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Soberania alimentar e desglobalização
Walden Bello (*)
O paradigma da soberania alimentar está associado à rede global de agricultores Via Campesina e possui a distinção de ser elaborado sobretudo por ativistas camponeses e agricultores. Como está implícito no seu nome, a perspetiva está aqui focada sobretudo no sistema agro-alimentar, embora tenha implicações profundas em outros setores da economia.
Quais são os componentes do paradigma da soberania alimentar? Dos escritos da Via Campesina, seus dirigentes, inteletuais orgânicos, como Annette Desmarais, aliados, e das coligações mais alargadas em que participa, emerge um certo número de temas básicos.
Primeiro, o objetivo da política agrícola deverá ser a autossuficiência alimentar, em que os agricultores de um país produzem a maioria da comida consumida localmente – um conceito que não equivale ao de “segurança alimentar”, que os representantes corporativos norte-americanos definiram como a capacidade de preencher as necessidades alimentares de um país através, quer da produção doméstica, quer de importações. As implicações radicais desta premissa foram salientadas por Jennifer Clapp:
“retirando os agricultores por completo do sistema de comércio global, o movimento pela soberania alimentar visa as necessidades locais e os mercados locais de alimentos, libertando assim os pequenos produtores das injustas e desequilibradas regras comerciais impostas pelo Acordo sobre Agricultura da Organização Mundial do Comércio” (1).
Segundo, um povo deve ter o direito a determinar os seus padrões de produção e consumo alimentar, levando em consideração a “diversidade produtiva e rural”, não permitindo que estas sejam subordinadas ao comércio internacional desregulado (2).
Terceiro, a produção e consumo de alimentos devem ser guiados pela preocupação com o bem estar de agricultores e consumidores, não com as necessidades de lucro das grandes multinacionais do agronegócio.
Quarto, os sistemas alimentares nacionais devem produzir “alimentos saudáveis, de boa qualidade e culturalmente apropriados, primariamente para o mercado doméstico” (3), evitando aquilo que José Bové apelidou de malbouffe ou comida descartável (“junk-food”) internacionalmente standardizada (4).
Quinto, um novo equilíbrio deve ser encontrado entre a agricultura e a indústria, o campo e a cidade, para reverter a subordinação da agricultura e do interior à indústria e às elites urbanas, de que resultaram uma paisagem rural deprimida, vagas de refugiados saídos do campo e extensas favelas urbanas.
Sexto, a concentração de terras em latifundiários e firmas multinacionais deve ser revertida e a equidade na distribuição dos campos deve ser promovida através da reforma agrária, devendo o acesso à terra ser possível para além da propriedade individual, permitindo-se mais formas coletivas e comunais de posse e de produção, que promovam um sentido de gestão ecológica.
Sétimo, a produção agrícola deve ser empreendida sobretudo por pequenos agricultores, empresas estatais ou cooperativas. A distribuição e consumo de alimentos deve ser regida por esquemas de preços justos que tomem em consideração os direitos e o bem estar tanto dos agricultores como dos consumidores. Entre outras coisas, isto significa o fim do despejo (“dumping”) praticado por firmas multinacionais de mercadorias agrícolas subsidiadas, que arrastou artificialmente para baixo os preços, resultando na destruição dos pequenos agricultores. Deveria também significar, de acordo com o ativista Peter Rosset, “um regresso à proteção da produção alimentar nacional ... reconstruindo as reservas de grão ... orçamentos do setor público, preços garantidos, crédito e outras formas de apoio” que “estimulem a recuperação das capacidades nacionais de produção alimentar” (5).
Oitavo, a agricultura industrial baseada na engenharia genética e a original Revolução Verde químico-intensiva devem ser desencorajadas, porque o controlo monopolista sobre as sementes só serve a agenda das multinacionais e porque a agricultura industrial é ecologicamente insustentável.
Nono, as tecnologias agrícolas camponeses e indígenas tradicionais contêm uma grande dose de sabedoria e representam a evolução de um equilíbrio muito benigno entre a comunidade humana e a biosfera. Assim, desenvolver agro-tecnologias para dar resposta às necessidades sociais deve tomar as práticas tradicionais como ponto de partida, em vez de as considerar como práticas obsoletas a erradicar.
