Fases de desenvolvimento da crise ecológica capitalista

 

Daniel Tanuro (*)

 

 

 

O Homo Sapiens, a nossa espécie, tem por natureza produzir socialmente a sua própria existência. Ele faz isso através do trabalho, por meio do qual transforma em valores de uso os recursos naturais que não consome tais como os encontra. Mediação essencial entre a humanidade e o seu ambiente, este trabalho é uma atividade consciente: o seu resultado é pré-existente no cérebro do produtor, sob a forma de um projeto que o trabalhador vai adaptando no decurso da execução, fazendo por fim um balanço. Esta capacidade de pensar o trabalho tem corolários: 1) a pesquisa de meios técnicos e sociais para aumentar a produtividade; 2) a necessidade de comunicação e aprendizagem sociais; 3) o facto de que cada geração se ergue, por assim dizer, sobre os ombros das anteriores - é isso o desenvolvimento humano. Estas características distinguem a nossa espécie de outros animais sociais, como as formigas, as abelhas ou as térmitas, cujo modo social de produção é instintivo e, portanto, só se modifica ao ritmo da evolução biológica.

 

Natureza humana, tecnologia, população e relações sociais

 

O facto de que a capacidade de se desenvolver seja uma característica distintiva da espécie humana tem como consequência que esta tem, inevitavelmente, no seu ambiente, um impacto a curto prazo superior ao dos outros animais (1). Isso sucede mesmo no caso das mais "primitivas" sociedades de caçadores-recoletores, pois que a produção de ferramentas, vestuário e habitação, mesmo que reduzida, exige, obviamente, a recolha, processamento e rejeição, após uso, de quantidades de recursos naturais que ultrapassam as necessidades fisiológicas. Alguns concluem daí que a crise ambiental de hoje em dia mais não é do que a reprodução, a uma escala global, das crises ambientais locais do passado, o resultado lógico de uma "engrenagem da técnica" que vai do domínio do fogo ao da energia atómica (admitindo que esta última possa ser “dominada”), passando pela domesticação de outras espécies animais e pela invenção da agricultura. Por outras palavras, o progresso humano – quantitativo e qualitativo - seria inevitavelmente destrutivo.

 

Este ponto de vista foi popularizado há várias décadas por numerosos autores como Hans Jonas, Jacques Ellul ou, mais recentemente, André Lebeau. Todos acusam "a técnica" de ser responsável pela degradação do meio ambiente. Para Ellul como para Lebeau, o "sistema tecnológico" que existe desde os primórdios da humanidade tem a sua própria lógica que não é compatível com os limites naturais. Na realidade, "a técnica" é considerada aqui a um tal nível de abstração e generalidade que, através dela, é o próprio Homo Faber que tende a ser designado como uma ameaça à "natureza" (2). É por isso que, em geral, essa abordagem da questão ecológica se aproxima sempre, mais ou menos, do gracejo com que James Lovelock concluiu a sua ‘Hipótese Gaia’, admitindo o facto de que a Terra estaria "doente de humanidade". Ela se junta ainda a outros autores (o casal Ehrlich, Jared Diamond, Jean Dorst, por exemplo) que consideram, mais ou menos direta e explicitamente, o crescimento populacional como o motor da destruição do meio ambiente. Não é para admirar, portanto, que uma quantidade de livros “verdes” consagrem Malthus como o fundador da ecologia - ignorando o facto de que o autor do "princípio da população" se preocupava tanto com o meio ambiente como um peixe com uma maçã...

 

Na verdade, a maior parte da produção inteletual contemporânea sobre a questão ecológica carreia essas ideias mais ou menos misantrópicas, que não se livram de algumas semelhanças com o dogma do "pecado original". Quer lancem o seu líbelo à "técnica" ou à "população", a maioria das obras vindas ao grande público têm em comum ignorar os modos de produção, as relações sociais e as leis populacionais que deles resultam. A conclusão comum destas análises a-históricas é que a humanidade deve fazer uma revolução cultural, a fim de se conter, alterar os seus comportamentos ou mesmo renunciar ao desenvolvimento, a fim de proteger a "natureza", para se proteger a ela própria eventualmente.

 

Uma revolução cultural na visão das relações entre o ser humano e (a restante) natureza é realmente necessária – voltaremos a falar disso na conclusão -, mas é puro idealismo acreditar que ela seria possível independentemente das lutas sociais por uma profunda mudança na base econômica da sociedade, pois que é a partir desta que a cultura deriva, em última instância. O impasse de raciocínio é ainda mais evidente entre aqueles que denunciam (com razão) a ideologia da dominação humana sobre a natureza... acreditando que os seres humanos devem dominar a sua própria natureza e alterá-la para evitar um desastre ambiental! Estamos aqui em terreno de contradições inextricáveis, cuja única saída prática se arrisca a ser um apoio pragmático ao "capitalismo verde" ou a submissão ao despotismo esclarecido dos peritos verdes - defendida por Hans Jonas - ... ou ambos ao mesmo tempo.

 

Contra estas conceções essencialistas, deve-se salientar que as relações entre o desenvolvimento - técnico e demográfico - e o ambiente não são lineares. Simplesmente não é verdade que todo o progresso técnico seja inevitavelmente sinônimo de destruição ambiental. Consideremos três exemplos: 1) É provável que, em algumas partes do mundo, a invenção da agricultura tenha ajudado a aliviar ecossistemas esgotados por populações de caçadores-recoletores que usaram o fogo como técnica de caça; 2) No século XV, na Europa Ocidental, o aumento da produtividade agrícola resultante da descoberta de que o pousio trienal poderia ser abandonado em favor de uma cultura de leguminosas (porque estas últimas fixam o azoto do ar e, portanto, constituem um "adubo verde") desacelerou a desflorestação, a erosão do solo e o pastoreio florestal dos rebanhos (3); 3) Hoje em dia, sendo indiscutível que a solução da crise ecológica não é primariamente técnica, requerendo uma redução da produção material, ela exige no entanto uma certa forma de desenvolvimento; de facto, para evitarmos graves alterações climáticas, por exemplo, é necessária a transição para um sistema energético eficiente, baseado exclusivamente na implementação e melhoria das tecnologias de conversão de energias renováveis (4).

