O sono como última barreira ao capitalismo:

três etapas da teoria em relação ao tempo livre

 

 

Tiago Basílio Donoso (*)

 

 

Resumo: O presente artigo visa demonstrar três fases distintas do capitalismo em sua relação com o tempo livre. Primeiro, de como a teoria teve, em sentido de urgência, que se preocupar com o tempo de exploração do trabalhador dentro da fábrica (Marx). Em um segundo momento, como a preocupação teve que se expandir ao tempo livre, o qual, em meados do século XX, já havia se tornado amplamente mediado para o consumo (Adorno). E, em um terceiro momento, a situação atual, na qual o capital tomou todas as barreiras naturais, tendo como último empecilho apenas o inevitável momento de repouso que é o sono, e como tem tentado também subtraí-lo (Crary).

 

 

 

Lá o pastor que entra saúda o pastor que sai. Quem escuta responde.

Lá um homem sem sono poderia dobrar o salário, tangendo bois e apascentando ovelhas de branco velo, tanto se aproximam ali os caminhos do dia e da noite.

(Passagem da Odisséia, na qual Ulisses aporta em uma ilha de pastores canibais).

 

Temos visto recentemente um movimento de consumo em direção a produtos “integrais”, “orgânicos” e ditos “artesanais”. Quando nos deparamos com um anúncio em que camponeses se dirigem para ordenhar suas vacas ao lado de grandes latões de leite, ou com um anúncio saudosista, em que os consumidores são retratados por desenhos em estilo belle époque, somos talvez induzidos a um pensamento reconfortante: o capitalismo está sonhando, utopicamente, com momentos em que não era tão rapaz, e muitas vezes com momentos em que sequer existia. Mas seria difícil pensar que o capitalismo pudesse arrepender-se. Embora no capitalismo haja sim o sentimento de culpa, ele é apenas motor de mais consumo, como há muito tempo Walter Benjamin pôde perceber (BENJAMIN, 2013, p. 21-27). Contrição, contudo, não faz parte de sua teologia.

 

Como poderemos ver adiante, tais “sonhos” capitalistas encobrem seu verdadeiro sonho, o da subsunção de todas as esferas da vida pública e privada ao seu afã de competição e consumo e, afinal, a sua obsessão pelo lucro. A argumentação deste artigo se dará de modo a exibir esse desejo imanente do capitalismo desde suas origens - o de tudo subsumir a si – e, como não caberá aqui a explanação de nossas possibilidades de defesa, poderá também parecer fatalista. Mas a História tem nos ensinado a não menosprezar essa recente ambição ilimitada pelo lucro; quanto às possibilidades de resistência, haverá momentos mais oportunos para elencá-las ou sugeri-las. Tentar expô-las aqui seria excessivo para as dimensões e limites do nosso artigo.

 

Portanto, tais “sonhos” capitalistas podem ser vistos tanto como uma cortina de fumaça quanto como cinismo, se se levar em conta a ironia que muitas vezes acompanha suas imagens publicitárias. Se seu verdadeiro desejo é, como veremos, ampliar-se à última fronteira ainda não conquistada, a do sono, então esse cinismo torna-se compreensível: é em seu ponto de maior poder no decorrer de sua breve história que o capital pode munir-se de palavras como “integral”, com sua ressonância à ideia de totalidade, e “artesanal”, evocando aquilo que ele mesmo destruiu, palavras que já foram utilizadas para dar sentido à vida e que agora se referem a pacotes de aveia produzidos em série ou a cervejas gourmet. Esse momento de maior força e pressão do capital sobre todas as esferas de nossa vida é o tema do presente artigo, que descreve de um modo breve e diacrônico três instâncias do poder do capital em relação ao trabalho e ao tempo livre. Para que possamos compreender melhor o que queremos dizer com essa ampliação de seu poder, mesmo antes de dar início à argumentação, vale uma referência ao estado de coisas no final do século XIX.

