casas, pontes, estradas, etc. não são simplesmente “dádivas” da natureza, ao contrário, são justamente uma parte da natureza transformada intencionalmente por atos humanos. Essas relações sociais de produção da existência material irão consubstanciar a “estrutura econômica da sociedade”, isto é, a “base real” que nos fala Marx. Sobre esta base econômica real irá se elevar uma “superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência”. Aqui Marx deixa claro que a realidade social não pode ser reduzida à sua base econômica, mas também afirma que para compreender as “formas de consciência” ou as “relações jurídicas” é imprescindível apreender a reciprocidade dialética que há entre ambas, entretanto, se trata de uma reciprocidade dialética na qual o momento predominante cabe à base econômica real.

 

Esta afirmação quer dizer que as formas de consciência interferem na reprodução social, todavia, elas emanam e encontram seu campo de possibilidades a partir da maneira como os homens se relacionam entre si no processo de transformação da natureza, isto é, as formas de consciência, apesar de operarem na prática social, são determinadas ontologicamente pelas relações sociais de produção. Lukács explica-nos esta relação ao ponderar que:

 

“[...] o que está em jogo aqui são os homens, cujas capacidades, hábitos etc. tornam possíveis determinados modos de produção. Essas capacidades, porém, são por seu turno geradas sobre a base de modos de produção concretos. Essa constatação remete à teoria geral de Marx, segundo a qual o desenvolvimento essencial do ser humano é determinado pela maneira como ele produz. Até mesmo o modo de produção mais bárbaro ou mais estranhado plasma os homens de determinado modo, um modo que desempenha papel decisivo, em última instância, nas inter-relações entre grupos humanos – por mais “extraeconômicas” que estas possa parecer de imediato”. (LUKÁCS, 2012, p. 336, grifos nossos)

 

Lukács está argumentando que atribuir o momento predominante na relação entre distribuição e produção à segunda, não implica em nenhum praticismo mecanicista. Ao contrário, trata-se de compreender como este relacionamento ocorre historicamente, tendo por base a maneira como os seres humanos produzem a existência social. Justamente em decorrência disto que Marx pôde afirmar que “não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência”. Avançando em seu escrito Marx argumenta que:

 

“Quando se consideram tais transformações, convém distinguir sempre a transformação material das condições econômicas de produção – que podem ser verificadas fielmente com a ajuda das ciências físicas e naturais – e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas sob as quais os homens adquirem consciência desse conflito e o levam até o fim. Do mesmo modo que não se julga o indivíduo pela ideia que de si mesmo faz, tampouco se pode julgar uma tal época de transformações pela consciência que ela tem de si mesma. É preciso, ao contrário, explicar essa consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção. Uma sociedade jamais desaparece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter, e as relações de produção novas e superiores não tomam jamais seu lugar antes que as condições materiais de existência dessas relações tenham sido incubadas no próprio seio da velha sociedade. Eis porque a humanidade não se propõe nunca senão os problemas que ela pode resolver, pois, aprofundando a análise, ver-se-á sempre que o próprio problema só se apresenta quando as condições materiais para resolvê-lo existem ou estão em vias de existir”. (MARX, 2008, p. 48, grifos nossos)

 

Neste trecho há novamente a argumentação da reciprocidade dialética que existe entre as formas de consciência e as contradições da vida material, devendo, pois, do ponto de vista da análise, sempre ser necessário pesquisar tais formas ideológicas a partir do “conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção”, ou seja, nenhuma ideologia ou elemento da superestrutura se explica por si mesmo, mas apenas na sua reciprocidade dialética com as condições materiais da existência social, tendo nas relações sociais de produção o momento predominante.

 

Outro aspecto onto-metodológico fundamental neste trecho de Marx diz respeito ao conceito de ideologia. Obviamente no âmbito deste breve ensaio não será possível deslindar o tratamento que este debate merece com o profundo e devido rigor. Todavia, cabe chamar a atenção para o fato de que este é um trecho que Lukács, na sua Ontologia, destaca para explicar a respeito da ideologia. Para além do critério gnosiológico comum ao tratamento desta categoria em que o julgamento de verdadeiro e falso corresponde ao “parâmetro decisivo” daquilo que é ou não uma ideologia, o filósofo húngaro irá argumentar a respeito da ideologia, no âmbito das sociedades de classe, enquanto uma função social específica, ou seja, uma determinada função que exerce na reprodução social.