 

Da mesma forma, não é verdade que uma população mais numerosa leve automaticamente ao aumento da desflorestação, logo a uma maior erosão e destruição de ecossistemas - como afirma Jared Diamond no seu best-sellerColapso’. Em um livro escrito muitos anos antes, Ester Boserup já havia derrubado a tese de Malthus. Ele último argumentou que a população humana aumenta exponencialmente, enquanto a produtividade agrícola está crescendo apenas de forma linear. Boserup mostrou, pelo contrário, que o crescimento da população pode ser necessário para a passagem a técnicas agrícolas mais intensivas, as quais podem, sob certas condições, promover a melhoria sustentável da fertilidade do solo e, consequentemente, a qualidade do ambiente. Mutatis mutandis, este raciocínio ainda é válido hoje: na verdade, uma agricultura biológica de proximidade, a gestão de um sistema de energia renovável e descentralizado, a reforma ecológica das cidades e a restauração dos ecossistemas exigirão uma grande quantidade de mão de obra. Portanto, a população que o capitalismo desdenhosamente considera como "excedentária" deveria, numa outra lógica, ser vista como um trunfo para uma política ecológica.

 

Não se trata aqui de opor um esquema mecanicista otimista a um outro pessimista, mas de verificar que o desenvolvimento humano e o ambiente mantêm relações dialéticas. A técnica e a demografia, obviamente, desempenham um papel (ninguém defenderá que a duplicação da população, ao longo dos últimos trinta anos, não teve qualquer impacto ambiental!), mas o modo como elas afetam o equilíbrio do meio ambiente depende de relações sociais que os seres humanos estabelecem na produção. Alguns exemplos o mostram facilmente:

 

- Por que razão a transição para as energias renováveis continua a ser marginal, quando o seu potencial técnico é suficiente para cobrir mais de dez vezes as necessidades da humanidade (5)? Porque os recursos fósseis são mais lucrativos para o capital, as indústrias que dependem deles constituem o núcleo duro de um sistema tecno-industrial produtivista e as reservas inexploradas de petróleo, carvão e gás figuram em ativo nos balanços das multinacionais;

 

- Porque é que a população "excedentária" não é empregue a proteger e restaurar os ecossistemas, no sentido de uma economia sustentável (no verdadeiro sentido do termo)? Porque estes "serviços ambientais" não são produtores de valor e o capital precisa de uma massa constante de desempregados, para colocar pressão sobre os salários e os benefícios sociais.

 

Não são nem a "natureza humana" nem a "tecnologia" que explicam as respostas dadas a estas perguntas hoje em dia, mas as regras de funcionamento do modo de produção. São estas que determinam o relacionamento da sociedade com o seu meio ambiente e, no fim de contas, a percepção cultural que se faz desta questão. Para entender a crise ecológica contemporânea, devemos pois entrar na esfera da produção capitalista.

 

Valores de uso, valores de troca e as especificidades da crise ecológica capitalista

 

De uma forma muito geral, podemos distinguir dois tipos principais de produção social: a produção de valores de uso – por outras palavras, de utilidades – e a produção de valores de troca – ou seja, de mercadorias. O segundo tipo é característico do capital enquanto relação social. Desde o primeiro capítulo do livro que lhe consagrou, Karl Marx aponta uma série de diferenças entre os dois, das quais pelo menos uma é essencial do ponto de vista ecológico: enquanto a produção de valores de uso tem por objetivo a satisfação de uma necessidade, a produção de valores de troca visa a realização de um ganho de capital que assume a forma abstrata de valor, a forma dinheiro. Parecendo ser potencialmente ilimitada a acumulação sob esta forma, segue-se que a produção de valores de troca supera as limitações das necessidades humanas existentes. Esta diferença contém em germe o grande dinamismo produtivista do capital. Ela ilumina subitamente uma novidade radical da crise ecológica existente desde há dois séculos: nas sociedades anteriores, a degradação ambiental resultava do subdesenvolvimento das forças produtivas (6); sob o capitalismo, ela decorre da tendência à sobreprodução.

 

Podemos então, na esteira de Marx, aprofundar esta comparação: o produtor de valores de uso que vende os seus excedentes no mercado, vende para comprar. O dinheiro serve-lhe apenas como intermediário, numa espécie de permuta melhorada, e o ciclo econômico detém-se no final de contas pela aquisição de um produto equivalente; pelo contrário, o produtor de valores de troca compra para vender, a fim de acumular dinheiro que ele vai usar para ganhar mais dinheiro, investindo em um novo ciclo – mesmo que tenha para isso de criar novas necessidades. De intermediário facilitador das trocas, o dinheiro vai tornar-se agora alavanca e finalidade da produção. Nasceu o capital. Soma de dinheiro que corre incessantemente em busca de um ganho, sob o chicote da concorrência, está condenado, sob pena de ser esmagado, a crescer e transformar constantemente as técnicas, as formas de organização e as necessidades. Esta tendência para revolucionar incessantemente a produção e o consumo explica uma segunda novidade radical da crise ecológica moderna: enquanto o mecanismo das degradações ambientais foi essencialmente idêntico em todas as sociedades pré-capitalistas (desflorestação abusiva e erosão dos solos), o capitalismo está constantemente a produzir novas formas, eliminando algumas e criando outras, frequentemente mais graves. Há constantemente "algo de novo sob o Sol", como diz John McNeil (7).

 

Correndo o risco de simplificar, podemos dizer que a epopeia do capital moderno começa com os "cercamentos" (“enclosures”) na Inglaterra da Idade Média. Durante esta longa vaga de apropriações de terras, os senhores feudais, arruinados pelas suas guerras, escorraçaram os camponeses das terras comuns (“commons”), aí instalando ovelhas, a fim de fornecer lã para a nascente indústria dos cobertores, explorando ainda as florestas para seu lucro pessoal, vendendo a madeira às cidades e para a construção naval. Iniciado a partir do século XII, este processo se desenrola principalmente a partir dos séculos XV a XVIII. Com um resultado triplo: o surgimento de uma massa de pobres sem eira nem beira – os futuros proletários -, o início da transformação dos recursos naturais em mercadorias e uma acumulação de dinheiro nas mãos da classe dominante. De seguida, a transformação dos “comuns” em propriedade privada vai se generalizar ao resto da Europa e do mundo, sob diferentes formas. Sem ela, o capitalismo simplesmente não teria podido desenvolver-se. Porque uma coisa é indiscutível: se não tivessem sido forçados a isso por sua separação repentina da terra sustentadora, nunca os produtores se teriam resignado a vender a sua força de trabalho contra salários de miséria, desde logo nos campos, em seguida em fábricas ou em minas insalubres e perigosas.