 

Para Hobsbawm, a era dos Impérios inaugurou um neologismo: a palavra “imperialismo”, hoje indissociável de seu aspecto pejorativo. Neologismo porque a forma imperial do fim do século XIX e do início do século XX era uma forma capitalista de expansão e unificação de mercados, nunca antes vista, mesmo nos maiores impérios que historicamente a precederam. No entanto, como diz Hobsbawm, ainda era preciso considerar que havia “sociedades pequenas em que os conceitos de trabalho e lazer não tinham sentido, nem existiam palavras para dizê-los” (2014, p. 34). Passados mais de cem anos, certamente de muita resistência e não obstante de expansão capitalista

a fronteiras que não imaginaríamos trespassadas pelo afã do lucro, o capital parece ter tomado para si também essa frase de Hobsbawm e a reformulado, com as mesmas palavras e um sentido totalmente novo. Pois chegamos a um momento – é isso o que demonstra os textos que analisaremos, de Marx, Adorno e Jonathan Crary – em que não há palavras para dizer ou diferenciar o trabalho do tempo livre, já que ambos se voltaram e se escoraram em um mesmo conceito, o de consumo (como veremos, atualmente vinculado ao uso da tecnologia). Indiferenciados, os conceitos de trabalho e tempo livre estão ambos subsumidos ao controle do capital. Assim, aquilo que poderia parecer idílico, uma época de ouro em que havendo abundância de possibilidades de trabalho, de lazer e de alimento (id., ibid.) os conceitos de trabalho e de tempo livre pudessem permanecer indiferenciados sem com isso causar sofrimento e dominação, hoje, na boca do capital que sonha em devassar a última fronteira do sono e torná-lo também tempo para trabalho e para consumo, a indiferenciação conceitual entre ambos soa como um terrível grito de vitória, de algo que munido da nossa própria força é capaz de nos tornar despojo dos vencedores. Este artigo, portanto, tem o intuito de lembrar momentos históricos distintos da separação entre trabalho e tempo livre, para que haja ao menos palavras e conceitos com que expressá-los. Assim será possível ao menos observar com que gesto o capitalismo hoje diz: “assim como no passado, os conceitos de trabalho e de lazer não têm sentido, nem existem palavras para dizê-los”.

 

 

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Um dos principais objetos da teorização da exploração capitalista em Marx é a exploração do trabalho. O meio dessa exploração é o de mais-trabalho para a obtenção de mais-valia. A matemática é consideravelmente simples: trabalho mais mais-trabalho compõe a jornada, sendo que o capitalista tenderá a estender o mais-trabalho, fonte da mais grossa parte de seus lucros, a extrapolar todos os limites, sem deixar intactos mesmo os naturais. “O capitalismo tem um único impulso vital, o impulso de valorizar-se” (MARX, 1996, p. 347). Essa variável, a raiz da capacidade capitalista, transforma a então simples matemática em delírio e já no século XVIII barreiras naturais, como a do sono para reposição das forças de trabalho, são atropeladas até que sejam reafirmadas por regulamentações estatais. À parte o absurdo de ser relegado ao Estado o bom funcionamento de coisas que, como o descanso após o esforço, naturalmente por si só deveriam ter seu bom funcionamento (deixando claro que as conquistas não foram desse mesmo Estado, mas da luta proletária e do esgotamento das forças produtivas), constata-se que já em seu início fabril o capital quis roubar do indivíduo a integralidade de sua vida. Não porque desejasse anular o trabalhador, privá-lo de sua competência política, mas porque desejava o lucro e para tal disporia da força de trabalho, comprada como mercadoria, como bem lhe aprouvesse.

 

Em seu início, e aos olhos de hoje um tanto infantil em sua explícita voracidade, o capital encontrou como exploração apenas este modo absolutamente cruel: gastar a vida do trabalhador, de crianças de seis anos a mulheres e homens, o maior tempo possível dentro das fábricas; através de uma nova mecânica, transformar sujeitos em horse power. Para isso, a matemática, que inicia simples no capítulo oitavo de O Capital até se tornar um arabesco, é utilizada de formas irreais para burlar a letra da lei e fazer com que a fábrica pudesse estar em pleno funcionamento 24 horas por dia, sete dias por semana.

