A sociedade automática

O futuro do trabalho

 

 

Bernard Stiegler (*)

 

 

 

«Objectividade racional, objectividade técnica, objectividade social são hoje três caracteres fortemente ligados. Se esquecermos um só destes caracteres da cultura científica moderna, entramos no domínio da utopia.»

 

Gaston Bachelard

 

«Incansavelmente, nós edificamos o mundo, a fim de que a secreta dissolução, a universal corrupção que rege aquilo que «é», seja esquecida em favor desta coerência de noções e objectos, de relações e de formas, clara e definida, obra do homem tranquilo, onde o nada não poderia infiltrar-se e onde os belos nomes – todos os nomes são belos - bastam para nos fazer felizes.»

 

Maurice Blanchot

 

«Estes motores devem ser diferentes dos outros. Parece lógico supor que Morel os terá desenhado de modo que o seu funcionamento não possa ser entendido pelo primeiro que desembarque na ilha. Sem dúvida, a dificuldade do seu manejo terá que residir na sua diferença dos outros motores. Como eu não entendo nada de nenhum deles, esta dificuldade não é apreensível por mim…E se Morel tivesse tido a ideia de registar também estes motores?»

 

Adolfo Bioy Casares

 

 

Introdução

 

Entropia e Neguentropia no Antropoceno

 

 

«O mais estranho neste regresso em triunfo da «espécie humana» na história, é que o Antropoceno fornece a demonstração mais brilhante de que, do ponto de vista ambiental, a humanidade, tomada como um todo, não existe.»

 

Christophe Bonneuil e Jean-Baptiste Fressoz

 

 

 

1. O que se passou entre 23 de junho e 23 de outubro de 2008

 

No dia 23 de junho de 2008, ao analisar, na revista Wired, o modelo de negócio da Google, Chris Anderson mostrou que todos os serviços oferecidos por esta empresa – que se baseiam no que Frédéric Kaplan chamou, mais tarde, o capitalismo linguístico (1) – são realizados sem nenhuma referência a uma teoria da linguagem, qualquer que ela fosse (2).

 

Partindo daqui, e sustentando um raciocínio similar em matéria de epidemiologia googliana, chega à afirmação de princípio de que, com aquilo que hoje se chama os big data (3), constituídos por biliões de dados analisáveis em tempo real pelo cálculo intensivo, não há mais necessidade de teoria nem de teóricos – como se os data «scientists», especialistas de matemáticas aplicadas a enormes bases de dados por meio de algoritmos, pudessem substituir-se aos teóricos que são sempre, em princípio, os cientistas, qualquer que seja o domínio ou disciplina científica em causa.

 

Quatro meses mais tarde, no dia 23 de outubro de 2008, Alan Greenspan, presidente da Reserva Federal até 2000, compareceu numa audição perante a Câmara dos Representantes: tratava-se de explicar as razões pelas quais tantas catástrofes financeiras se haviam desencadeado a partir da crise das subprimes em agosto de 2007. Posto em causa por não ter antecipado nem prevenido tal crise sistémica, defendeu-se dizendo que a sua causa havia sido o mau uso das matemáticas financeiras e os sistemas de cálculo automatizado que suportavam a avaliação dos riscos, instaurados pelo digital trading, sob as suas diversas formas (desde as subprimes até high frequency trading).

 

«Foi o fracasso de uma correcta avaliação dos activos de risco que precipitou a crise. Ao longo dos últimos anos, foi desenvolvido um vasto sistema de gestão e de avaliação de riscos, combinando as melhores ideias de matemáticos e de peritos financeiros, sustentadas pelos maiores avanços nas tecnologias informáticas e de telecomunicações» (4).

 

Greenspan sublinhou, por outro lado, que «o prémio Nobel da economia» tinha legitimado este tipo de abordagens (5) - o que significava que se houvesse que determinar uma imputação causal, ela não poderia limitar-se ao presidente da Reserva Federal dos Estados Unidos, mas dizia respeito a todo o aparelho de formalização computacional e de decisões automáticas daí decorrentes, tomadas pelos robots, bem como à «teoria» económica oculta que sustentava a sua legitimidade.

 

Se, até agosto de 2007, este modelo tinha «funcionado» («este paradigma tinha reinado durante decénios»), se o aparelho de formalização computacional e de decisões automáticas se havia imposto de facto,

 

«todo este edifício intelectual naufragou, no verão do ano passado (2007), porque os dados introduzidos nos modelos de gestão de riscos provinham geralmente dos dois últimos decénios, que foram um período de euforia.»

 

Sem dúvida, os ideólogos desta «gestão racional dos riscos» não ignoravam que os «jogos de dados» eram limitados, acrescentaria eu à exposição de Greenspan. Mas eles partiam da hipótese de que «períodos históricos de stress» haviam tido lugar porque estes instrumentos financeiros ainda não existiam durante tais períodos e que a concorrência não era então ainda «perfeita e não falseada». Esta era a teoria escondida por detrás destes robots que, supostamente, «objectivavam» o real, que espelhariam enfim a «racionalidade dos mercados».

 

Pouco tempo depois do artigo de Chris Anderson, Kevin Kelly veio objectar-lhe que, por detrás de toda a apreensão automatizada dos factos, há uma teoria oculta, conhecida ou desconhecida, e, neste último caso, a aguardar formulação (6). Para nós, senão para o próprio Kelly, isto quer dizer que por detrás e para além do facto, há um direito.

 

A ciência é o que vai para lá dos factos, invocando esse direito: é aquilo que afirma que há sempre uma excepção (e é o que significa «invocar » em direito: afirmar um direito à excepção) à maioria dos factos, ou mesmo à imensa maioria dos factos, ou seja, à sua quase totalidade e que os invalida em direito (que invalida a sua coerência aparente). É aquilo que, nos capítulos seguintes, chamaremos, com Yves Bonnefoy e Maurice Blanchot, o improvável – e essa é também a questão do cisne negro colocada por Nassim Nicholas Taleb, num sentido mais próximo da epistemologia das estatísticas, das probabilidades e da categorização (7).

 

2. Paris numa garrafa

 

A ideologia da concorrência perfeita e não falseada era, e continua a ser ainda hoje, o discurso do neoliberalismo, inclusive para Greenspan, que concluía nesse sentido, em 23 de outubro de 2008, afirmando que

 

“Se os modelos tivessem sido elaborados em função de períodos históricos de stress, as exigências de fundos próprios (detidos pelos estabelecimentos financeiros) teriam sido muito mais elevadas, e o mundo financeiro estaria, a meu ver, em muito melhor forma do que hoje.”

 

Mas aquilo que esta observação nos oculta é que, com ses, poderíamos sempre meter Paris numa garrafa («avec des si on mettrait Paris en bouteille») (8). Se as exigências de fundos próprios tivessem sido «muito mais elevadas», o modelo, muito simplesmente, não teria sido desenvolvido: ele tinha precisamente, por função essencial, dissimular a insolvabilidade sistémica do capitalismo consumista (ou seja, do «crescimento»), atingido, desde há mais de trinta anos, por uma redução drástica do poder de compra dos assalariados, redução imposta pela revolução conservadora – e pela financeiracização em que ela fundamentalmente consistiu, o que permitiu também, organizar o endividamento estrutural dos Estados e a sua submissão a uma chantagem sem precedentes, que devemos aparentar à extorsão (é o que permite falar de um capitalismo mafioso) (9).

 

A aplicação deste modelo, fundado sobre a «indústria financeira» e as suas tecnologias computacionais automatizadas, tinha por finalidade, ao mesmo tempo, captar, sem redistribuição, a mais-valias libertadas pelos ganhos de produtividade, e dissimular, por uma cavalaria financeira assistida por computador, à escala planetária, que a revolução conservadora tinha quebrado o «círculo virtuoso» do «compromisso» fordo-keynesiano (10).