 

A dinâmica capitalista de acumulação e transformação constantes levanta obviamente a questão dos limites ao desenvolvimento, em um planeta finito. Até onde irá este sistema de "destruição criativa" ininterrupta? John Stuart Mill queria acreditar que os seus senhores teriam a sabedoria de o estabilizar, para além de um certo ponto. Varrendo esta ilusão, Marx responde corretamente que o capital "não tem como limite senão o próprio capital", ou ainda que "ele tem uma tendência desregrada e desmesurada a ultrapassar os seus próprios limites". Em suma: ele não tem fronteiras, a sua acumulação se espalha facilmente no mercado mundial e não vai parar por si próprio, enquanto haja trabalho para explorar e recursos para saquear. Ele concluiu então com esta fórmula famosa e premonitória: "o capital esgota as duas únicas fontes de toda a riqueza: a Terra e o trabalhador". Ele faz isso a uma escala mundial, o que nos permite aqui introduzir a terceira novidade da crise ecológica do capitalismo: ela não é mais local, como nas outras sociedades do passado, mas sim global.

 

Escrita há mais de um século, por um autor que a maioria dos “Verdes” considera erroneamente como um produtivista (8), esta análise é infinitamente mais útil para entender os nossos problemas atuais do que todas as teorias da moda sobre "a engrenagem técnica” e a “natureza humana". Apesar de algumas ambiguidades, ela permite-nos, como vimos, entender por que razão a crise ecológica moderna começa de repente, no século XIX, distingui-la daquelas que a precederam e identificar as transformações sócio-económicas que a foram preparando ao longo dos séculos anteriores. Ela permite também refazer os passos que nos trouxeram até ao atual impasse e, por seu intermédio, entender o vínculo indissolúvel existente entre a exploração da força de trabalho e o saque de outros recursos naturais. Este último ponto é crucial, pois determina a estratégia a implementar para abrir uma questão que, para ser eficaz, tem que ser conjugadamente social e ambiental – ou, dito de outro modo, "ecossocialista" (9).

 

O mercantilismo e os primeiros passos da destruição ambiental

 

No curso do seu desenvolvimento, o capital franqueou uma série de etapas que tiveram, cada uma delas, um impacto ambiental particular. Como sabemos, o capital existiu primeiro sob as suas formas mercantil e financeira. Antes da Revolução Industrial, ou seja, antes da formação do capitalismo propriamente dito (10), os danos ambientais causados pelo sistema mercantilista foram sobretudo a destruição de florestas e de populações de animais de pele. A partir do século XVI, não era incomum que os senhores europeus, apropriando-se das madeiras comunais, tentassem justificá-lo em nome da proteção dos recursos, pretensamente ameaçados pela propriedade coletiva (11). Na realidade, estas suas precoces profissões de fé ecológica não os impediram de desmatar a um ritmo tal que as autoridades públicas em França (Colbert) e Inglaterra tiveram que tomar medidas de salvaguarda. Não por preocupações ambientais, mas porque o desaparecimento das florestas colocava em risco a construção naval e as primeiras indústrias que utilizavam madeira ou carvão de madeira (12).

 

Não apresentando, para os poderes da época, um interesse estratégico comparável ao das árvores, os animais de pele não tiveram o mesmo tipo de proteção. Uma série de dados sobre este assunto foi compilada por John Bellamy Foster em seu livro ‘O Planeta Vulnerável’. No final do século XVIII, a fauna siberiana tinham sido tão massacrada que os caçadores russos tiveram que mudar as suas atividades para as ilhas setentrionais do Oceano Pacífico, onde dizimaram 250.000 lontras marinhas em quarenta anos. A fauna da América do Norte também pagou um preço muito alto: castores, lontras, guaxinins, ursos, martas e lobos foram caçados para terminarem como tapetes de quarto ou casacos, enchendo os bolsos dos comerciantes. Dez a quinze milhões de castores foram mortos só no século XVII.

 

Outra causa de destruição ecológica no mercantilismo foi a corrida ao açúcar de cana. É um caso interessante porque sublinha bem como a exploração da força de trabalho e de outros recursos naturais andam de mãos dadas sob o capitalismo. A cana-do-açúcar foi de fato a primeira monocultura tropical para exportação para a Europa. Um sistema de produção baseado no trabalho forçado existia na Madeira e nas Canárias desde o século XV. Cristóvão Colombo queria reproduzi-lo em Hispaniola, no Caribe (13). Menos de trinta anos depois, os índios americanos foram dizimados por doenças importadas e péssimas condições de trabalho. O tráfico de escravos negros começou.

 

A feroz sobre-exploração de milhões de homens e mulheres vítimas de comércio triangular foi suficientemente descrita para não precisarmos de voltar ao assunto. As consequências ecológicas da avidez dos plantadores são menos conhecidas. Eduardo Galeano esboça-lhes um retrato marcante: "O açúcar destruiu o nordeste do Brasil. Esta região de floresta tropical foi transformada em savana. Naturalmente propícia para a produção de alimentos, tornou-se uma região de fome. Onde tudo tinha crescido exuberantemente, o latifúndio destrutivo e dominante deixou apenas rocha estéril, o solo esgotado, a terra erodida. (...) O fogo utilizado para limpar a terra para plantações de cana devastou a fauna ao mesmo tempo que a flora: o cervo, o javali, o tapir, o coelho, o tatu e a paca desapareceram. Tudo foi sacrificado no altar da monocultura da cana-de-açúcar".

 

Mas os ricos também têm os seus problemas. Uma contradição entre o capital mercantil e o capital financeiro reside no facto de que os juros pagos sobre empréstimos para expedições longínquas, assim como a venda de bens adquiridos a um preço baixo (graças à exploração do trabalho, à espoliação dos povos conquistados e à pilhagem de recursos) faziam correr nas metrópoles fluxos de numerário largamente superiores às possibilidades de produção de valores de troca industriais ou agrícolas, que eram marginais à época. Em consequência, todo o século XVI experimentou uma inflação significativa. Ela só diminuiu significativamente quando grandes quantidades de capital monetário abandonaram o comércio e a banca para se investirem na indústria e/ou na grande agricultura industrializada.

 

Foi assim que se prepararam as mudanças que levariam, 150 anos depois, à Revolução Industrial. As poucas manufaturas deram lugar a fábricas cada vez mais numerosas, nas quais massas de trabalhadores desapossados dos seus saberes de artesão ou camponês serviam a maquinaria acionada por vapor. A energia provinha da combustão da hulha. Tornada possível pela produtividade da agricultura capitalista, esta brusca mudança marca verdadeiramente a entrada na crise ecológica capitalista moderna.