 

Lukács afirma que a ideologia é “sobretudo a forma de elaboração ideal da realidade que serve para tornar a práxis social humana consciente e capaz de agir” e, com isso, toda ideologia “possui o seu ser-propriamente-assim social: ela tem sua origem imediata e necessariamente no hic et nunc social dos homens que agem socialmente em sociedade” (LUKÁCS, 2013, p. 465). A análise lukácsiana da ideologia, tendo por parâmetro a afirmação marxiana de que são “formas ideológicas sob as quais os homens adquirem consciência desse conflito e o levam até o fim”, em nossa opinião, seguem a abordagem proposta por Marx de analisar as formas de consciência em sua vinculação com o conjunto do processo histórico real.

 

Por fim, um último aspecto onto-metodológico presente no Prefácio de 1859 e relevante em ser mencionado é: a possibilidade da revolução social. Uma vez que compreendemos o papel de momento predominante que as relações sociais de produção desempenham na reciprocidade dialética com as formas de consciência, podemos, igualmente, entender que “uma sociedade jamais desaparece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter”. Isto é plenamente confirmado pela história. O longo processo de transição do feudalismo para o capitalismo só fora possível em ser efetivado, pois as revoluções burguesas conseguiram fazer avançar novas relações sociais de produção, propriamente capitalistas, sobre os resquícios feudais. Isto não é pouca coisa! Alterar a maneira como os homens se relacionam entre si no processo de produção da riqueza social implica alterar a totalidade de uma determinada sociedade. Trata-se de uma verdadeira revolução social, que ataca a raiz da velha sociedade e desenvolve uma nova forma de trabalho (substituição do trabalho servil pelo trabalho assalariado, no exemplo em tela) e novas relações sociais de produção.

 

No âmbito da superação do capitalismo rumo ao comunismo, toda teoria social marxiana não teria respaldo na realidade se não encontrasse elementos reais e concretos que possibilitassem argumentar a favor da revolução proletária. Por isso, em certos momentos Marx irá se referir ao fundamento da nova sociedade regulado e controlado de modo consciente e universal pelos produtores livremente associados. O capital precisa ser superado em sua totalidade para que a nova sociedade possa prosperar. O sujeito revolucionário por excelência, porém não único, são justamente os proletários em razão do local que ocupam no processo produtivo da riqueza social. Demonstrar a possibilidade e a necessidade de superação do capital deve ser uma empreitada prática, teórica e ideológica com sólidos argumentos racionais e historicamente concretos. Por isso, Marx afirmou que “a humanidade não se propõe nunca senão os problemas que ela pode resolver”.

 

 

 

 

 

(*) Rafael Rossi é docente do curso de Licenciatura em Educação do Campo, do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e do Programa de Pós-Graduação em Recursos Naturais na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em Campo Grande. Possui graduação e mestrado em Geografia na UNESP de Presidente Prudente (SP). Atualmente realiza curso de Doutorado em Educação da UNESP de Presidente Prudente e estuda a relação da Educação do Campo com a questão agrária. Foi voluntário do Programa de Educação de Jovens e Adultos (PEJA), vinculado à Pró-Reitoria de Extensão da UNESP no período de 2011 a 2014. É autor do livro Educação do Campo: questões de luta e pesquisa (Editora CRV), em que trata de questões filosóficas e desafios políticos da Educação do Campo.

 

 

Referências:

 

LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social – Volume I. São Paulo: Boitempo: 2012.

 

LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social – Volume II. São Paulo: Boitempo: 2013.

 

MARX, K. Contribuição à crítica da Economia Política. São Paulo: Expressão Popular, 2008.

 

NETTO, J. P. Introdução ao método da teoria social. In: Conselho Federal de Serviço Social – CFESS; Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social – ABEPSS. Serviço Social: Direitos Sociais e Competências Profissionais. Brasília – DF,  p. 769-806, 2009.

 

NETTO, J. P.; BRAZ, M. Economia Política: Uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2012.