 

É assim que, com a revolução conservadora, o capitalismo se torna puramente computacional (senão «puramente mafioso»). Em 1905 Max Weber, havia mostrado, por um lado, que o capitalismo se reportava originalmente a um incalculável, cujo símbolo era o Cristo (11), como chave mestra da ética protestante que constituía o espírito do capitalismo e, por outro lado, que a dinâmica transformadora da sociedade que esse espírito instalou consistiu numa secularização e numa racionalização que o contrariava irremediavelmente – o que poderia chamar-se a aporia do capitalismo (12).

 

Veremos que o tonar-se puramente computacional do capitalismo contemporâneo, concretizado pela chamada economia dos data, que exacerba esta aporia, realiza esta contradição e, ao fazê-lo, cumpre esse devir sem futuro a que Nietzsche chamou o niilismo – de que as afirmações ruidosas de Anderson e as explicações embrulhadas de Greenspan são sintomas, no sentido que Paolo Vignola confere a este termo (13).

 

3. Aquilo que nos esconde Que França dentro de dez anos?

 

O storytelling praticado por Anderson releva de uma nova ideologia que tem por finalidade mascarar que, com a automatização total, uma nova explosão de insolvabilidade generalizada se prepara, bem pior do que a de 2008 – a automatização devendo caracterizar os dez próximos anos, segundo inúmeros estudos, conjecturas e «notas de conjuntura».

 

A 13 de março de 2014, Bill Gates declarava em Washington que, com a software substitution, ou seja, com a generalização dos robots lógicos e algorítmicos pilotando os robots físicos – desde as smart cities à Amazon, passando pelas fábricas da Mercedes, o metropolitano, os camiões que abastecem os supermercados, de onde as caixas já desapareceram, tal como o pessoal de manutenção, senão mesmo os clientes – o emprego iria diminuir drasticamente nos próximos vinte anos, até ao ponto de se tornar uma situação excepcional.

 

Esta tese, que é explorada, desde há alguns anos, em grande profundidade (14), foi recentemente repercutida na imprensa europeia, primeiramente na Bélgica, pelo diário Le Soir que, em julho de 2014, anunciava o risco de destruição de 50% dos empregos neste país, «dentro de dois decénios», mais tarde em França, onde foi retomada pelo Jounal du Dimanche, em outubro de 2014, num artigo que, com base num estudo encomendado por este jornal ao Gabinete Roland Berger, previa a destruição, até 2025, de três milhões de empregos, atingindo tanto as classes médias, como os postos de enquadramento, as profissões liberais e os ofícios manuais. Note-se que a perda de três milhões de empregos representa 11 pontos suplementares de desemprego, ou seja, um desemprego total de 24%, não tomando em conta os desempregados com ocupações «parciais» ou «ocasionais».

 

Em França, dentro de dez anos, sejam quais forem os modos de o contabilizar, o desemprego oscilará verosimilmente entre 24% e 30% (sendo o cenário de Roland Berger relativamente optimista em relação às previsões do Instituto Bruegel, como adiante se verá) e, em todos os casos, estes estudos anunciam a desaparição definitiva do modelo fordo-keynesiano que organizava a distribuição dos ganhos de produtividade resultantes da automatização taylorista sob a forma de poder de compra adquirido pelos assalariados.

 

É uma imensa transformação a que se anuncia aqui. Ora, o relatório entregue por Jean Pisani-Ferry, durante o verão de 2014, ao Presidente da Republica francesa, que o tinha encomendado tendo em vista um «Seminário governamental», não diz uma única palavra sobre estas perspectivas literalmente transtornadoras – que transtornarão toda a macroeconomia futura.

 

Este relatório, intitulado Que França dentro de dez anos?, fala evidentemente do emprego, mas fá-lo num tom hipócrita, dizendo de algum modo: «sejamos modestos, fixemos um objectivo realista; em matéria de emprego, atenhamo-nos ao primeiro terço dos países comparáveis» (15). E, de seguida, em mais de duzentas páginas de águas tépidas, não se diz uma só palavra sobre as hipóteses de redução drástica de emprego e, pelo contrário, começa-se por afirmar que

 

«a nossa finalidade deve ser o pleno emprego. Por mais longínqua que esta finalidade nos pareça hoje, é o estado normal do funcionamento de uma economia. Qualquer outro estado social reveste um carácter patológico e implica um insuportável desperdício de competências e de talentos. Não há nenhuma razão para não o atingir, quando conhecemos durante muito tempo uma situação de um desemprego muito fraco e alguns dos nossos vizinhos já regressaram a essa situação» (16).

 

Segundo o comissário geral de France Stratégie (17) seria, portanto, necessário, reafirmar o pleno emprego, mas seria preciso fazê-lo de um modo «credível», através de um raciocínio extraordinariamente confuso:

 

«Fixarmos este objectivo para 2025 seria, no entanto, pouco credível para todos os franceses que sofrem há decénios de um persistente desemprego de massa. Uma ambição percepcionada, com razão ou sem ela, como demasiado elevada pode ser desmobilizadora. Mais vale, como diz o provérbio chinês, atravessar o ribeiro assentando nas pedras. Por outro lado, o defeito de um objectivo fixado em termos absolutos é o de não ter em conta a situação global e europeia. O raciocínio em termos relativos evita este escolho. Neste espírito, podemos ambicionar regressar duravelmente ao primeiro terço dos países europeus, no que respeita a emprego» (18).

 

Ao contrário do que pretende Que França dentro de dez anos?, o Instituto Bruegel, do qual Jean Pisani-Ferry foi director (e membro fundador), antes da sua nomeação como comissário geral de France Stratégie, sustenta, na pessoa de Jeremy Bowles, que retoma os números de Benedikt Frey e Michael Osborne, da Oxford Martin School (19), que a Bélgica poderia perder 50% dos seus empregos, a Inglaterra 43%, a Itália e a Polónia 56%, tudo isto, segundo Le Soir, «daqui a uma ou duas décadas».

 

No momento em que entregou o seu relatório (em junho de 2014), Pisani-Ferry não poderia ignorar os cálculos do instituto para cuja criação contribuíra em 2005. Como pôde ele sentir-se autorizado a dissimulá-los? O facto é que, tal como Greenspan, ele havia interiorizado um estado de facto calamitoso, cuja incompreensão ele mantém, através de uma análise profundamente errónea, impedindo a França de tomar consciência de uma situação excepcionalmente perigosa, onde, nomeadamente

 

«empregadas de caixa, amas, controladores, ou mesmo professores (…), daqui até 2025, um terço dos empregos poderão ser ocupados por máquinas, robots ou computadores dotados de inteligência artificial, capazes de aprender por si mesmos. E de substituir-nos. Uma visão do futuro profetizada por Peter Sondergaard, vice-presidente e director mundial de investigação da Gartner» (20).

 

Veremos que esta visão é partilhada por dezenas de analistas do mundo inteiro, designadamente o gabinete de Roland Berger, que sustenta no seu estudo que

 

«Até 2025, 20% das tarefas serão automatizadas. E mais de 5 milhões de assalariados encontrar-se-ão desprovidos de emprego em favor das máquinas. Um grande número de sectores será afectado: a agricultura, a hotelaria, a administração pública, o exército, a polícia» (21).

 

Ocultar estas perspesctivas é muito grave, como nota um dos associados de Roland Berger, Hakim El Karoui:

 

«O sistema fiscal não está adaptado para taxar uma parte da riqueza engendrada pelo digital, pelo que o efeito de redistribuição é muito limitado».