 

A Revolução Industrial ou a virada para a crise ecológica moderna

 

John Bellamy Foster resume bem esta mudança: "embora a revolução agrícola e comercial do período mercantilista tenha começado a alterar a relação do ser humano com a Terra a uma escala global, o mercantilismo foi principalmente uma fase extensiva de desenvolvimento, que impôs as suas mudanças por um processo de apropriação sobre o meio ambiente, mais do que por uma transformação ecológica. Foi a ascensão do capitalismo maquinista que tornou possível uma verdadeira sujeição ao capital das «duas únicas fontes de toda a riqueza – a Terra e o trabalhador». A exploração do trabalho durante este período tem sido descrita em grande detalhe por muitos escritores populares, como Zola e Dickens. Vamos nos concentrar aqui na «sujeição da Terra»".

 

As suas consequências foram, em primeiro lugar diretas, e de vários tipos: a destruição irreversível das paisagens nas regiões mineiras; a poluição das águas, do solo e da atmosfera (especialmente por metais pesados provenientes do carvão: cádmio, chumbo e... mercúrio, cujos vapores estão viajando em redor do mundo); a acidificação dos ecossistemas (devida às emissões de enxofre), a transformação das cidades em cloacas negras e insalubres (no século XIX, afogadas na fumaça, Londres e Manchester eram quase tão escuras de dia como de noite); e a intensificação da concentração capitalista de terras agrícolas e florestais (causando a separação entre a agricultura e a pecuária e depois a hiperespecialização e padronização subsequentes de cada um desses ramos, com o desaparecimento das raças e variedades locais)... Isto além da emissão de enormes quantidades de dióxido de carbono, que será discutida mais adiante. Face a este inventário negro, o facto de a transição da madeira para a hulha ter permitido à floresta europeia recuperar alguns milhões de hectares pesa pouco...

 

As consequências ecológicas indiretas da Revolução Industrial não foram menos importantes. Uma delas foi a extensão das monoculturas de exportação nos países coloniais. Durante os séculos XVIII e XIX, de facto, o sistema que havia feito a fortuna dos plantadores de cana foi alargado a outras espécies, como a borracha, o algodão, o café, o chá, etc.. Em detrimento da população local, das suas economias, das suas culturas alimentares… e das suas florestas. Assim, enquanto deixava os maciços silvícolas do Velho Mundo sarar as suas feridas, o capital lançou seus lenhadores contra os dos trópicos. A violência do ataque só tem aumentado desde então, devido à chegada da motosserra e do timber jack, por efeito da avidez das papeleiras e dos fabricantes de móveis de obsolescência rápida - para não falar dos produtores de soja transgênica e de biocombustíveis, os últimos a chegar entre os patrocinadores deste massacre.

 

Deve também aqui ser mencionada a degradação do solo devida à ruptura no ciclo dos nutrientes, pois que ela é ainda pouco conhecida. Foi o fundador da química dos solos, Justus von Liebig, que tocou a campainha de alarme: devido à urbanização, os excrementos humanos não voltam para os campos, de modo que os solos foram sendo progressivamente privados dos elementos minerais necessários para a sua fertilidade. O problema também diz respeito às terras coloniais afetas a monoculturas, uma vez que os resíduos dos vegetais exportados não voltam para os campos. Na verdade, vastas áreas agrícolas viram a sua produtividade declinar de forma alarmante. O capital reagiu com... uma corrida ao guano: o Congresso dos E.U.A. adotou em 1856 uma Lei das Ilhas do Guano (“Guano Islands Act”) autorizando qualquer cidadão norte-americano a apropriar-se - em nome da nação – de qualquer ilhota rica em guano (desde que desabitada); uma guerra do guano opôs mesmo a Espanha ao Chile e ao Peru, unidos em defesa de sua soberania sobre o estoque de excrementos de pássaros do Pacífico...

 

Esta febre do guano parou finalmente com a descoberta dos fertilizantes nitrogenados sintéticos. A agricultura capitalista, de seguida, começou a espalhar de tal modo os nitratos que a qualidade das águas está hoje em dia severamente prejudicada em muitas partes do mundo. É preciso saber que os nitratos promovem a proliferação de algas e um acúmulo de matéria orgânica de que resulta o declínio da vida aquática, por défice de oxigênio (eutrofização). Além disso, as águas contendo demasiados nitratos têm efeitos negativos sobre a saúde humana (os nitratos reduzem as capacidades da hemoglobina para fixar o oxigênio no sangue). Finalmente, não só a produção de fertilizantes nitrogenados consome uma grande quantidade de energia fóssil, como, além disso, os nitratos não absorvidos pelas culturas se degradam em óxido nitroso, que é um gás com poderoso efeito de estufa... Aparentemente feliz, o desenlace da crise dos solos é na verdade emblemático da forma como o capital supera apenas os problemas ambientais devidos ao seu frenesim de crescimento empurrando-os mais para diante, de modo que eles se tornam ainda mais complicados de resolver.

 

As primeiras máquinas a vapor eram energeticamente muito ineficientes, mas em 1800, a sua potência já era equivalente à de duas centenas de seres humanos. Um século mais tarde, ela foi multiplicada por trinta. Em sua monumental ‘História do Meio Ambiente no século XX’, J. R. McNeil atribuiu esse progresso à "engenhosidade humana" que criou "novas tecnologias" e “sistemas organizacionais” de grande desempenho. Esta explicação, obviamente, tem alguma dose de verdade, mas ela passa ao lado do essencial, que é o facto de que todo o proprietário de capitais é compelido pela concorrência a buscar incessantemente substituir trabalhadores por máquinas que tornem o trabalho mais produtivo, a fim de ganhar uma vantagem competitiva. Quanto à "engenhosidade humana", ela não se contenta em inventar máquinas: ela preveniu, mas em vão, contra os efeitos negativos da Revolução Industrial (com excepção das alterações climáticas, todas as consequências adversas listados acima foram denunciadas desde o início de industrialização) (14).

