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Os fortificantes bens comuns
George Monbiot (*)
Num primeiro momento, os amiguinhos do poder nos disseram que o capitalismo global era uma força dinâmica e disruptora, a fonte de constante inovação e mudança. Logo depois, afirmaram que ele teria trazido o fim da história (1): estabilidade e paz permanentes. Não houve nenhuma tentativa de resolver esta contradição. E nem qualquer outra.
Prometeram crescimento sem fim em um planeta finito. Disseram que um sistema de vasta desigualdade eliminaria todas as diferenças. A paz social seria oferecida por um sistema baseado em competição e cobiça. A democracia seria assegurada pela força do dinheiro. As contradições eram óbvias. Todo o pacote baseava-se em magia.
Já que nada disso funciona, não há uma normalidade para a qual retornar. As medidas keynesianas propostas por Jeremy Corbin e Bernie Sanders – em um mundo que se defronta com seus limites ambientais e com a eliminação maciça de empregos (2) – são tão irrelevantes no século XXI quanto as prescrições neoliberais (3) que causaram a crise financeira.
Em seu brilhante e incendiário novo livro, Age of Anger, Pankaj Mishra explica as atuais crises como novas manifestações de uma longa ruptura que vem dilacerando a sociedade há duzentos anos ou mais. As histórias falseadas da Europa nos levaram a esquecer que a balbúrdia, a carnificina, as guerras civis e internacionais, os massacres coloniais e ultramarinos (4), o racismo e o genocídio foram as normas deste período e não exceções.
Agora, como o capitalismo industrial está globalizado, o resto do mundo enfrenta as mesmas forças de ruptura. Elas destroem as velhas formas de autoridade enquanto prometem liberdade universal, autonomia e prosperidade. Tais promessas chocam-se com as imensas desigualdades em termos de poder, status e propriedade. O resultado é a disseminação global dos males da Europa do século XIX, como a humilhação, a cobiça e a sensação de impotência. Expectativas frustradas, ódio e aversão a si mesmo têm gerado apoio a movimentos tão diversos como o ISIS, o nacionalismo hindu ressurgente e a demagogia agressiva na Inglaterra, E.U.A., França e Hungria.
Como nós respondemos a estas crises? Raymond Williams disse que “ser verdadeiramente radical é tornar a esperança possível, em vez de tornar o desespero convincente” (5). Eu sei que tornei o desespero bastante convincente ao longo das últimas semanas (6). Portanto, esta coluna é a primeira de uma série cujo propósito é promover novas abordagens à política, economia e mudança social. Não é possível recuar, não há conforto nas antigas certezas. Nós devemos repensar o mundo a partir de princípios fundamentais.
Eu poderia começar a partir de muitos pontos, mas o que me parece mais óbvio é o seguinte. O mercado, por si só, não pode atender às nossas necessidades, nem tampouco o Estado. Ambos, ao extirpar o sentimento de pertença, ajudam a alimentar a alienação, o ódio e a anomia que geram o extremismo. Ao longo dos últimos duzentos anos, um elemento tem estado ausente de maneira conspícua das ideologias dominantes, algo que não é nem mercado e nem Estado: os bens comuns.
Um bem comum é um recurso sobre o qual uma comunidade tem direitos iguais e compartilhados. Em princípio, esta noção poderia incluir a terra, a água, os minerais, o conhecimento, a pesquisa científica e os programas informáticos (“software”). Mas, neste momento, a maior parte destes recursos foi vedada (7). Estes bens foram tomados, tanto pelo Estado quanto pelos interesses privados, e tratados como qualquer outra forma de capital. Através desta vedação, nós temos sido privados da nossa riqueza comum.
Alguns bens comuns ainda existem. Eles vão desde florestas comunitárias no Nepal e na Romênia até as pescarias de lagostas no Maine (E.U.A.), pastagens na África Oriental e na Suíça, a internet, a Wikipédia, o Linux, os periódicos publicados pela Public Library of Science (8), o banco de tempo de Helsínquia (9), moedas locais e a microscopia de código aberto. Mas estas são exceções à regra geral de propriedade privada e exclusiva.
Em seu livro Land, o organizador comunitário Martin Adams nos estimula a enxergar a terra como algo que um dia pertenceu a todos e a ninguém e, no entanto, foi adquirida por uma minoria que exclui as demais pessoas de usufruí-la. Ele propõe que aqueles que utilizam a terra de maneira exclusiva devam pagar uma “contribuição comunitária pela terra” como forma de compensação. Isto, em parte, poderia substituir o imposto sobre o rendimento e as transações, evitar a concentração fundiária e reduzir os preços da terra. A receita obtida poderia ajudar a financiar uma renda básica universal. Finalmente estaríamos nos movendo na direção de um sistema no qual a terra é propriedade da comunidade local e arrendada para aqueles que a utilizam.