 

Chamando a atenção para o risco de deflagração social, El Karoui faz um apelo no sentido de «antecipar, qualificar, dizer a verdade (criar um electrochoque na opinião actual)» Sob pena de vermos reforçar-se a desconfiança nas elites, com impactos políticos graves (22).

 

4. Entropia e neguentropia no Antropoceno

 

Antecipar, qualificar, alertar, mas também propor, tais são os fins da presente obra que encara um modo alternativo, totalmente alternativo, de «distribuir a riqueza engendrada pelo digital» segundo as palavras de Hakim El Karoui. Haverá um outro futuro, um recomeço possível no processo de automatização integral e generalizada a que conduz a reticulação digital planetária?

 

É preciso colocar esta questão como a da passagem do Antropoceno, que instalou as condições da proletarização generalizada, desde o final do século XVIII, como Adam Smith já o compreendia, para a saída deste período em que a antropização se tornou um «factor geológico» (23). Chamaremos a esta saída o Negantropoceno. A saída do Antropoceno constitui o horizonte global das teses aqui apresentadas. Estas teses afirmam, como primeiro princípio, que o tempo ganho pela automatização deve ser investido em novas capacidades de desautomatização, isto é, de produção de neguentropia.

 

Desde há decénios que o fim do trabalho assalariado é aquilo que analistas como Norbert Wiener, nos Estados Unidos da América ou Georges Friedmann, em França, anunciam para uma data próxima, como aliás o próprio John Maynard Keynes. Marx havia explorado esta hipótese em profundidade num célebre fragmento dos Fundamentos da crítica da economia política (“Grundrisse”), chamado «fragmento sobre as máquinas» ou «capítulo sobre a automatização».

 

Esta perspectiva vai concretizar-se no próximo de decénio. Que faremos nos próximos dez anos para tirar o melhor partido possível, desta imensa transformação?

 

William Henry Gates III, após enfatizar o desaparecimento do emprego, recomenda reduzir os salários e suspender as taxas e encargos diversos que lhe estão associados. Baixar mais uma vez os salários daqueles que ainda têm um emprego, não poderia senão acelerar a insolvabilidade geral do sistema capitalista. A questão é evidentemente diferente: o tempo libertado pelo fim do trabalho deve ser posto ao serviço de uma cultura dos autómatos capaz de produzir um novo valor e de reinventar o trabalho (24). A cultura da desautomatização, tornada possível pela automatização é o que pode e deve produzir um valor neguentrópico – e ela requer aquilo que, em tempos, chamei o otium do povo (25).

 

A automatização, tal como foi conduzida desde o taylorismo, engendrou uma imensa entropia, a uma escala de tal ordem que hoje, no mundo inteiro, a humanidade duvida fundamentalmente do seu futuro – e a juventude mais ainda. A dúvida da humanidade sobre o seu futuro, face à desocupação sem precedentes da sua juventude, apareceu no momento em que o Antropoceno, que começou com a industrialização, se tornou «consciente de si mesmo».

 

«Sucedendo ao Holoceno, período de 11.500 anos de relativa estabilidade climática, que assistiu à eclosão da agricultura, das cidades, das civilizações, o Antropoceno (…) começou com a Revolução industrial. Entrámos, então, numa nova idade geológica da Terra. Sob o domínio da acção humana, «a Terra opera actualmente num estado sem nenhuma analogia anterior» [Paul Crutzen e Will Steffen, «How Long Have We Been in the Anthopocene Era» (26)].

 

Que o Antropoceno se tenha tornado «consciente de si mesmo significa que os homens se tornaram mais ou menos conscientes da sua pertença a esta era do Antropoceno, no sentido de se sentirem responsáveis» (27) - e isso aconteceu no curso dos anos 1970: após a segunda guerra mundial e a aceleração que ela provocou no Antropoceno, uma «consciência comum» de sermos um factor geológico e a causa colectiva de uma entropização massiva e acelerada, através da antropização de massa, teria aparecido antes mesmo que o conceito de Antropoceno tenha sido formulado (em 2000) - o que Bonneuil e Fressoz põem em destaque, referindo-se a um discurso pronunciado por Jimmy Carter, Presidente dos Estados Unidos da América, em 1979:

 

«A nossa identidade já não é definida por aquilo que realizamos, mas por aquilo que possuímos (…). Consumir já não satisfaz a nossa busca de sentido, aprendemos que a acumulação de bens não pode preencher as nossas existências vazias sentido» (28).

 

É impressionante que um presidente dos Estados Unidos enuncie o fim do American Way of life. Bonneuil e Fressoz lembram que foi contra este discurso que apareceu Reagan,

 

«favorável a uma restauração da hegemonia americana e à desregulação das actividades poluentes (…) enquanto o discurso de Carter ilustra a influência (…) que já haviam adquirido no espaço público as critica da sociedade de consumo».

 

No decurso dos últimos anos, e mais ainda depois de 2008, esta «consciência de si» do Antropoceno terá posto em evidência o carácter sistemicamente e massivamente tóxico da organologia contemporânea (29) (além de insolvável) no sentido que Ars Industrialis deu e o Institut de Recherche et Inovation (IRI) atribuem a este termo, da perspectiva da organologia geral (30).

 

A partir desta toxidade farmacológica que se torna uma consciência comum, no sentido em que aquilo que se acreditava ser um factor de progresso parece inverter o seu sinal e precipitar a humanidade na regressão generalizada, o Antropoceno, cuja história é a do capitalismo, apresenta-se como um processo que começa com a industrialização organológica (igualmente nos países reputados «anticapitalistas») e que deve ser apreendido como uma revolução organológica.

 

5. O cumprimento do niilismo e a entrada no Negantropoceno

 

A era do Antropoceno é a era do capitalismo industrial no seio da qual o cálculo prevalece sobre qualquer outro critério de decisão e onde, ao tonar-se algoritmo e maquínico, se concretiza e materializa como automatismo lógico e representa assim o surgimento do niilismo como sociedade computacional tornada automática, teleguiada e telecomandada.

 

A confusão e a desorientação em que nos deixa o estádio dito «reflexivo», porque supostamente «consciencializado», do Antropoceno, são um resultado histórico no seio do qual podemos hoje identificar novos factores de causalidade e de quase-causalidade que até hoje não foram analisados. É essa a razão pela qual Bonneuil e Fressoz podem, a justo título, deplorar a abordagem «geocrática» que curtocircuita as análises políticas da história aberta por aquilo que chamam o acontecimento Antropoceno (31).

 

Do ponto de vista histórico e político defendido por Bonneuil e Fressoz, há que acrescentar, todavia, que através deste acontecimento, se tornou aparente aquilo que foi tradicionalmente denegado pela filosofia durante séculos, a saber, que o artefacto é a mola real da hominização, a sua condição e o seu destino. Já ninguém pode ignorá-lo: aquilo que Valéry, Husserl e Freud afirmaram, entre a duas guerras mundiais, como uma nova idade da Humanidade, isto é, como a sua consciência (e inconsciência) farmacológica do «mundo do espírito» (32), é o que se tornou uma consciência (e uma inconsciência) comum, confusa e infeliz. Esse é o mal-estar no Antropoceno contemporâneo.

 

Daqui resulta a necessidade imperativa de requalificar o facto noético na sua totalidade - isto é, em todos os campos do saber (viver, fazer, conceber) – e aí integrando os pontos de vista de André Leroi-Gourhan e de George Canguilhem, que foram os primeiros a colocar a artificialização do ser vivo como ponto de partida da hominização (33). Este imperativo apresenta-se como uma situação de extrema urgência vital, ao mesmo tempo política, económica e ecológica. E assim coloca uma questão de organologia prática, isto é, de produções inventivas.