A perspetiva da soberania alimentar valoriza elementos – a agricultura camponesa, a produção de pequena escala, o ambiente – que têm sido desvalorizados pelo capitalismo e considerados, simplesmente, como barreiras a um modo progressivo de organização económica. As caraterísticas da agricultura camponesa – a proximidade à terra, o laço orgânico entre a família e a quinta, o foco no mercado local, a produção trabalho-intensiva, a conceção de trabalhar com a natureza em lugar de a dominar – são elementos que vêm dar resposta às necessidades de estabilidade ecológica, comunidade e bom governo, não devendo ser jogadas ao lixo da forma desprendida como o tem feito a agricultura industrial capitalista.
Esta valorização não é um mecanismo defensivo, que intenta adiar a morte de um modo de produção condenado, mas visa o futuro, como um dos elementos de um processo mais amplo de transformação. Como diz Philip McMichael:
“A soberania alimentar, em teoria e na prática, representa uma alternativa política, ecológica e cultural à agricultura empresarial de ‘alta modernidade’, apostada na standardização de insumos e produtos que servem uma minoria da população mundial... O princípio da soberania alimentar não corporiza um retorno à agricultura tradicional nem a uma cultura camponesa bucólica – é antes uma resposta absolutamente moderna na atual conjuntura neoliberal, que não tem soluções sustentáveis para os problemas absolutamente modernos que levantou” (6).
Desmarais retoma este mesmo tema de que a soberania alimentar representa não uma rejeição da modernidade mas a adesão a uma modernidade alternativa:
“O modelo camponês defendido pela Via Campesina não implica uma rejeição da modernidade, ou da tecnologia e do comércio, acompanhada por um retorno romântico a um passado arcaico mergulhado em tradições rústicas. Em vez disso, a Via Campesina insiste que um modelo alternativo deve ser baseado em certos valores e princípios éticos, em que a cultura e a justiça social contem para alguma coisa e mecanismos concretos são postos em ação para assegurar um futuro sem fome. O modelo alternativo da Via Campesina implica recapturar aspetos do conhecimento local, tradicional e camponês, para os combinar com novas tecnologias, quando e onde for apropriado fazê-lo” (7).
Ela salienta que:
“integrando inovações cautelosas com práticas tradicionais, os camponeses e agricultores de pequena escala, em todo o lado, estarão reafirmando as lições das suas histórias e refazendo a paisagem rural para benefício daqueles que trabalham a terra, enquanto coletivamente redefinem que comida é produzida, como é produzida, onde e para quem” (8).
Está muito bem afirmar o caráter benigno da agricultura camponesa, como o faz Desmarais, mas será que ela responde efetivamente às grandes exigências feitas à agricultura pelo nosso tempo? Mesmo estudiosos simpatizantes com os destinos dos camponeses e dos trabalhadores rurais, como Henry Bernstein, sustentam que a defesa da via camponesa “em grande parte ignora os desafios de alimentar a população mundial, que cresceram enormemente quase em toda a parte na época moderna, em parte significativa por causa da revolução na produtividade alcançada pelo desenvolvimento do capitalismo” (9).
Defensores da via camponesa respondem, primeiro que tudo, que a superioridade, em termos de produtividade, da agricultura industrial capitalista, não está provada empiricamente. Miguel Altieri e Clara Nicholls, por exemplo, apontam para o facto de que, embora a sabedoria convencional aponte para que as pequenas quintas sejam atrasadas e improdutivas, na verdade
“as pesquisas demonstram que as pequenas quintas são muito mais produtivas do que as grandes explorações, se considerarmos o seu produto total, em vez de o rendimento de uma única cultura. Sistemas agrícolas pequenos e integrados que produzem grão, frutos, hortaliças, forragens e produtos animais, são mais produtivos, por unidade, do que as monoculturas (como o milho) em explorações de larga escala” (10).
Para além disso, quando consideramos a destabilização ecológica que acompanhou a generalização da agricultura industrial, o equilíbrio de custos e benefícios guina acentuadamente para o negativo. Por exemplo, um estudo recente do Worldwatch Institute concluiu que, nos Estados Unidos da América, a comida agora viaja 1.500 a 2.500 milhas (2.400 a 4.000 quilómetros) entre a quinta e a mesa de consumo, 25 por cento mais do que o fazia há duas décadas atrás (11). O estudo concluiu que os norte-americanos estão
“gastando muito mais energia a trazer a comida até à sua mesa do que a que adquirem ao comê-la. Um repolho de alface cultivado no vale de Salinas, na Califórnia, e expedido a perto de 3.000 milhas, para Washington, requer cerca de 36 vezes mais energia fóssil no seu transporte do que a energia alimentar que fornece, quando chega ao destino” (12).