 

Acima de tudo, o engenho humano logo chamou a atenção para o facto de que os recursos em carvão, apesar de abundantes, eram necessariamente limitados - tais como os estoques de guano. A partir da segunda metade do século XIX, os investigadores propuseram-se usar o Sol como fonte alternativa de energia (térmica e fotovoltaica), imaginando formas de armazenar essa energia (a pilha de combustível, em particular) para compensar a natureza intermitente do tempo soalheiro. Construíram-se máquinas poderosas para demonstrar a viabilidade de seu projeto... Eles não foram ouvidos. O lobby do carvão anulou os seus esforços, porque estes estavam ameaçando os super-lucros acumulados sob a forma de renda, graças ao seu monopólio sobre as jazidas. Este exemplo de uma encruzilhada tecnológica prova bem que a crise ambiental não é o produto de uma engrenagem inexorável da técnica, mas sim de escolhas sócio-políticas ditadas pelo lucro. Como observa Jean-Baptiste Fressoz, "o esquema simplista", que "oculta a reflexividade ambiental das sociedades passadas despolitiza a longa história da destruição dos ambientes e nos impede de compreender os propulsores da crise contemporânea".

 

Petróleo, petroquímica, nuclear e consumo de massas

 

Tendo provado as vantagens dos combustíveis fósseis, o capital, a partir de 1900, tirou todo o partido possível de uma nova invenção: o motor de combustão interna, utilizando o petróleo refinado como combustível. Uma tonelada de petróleo gera duas vezes mais energia do que uma tonelada de carvão. Juntamente com o desenvolvimento da eletricidade e do motor elétrico, esta descoberta impulsiona a segunda Revolução Industrial. Em torno dos produtores de eletricidade e do setor petrolífero, ainda mais potente e concentrado do que o setor carbonífero, formou-se em seguida um complexo tecno-industrial dependente dos hidrocarbonetos, pesado consumidor de recursos energéticos: o aeroespacial, a construção naval, as máquinas agrícolas e de obras, a petroquímica e, em especial, o automóvel. Dada a importância do comprometimento de fundos para financiar investimentos de longo prazo (centrais eléctricas, refinarias, etc.), este complexo teceu através do tempo ligações de forma cada vez mais estreita com o capital financeiro.

 

Esta nova configuração do capital gera novos atentados ao ambiente. Nos países desenvolvidos, o declínio do carvão a favor do petróleo tornou certamente possível melhorar significativamente a qualidade do ar nas cidades. Mas o uso da hulha começou a se deslocar em direção à periferia, por um lado e, por outro, a explosão do tráfego automóvel após 1945 - favorecido pelo estrangulamento deliberado dos transportes públicos urbanos e peri-urbanos - levou a outros incômodos: poluição atmosférica, as emissões de chumbo e a colonização do espaço por veículos a motor. Para não mencionar o impacto ambiental da própria extração e transporte dos hidrocarbonetos: a contaminação dos solos e das águas, as marés negras, etc..

 

O desenvolvimento da indústria petroquímica é outro exemplo do progresso destrutivo capitalista. Esta indústria colocou no mercado toda uma gama de produtos sintéticos (plásticos e borracha, por exemplo). Ao substituírem os produtos naturais, eles aliviaram ligeiramente os ecossistemas, mas o reverso da medalha, percetível especialmente após 1945, foi o envenenamento químico do planeta (a respeito do qual a bióloga Rachel Carson lançou em vão um grito de alarme). Este foi um salto qualitativo extremamente preocupante e duradouro na história da crise ecológica. Com efeito, a petroquímica produziu em algumas décadas mais de cem mil moléculas que não existem naturalmente, das quais algumas, por vezes muito tóxicas para o ambiente e para os seres humanos, não podem ser decompostas por agentes naturais, ou muito dificilmente o podem.

 

A petroquímica e o motor de explosão deram um novo impulso à concentração de terras, à especialização, à globalização e à industrialização da produção agrícola. Iniciados durante a fase anterior, devido principalmente aos fertilizantes azotados, estes processos conheceram desenvolvimentos dramáticos dos anos 1950, em todo o mundo. Os seus efeitos ambientais e sociais negativos já haviam aparecido nos E.U.A. nos anos 1930, quando a sobrelaboração mecânica de enormes campos no Middle West levou a uma terrível erosão dos solos: na época, três milhões de agricultores arruinados tiveram que deixar suas terras porque o Oklahoma e o Arkansas foram sufocados pela "Dust Bowl" – a bola de poeira. Mas isso não impediu o agronegócio de prosseguir a sua obra destrutiva, especialmente através da chamada "Revolução Verde" imposta aos países do Sul.

 

Por último, tendo a Segunda Guerra Mundial produzido o desenvolvimento da bomba atômica, a mais formidável das tecnologias aprendizes de feiticeiro apareceu nos anos 1950: a geração de eletricidade a partir da energia nuclear. Pode-se certamente falar, neste caso, de uma forma de engrenagem técnica, pois que as centrais civis servem para produzir plutônio, usado para fins militares. Mas essa "engrenagem" não é motivada por qualquer racionalidade econômica (o nuclear não se teria imposto sem investimento público e não seria competitivo se a comunidade não tomasse a seu cargo a maior parte dos custos do desmantelamento das centrais, do armazenamento dos resíduos e dos acidentes); ele não resulta da lógica do "sistema tecnológico", mas sim de opções políticas ditadas pela vontade de supremacia imperialista dos Estados capitalistas.

 

Porque o capital não pode existir sem um Estado ao seu serviço. O grande problema do capitalismo pode ser resumido da seguinte forma: como assegurar a massas de capitais cada vez maiores, e cuja composição orgânica média tende a aumentar, campos de valorização suficientemente vastos, que dêem garantias satisfatórias de que a mais-valia será realizada aquando da venda dos produtos? As fases de desenvolvimento da crise ecológica moderna estão intimamente ligadas às respostas dadas pelo sistema a esta questão crucial. Para isso, ao longo do tempo, a intervenção do Estado tornou-se cada vez mais decisiva.

 

Muito resumidamente, o Estado, na primeira Revolução Industrial, tinha resolvido o problema da sobreacumulação oferecendo ao capital enormes oportunidades de investimento em infraestruturas, particularmente ferroviárias. Com a segunda Revolução Industrial, a questão recoloca-se a uma escala alargada, devido à proliferação de forças produtivas materiais. Em resposta, Ford concebeu garantir à sua mão-de-obra salários que lhe permitissem comprar bens de consumo duráveis, incluindo automóveis. Mas no período entre guerras, as margens de manobra econômica (a taxa de lucro) e política (a ameaça de revolução) eram muito estreitas. Para sair da Grande Depressão, uma outra "solução" se impôs na prática: o fascismo para esmagar a força de trabalho e a guerra para fornecer oportunidades para a indústria - nos armamentos em primeiro lugar e na reconstrução em seguida.