 

Sustentamos que esta questão e estas produções passam (e mostraremos aqui porque razão) por uma reinvenção da World Wide Web, na sua totalidade – tendo o Antropoceno, desde 1993, entrado numa nova época, com a aparição da Web, que representa, no nosso tempo, aquilo que os combóios representaram no início do Antropoceno.

 

É com Nietzsche que temos que pensar o Antropoceno como a era geológica que consiste na desvalorização de todos os valores: é no Antropoceno, e como aquilo que ele põe vitalmente em jogo, que a tarefa de todo o saber noético se torna a da transvaloração dos valores, no momento em que a alma noética é confrontada com o seu autoquestionamento organológico, como cumprimento do niilismo que representa a provação mesma do nosso tempo – como Antropoceno concretizado enquanto idade em que o capitalismo de torna planetário.

 

É com Nietzsche que, com a advento do Antropoceno, há que pensar o surgimento do Negantropoceno, como a transvaloração do devir em porvir. Para tanto, é necessário ler Nietzsche com Marx, tal como este pensou o novo estatuto do saber no capitalismo e o futuro do trabalho, em 1857, no fragmento dito «sobre as máquinas» ou «sobre a automatização», onde se aborda também o General Intellect.

 

Ler Nietzsche e Marx em conjunto ao serviço de uma nova crítica da economia política, onde a eco-nomia se torna um factor a uma escala localmente cósmica (uma dimensão do cosmos) e, portanto, uma eco-logia, é o que deve conduzir a um processo de transvaloração tal que os valores económicos, assim como as desvalorizações morais que eles provocaram, quando o niilismo se desencadeou como consumismo, são agora «transvaloradas» pelo novo valor de todo o valor, isto é, pela neguentropia, ou entropia negativa (34), ou anti-entropia (35).

 

Emergindo da termodinâmica trinta anos após o surgimento de tecnologia industrial e o inicio da revolução organológica que está na origem do Antropoceno, com a gramatização dos gestos pelos primeiros automatismos industriais e com a máquina a vapor (36), a teoria da entropia requalifica a questão do valor, se é verdade que a relação entropia/neguentropia é a questão vital por excelência. É segundo estas perspectivas que se deve pensar, tanto orgânica como farmacologicamente, aquilo a que deve chamar-se o entropoceno e a negantropologia.

 

6. A questão do fogo e o advento da termodinâmica

 

Na aurora da filosofia, o cosmos é pensado como identidade e como equilíbrio. Nesta oposição, posta como princípio, entre o equilíbrio da origem ontológica e o desequilíbrio dos seres corruptíveis, a técnica, que constitui a condição organológica, é reportada ao sublunar, enquanto mundo da contingência e «do que pode ser diferente daquilo que é» (to endekhomenon allôs ekhein) e que, como tal, se encontra excluído do pensamento.

 

Ora, o Antropoceno torna esta posição insustentável e constitui, em consequência, uma crise epistémica de uma amplitude jamais igualada: o advento da máquina termodinâmica que faz aparecer o mundo humano como uma perturbação fundamental (37), inscreve a processualidade, a irreversibilidade do devir e a instabilidade dos equilíbrios no seio da própria física. Todos os princípios do pensamento, bem como da acção, são assim transformados.

 

A máquina termodinâmica, que coloca na física o problema específico e novo da dissipação da energia, é também o objecto técnico industrial que perturba fundamentalmente as organizações sociais, alterando por isso mesmo radicalmente a «compreensão que o ser-aí tem do seu ser» (38) e instaurando a era daquilo a que chamamos a «tecnociência». Tal que ela consiste essencialmente numa combustão, este objecto técnico, cujo governador centrífugo será o elemento fundamental no cerne da concepção cibernética, introduz a questão do fogo e da sua farmacologia, tanto no plano da astrofísica (que substitui a cosmologia) como no plano da ecologia humana.

 

A questão do fogo, ou seja, da combustão, inscreve-se assim, ao mesmo tempo, do ponto de vista da física e do ponto de vista da ecologia antropológica, no cerne de um pensamento renovado do cosmos enquanto cosmos [para lá da «cosmologia racional» tal como é ainda pensada por Kant» (39)]; a época do Antropoceno não pode aparecer como tal senão a partir do momento em que a questão do cosmos se torna a questão da combustão, em termodinâmica como em astrofísica – e em relação, via máquina a vapor, com esse pharmakon eminente que é o fogo doméstico, como artifício por excelência que Prometeu trás aos mortais, sobre o qual vela Héstia (40).

 

Como problema físico, a conquista tecno-lógica do fogo (41) coloca a antropogénese – isto é, a organogénese organológica e não apenas orgânica – no cerne do que Alfred N. Whitehead chama de concrescência ecomo tecnicização local do cosmos. Esta tecnicização local é relativa, mas conduz a conceber o cosmos em totalidade a partir desta posição e a partir da abertura local da questão do fogo como pharmakon de que é preciso cuidar – donde a questão da energia (e da energeia) que o fogo contém (que é também a luz), colocada a partir da revolução organológica e epistemológica da termodinâmica reconsiderada por Erwin Schrödinger, constitui a matriz do pensamento da vida, tanto como da informação, e como jogo da entropia e da neguentropia.

 

Instalando a questão da entropia e da neguentropia entre os homens como o problema crucial da sua vida quotidiana, assim como da vida em geral, e, finalmente, do universo na sua totalidade para toda a forma de vida, a técnica constitui a matriz de todo o pensamento do oikos, do habitat e da sua lei. Deste ponto de vista, não será impressionante que, no preciso momento em que Schrödinger profere, em Dublin, as conferências que estão na origem de Qu’est-ce que la vie?, Canguilhem afirme que a alma noética é uma forma de vida técnica que requer novas condições de fidelidade para superar os choques de infidelidade que provoca aquilo a que chamámos o duplo redobramento epokhal (42)?

 

7. O Antropoceno como sucessão de choques tecnológicos e o papel neguentrópico do saber

 

Aquilo que Canguilhem descreve como a infidelidade do meio técnico (43), é o que é experimentado como choque tecnológico epokhal pelos seres organológicos e farmacológicos que nós somos enquanto indivíduos noéticos – isto é, intelectuais e espirituais. Este choque e esta infidelidade são aquilo que procede daquilo a que Simondon chama o desfasamento do indivíduo. Este desfasamento do individuo em relação a si mesmo é o princípio dinâmico da individuação.

 

Desenvolvemos o conceito de «duplo redobramento epokhal» para tentar descrever como um choque começa por destruir os circuitos de transindividuação estabelecidos, saídos de um choque precedente, para depois dar lugar à geração de novos circuitos de transindividuação (44) que constituem os novos saberes saídos do último choque. Uma epokhé tecno-lógica é aquilo que quebra os automatismos constituídos, socializados e capazes de produzir as suas desautomatizões pelos saberes apropriados: a suspensão dos automatismos socializados [que alimentam a besteira (“bétise”) sob as suas formas variadas] faz-se pela instalação de novos automatismos, associais, do que resulta o segundo tempo de choque (como segundo redobramento) produzido por novas capacidades de desautomatização, isto é, de neguentropia, alimentadora de novas organizações sociais.

 

O saber procede sempre de um tal duplo choque – enquanto a besteira (“bétise”) é sempre o que procede da automaticidade. Relembremos aqui o que Canguilhem afirma, em princípio, quanto ao sentido mais-que-biológico da episteme: o conhecimento da vida é uma forma específica da vida, concebida não apenas como biologia, mas como conhecimento dos meios, sistemas e processos de individuação, onde o conhecimento é a condição e o futuro da vida exposta aos choques em retorno das suas produções técnicas vitais (das produções organogenéticas que ela segrega para compensar o seu defeito de origem).