Princípios similares poderiam ser aplicados à energia. O direito de produzir carbono através da queima de combustíveis fósseis poderia ser vendido em leilões (10) (um lote cada vez menor estaria disponível a cada ano). Este procedimento poderia financiar serviços públicos e uma transição para a energia limpa. Àqueles que desejassem utilizar o vento ou a luz solar para gerar energia deveria ser solicitado o pagamento de uma contribuição à comunidade. Ou os geradores poderiam pertencer às comunidades – já existem muitos exemplos (11).
Em vez de permitir às corporações o uso dos direitos de propriedade intelectual para criar uma escassez artificial de conhecimento ou de promover a apropriação de valor gerado por outras pessoas (como fazem o Google e o Facebook), poderíamos nos mover na direção de uma “economia de conhecimento social” do tipo promovido pelo governo do Equador (12). Uma parte dos lucros poderia (com a ajuda de tecnologia blockchain) ser usada para ajuda à construção de plataformas em linha e para providenciar os conteúdo que elas hospedariam.
A restauração dos bens comuns tem um grande potencial não apenas de distribuir a riqueza, mas também de mudar a sociedade. Como afirma David Bollier (13), um bem comum não é apenas um recurso (terra, árvores ou software) mas também a comunidade de pessoas que o gerencia e protege. Aqueles que participam da gestão e usufruto dos bens comuns desenvolvem conexões muito mais profundas entre si e com os seus recursos do que nós, enquanto consumidores passivos de produtos corporativos.
O gerenciamento de recursos comuns significa desenvolver regras, valores e tradições. Isto significa, em alguns casos, a nossa própria reinserção nos locais onde vivemos. Significa remodelar os governos para atender às necessidades das comunidades, não das corporações. Em outras palavras, a retomada da noção de bens comuns pode agir como um contrapeso às forças atomizantes e alienantes que hoje geram mil e uma formas tóxicas de reação.
Esta não é a resposta completa. A minha esperança é que, após explorar uma ampla gama de potenciais soluções, com a ajuda de vossos comentários e sugestões, eu possa começar a desenvolver uma síntese: uma nova narrativa política, econômica e social que seja adequada às exigências do século XXI. Realizá-la será um outro desafio, no qual também precisamos de trabalhar. Mas primeiro precisamos decidir o que queremos. Depois decidiremos como consegui-lo.
(*) George Monbiot (n. 1963) é um jornalista, escritor, académico, ativista e comentador político e ambiental britânico. Graduou-se em Zoologia em Oxford, teve programas de História Natural na BBC e foi jornalista de investigação em diversos países do Terceiro Mundo. O seu estilo agressivamente inquiridor valeu-lhe muitos incidentes, várias vezes com risco de vida. É autor de livros de grande impacto e influência no movimento anticapitalista como Captive State: The Corporate Takeover of Britain (2000), Anti-capitalism: A Guide to the Movement (2001), The Age of Consent: Manifesto for a New World Order (2003), Heat: How to Stop the Planet From Burning (2007), Bring on the Apocalypse: Six Arguments for Global Justice (2008), Feral: Searching for Enchantment on the Frontiers of Rewilding (2013) e How Did We Get Into This Mess?(2016). O original deste artigo foi publicado, com o título “The case for despair is made. Now let’s start to get out of the mess we’re in”, na edição de 13 de dezembro de 2016 do jornal britânico Guardian, onde o autor é colunista semanal há muitos anos. Acrescentamos, em notas de rodapé, uma parte das ligações em híper-texto que o autor fez na versão do artigo colocada na sua página pessoal. Para esta versão em língua portuguesa tomamos como base a tradução feita por Gabriel Simões para Outras Palavras.
_____________ NOTAS:
(1) V. Eliane Glaser, “Bring back ideology: Fukuyama's 'end of history' 25 years on”.
(2) V. George Monbiot, “Trump’s climate denial is just one of the forces that point towards war”.
(3) V. George Monbiot, “Neoliberalism – the ideology at the root of all our problems”.
(4) V. George Monbiot, “For 300 years Britain has outsourced mayhem. Finally it's coming home”.
(5) Raymond Williams, Resources of Hope: Culture, Democracy, Socialism.
(6) V. George Monbiot, “The 13 impossible crises that humanity now faces”, “Frightened by Donald Trump? You don’t know the half of it”.
(7) V. George Monbiot, “The Tragedy of Enclosure”.
(8) V. PLOS: Open for Discovery.
(9) V. Stadin Aikapankki.
(10) V. George Monbiot, “This economic panic is pushing the planet right back down the agenda”.
(11) V. Community and locally owned renewable energy in Scotland at September 2015.
(12) V. P2P Foundation, Commons Transition: Policy Proposals for an Open Knowledge Commons Society.
(13) V. David Bollier, Commoning as a Transformative Social Paradigm.
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