 

Foi através desta medicação de cavalo que a taxa de lucro foi restabelecida e, desde os anos 1950, a sociedade de consumo de massa pôde ser implantada durante trinta anos nos países desenvolvidos (a periferia servindo de reserva de matérias-primas baratas, mas também para escoamento de resíduos perigosos). Além das consequências ecológicas já mencionadas (especialmente a produção de produtos petroquímicos) e apesar da tomada de consciência ambiental das populações, este período começou principalmente por destacar dois problemas globais: o buraco na camada de ozono estratosférica (devido ao uso de CFCs em equipamentos de refrigeração) e uma verdadeira explosão nas emissões de gases com efeito estufa, de modo que o "Trinta Anos Gloriosos" merecem ir para a história como o momento em que a sede de lucros capitalista levou a humanidade à beira de uma inflexão climática catastrófica e irreversível (15). Mais amplamente, os estudos sobre a crise global mostram claramente que todos os fenómenos de degradação ambiental grave se aceleraram dramaticamente durante este período (16).

 

Felizmente para o meio ambiente - mas infelizmente para o emprego - esta "onda longa de crescimento" (nas palavras de Ernest Mandel) tinha de se esgotar com o decurso do tempo, como as precedentes. O ponto de viragem ocorreu no início dos anos 70 do século passado. Uma década mais tarde, os governos orquestraram a ofensiva neoliberal de desregulamentação e de regressão social, que escancarou as portas para a economia de casino. A taxa de lucro foi restaurada, mas não o escoamento da produção. O que fazer com essas massas de capital-dinheiro ganhas através da especulação? O problema da sobreacumulação tornava a colocar-se, de uma forma mais aguda do que nunca!

 

A resposta do sistema dividiu-se em sete vertentes: crédito barato para os pobres, consumos de luxo para os ricos, privatização do setor público, nova vaga de apropriação de recursos (águas, genoma, sementes, terras aráveis), flexibilidade e "just in time", acelerada obsolescência dos produtos, globalização e deslocalização da produção para os países da periferia – a fim de inundar os mercados ocidentais com produtos de consumo baratos. Uma tal resposta só poderia agravar o impacto ambiental da segunda Revolução Industrial: explosão dos transportes; aceleração da destruição dos habitats naturais, da pilhagem dos recursos e da extinção de espécies; exportação maciça da poluição para os países emergentes; e... incapacidade persistente para travar o aquecimento global do planeta (17).

 

"The future we don’t want": a repetição dos cercamentos em um contexto de destruições ecológicas exacerbadas

 

A fatura ecológica é particularmente pesada nos países emergentes, onde a lei do desenvolvimento desigual e combinado faz com que as últimas ameaças contra o meio ambiente (petroquímica, nuclear, transgênicos) coexistam maciçamente com as da primeira Revolução Industrial (carvão)... e os efeitos do aquecimento global, que afetam principalmente as regiões tropicais e subtropicais. Mas o planeta inteiro, de norte a sul, enfrenta agora a formidável "dívida ecológica" acumulada pelo capital. Neste início do século XXI, a humanidade é tomada firmemente em tenaz entre a crise sócio-económica e a crise ecológica global.

 

A política neoliberal levou ao colapso de 2008, com a crise do crédito subprime e sua transformação em crise das finanças públicas. O marasmo é profundo. Mais uma vez, o capital procura, portanto, uma forma que lhe permita reavivar a sua acumulação. Desde 2008, as instâncias internacionais (Secretaria-Geral das Nações Unidas, Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, Banco Mundial, OCDE...) dedicam relatórios pesados à transição para uma "economia verde". Um projeto de resolução sobre o assunto, intitulado ‘O Futuro que Queremos’ (“The future we want”) foi escrito para a cimeira Rio+20 das Nações Unidas. Tratar-se-ia de relançar o crescimento e atender às necessidades sociais, ao mesmo tempo que se salva a biodiversidade, os oceanos, as florestas, os solos e o clima da Terra. Mas isso é uma ilusão. Lendo esta prosa cuidadosamente, apercebemo-nos de que ela é, na verdade, um ambicioso projeto para privatizar de forma ainda mais sistemática os recursos naturais, de modo a que todos os "serviços da natureza", sem exceção, sejam transformados em mercadorias. De passagem, a preocupação com os limites ecológicos do desenvolvimento é varrida sem cerimónia para debaixo do tapete (18).

 

Na base deste projeto, há uma avaliação económica: de acordo com alguns partidários da chamada Economia Ecológica (“Ecological Economics”), com efeito, o valor líquido dos "serviços" que a biosfera faz à humanidade seria de cerca de 33 triliões de dólares. Este número, apresentado por Robert Costanza (19), é mais do que questionável, mas uma coisa é certa: se os "serviços" ambientais estivessem em mãos privadas e se os consumidores tivessem de os comprar no mercado, o capital teria diante de si um novo Eldorado. Podemos imaginar, por exemplo, que as florestas sejam totalmente privatizada e que os sete biliões de inquilinos do planeta tenham de pagar o "verdadeiro preço" da absorção de CO2 pelas árvores... Note-se que este cenário não é já inteiramente ficção política: o "verdadeiro custo" é praticado no sector das águas; quanto aos proprietários florestais, eles já estão a ser remunerados pela captura de CO2, no contexto dos programas REDD e REDD+ de "luta contra as alterações climáticas".

 

Nascido da separação entre os produtores e a terra (os "cercamentos"), o capitalismo, ao envelhecer, teria encontrado o caminho para a erradicação da pobreza no contexto de uma "harmonia redescoberta com a natureza"? Na verdade, não: 1) Uma proporção significativa da "indústria verde" é apenas potencialmente lucrativa; a maioria das fontes de energia renováveis, em particular, não são competitivas com as fontes fósseis, nem o serão nos próximos quinze ou vinte anos. 2) Quantidades colossais de capital muito poderoso estão bloqueadas no sistema de energia atual, onde os investimentos são de longo prazo; dois exemplos: o custo total de substituição das centrais fósseis e de energia nuclear é estimado entre 15 e 20 triliões de dólares (de um quarto a um terço do PIB mundial!) (20) e as reservas provadas de combustíveis fósseis - que fazem parte dos ativos dos lobistas do carvão, do gás e do petróleo - são cinco vezes maiores do que o orçamento de carbono que a humanidade ainda se pode permitir queimar (21); 3) A maior parte dos recursos naturais são de propriedade pública ou não pertencem a ninguém, não sendo mensuráveis em termos monetários. O facto de se pagar uma renda aos proprietários abre novos campos de acção para o capital financeiro, mas não resolve de modo algum o problema da criação de novo valor.