 

O conhecimento é o que se constitui como saberes terapêuticos partilhados dos pharmaka em que consistem os órgãos artificiais assim segregados. Ele é, desde logo, social e se transindividua sempre, mais ou menos, em organizações sociais. Conhecimento dos pharmaka ele é também conhecimento pelos pharmaka: ele é organologicamente constituído, de ponta a ponta, originariamente exteriorizado, mas também interiorizado – sem o que não seria conhecimento, mas simples informação. É, por isso, que ele não se dilui na «cognição»: as ciências que são uma forma cognição são incapazes a pensar (ou seja, de se pensar).

 

Devemos reportar a função organo-lógica do conhecimento, tal como a compreendemos a partir de Canguilhem, e como necessitada pela forma técnica da vida, ao que diz Simondon do conhecimento da individuação: conhecer a individuação é individuar, isto é, é já não mais a conhecer, porque é desfazá-la.

 

O conhecimento como saber que condiciona a individuação, tanto psíquica, como colectiva de quem sabe, «vem sempre demasiado tarde», como diz Hegel, o que supõe que ele não é autossuficiente: supõe saberes-viver e saberes-fazer que o ultrapassam sempre e são, eles próprios, sempre ultrapassados pela individuação técnica que engendra os choques tecnológicos constitutivos das épocas dos saberes.

 

Ao socializar-se, o conhecimento aumenta a complexidade das sociedades que o individuam e isso pertence ao que Whitehead chama a concrescência do cosmos, ele mesmo concebido como processo cósmico que engendra processos de individuação onde se articulam, de cada vez diferentemente, as tendências entrópicas e neguentrópicas.

 

Na época do Antropoceno, de onde se trata de sair o mais rapidamente possível, as questões da vida e da neguentropia, provindas de Darwin e de Schrödinger, devem ser requalificadas do ponto de vista organológico aqui defendido, que é de modo que:

 

1. a seleção natural dá lugar á seleção artificial

2. a passagem do orgânico ao organológico desloca o jogo da entropia e da neguentropia (45).

 

A técnica é uma acentuação da neguentropia. É um factor de diferenciação acrescida: é a «prossecução da vida por outros meios diferentes da vida» (46). Mas é, ao mesmo tempo, uma aceleração da entropia, não só porque é sempre, de algum modo, um processo de combustão e de dissipação de energia, mas porque a padronização industrial parece conduzir o Antropoceno contemporâneo à possibilidade da destruição da vida como florescimento e proliferação das diferenças – como biodiversidade, sociodiversidade («diversidade cultural») e psico-diversidade das singularidades engendradas, por defeito, como individuações psíquicas, mas também colectivas.

 

A destruição da sociodiversidade resulta dos curto-circuitos dos processos de transindividuação impostos pela padronização industrial. Veremos, na conclusão desta obra, que a antropologia compreendida como entropologia é o problema que Claude Lévi-Strauss encontra se chegar a pensá-lo – sem chegar a colocá-lo como questão da neguentropia, ou seja, como nova época do saber, incarnando a tarefa da entrada no Negantropoceno. É o que conduz Lévi-Strauss a desertar a dimensão política de toda a antropologia.

 

O Antropoceno é uma época organológica singular, na medida em que é ela própria que engendra a questão organológica. É assim que ela é retroactivamente constituída pelo seu próprio reconhecimento, onde a questão que suscita o Antropoceno é a da saída do Antropoceno, enquanto período tóxico, para entrar no Negantropoceno como época curativa e terapêutica – ecónoma, neste sentido. Isto significa praticamente que no Negantropoceno e no plano económico, a acumulação de valor deve fazer-se exclusivamente em função de investimentos que diríamos neguentrópicos.

 

Chamamos neguentrópica à actividade humana que é explícita e imperativamente governada – através de processos de transindividuação que ela põe em acção, resultantes de criteriologias estabelecidas por dispositivos retencionais – por critérios neguentrópicos. A neguentropização do mundo rompe com a antropização movida pela incúria dos seus efeitos entrópicos – isto é, no essencial, característicos do Antropoceno. Uma ruptura desta ordem supõe a superação da antropologia tal como Lévi-Strauss a concebia, por uma Negantropologia ainda inteiramente por elaborar.

 

A questão do Antropoceno, que comporta a sua própria superação, e que tem a estrutura de uma promessa, emerge no momento em que se instaura, por outro lado, a automatização integral e generalizada provocada pela indústria dos rastos digitais reticulares, que só por si própria parece tornar essa promessa insustentável. Resistir, para honrar esta promessa, é precisamente honrá-la a partir das possibilidades neguentrópicas abertas pela automatização: é pensar esta indústria da reticulação como uma nova época do trabalho, como o fim da época do emprego, que a automatização integral e generalizada compromete para sempre, e como «transvaloração» do valor onde

 

«o tempo de trabalho cessa e deve cessar de ser [a] medida [do trabalho] e [onde] o valor de troca deixa também portanto de ser a medida do valor de uso (47),

 

- onde o valor do valor se torna a neguentropia. Só assim a passagem do Antropoceno ao Negantropoceno pode e deve cumprir-se.

 

8. A smartificação

 

A partir de 1993, instala-se um novo sistema técnico planetário. Baseia-se na retenção terciária digital e constitui a infraestrutura de uma sociedade automática que aí vem. Dizem-nos que a economia dos data que parece concretizar-se como dinâmica económica engendrada por esta infraestrutura é o destino desta sociedade automática que está a chegar.

 

Mostraremos, porém, que o «destino» desta sociedade do hipercontrolo não tem destinação: não conduz senão ao niilismo, isto é, à negação do próprio saber. E veremos, em primeiro lugar, com Jonathan Crary e depois com Thomas Berns e Antoinette Rouvroy porque razão esta sociedade automática que aí vem não constituirá um futuro – isto é, um destino em que a destinação neguentrópica é o Negantropoceno – senão sob a condição de ultrapassar esta «economia dos data» que é, na realidade, a deseconomia de uma «dissociedade» (48).

 

O actual sistema de exploração industrial dos rastos modelizados e digitalizados (49) precipita a catástrofe entrópica que é o Antropoceno como destino que não conduz a parte alguma. Como capitalismo 24/7 (50) e governamentalidade algorítmica, ele é colocado hegemonicamente ao serviço de um funcionamento híper-entrópico que acelera a destruição consumista do mundo, instalando uma insolvabilidade estrutural insustentável baseada numa estupefação generalizada e numa funcional stupidity, destruidora das capacidades negantropológicas que existem nos saberes. Diferentemente das simples competências, que não sabem o que fazem, um saber é um factor cósmico intrinsecamente neguentrópico.

 

Temos a intenção de mostrar nesta obra que a infraestrutura digital reticulada que suporta a economia dos data, cujo advento ocorrido em 1993 com a World Wide Web constitui a última época do Antropoceno, pode e deve ser substituída por uma infraestrutura neguentrópica fundada numa tecnologia digital hermenêutica, posta a serviço da desautomatização, isto é, baseada sobre o investimento colectivo dos ganhos de produtividade, provindos da automatização, numa cultura do saber fazer, saber viver e saber conceber, enquanto estes são, por essência, neguentrópicos e, enquanto tais, produtores de um novo valor, capaz de instaurar uma nova era de solvabilidade a que chamamos Neguentrópica.

 

A infraestrutura actual evolui a passos largos para uma sociedade do hipercontrolo, fundada nos equipamentos móveis, como o smartphone, os equipamentos domésticos, como a televisão conectada, os habitats, como a smart house e smart city e os equipamentos de transporte, tais como o automóvel conectado.