 

Embora a expropriação das 24 horas do dia não seja a finalidade última do capital, este parece não se contentar com uma barreira a seu desejo ilimitado de lucro. Segundo Marx, todas as barreiras seriam atacadas: idade, sexo, moral, dia e noite. Em 1860, um juiz inglês “[...] teve de empregar argúcia verdadeiramente talmúdica, para esclarecer ‘juridicamente’ o que seja dia e o que seja noite” (idem, p. 391). Turnos atropelavam-se, estendendo-se pela madrugada, computando dias de trabalho não raro maiores que 24 horas; ou eram fragmentados para burlar a lei: adultos e crianças (a regulamentação era mais estrita para estas, as quais, contudo, junto com as mulheres, eram força de trabalho mais barata) entravam na fábrica, trabalhavam meia hora, uma hora, eram expulsos da fábrica, voltavam algum tempo depois, de modo que perfizessem as 10 horas prescritas pela lei em 15 horas, o que propiciava ao capital ter suas máquinas em funcionamento ininterrupto (idem, p. 404). Novas barreiras a muito custo foram impostas, paulatinamente, em diversas áreas. Porém, ainda no período em que era escrito O Capital, muitas áreas fabris ainda careciam de regulamentação.

 

O tempo livre, contudo, era do trabalhador. Embora de início fosse quase nulo e somente para descanso, logo pôde se tornar também um tempo com potencial político que, incluindo seu número abundante de dias “santos”, chegava até mesmo a incomodar a burguesia (RANCIÈRE, 1988; HOBSBAWM, 2014). A teoria sobre o capital no século XIX não necessitava ainda se debruçar sobre o tempo livre. Não apenas coisas mais urgentes estavam necessitando atenção – como a redução da jornada por novas legislações ou condições precárias a serem denunciadas e transformadas – mas também é-se levado a crer que a mediação capitalista ainda não havia penetrado todos os recantos da vida privada. Para roubar o sono de um indivíduo, o lucro necessitava ainda rusticamente de tirá-lo da cama, colocá-lo de pé na fábrica; era então o capital quem consumia – e a metáfora de Marx é a do vampiro que suga o sangue do trabalhador, algo sem vida que necessita de vida para existir – e o fazia da maneira mais literal possível: consumindo braços, pernas, pulmões. Quanto ao tempo livre, é Marx quem diz que o trabalhador necessita de tempo para si, “para satisfazer necessidades espirituais e sociais” (Befriedigung geistiger und soziale Bedürfnisse (idem, p. 346). Porém, todo tempo do trabalhador gasto para si mesmo, enquanto mercadoria comprada pelo capitalista, é sentido como um roubo a este último (idem, p. 347). Ainda que fossem terríveis as condições de trabalho, vê-se que algo ainda passava despercebido: a história recente do capital pode ser descrita como a forma em que o mesmo devora o tempo, fragmentando-o em pequenas partes, como, aliás, é todo processo de digestão, de consumo.

 

Caminhando em frente quase um século, a teoria viu-se obrigada a falar do tempo livre. Algo havia ocorrido. Mesmo a ideia de “indústria cultural” já demarcava uma tendência, a de observar em aspectos da superestrutura uma forma nova de operação daquela mesma voracidade, que em momento algum parece ter-se reduzido – aquilo que não muda é obrigado a disfarçar-se, renovar-se para permanecer igual, já que a mudança é regra imanente, dialética da existência, e aquilo que quer permanecer deve, ao menos, ter a dignidade de encenar diferenciações; não à toa a máscara é sedutora por ter algo de imutável. Embora, como aponta Crary (2013), as inovações do capital tenham encontrado de fato períodos de relativa estabilidade, o capital não pôde perder aquele que é, como dito antes, seu impulso vital. A produção de mais-valia teria que se espalhar por todas as esferas da vida pública e privada. Se o trabalho era já absorvido e mediado enquanto força de produção, enquanto mercadoria adquirida pelo capital, o tempo livre teria que se transformar em período também de mais-valia, através do consumo.