 

O mínimo que se pode dizer é que a "economia verde" não lança qualquer ponte para um "desenvolvimento sustentável". Nas próximas décadas, apesar de haver uma emergência, o coração do sistema produtivo capitalista será composto pelos lobbies da energia fóssil e pelos setores dependentes do petróleo. A petroquímica manterá um papel fundamental e o seu impacto ambiental permanecerá grave. Paralelamente a este núcleo duro, um setor verde do capitalismo - no qual o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e a Agência Internacional de Energia incluem o nuclear, os biocombustíveis e o "carvão limpo", o que diz tudo! – poderá vir a se desenvolver... desde que os Estados lhe abram o caminho, a golpes de privatizações, de subsídios públicos, de desmantelamento das proteções sociais e de negação de direitos aos povos indígenas.

 

O relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) dedicado à economia verde diz sem rodeios: "a subvalorização, má gestão e, em última análise, a perda" de "serviços ambientais" foram "causadas" pela sua "invisibilidade econômica", que deriva do facto de se tratarem "principalmente de bens e serviços públicos". "Os setores da finança e do investimento controlam biliões de dólares e são capazes de fornecer o grosso do financiamento (...)". Mas as taxas de lucro são insuficientes, de modo que "o financiamento público é essencial para desencadear a transformação da economia".

 

Você disse: "financiamento público"? Mas de onde viria o dinheiro, quando os Estados estão afogados em dívidas? O PNUMA não foge à questão: em vez de procurar compromissos entre o econômico e o ambiental, o que se trata é de adotar a "abordagem económica certa". E esta consiste em realizar as "reformas necessárias para desbloquear o potencial produtivo e de emprego de uma economia verde", que vai agir "como um novo motor, e não como um retardador de crescimento." Em suma: acentuar as políticas neoliberais contra o mundo do trabalho, os jovens, as mulheres, os pequenos agricultores e os povos indígenas.

 

Dois séculos após o seu nascimento, um capitalismo doente, esmagado sob as dívidas, quer impor à humanidade uma réplica global dos "cercamentos", combinada com a prossecução dos seus outros crimes sociais e ambientais. Eis ao que levou a lógica produtivista deste sistema que "esgota as duas únicas fontes de riqueza - a Terra e o trabalhador" - no altar do lucro. O interesse do(a)s explorado(a)s e oprimido(a)s é enfrentá-lo com reivindicações ecossocialistas, contrapondo sistematicamente à lógica do crescimento e do lucro a lógica alternativa dos bens comuns, do tempo livre e da satisfação das necessidades humanas reais, democraticamente determinadas, no respeito prudente para com os ecossistemas.

 

Não é suficiente dizer que o áspero individualismo imposto pelo desenvolvimento capitalista - nomeadamente por causa dos padrões de mobilidade e habitat induzidos pela viatura particular e pela especulação fundiária - é um obstáculo significativo. Mas o pessimismo da razão não exclui o otimismo da vontade. Como observou François Chesnais, o encontro entre as crises econômica e ecológica criou condições propícias para o surgimento de uma consciência e de lutas ecossocialistas. É através destas últimas, à medida que se for conquistanto uma reapropriação coletiva dos recursos naturais, que se irá forjar uma cultura das relações entre a humanidade e o seu ambiente "com base na premissa do nosso engajamento no mundo, em vez do nosso desapego em relação a ele".

 

 

 

 

 

(*) Daniel Tanuro é um engenheiro agrónomo e ambientalista belga, membro da ONG Climat et justice sociale e colaborador habitual da revista ‘Le Monde Diplomatique’. É autor do livro L’impossible capitalisme vert, La Découverte, Paris, 2010 e co-autor de Pistes pour un anticapitalisme vert, Syllèpse, Paris, 2010. Foi também autor do longo ‘Relatório sobre mudanças climáticas adotado para servir de base à resolução que seria tomada sobre o assunto no 16.º Congresso Mundial da IV Internacional (Secretariado Unificado) em março de 2010. O presente texto foi publicado na edição especial de ‘La Gauche’, Bélgica, julho-agosto de 2013, com prefácio de Michael Löwy. O original francês está disponível em linha no sítio Europe Solidaire sans Frontières (ESSF). Tradução de Ângelo Novo.

 

 

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NOTAS:

 

(1) Nós não somos os únicos "produtores de natureza". À escala geológica do tempo, algumas espécies transformaram o mundo em uma escala que excede em muito o que o ser humano foi capaz até agora.

 

(2) Lebeau considera que a técnica não é especificamente humana, de modo que a engrenagem fatal, para ele, começou ainda antes do aparecimento dos primeiros hominídeos.

 

(3) Em relação a estes dois pontos, ler respectivamenter Marcel Mazoyer e Laurence Roudart, bem como Peter Westbroek.

 

(4) O conceito de "sistema de energia" é usado aqui no sentido que lhe foi dado por Barry Commoner e aprofundado por Jean-Paul Deléage e consortes.

 

(5) Painel Internacional sobre Mudanças Climáticas (PIMC), Relatório Especial sobre Energias Renováveis e Mudança Climática, 2011.

 

(6) Os principais episódios de degradação ambiental nas sociedades pré-capitalistas estão ligados à penúria causada por práticas agrícolas muito pouco produtivas.

 

(7) McNeil, entretanto, não consegue fazer a ligação entre a novidade da crise ambiental e o triunfo do modo de produção capitalista.

 

(8) Assim como a ditadura estalinista, o produtivismo bem real da U.R.S.S. e dos seus países satélites não pode ser atribuído à responsabilidade de Marx. Eu tentei analisá-lo comparando-o ao produtivismo capitalista em meu livro O Impossível Capitalismo Verde, Edições Combate, Lisboa, 2012.

 

(9) O conceito de ecossocialismo foi desenvolvido por Michael Löwy e Joel Kovel, autores de um "Manifesto Ecossocialista".

 

(10) Convém fazer uma distinção entre capital e capitalismo. O capital – uma soma de dinheiro que corre à procura de uma mais-valia - existe desde os tempos antigos. O capitalismo - uma sociedade de produção generalizada de mercadorias - triunfa na Inglaterra no início do século XVIII e impõe-se de seguida a todo o planeta. A destruição ecológica capitalista começa assim antes do capitalismo propriamente dito.

 

(11) Apresentar-se como protetores da natureza é uma tendência recorrente entre os proprietários florestais, como se constata, por exemplo, pela leitura do romance de Balzac "Os camponeses".