Em contraste com isso, uma refeição típica – alguma carne, grão, frutas e hortaliças – usando ingredientes locais, implica quatro a dezassete vezes menos consumo de petróleo em transporte do que a mesma refeição comprada numa convencional loja de cadeia alimentar (13).
Na verdade, a capacidade da agricultura camponesa de pequena escala de combinar produtividade com estabilidade ecológica constitui uma dimensão chave da sua superioridade sobre a agricultura industrial. Uma explicação simples mas detalhada porque isto é assim é fornecida por Tony Weis:
“Uma mecanização acrescida aparece a par com as monoculturas, que deixam muito chão nu entre as filas plantadas. As pequenas quintas têm tendência a fazer um uso mais intensivo deste espaço, com padrões de cultivo que integram espécies vegetais complementares... integrando ainda pequenas populações de animais domésticos e fazendo uso de estrume ecologicamente benigno. Padrões de multicultivo mais densos, que são frequentemente alternados, por vezes deixados em pousio, integrados com espécies pecuárias diversas e animais de tração, facilitam o trabalho dos micro-organismos decompositores do solo, detritívoros e invertebrados, que intensificam a regulação biológica da fertilidade do solo, neutralizando pragas, ervas daninhas e ciclos doentios com menos químicos e fertilizantes que as monoculturas. Esta capacidade de renovação e mesmo melhoria dos solos a prazo é também função das escalas de tempo radicalmente diferentes na gestão das unidades de exploração campestres: porque as pequenas quintas fazem frequentemente uso de conhecimentos passados na terra de geração em geração, tendem a ser organizadas com um objetivo de equilíbrio a muito mais longo prazo, em contraste com as monoculturas industriais que se orientam pelos balanços anuais” (14).
Jan van der Ploeg realça que a lógica do modelo de produção camponês é diferente da lógica capitalista e que o desafio tecnológico é apoiarmo-nos nos elementos deste modelo, em vez de os suplantar com tecnologias associadas ao capitalismo. Há progresso na agricultura camponesa, mas isso assenta num processo em que o uso da tecnologia é seletivo e não é disruptor do modelo de produção, mas se sintoniza com ele. O desenvolvimento tecnológico na agricultura camponesa não visa standardizar a produção mas sim conferir ao processo de produção a capacidade de lidar com a diversidade. A tecnologia é, num sentido muito real, dependente do caminho: o seu desenvolvimento toma caminhos diversos em diferentes paradigmas produtivos. Como nota van der Ploeg, na agricultura camponesa,
“a tecnologia não serve apenas para conectar artefactos e gerir fluxos materiais – serve ainda para interligar as pessoas de modos específicos, de maneira a obter as melhores condições e resultados. Assim, a habilidade é ser capaz de gerir, observar, manusear, ajustar e coordenar extensos domínios do mundo social e natural. Isto é feito com apoio nas especificidades dos diferentes elementos do mundo social e natural. É provavelmente neste último aspeto (o apoio em especificidades encontradas e/ou criadas) que residem as principais diferenças entre tecnologias dependentes da habilidade humana e as mecânicas. Nestas últimas, ajustamentos contínuos não são possíveis nem desejáveis. Se você produz coca-cola, então apenas coca-cola sai da sua fábrica. Uma melhor ou pior coca-cola é impensável e seria imediatamente entendida como um desastre. Com padrões objetificados de fluxo, as tecnologias mecanizadas assumem um insumo standardizado, do mesmo modo que fabricam um produto standardizado. Não conseguem lidar com a especificidade ou a variação. A especificidade é um desvio, uma ameaça e mesmo, potencialmente, um factor destrutivo” (15).
A ciência avançada e a agricultura camponesa não estão em contradição. É na maneira como incorporamos a ciência na produção de pequena escala que reside o desafio. De acordo com Weis, “para aumentar significativamente a escala das práticas orgânicas ou quase orgânicas, será preciso muito mais pesquisa e treino científico, dirigidos a uma melhor compreensão de como operam os agro-ecossistemas e como podem ser estimuladas certas dinâmicas cruciais” (16). Como exemplo, pesquisas sobre as complementaridades funcionais de diversos insectos podem melhorar a gestão integrada das pragas, enquanto um melhor conhecimento dos solos e da dinâmica da reciclagem dos seus nutrientes pode esclarecer os agricultores sobre os melhores padrões e rotações de culturas, plantas fixadoras de nitrogéneo, e que estrumes verdes usar para fortalecer a fertilidade do solo (17).