 

Escrito em 1969, o ensaio de T. W. Adorno Tempo Livre demonstra essa transformação do capitalismo, da exploração do trabalho à exploração também do tempo livre, de modo a torná-los indistintos. Aliás, a indistinção do que preservava em si algo de dicotômico é uma das formas em que o interesse do capital se faz ver, em todas as esferas da vida social. A indistinção de gêneros, idade, dia e noite, natureza e artificialidade, antes de servir ao indivíduo serviu a uma lógica básica do capital: a da substituição do valor de uso pelo valor de troca (BROWN, 2014; CRARY, 2013). Mascarada por um princípio democrático e libertário, essa indistinção permitiu o uso de trabalhadores em todas as horas do dia, de todas as idades e gêneros, em nome do que os capitalistas chamavam no século XIX de “liberdade de trabalho”. A relativização, aqui, foi antes de tudo uma racionalização dos modos de produção; a relativização burguesa permitiu à classe dominante do século XIX a volubilidade de que fala Schwarz (1990) sobre o narrador em Machado, ao mesmo tempo liberal e escravista, ou a defesa do capitalista tanto da jornada alternada para perfazer o total de 24 horas quanto da jornada fixa para os mesmos fins, em ambas alegando argumentos sobre a saúde do trabalhador (MARX, 1996, p. 374-375). Para Adorno (1995, p. 65), contudo, toda indistinção é suspeita aos olhos da ideologia dominante. Mas é através da divisão estrita entre trabalho e tempo livre que uma indistinção mais profunda ocorre. Essa indistinção já se fazia ver na segunda metade do século XX, tendo Adorno chamado atenção para essa metamorfose do tempo livre em tempo de consumo.

 

“O tempo livre é acorrentado ao seu oposto” (idem, p. 63), diz a célebre frase de Adorno. Se a teoria havia se ocupado da jornada de trabalho, agora deveria ser capaz de demonstrar quanto o tempo que não é trabalho havia se tornado um apêndice de seu contrário. A metonímia sendo permitida, podemos dizer que o capitalismo não havia desistido de seu sonho inicial, a sua imanente avidez (Heiβhunger) que culmina com a absorção integral do indivíduo em seu esquema de produção e consumo. Dito de outro modo, não se contentaria com a subsunção formal ao mercado, onde um produto é absorvido pelas leis correntes de troca e consumo, e se dirigiria à sua subsunção real, isto é, a determinar o produto antes e durante sua produção (BROWN, 2015, p. 11-33, principalmente sobre o estado da arte na era da subsunção real ao Capital). De todo modo, a forma em que essa indistinção entre trabalho e tempo livre ocorreu foi o da separação radical entre um e outro. Se o trabalho era o tempo da concentração e do esforço, o tempo livre seria do relaxamento, do entretenimento, de tudo aquilo que não lembrasse o rigor do trabalho. Essa inconsciência, esse deixar-se levar do tempo livre foi o que abriu as portas para uma sub-reptícia reificação também do tempo livre; foi aberto espaço para que fosse “determinado desde fora” (ibid.). O hobby o atesta: para Adorno, por mais que se queira evitar tudo o que lembre trabalho, algumas formas de comportamento típicas do trabalho ali são “contrabandeadas”; além do mais, um mercado do hobby, em outras palavras um mercado do tempo livre, se estabelece e torna coisificado aquilo que antes continha em si possibilidades de emancipação. Assim, segundo seu exemplo, o camping. De início uma forma de “sair” do convencionalismo burguês, tornou-se uma indústria com ofertas de guias, motor-homes, barracas, etc. A liberdade tornada compulsória perdia seu caráter de liberdade.

 