 

Michael Price mostrou, em 30 de outubro de 2014, que a televisão conectada é um instrumento de espionagem automático dos indivíduos:

 

«Acabo de comprar um novo televisor (…), sou agora proprietário de um novo televisor “inteligente” (…). O único problema é que, agora, tenho medo de utilizá-lo. A quantidade de dados que um aparelho desta espécie pode recolher é verdadeiramente estupeficante. Ele regista onde, quando, como e durante quanto tempo o utilizador o usa. Define os cookies e as balizas de sequência, com vista a detectar “quando você vê este ou aquele conteúdo ou esta ou aquela mensagem electrónica”. Ele regista as “aplicações que você utiliza os sítios que visita, o modo como interage com este ou aquele conteúdo”. Ignora a função de “não rastrear”, que considera ser uma questão política. Dispõe igualmente de uma câmara integrada de reconhecimento facial. A finalidade é a de conferir ao  televisor um “controlo gestual” com vista de permitir a vossa conexão a uma conta personalizada utilizando o vosso rosto» (51).

 

Que se passará com o novo vestuário conectado que, neste momento começa a surgir mercado (52)?

 

Jerémie Zimmermann sublinha, por outro lado, em entrevista que concedeu à Philosophie Magazine em setembro de 2013, que o smartphone provocou uma verdadeira mutação no hardware da infraestrutura digital, visto que o funcionamento deste computador de bolso, diferentemente do personal computer, de escritório ou portátil, deixou de ser acessível ao seu proprietário:

 

«Os PC, que se tornaram acessíveis ao grande público nos anos 1980, eram inteiramente compreensíveis e programáveis pelos seus utilizadores. Não é caso dos computadores móveis, que são concebidos do modo a interditar o acesso do seu utilizador a um certo numero de funcionalidades e de escolhas. O problema maior reside no chip chamado baseband que se encontra no cerne do aparelho. Todas as vossas comunicações com o exterior – conversas telefónicas, SMS, e-mails, dados – transitam por este chip. Estes chips baseband são cada vez mais fundidos no próprio interior do microprocessador e fazem corpo com o chip principal do computador móvel. Ora, as especificações de nenhum destes chips são disponibilizadas, de tal modo que não se sabe o que fazem nem são controláveis. Inversamente, é potencialmente possível ao fabricante ou ao operador ter acesso, por via destes chips, ao vosso computador» (53).

 

Por seu turno, o físico Stephen Hawking assinava, conjuntamente com Stuart Russel, Max Tegmark e Frank Wilczeck, uma tribuna no jornal The Independent no 1.º de maio de 2014, onde se afirmava que

 

«A inteligência artificial pode transformar a nossa economia, tanto para a enriquecer, como para a destruir.»

 

Eles observavam que se temos, sem dúvida, tendência a pensar que

 

«perante as suas vantagens e os seus riscos, possíveis e incalculáveis, os peritos estão, sem dúvida, em vias de fazer os possíveis para garantir os melhores resultados»

 

estamos muito enganados. Os autores convidam-nos a tomar a medida daquilo que está em jogo, dirigindo-nos a seguinte questão:

 

«Se uma civilização extraterrestre superior nos enviasse uma mensagem dizendo “Chegaremos dentro de alguns decénios”, contentar-nos-íamos em responder simplesmente: “De acordo, avisem da vossa chegada - vamos deixar as luzes acesas?” Certamente que não. Ora, é mais ou menos isso o que se passa com a inteligência artificial.»

 

Eles sublinham deste modo que aquilo que está em jogo é demasiado grave para não ser colocado prioritariamente, com toda a urgência, no cerne de toda a investigação:

 

«Embora estejamos confrontados com o que pode constituir a melhor ou a pior das coisas que tenha acontecido à humanidade no curso da sua história, pouca investigação é consagrada a estas questões, fora dos institutos sem fins lucrativos.»

 

Referindo-se aos trabalhos de Tim O’ Reilly, Evgeny Morozov fala de uma smartificação baseada numa regulamentação algorítmica que constitui um novo tipo de governança fundado na cibernética, a qual é, antes do mais, a ciência do governo, como recorda Morozov (54) – eu próprio tentei mostrar que ela constitui, de algum modo, por provisão, o horizonte de A República de Platão (55).

 

Morozov oferece a seguinte citação de O’Reilly:

 

«Sabeis que a publicidade se revelou ser o modelo de negócio de base da Internet? Penso que os seguros vão ser o modelo de base de origem para a Internet das coisas (“Internet of things”).»

 

A ideia central de Morozov é que, na organização actual da sua recolha, da sua exploração e das suas restituições, aquilo a que chamamos aqui a retenção terciária digital repousa sobre a eliminação estrutural dos conflitos, dos desacordos e das controvérsias:

 

«A regulamentação algorítmica oferece-nos uma boa velha utopia tecnocrática da política sem politica. O desacordo e o conflito, segundo este modelo, são considerados como subprodutos infelizes da era analógica – a eliminar pela colecta dos dados – e não como consequências inevitáveis dos conflitos económicos e ideológicos.»

 

Veremos como Thomas Berns e Antoinette Rouvroy analisaram, numa perspectiva muito comparável, aquilo que ele próprios designam, por referência a Michel Foucault, por governamentalidade algorítmica – onde o business das seguradoras e uma nova concepção da medicina baseada sobre o programa transhumanista, tem igualmente por finalidade «hackear» (isto é reprogramar), não apenas do Estado, mas o próprio corpo humano (56): a Google, que sustenta, com a NASA, a Universidade da Singularidade, investe massivamente nas tecnologias digitais médicas fundadas sobre o cálculo intensivo aplicado aos dados genéticos e epigenéticos, com uma finalidade explicitamente eugenista (57).

 

9. A finalidade da presente obra

 

Morozov sublinha que os activistas da Net que tomaram consciência da toxidade da sua «coisa» são, todavia, manipulados e recuperados pela «regulação algorítmica» através de organizações de fins não lucrativos que têm por finalidade «reprogramar o Estado»:

 

«O lobby da regulação algorítmica avança de forma mais clandestina. Cria organizações de fim não lucrativo, de ar inocente, como «Code for América» que, de seguida, põem o Estado ao seu serviço, a pretexto recrutar hackers talentosos para a solução de problemas cívicos.

Estas iniciativas visam reprogramar o Estado, torná-lo aberto ao retorno de experimentações, e a eliminar qualquer outro meio de fazer política.»

 

Morozov apela à elaboração de uma nova política em matéria de tecnologia – em que esta última seja posta ao serviço de uma política de esquerda.

 

«Enquanto a maior parte dos criadores da Internet deplora a forma como a sua criatura caiu tão baixo, a sua cólera é mal orientada. O defeito não é desta entidade amorfa, mas da falta de uma política de esquerda em matéria de tecnologia» (Sublinhado meu, B.S.).

 

Estamos inteiramente de acordo com esta análise. O objectivo desta obra é o de estabelecer uma tal política através de dois volumes consagrados a um futuro neguentrópico do trabalho e do saber como condição de entrada no Negantropoceno – onde se trata também de reconceber as arquitecturas digitais e em particular a da Web, com vista a uma hermenêutica digital que volte a dar às controvérsias e aos conflitos de interpretação o seu valor neguentrópico, e constituindo, nesta base, uma economia do trabalho e do saber fundada na intermitência, que deverá tomar por modelo o regime dos intermitentes do espectáculo.