Outros exemplos de como modernas tecnologias podem ser articuladas com padrões tradicionais de agricultura são a recuperação e transferência do sistema de plataformas agrícolas em lagos e pântanos, aperfeiçoado pelos aztecas nos subúrbios da Cidade do México, para as terras baixas tropicais do país; o restauro, construção e melhoramento dos terraços incas nos Andes do Perú; e a descoberta e reconstrução de um sistema de plataformas elevadas com canais que se espalhava pelos planaltos dos Andes. Em todos os casos, as colheitas nestes campos reconstruídos comparam-se favoravelmente com as oriundas de solos quimicamente fertilizados com regularidade (18).
Com o descarrilamento da finança global e o consequente colapso da economia global integrada que é o legado da era neoliberal, a soberania alimentar tornou-se agudamente relevante num mundo desiludido com o neoliberalismo e o capitalismo e buscando desesperadamente alternativas.
Os agricultores e camponeses há muito tempo que alimentam as suas comunidades locais e nacionais. O capitalismo, especialmente na sua forma neoliberal, procurou relegá-los para o caixote de lixo da história, substituindo-os por monoculturas intensivas dirigidas sobretudo para um supermercado global de comsumidores de elite e de classe média. No seu objetivo de transformar completamente o sistema mundial de produção e distribuição alimentar, uma das racionalizações avançadas pela agricultura industrial para o desalojamento de camponeses e pequenos agricultores foi o de que estes não têm a capacidade para alimentar o mundo. Na verdade, os camponenes e pequenos agricultores não têm a ambição de alimentar o mundo, cingindo-se os seus horizontes a providenciar comida às comunidades locais e nacionais. É fornecendo sustento, como melhor podem, às suas comunidades, que os camponeses e pequenos agricultores em todo o lado podem dizer de si próprios que alimentam o mundo. Apesar das pretensões dos seus representantes de que a agricultura de grande empresa é melhor a alimentar o mundo, a criação de cadeias produtivas globais e supermercados globais, conduzidos pela busca de lucros monopolistas, foi acompanhada de maior fome, piores alimentos e maiores destabilizações ambientais relacionadas com a agricultura, em todo o lado, do que qualquer outra época na história.
Os camponeses e pequenos agricultores, no entanto, são resistentes. Nestes tempos de crise global eles apresentam uma visão de autonomia, diversidade e cooperação que podem bem ser os elementos chave de uma necessária reorganização social e económica. Enquanto as crises ambientais se multiplicam, as disfunções sociais da industrialização urbana se acumulam e a globalização arrasta o mundo para uma depressão global, a “via camponesa” aumentou a sua relevância para um grande número de pessoas para além das que vivem no campo. Na verdade, encontramos movimentos de “re-camponeirização”, à medida que empresários agrícolas abandonam a agricultura capitalista e números crescentes de citadinos abraçam a agricultura de pequena escala. Podemos mesmo encarar a possibilidade, como afirma Van der Ploeg, de que “a emergência da agricultura urbana em muitas partes do mundo assinala o surgimento de um grande número de novos camponeses (a tempo parcial) e, simultaneamente, um deslocamento espacial do campesinato dos campos para as grandes metrópoles do mundo” (19).
Da globalização à desglobalização
Como a soberania alimentar, a desglobalização é um paradigma que emergiu na luta contra a globalização conduzida pelas grandes corporações durante a primeira década do século XXI. Quando a organização Focus on the Global South a articulou publicamente pela primeira vez, no ano 2000, a desglobalização era generalizadamente entendida como irrealista, mesmo em círculos da sociedade civil que não viam a globalização como irreversível e inevitável. No final da década, porém, enquanto o colapso financeiro global irradiava a partir de Nova Iorque para o resto do mundo, a revista ‘The Economist’ asseverava que a desglobalização, termo que ela atribuía a este autor, poderia não ser assim tão descabida, no fim de contas. De acordo com ‘The Economist’, “a integração da economia mundial está em retirada em quase todas as frentes”. Cadeias de fornecimento globais, afirmou, “como todas as cadeias... são apenas tão fortes quanto o seu elo mais fraco. Um ponto de perigo será atingido se as firmas decidirem que este modo de organizar a produção já teve os seus dias” (20).