 

(12) Assim fazendo, Colbert e seus contemporâneos, foram no entanto mais racionais do que os atuais dirigentes, que permanecem de braços cruzados enquanto estão plenamente conscientes das graves consequências da crise climática, entre outras.

 

(13) Hispaniola é o nome dado no século XV à ilha presentemente compartilhada pelo Haiti e a República Dominicana.

 

(14) Uma grande quantidade de artistas, jornalistas, cientistas e médicos rapidamente denunciou os efeitos ambientais negativos da industrialização. Em 1830, o inventor do martelo a vapor, James Nasmyth, descreveu assim as vizinhas ferragens Coalbrookdale: "A erva estava seca e morta pelos vapores de ácido sulfúrico escarrados pelas chaminés; e toda a planta herbácea era de um cinza horrível - o símbolo da morte vegetal em sua aparência mais triste".

 

(15) De acordo com o PIMC, as condições a cumprir para que a temperatura média da superfície terrestre não exceda 2,4º C de aumento em relação aos tempos pré-industriais são as seguintes: redução de 50-85% das emissões globais de aqui até 2050; início dessas reduções, o mais tardar, até 2015; de 80-95% de redução absoluta (em relação a 1990) nos países desenvolvidos, passando por 25-40% até 2020; 15-30% de redução relativa nos países "em desenvolvimento". Após o fracasso das cimeiras de Copenhaga e Cancun é de excluir que estes objectivos sejam cumpridos. Eles não podem sê-lo sem uma ruptura com o produtivismo e sem um planejamento econômico. O cenário mais provável é um aumento da temperatura de 4° C no final do século, levando nomeadamente a um alteamento significativo do nível dos mares.

 

(16) Ver, por exemplo J. Rockström, W. Steffen, K. Noone, Å. Persson, F. S. Chapin III, E. Lambin, T. M. Lenton, M. Scheffer, C. Folke, H. Schellnhuber, B. Nykvist, C. A. De Wit, T. Hughes, S. van der Leeuw, H. Rodhe, S. Sörlin, P. K. Snyder, R. Costanza, U. Svedin, M. Falkenmark, L. Karlberg, R. W. Corell, V. J. Fabry, J. Hansen, B. Walker, D. Liverman, K. Richardson, P. Crutzen e J. Foley. 2009. «Planetary boundaries: exploring the safe operating space for humanity», in Ecology and Society 14 (2).

 

(17) Desde 2000, a taxa anual de aumento das emissões de gases com efeito de estufa é superior a 3%; foi de 1,3% na década de 1990.

 

(18) Para uma análise mais detalhada da "economia verde" e da Cimeira Rio+20, leia-se o meu artigo “Rio+20: «The future we don’t want» – celui où conduit la destruction sociale et écologique capitaliste”.

 

(19) Robert Costanza, um dos fundadores da Ecological Economics, publicou em 1997 na revista Nature um artigo que teve uma grande repercussão. Seu título: "Dando um preço à Natureza".

 

(20) Nações Unidas, World Economic and Social Survey, 2011 .

 

(21) De acordo com os cálculos do Instituto Potsdam e da ONG Carbon Tracker. Em 2011, a economia global já tinha utilizado um terço do orçamento de carbono de 886 gigatoneladas de dióxido de carbono (Gt de CO2), que deveria respeitar durante o período de 2000-2050 para termos alguma hipótese de ficar abaixo de 2° C de aumento de temperatura. O saldo disponível é agora apenas de 565 Gt de CO2. As reservas provadas de combustíveis fósseis nas mãos de empresas públicas, privadas e de governos, correspondem à emissão de 2.795 Gt de CO2, quatro vezes mais.

 

 

 

Autores e obras citados:

 

Ester Boserup, Évolution agraire et pression démographique, trad. française de 1970, 224 p., coll. Nouvelle bibliothèque scientifique, Flammarion.

 

Rachel Carson, Printemps silencieux, Plon, 1963.

 

François Chesnais, «Ecologie, luttes sociales et projet révolutionnaire pour le 21e siècle», in Pistes pour un anticapitalisme vert (coord. Vincent Gay), Syllepse, 2010.

 

Barry Commoner, The poverty of Power. Energy and the Economic Crisis, New York: Random House, 1976.

 

Jean-Paul Deléage, Daniel Hémery e Jean-Claude Debeir, Les servitudes de la puissance, Flammarion, 1992.

 

Jared Diamond, Collapse. How Societies Choose to Fail or to Survive, Penguin books, 2005.

 

Jean Dorst, Avant que nature meure, Delachaux et Niestlé, 1965.

 

Paul e Anne Ehrlich, The population bomb, Buccaneer books, 1968.

 

Jacques Ellul, Le Système technicien, Calmann-Lévy, 1977.

 

John Bellamy Foster, Vulnerable Planet. A short economic History of the Environment, Monthly Review Press, 1999.

 

John Bellamy Foster, Marx’s Ecology. Materialism and Nature, Monthly Review Press, 2000.

 

Jean-Baptiste Fressoz, L’apocalypse joyeuse, Seuil 2012.

 

Eduardo Galeano, Les veines ouvertes de l’Amérique latine, Plon, 1981.

 

Tim Ingold, The Perception of the Environment. Essays on Livelihood, Dwelling and Skill, Routledge, 2000.

 

Hans Jonas, Le principe responsabilité, Poche, 1999.

 

Joel Kovel et Michaël Löwy, Manifeste écosocialiste, 2001.

 

André Lebeau, L’engrenage de la technique, Gallimard, 2005.

 

James Lovelock, La Terre est un être vivant, l’hypothèse Gaïa, Flammarion, 1999.

 

Ernest Mandel, Long Waves of Capitalist Development. A Marxist Interpretation, Verso, 1995.

 

Marcel Mazoyer et Laurence Roudart, Histoire des agricultures du monde. Du néolithique à la crise Contemporaine, Seuil, 1997.

 

John McNeil, Du nouveau sous le soleil. Une histoire de l’environnement au XXe siècle, Champ Vallon, 2010.

 

Programme des Nations Unies pour l’Environnement (PNUE), Vers une économie verte, 2011.

 

Daniel Tanuro, L’impossible capitalisme vert, La Découverte, 2010.

 

Daniel Tanuro, «Marxisme, énergie et écologie: l’heure de vérité» in Pistes pour un anticapitalisme vert (coord. Vincent Gay), Syllepse, 2010.

 

Peter Westbroek, Vive la Terre. Physiologie d’une planète. Seuil, 1998.