 

 

 

 

 

(*) Bernard Stiegler (n. 1952) é um filósofo e académico francês, atualmente diretor do Departamento de Desenvolvimento Cultural do Centro Pompidou, depois de uma já larga carreira de direcção de institutos culturais públicos. Figura de proa dentro da tradição da pensée française, éprovavelmente o principal responsável pelo seu ressurgimento atual. É animador de um grupo de reflexão política intitulado Ars Industrialis, diretor do Institut de Recherche et d’Innovation e fundador da escola de filosofia Pharmakon.fr em Épineuil-le-Fleuriel. É autor de uma já vasta bibliografia, publicada a partir de meados dos anos 1990, com destaque para La Technique et le Temps (3 vols., 1994-2001), De la Misère Symbolique (2 vols., 2004), Mécréance et Discrédit (3 vols., 2004-2006), Constituer l’Europe (2 vols., 2005). Prendre soin, 1. De la jeunesse et des générations (2006), La Télécratie contre la démocratie – Lettre ouverte aux représentants politiques (2006), Pour une nouvelle critique de l'économie politique (2009), Ce qui fait que la vie vaut la peine d'être vécue. De la pharmacologie (2010), États de choc: Bêtise et savoir au XXIe siècle (2012), Pharmacologie du Front national, suivi de Vocabulaire d’Ars Industrialis (2013). O texto que aqui publicamos constituii o capítulo introdutório do seu livro La Société automatique. 1 L’Avenir du Travail, Fayard, Paris, 2015. É possível entrever a versão em língua original deste capítulo, em formato kindle, em amazon.fr. A tradução é, como habitualmente em textos deste autor, de João Esteves da Silva. O Comuneiro partilha generalizadamente as preocupações e aspirações societais expressas por Bernard Stiegler - mesmo não acompanhando toda a sua intrincada conceptualização – diferindo contudo nos meios e nos protagonistas eleitos para as transformações a realizar.

 

 

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NOTAS:

 

(1) Frédéric Kaplan, «Quand les mots valent de l’or. Vers le capitalisme linguistique», Le Monde diplomatique, novembro de 2011.

 

(2) Chris Anderson, «The End of Theory: The Data Deluge Makes Scientific Method Obsolete». Wired, 23 de junho de 2008.

 

(3) Que se designam então pela expressão Data Deluge.

 

(4) Cf. «Greenspan Testimony on Sources of Financial Crises», The Wall Street Journal, 23 de outubro de 2008.

 

(5) «Foi atribuído um prémio Nobel pela descoberta do modelo de tarificação que subtende uma grande parte dos avanços sobre o mercado dos produtos derivados», declarou Greenspan.

 

(6) Kevin Kelly, «On Chris Anderson’s The End of Theory», Edge. The Reality Club, 30 de junho de 2008.

 

(7) Nassim Nicholas Taleb, Le Cygne Noir. La Puissance de ‘imprévisile’. Les Belles Lettres, 2008.

 

(8) [NOTA DO TRADUTOR] Trata-se de uma expressão idiomática francesa que significa: com hipóteses, tudo é possível.

 

(9) «Paraísos fiscais, sociedades offshore, corrupção, traficância… Os responsáveis políticos bem podem querer reformar e moralizar o sistema económico e financeiro, o sistema globalizado acomoda-se muito bem com comportamentos “mafiosos”. Porque razão as relações e formas de porosidade entre a economia “sadia” e as máfias se desenvolvem? Como é que a máfia atravessa todas as formas de instituição? Não será ela finalmente inerente ao capitalismo». Nathalie Brafman, «Mafia, stade avancé du capitalisme?», Le Monde, 15 de maio de 2010.

 

(10) Compromisso «fordo-keynesiano» que repousava ele mesmo sobre a pilhagem dos países do Sul (o que os seus defensores esquecem geralmente de mencionar) e que havia conduzido aos limites postos em evidência pelo relatório Meadows – The Limits to Growth - publicado em 1972 por quatro investigadores do MIT, Donella Meadows, Dennis Meadows, Jorgen Randers e William W. Behrens. A pilhagem do Sul havia conduzido ao esgotamento dos recursos. Em França, René Passet descrevia precisamente o crescimento das externalidades negativas, o que nos nossos dias se aparenta aos efeitos hiperexponenciais do Antropoceno, destruindo a economia libidinal.

 

(11) Max Weber, L'éthique protestante et l'esprit du capitalisme. Pocket col. «Agora». 1989.

 

(12) Sobre esta questão, cf. Bernard Stiegler, Mécreance et Discrédit 1. La décadence des démocraties industrielles, Galilée, 2004.

 

(13) Paolo Vignola, L’ attenzione altrove. Sintomatologie di quel che ci accade, Orthotes Edtitrice, 2013.

 

(14) O Instituto de Investigação e Inovação (Institut de Recherche et Inovation, IRI) explorou esta tese, em dezembro de 2013, no curso de Conversas sobre o novo mundo, do Centre Pompidou, em particular com Marc Giget e Michel Volle. Mais adiante, regressarei a este tema.

 

(15) France Stratégie, Quelle France dans dix ans? Les chantiers de la décennie, Relatório apresentado ao Presidente da República, junho de 2014, p. 36. «O defeito de um objectivo formulado em termos absolutos é o de não ter em conta a situação económica global e europeia. O raciocínio em termos relativos evita este escolho. Neste espírito, podemos ambicionar regressar de modo duradouro ao primeiro terço dos países europeus, em matéria de emprego. Sabendo que nos situamos hoje na mediania do segundo terço e que, há alguns anos, já nos situámos no terceiro terço, o que seria uma melhoria muito substancial».

 

(16) Ibidem, p. 35.

 

(17) Jean Pisani-Ferry foi nomeado comissário geral de France Stratégie no dia 1 de maio de 2013.

 

(18) France Stratégie, op. cit., pág. 35.

 

(19) Carl Benedikt Frey e Michael A. Osborne, The future of employment: How susceptible are jobs to computerisation?

 

(20) «Você será provavelmente substituído por um robot em 2025», 10 de outubro de 2014, Programa na BFMTV.

 

(21) «Les robots vont-ils tuer la classe moyenne?», Le Journal du Dimanche. 26 de outubro de 2014.

 

(22) BFM Business «sublinha que os ganhos de produtividade gerados pela mecanização destas tarefas fariam ganhar 50 biliões de euros de receitas fiscais e de economias orçamentais e gerariam o mesmo montante o mesmo montante de investimento privado, mostra ainda o estudo. As empresas desembolsariam também 60 biliões de euros para se equiparem com as máquinas empregadas, pelo que 13 biliões de poder de compra seriam, deste modo libertados, sob forma de dividendos ou de baixas de preço. Mas, a longo prazo, a população seria ameaçada de inactividade». Ibidem.

 

(23) Para uma reconstituição histórica e uma análise crítica do conceito de Antropoceno, devemos reportarmo-nos à obra de Christophe Bonneuil e Jean-Baptiste Fresson, L’événement Anthopocène, le Seuil, 2013.

 

(24) Retomamos assim o título do livro de Dominique Meda e Patrícia Vendramin, Reinventer le travail, PUF, col. «Le lien social», 2013.

 

(25) Cf. Bernard Stiegler, Mécreance et Discrédit 1, op. cit., § 23 e 32.

 

(26) apud. Christophe Bonneuil e Jean-Baptiste Fressoz, L’événement Anthopocène, op. cit., pág. 52.

 

(27) É o que Bonneuil e Fresson põem em evidência no seu livro (cf. Ibidem, págs. 68 e 92) e veremos porquê na Société automatique 2. L’Avenir du travail (segundo tomo de presente volume a aparecer em finais de 2015, na Fayard). Digamos, para resumir, que eles mostram que, desde o começo do Antropoceno, as consequências da antropização industrial suscitam questões. Mas isto é censurado pelos actores económicos e políticos que usam todos os seus poderes – designadamente o lobbying e o controlo da imprensa, etc. - para contrariar esta tomada de consciência. Bonneuil e Fressoz mostram que, hoje, inúmeros cientistas e filósofos são cúmplices desta dissimulação da dimensão primordialmente política do Antropoceno.