A economia da cadeia de fornecimento não era o único problema. A vulnerabilidade da cadeia de fornecimento global a desastres naturais foi evidenciada pelo terramoto de 2011 no Japão e pelas cheias maciças na Tailândia, muito provavelmente causadas pelas alterações climáticas. Estes desastres gémeos, em países que albergavam fornecedores de componentes cruciais para automóveis e multinacionais da eletrónica, revelaram a fragilidade da cadeia de fornecimento global leve e descentralizada que a maioria das multinacionais havia adoptado a partir da Toyota e aperfeiçoado na era da globalização (21). Os desastres causaram perturbações maciças em toda a cadeia de fornecimento global, resultando em biliões de dólares de perdas. De acordo com um especialista “Estes recentes «cisnes negros» ou desastres naturais sem precedentes espuseram obviamente vulnerabilidades nas cadeias de fornecimento industriais... A questão agora é: terá a corrida à produção ao mais baixo custo e às cadeias de fornecimento hiper-leves soçobrado e tornado patente a sua vulnerabilidade a significativos riscos empresariais” (22)?
Preocupações similares foram levantadas, tanto por governos como por agências multilaterais, sobre se é salutar a existência de cadeias de fornecimento globais de comida, dadas as crescentes ameaças de insumos contaminados da China, perturbações ligadas ao clima, possíveis ataques terroristas. Um relatório sobre o sistema alimentar da Grã-Bretanha, por exemplo, realça:
“As pressões comerciais também exigem que a cadeia de alimentos seja tão leve quanto possível e, consequentemente, fique dependente de que todas as suas secções funcionem apropriadamente. Dentro dessa cadeia de alimentos, o Reino Unido chegou ao ponto de depender esmagadoramente de grandes supermercados e das suas redes logísticas. Pela sua própria natureza, portanto, a cadeia de alimentos britânica é vulnerável a choques e perturbações, sejam eles naturais, acidentais ou intencionais” (23).
As preocupações com as vulnerabilidades – económicas, financeiras e físicas – das cadeias de fornecimento globais foram acompanhadas por crescentes preocupações entre as elites económicas e políticas de que o processo de transnacionalização da propriedade das firmas para potenciar o seu alcance global tenha ido longe demais. Com o advento da crise financeira, o presidente francês Nicolas Sarkozy apelou em 2010 a uma política industrial para prevenir as indústrias do país de serem ainda mais rarefeitas pelas estratégias deslocalizadoras de gestão globalizada (24). Nos começos de 2012, com uma estagnação económica indefinida tida como certa nos Estados Unidos e na Europa, e com os chamados BRICS’s (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) em desaceleração, a retirada da globalização foi tomada como certa em muitos quadrantes. Como escreveram Nader Mousavizadeh e George Kell no International Herald Tribune, “estamos a entrar num período de soberanias em competição, substituindo duas décadas de consenso sobre os benefícios universais da globalização – por mais desequilibrado e desigual que tenha sido o seu caminho” (25).
Ainda mais interessante foi o facto de a desglobalização, como estratégia económica, ter entrado para o palco central no debate político francês durante a campanha para as presidenciais de 2011-12. Creditando este conceito ao autor deste ensaio, o candidato do Partido Socialista Arnaud Montebourg avançou a desglobalização como uma estratégia alternativa para a França, provocando um animado debate público sobre alternativas à globalização. Porque razão a desglobalização encontrou eco no eleitorado? De acordo com um relato, isso deveu-se a que
“o país perdeu milhões de empregos para as economias emergentes da Europa central e de leste, e mais longe ainda para a China e outras economias de baixos salários e sem proteções sociais. E a França não desenvolveu fontes alternativas de emprego e de riqueza, encontrando-se, como muitas outras economias europeias, com uma crise de desemprego juvenil estrutural” (26).
Montebourg foi mais tarde nomeado ministro da Reindustrialização no governo de François Hollande, que sucedeu a Sarkozy como presidente em maio de 2012.
Com a desglobalização a entrar no discurso oficial, o perigo é que o termo possa ser sequestrado para promover estratégias que sejam diferentes das que propomos, nos seus propósitos. É portanto imperativo que avancemos claramente os conceitos e valores que informam este paradigma e as medidas concretas que ele propõe.
De acordo com o paradigma neoliberal dominante, a melhor maneira de organizar a economia é pugnar constantemente por largos aumentos no produto interno bruto através de produção eficiente. A produção eficiente é definida como a oferta de um produto que os consumidores procuram ao mínimo custo unitário. E conseguir este objetivo depende de um sistema orientado pelo mercado que não seja “distorcido” por barreiras artificiais como tarifas, normas de investimento, tais como requisitos de nacionalidade, ou trabalho sindicalizado. As empresas transnacionais, cujas diferentes subsidiárias e fornecedoras estejam distribuídas globalmente de forma a beneficiar de condições geográficas, de custos laborais e outras vantagens, que lhes permitem produzir uma mercadoria ao mais baixo custo unitário, tornou-se a organização de produção paradigmática na era da globalização.
Com esta forma de organização e as instituições que a facilitam criando tantos aleijões sociais e ecológicos, como vemos, entre outras coisas, nas crescentes desigualdades entre e dentro de países, em mais e mais destabilizações ambientais, diferentes esforços foram postos em marcha para formular um paradigma alternativo de organização económica. No entanto, as alternativas são frequentemente julgadas, explícita ou implicitamente, pelo critério de terem igual ou melhor desempenho do que o capital transnacional em termos de oferecer o melhor produto ao menor custo unitário.
Precisamente porque a busca de uma estreita eficiência teve efeitos laterais destabilizadores, em termos sociais e ecológicos, a alternativa deve afastá-la explicitamente, como princípio central, na sua abordagem à reorganização da vida económica. Esta posição encontrará apoio histórico se seguirmos a tese de Karl Polanyi de que o mercado desregulado emergiu de um processo de “desincrustação” do mercado do sistema social mais amplo que o continha, de tal modo que o mercado acabou por conduzir todo o sistema. Na sequência da Grande Depressão, que foi um dos eventos que encerrou o primeiro período da globalização que se iniciara por volta de 1815, a sociedade começou a reassumir a sua supremacia sobre o mercado, um processo que Polanyi denominou o segundo movimento no “movimento duplo”, com o Estado a assumir o papel de principal agente neste processo de “reincrustar” o mercado no sistema mais amplo de relações sociais (27).
Algo de fundamentalmente similar é necessário hoje, com a presente crise do neoliberalismo. Ao contrário do socialismo clássico, a desglobalização não apela à abolição do mercado e sua substituição pelo planeamento central. Ao que apela, de facto, é à “reincrustação” das relações mercantis na sociedade, significando isto que as relações sociais devem refletir a subordinação da efeiciência mercantil aos mais altos valores da comunidade, da solidariedade e da igualdade. O papel do mercado na troca e na alocação de recursos é importante, mas isto deve não só ser equilibrado como subordinado à manutenção e reforço da solidariedade social. Atuando para equilibrar e guiar o mercado deve estar não só o Estado mas também a sociedade civil. Em lugar da “mão invisível” como agente do bem comum deve aparecer a mão visível da escolha democrática. No lugar da economia da estreita eficiência, propomos aquilo que poderíamos chamar de “economia efetiva”.
O paradigma da desglobalização também afirma que um modelo uniformizador como o neoliberalismo ou o socialismo burocrático centralizado é disfuncional e destabilizador. Em seu lugar, a diversidade deve ser esperada e encorajada, como sucede na natureza. Isto dito, existem efetivamente princípios partilhados de uma economia alternativa. Eles já emergiram substancialmente da própria luta contra e das reflexões sobre o falhanço, tanto do socialismo centralizado como do capitalismo, bem como do enorme desafio colocado pela crise ambiental. Não reivindicamos a descoberta destes princípios. Eles emergiram num processo coletivo marcado pela participação de indivíduos, organizações e comunidades que não acreditam em direitos de propriedade inteletual.
Aquilo que poderíamos chamar os catorze princípios chave da perspetiva da desglobalização são os seguintes:
1. A produção para o mercado doméstico, em lugar de produção para os mercados de exportação, deve de novo tornar-se o centro de gravidade da economia.
2. O princípio da subsidiariedade deve ser consagrado na vida económica, encorajando a produção de bens ao nível da comunidade e da nação, se isto pode ser feito a um custo razoável, de forma a preservar a comunidade.
3. A política de comércio – isto é, tarifas e quotas – deve ser usada para proteger a economia local da destruição pela invasão por mercadorias capitalistas subsidiadas com preços artificialmente baixos.
4. A política industrial – incluindo subsídios, tarifas e comércio – deve ser usada para revitalizar e fortalecer o setor manufatureiro.
5. Medidas longamente adiadas de redistribuição equitativa de rendimentos e de terras (incluindo uma reforma territorial urbana) devem ser implementadas de forma a criar um vibrante mercado interno para servir como âncora da economia e produzir recursos financeiros locais para o investimento.
6. Desenfatizar o crescimento, enfatizando antes a elevação da qualidade de vida e a maximização da equidade reduzirá os desequilíbrios ambientais.
7. Os sistemas de energia e de transportes devem ser transformados em sistemas descentralizados baseados em recursos renováveis.