 

(28) Bonneuil e Fressoz, que relatam a «grande narrativa» da história da industrialização, criticam em seguida a sua simplificação ideológica.

 

(29) Cf. Bernard Stiegler, Ce qui fait que la vie vaut la peine d’être vécue. De la pharmacologie, Flammarion, 2010.

 

(30) «Organologie» in Vocabulaire d’Ars Industrialis, em Bernard Stiegler. Pharmacologie du front national, suivi du Vocabulaire d’Ars Industrialis, por Victor Petit, Flammarion, 2013.

 

(31) Bonneuil e Fressoz, L’événement Anthropocène, op. cit., pág. 83. Os «antropocenólogos» dividem o Antropoceno em três etapas: a revolução industrial, o período que de segue à segunda guerra mundial, dito «a grande aceleração» e o período da tematização do Antropoceno como tal (cf. págs. 66-69). Bonneil e Fressoz discutem estas análises e contestam-nas, por vezes, para as politizar, fazendo assim do Antropoceno um acontecimento propriamente histórico, ou seja, político. Propõem uma outra abordagem em termos de Termoceno (“Thermocène”), Tanatoceno (“Thanatocène”), Fagoceno (“Phagocène”), Fronoceno (“Phronocène”) e Polemoceno (“Polémocène”).

 

(32) Face ao que Bonneuil e Fressoz chamam o Thanatocène – Cf. L’événement Anthopocène, op. cit., pág. 141.

 

(33) E Leroi-Gourhan extraía já daí a consequência sublinhada por Bonneuil e Fressoz, a saber, de que não há unidade da espécie humana. Cf. O exórdio supra do L’événement Anthopocène, op. cit., pág. 89.

 

(34) Erwin Schrödinger, Qu’est ce que la vie? [1941], Le Seuil, col. «Points Sciences», 1993, pág. 170.

 

(35) Francis Bailly e Guiuseppe Longo, «Organization biologique et entropie negative, à partir des réflexions de Schrodinger».

 

(36) Mas esta não adquire o seu sentido antes de ser acompanhada pela gramatização dos saber fazer, que conduz ao que Marx chama automatização nos Grudrisse.

 

(37) Que é a realidade daquilo a que Heidegger chama a Ereignis da «técnica moderna», ou seja, da revolução industrial, do «cálculo do calculável» e do seu Gestell, do seu arrazoamento (Cf. Heidegger, Questions I em Questions I e II, Gallimard, col. «Tel», 1990. Ora, é precisamente isto o que Heidegger não chega a pensar.

 

(38) É assim que Heidegger qualifica o Dasein, isto é, «o estando que somos nos próprios»; é o estando que tem uma compreensão de si mesmo e cuja compreensão, que muda com o tempo (que é gechichtlich, historial) e que, como essa mudança constante, o põe em questão – este ser em questão governa todas os seus modos de ser, inclusive como recusa de «se colocar questões».

 

(39) A cosmologia racional de Kant (Cf. Critique de la raison pure, PUF, 2004) é precisamente o que não pode ter em conta a questão organológica do artefacto, que está no cerne do Antropoceno, como factor simultaneamente entrópico e neguentrópico. Veremos que a tomada em conta da questão organológica, que é também a questão farmacológica, supõe a crítica do esquematismo kantiano.

 

(40) Sobre este assunto, cf. os cursos pharmakon.fr de 10 e 17 de novembro de 2012.  

 

(41) Que seria o verdadeiro Ereignis do que Heidegger chama o Gestell – mas esse não é o ponto de vista do próprio Heidegger. No «segundo Heidegger», o Ereignis designa um acontecimento a que ele chama «uma viragem» (Kehre) na «história do ser» que se caracteriza pela «instalação» do que ele chama de Gestell (literalmente «instalação») que é a «situação» que provém da «técnica moderna», que ele caracteriza fundamentalmente pelo domínio da cibernética.

 

(42) A noção epokhé é exposta, por diversas vezes, nas minhas obras anteriores. Regressarei a este tema no parágrafo seguinte e infra na sequência do texto.

 

(43) Sobre este tema, cf. George Canguilhem, Le Normal et le Pathologique, PUF, 1996 e o meu comentário em Ce qui fait que la vie vaut la peine d’être vécue. De la pharmacologie, op. cit..

 

(44) Sobre a transindividuação e transindividual, ler Gilbert Simondon, Individuation psychique et colective, Aubier e Bernard Stiegler, La Télecratie contre la Démocratie, Flammarion, 2007, pág. 120 e seguintes.

 

(45) O que não pode deixar de afectar radicalmente a ciência ecológica, e não apenas a política ecológica, mas inscrevendo a política no próprio cerne da ciência deste ser vivo que negoceia com o não-vivo organizado e com as organizações que dele resultam.

 

(46) É o ponto de vista que defendi em La Technique et le Temps 1. La faute de Epiméthée, op. cit., pág. 146.

 

(47) Karl Marx, Grundrisse [der Kritik der politischen Ökonomie] II; Fondements de la critique de l’économie politique, Anthropos, 1968, p. 221.

 

(48) Jacques Généreux, La Dissocieté, le Seuil, 2006, edição revista e aumentada. Seuil col. Points, 2013.

 

(49) O conceito de M-rastos, ou traços modelizados, está no centro da informática teórica contemporânea. Foi particularmente desenvolvido por Alain Mille (CNRS-Liris, Universidade de Lyon) e por Yannick Prié (LINA, Universidade de Nantes). Foi objecto de uma publicação: «De la Trace à la connaissance à l’ère du Web», MSH Paris-Nord, na revista Intellectica, nº 59, 2013.

 

(50) [NOTA DO TRADUTOR] O autor refere-se aqui ao livro de Jonathan Crary, 24/7: Late capitalism and the Ends of Sleep, Verso Books, 2013. A expressão refere-se a uma vivência imposta do capitalismo que se estende 24 horas por dia, 7 dias por semana, com invasão, captura e mercantilização dos espaços de intimidade, incluindo o próprio sono.

 

(51) Michael Price, «I’m terrified of my new TV: Why I’m scared to turn this thing on — and you’d be, too».

 

(52) Christophe Alix, «Des tee-shirts connectés franco-japonais à la fibre sportive», Libération, 7 de dezembro de 2014.

 

(53) Jerémie Zimmermann, «La surveillance est massive et généralisée», entrevista publicada na Philosophie Magazine de 19 de setembro de 2013.

 

(54) Evgeny Morozov, «La prise de pouvoir des données et la mort de la politique», artigo publicado em The Observer, traduzido por Guy Weet e republicado por Paul Jorion no seu blogue.

 

(55) Cf. os cursos pharmakon.fr dos anos 2012-2013 e 2013-2014.

 

(56) Jean-Christophe Féraud e Lucile Morin, «Transhumanisme: un corps pièces et main d'oeuvre», Libération, 7 de dezembro de 2014.

 

(57) «A sociedade 23andme (...). filial da Google, dirigida pela mulher de Sergey Brin, depositou o brevet de um método que permitiria fabricar «bebés à la carte», graças à seleção das gametas de doadores de óvulos e de esperma, o que provocou a indignação dos bioéticos. Esta «startup» continuou, no entanto, a propor aos seus clientes o seu serviço de análise genética familiar, por 99 dólares (80 euros), com base numa amostra de saliva». Jean-Christophe Féraud e Lucile Morin, «Transhumanisme: un corps pièces et main d'oeuvre», artigo citado.