8. Um saudável equilíbrio deve ser mantido entre capacidade transportadora de um país e o tamanho da sua população.
9. Tecnologias congenitamente amigas do ambiente devem ser desenvolvidas e difundidas tanto na agricultura como na indústria.
10. Uma sensibilidade adequada deve ser aplicada em todas as áreas de decisão económica, de modo a assegurar a igualdade de género.
11. As decisões económicas estratégicas não devem ser deixadas ao mercado ou aos tecnocratas. Em vez disso, o âmbito da decisão democrática na economia deve ser expandido de forma a que todos os assuntos económicos vitais – tais como quais as indústrias a desenvolver e quais a eliminar progressivamente, que proporção do orçamento governamental dedicar à agricultura, etc. – se tornem objeto de discussão e escolha democráticos. Isto implicará a desmistificação da economia e o regresso às suas origens como economia política e economia moral.
12. A sociedade civil deve constantemente monitorizar e supervisionar o setor privado e o Estado, um processo que deveria ser institucionalizado.
13. O complexo proprietário deverá ser transformado numa “economia mista” que inclua cooperativas comunitárias, empresas privadas e empresas estatais, excluindo as empresas multinacionais.
14. Instituições globais centralizadas como o F.M.I. e o Banco Mundial devem ser substituídas por instituições regionais, baseadas não no comércio livre e na mobilidade do capital mas em princípios de cooperação que, para usar as palavras de Hugo Chávez ao descrever a Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA) “transcendam a lógica do capitalismo”.
O atrás exposto deve ser visto como um rol de princípios gerais. Como eles serão concretamente articulados dependerá dos valores, ritmos e escolhas estratégicas de cada sociedade. Do mesmo modo, a sua coerência não é de caráter estritamente económico. Na verdade, a sua coerência é também de natureza ética, uma vez que o objetivo é reconstruir a economia para melhor alcançar maior comunidade, equidade e justiça.
Partes do paradigma da desglobalização não são na verdade novos ou radicais. O seu rastro histórico, na área das relações de comércio, inclui os escritos de Keynes, o qual, no auge da Grande Depressão, afirmou sem rodeios: “Nós não desejamos... ficar à mercê de forças mundiais que constroem, ou tentam construir, algum equilíbrio uniforme, de acordo com os princípios do capitalismo de laissez faire”. Na verdade, continuou ele
“[sobre] um cada vez maior leque de produtos industriais, e talvez também agrícolas, torno-me duvidoso de que os custos económicos da autossuficiência sejam suficientemente grandes para anular as vantagens que há em gradualmente trazer o produtor e o consumidor para o âmbito das mesmas organizações nacionais, económicas e financeiras. A experiência acumula-se para provar que a maioria dos processos de produção em massa pode ser operada na maioria dos países e climas, com quase igual eficiência.”
E, em palavras que adquirem um significado bem contemporâneo, Keynes asseverou que:
“Simpatizo... com aqueles que minimizariam, e não com os que maximizariam, o emaranhamento económico entre as nações. As ideias, o conhecimento, a arte, a hospitalidade, as viagens – estas são as coisas que deveriam, por sua natureza, ser internacionais. Mas deixem os bens ser feitos em casa sempre que for razoável e convenientemente possível; e, antes de tudo, deixem as finanças ser primariamente nacionais” (28).
E, no entanto, a desglobalização é, tomada no seu conjunto, radical. Ela vai além do keynesianismo, pois o seu intento não é estabilizar o capitalismo dirigido pelas grandes empresas, reformando-o com uma gestão tecnocrática, mas sim fazer emergir uma economia que funcione de acordo com princípios diferentes, em que a cooperação, no lugar da competição, seja o motor, e onde o mercado, embora continuando a servir como meio de troca e mecanismo para alocação de recursos, seja conduzido e direcionado por valores, pelo Estado e pela sociedade civil, em direção ao bem social.
Não somos keynesianos, mas não podemos resistir a concluir com um depoimento de Keynes, feito em 1933, em plena Grande Depressão, que capta, notavelmente, a nossa própria situação hoje em dia:
“O decadente capitalismo internacional mas individualístico, nas mãos do qual nos achamos após a guerra, não é um sucesso. Não é inteligente, não é bonito, não é justo, não é virtuoso. Em suma, não gostamos dele, e começamos mesmo a desprezá-lo. Mas quando pensamos no que poderemos colocar em seu lugar, ficamos extremamente perplexos” (29).
A desglobalização e o seu relacionado paradigma da soberania alimentar procuram indicar um caminho de saída à nossa presente perplexidade. Se terão ou não sucesso resta ainda a ver, mas estamos confiantes em que apontam na direção certa.
(*) Walden Bello (n. 1945) é um académico, activista social e político filipino. Enquanto estudante na Universidade de Princeton (E.U.A.) participou no movimento anti-guerra (Vietnam) e contra a ditadura de Marcos no seu país, dirigindo pessoalmente ações de grande radicalismo. Militou no Partido Comunista das Filipinas, de que se afastou devido à sua prática de execuções sumárias. Deu aulas na Universidade da Califórnia (Berkeley). Foi fundador, diretor executivo e analista da organização Focus on the Global South , sediada em Bangkok, que se especializou no estudo e combate da globalização neoliberal. Pertence à direção do International Forum on Globalization e do Center for Economic and Policy Research, colaborando também com o Transnational Institute. Foi congressista pelo partido Akbayan. É atualmente professor de Sociologia na Universidade das Filipinas Diliman (UPD). Entre as suas numerosas obras publicadas, as mais influentes e globalmente discutidas são Deglobalization: Ideas for a new world economy (2002), Dilemmas of domination: The unmaking of the americam empire (2005) Capitalism’s last stand? Deglobalization in the age of austerity (2013). É deste livro que publicamos aqui parcialmente o último capítulo, com tradução de Ângelo Novo.
_______________ NOTAS:
(1) Jennifer Clapp, Food, Cambridge: Polity Press, 2012, p. 175.
(2) Via Campesina, ‘Food Sovereignty and International Trade’, diretiva aprovada na Terceira Conferência Internacional da Via Campesina, Bangalore, Índia, 3-6 de outubro; citado in Annette Desmarais, La Via Campesina and the Power of Peasants, London: Pluto Press, 2007, p. 34.
(3) Citado em Ibid..
(4) José Bové, ‘A Farmer’s International?’, New Left Review 12 (novembro-dezembro 2001).
(5) Peter Rosset, citado em Philip McMichael, Food Sovereignty in Movement: The Challenge to Neo-Liberal Globalization, rascunho manuscrito, Cornell University, 2008.
(6) McMichael, Food Sovereignty in Movement.
(7) Desmarais, La Via Campesina and the Power of Peasants, p. 38.
(8) Ibid., pp. 38-39.
(9) Henry Bernstein, ‘Agrarian Questions from Transition to Globalization’, in A. Haroon Akram-Lodhi e Cristobal Kay (editors), Peasants and Globalization (New York, Routledge, 2009), p. 255.
(10) Miguel Altieri e Clara Nicholls, ‘Sealing up Agroecological Approaches for Food Sovereignty in Latin America’, Development 51 (4), (December 2008), p. 474.
(11) Worldwatch Institute, ‘Globetrotting Food Will Travel Farther Than Ever This Thanksgiving’, 2011.
(12) Ibid..
(13) Ibid..
(14) Tony Weis, The Global Food Economy: The Battle for the Future of Farming (London: Zed Books, 2007), p. 167.
(15) Jan Douwe van der Ploeg, The New Peasantries: Struggle for Autonomy and Sustainability in the Era of Globalization, (London: Earthscan, 2008), p. 172.
(16) Weis, The Global Food Economy, p. 170.
(17) Ibid..
(18) Altieri e Nicholls, ‘Scaling up Agroecological Approaches for Food Sovereignty in Latin America’, pp. 476-7.
(19) Van der Ploeg, The New Peasantries, p. 37.
(20) ‘Turning their Backs on the World’, The Economist, February 19, 2009.
(21) Bill Powell, ‘The Global Supply Chain: So Very Fragile’, Fortune, December, 12, 2011.
(22) Ibid.
(23) George Grant, Shocks and Disruptions: The Relationship between Food Security and National Security, (London: Henry Jackson Society, 2012), p. 29.
(24) Ver ‘Europe’s Dark Secret’, The Economist, July, 22, 2010.
(25) Nader Mousavizadeh e George Kell, ‘Getting Down to Business in Rio’, International Herald Tribune, june 15, 2002, p. 8.
(26) Pierre Haski, ‘Is France on Course to Bid Adieu to Globalization?’, Yale Global Online, July 21, 2011.
(27) Karl Polanyi, The Great Transformation, (Boston MA: Beacon Press, 1957). [Nota do Tradutor] Este clássico tem agora uma excelente edição em Portugal: A Grande Transformação, Edições 70, Lisboa, 2012.
(28) John Maynard Keynes, ‘National Self-Sufficiency’, Yale Review 22 (4) (june 1933), pp. 755-69.
(29) Ibid..
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