Outros exemplos de que o tempo livre estava por se tornar totalmente mediado eram o de Do it yourself (uma ideologia que vendia descaradamente a lógica do trabalho para o tempo livre, como ao mesmo tempo meio de economia de serviços e de aniquilação do tempo), do turismo, cosméticos, etc. Enquanto permanência do sempre-igual, finalmente o tempo livre tornou-se o apêndice do tempo de trabalho do qual falava Adorno. Hoje, o turismo é um bom exemplo da extensão na qual a mediação tomou de assalto o tempo resguardado à liberdade, ou a ações singulares do sujeito. Se o declínio da experiência culminou em um declínio da narrativa, como disse Benjamin (1986), as viagens de turismo hoje em dia demonstram sua ausência de experiência justamente pelo aspecto entediante da exibição de fotografias e das narrativas de viagem. A observação da cultura, da culinária, da paisagem cenográfica é tão desinteressante quanto é reprodução de panfletos e de ideias prontas, antecipadas e, portanto, mediadas. A narrativa de viagens só se torna interessante quando confrontada com um contratempo. A chuva que impediu um passeio já de antemão determinado, o atraso, um desvio ou um erro no programa são os acontecimentos que ainda guardam possibilidades de experiência e, portanto, de narrativa. Estando todo o tempo mediado no sempre-igual, restam-nos as experiências de contratempo, casuais, relacionadas a alguma forma de desprazer (ao menos, nesse instante há uma interessante revolta contra empresas e grandes companhias, cuja falha em entregar o prometido permite uma brecha de potencial vingança contra a reificação opressiva do capital).

 

Outro breve exemplo empírico da mercantilização de coisas aparentemente inalienáveis, temos nas revistas, livros e manuais que podemos encontrar em qualquer gôndola de supermercado. Ensinando métodos e passos para que se possa comer, beber, respirar, esses fascículos tornam-se estranhamente taxações de coisas que julgáramos naturais. Estamos há muito habituados a pagar pela água que consumimos; no entanto, sem que se perceba, ao comprar um desses manuais que nos ensinam a alimentação correta, estamos pagando ao mercado uma taxa para que nos seja permitido saber como comer corretamente – tais “taxações” são tanto mais terríveis quanto mais são simbólicas, pois demonstram seu caráter de símbolos compulsórios, exercícios da própria força quase que por intermédio de um capricho.

 

Para aqueles que acreditam no tão falado pessimismo de Adorno, a leitura do ensaio Tempo Livre desafiará o estereótipo. Confrontado com a atual situação, como a que a seguir demonstraremos, segundo a visão de Jonathan Crary (2013), a esperança de futuro de Adorno soará como otimismo, já que sua esperança foi negada pela História. Ao final do ensaio, relata uma de suas pesquisas na qual a coleta de dados deixa entrever uma deficiência na indústria cultural. Trata-se do casamento da princesa Beatriz, da Holanda, com um diplomata alemão chamado Claus von Amsberg. Amplamente divulgado em toda mídia, esperava-se, portanto, das respostas dos entrevistados uma completa imersão no assunto. Mas, ao confrontar a tese com os dados, sua conclusão foi a de que os indivíduos bombardeados pelas informações do casamento ainda assim mantiveram relativa distância do acontecimento, à maneira em que “...mesmo os mais ingênuos não consideram reais os episódios oferecidos pelo teatro e pelo cinema” (idem, p. 71). O tempo livre, por consequência, não poderia ser totalmente envolvido pela mercantilização, restando algum espaço para que esse mesmo tempo livre pudesse se transformar em liberdade. A luta do capitalismo contra todas as oposições deixou tal hipótese de lado, sendo que atualmente se empenha em uma luta contra a última oposição, uma luta contra o sono.

 

Se de início foi mediado o tempo da jornada de trabalho, em seguida parte do tempo livre enquanto tempo de consumo, hoje a mediação encontrou todos os espaços onde pudesse se manifestar, todos os gaps, de modo que restasse ao sono a posição de última barreira não conquistada pela avidez do capital. Naturalmente, não conquistada porque essa mesma avidez não encontrou os meios para fazê-lo. Muito dinheiro e pesquisas, contudo, estão empenhados para que também esse último limite de resistência seja transposto.

 

Uma dessas pesquisas está agora em andamento. Trata-se da observação da capacidade de um pássaro migratório, o white-crowned sparrow, de permanecer desperto sete dias consecutivos. Iniciada pelo Pentágono, essa pesquisa tem fins militares: criar, a partir de uma espécie da natureza, o soldado que possa operar ininterruptamente como uma máquina. Não se trata de uma pesquisa isolada. Diversas outras estão em andamento para, ora a criação de uma cognição aumentada que se assemelhe àquela das funcionalidades das máquinas e aparatos tecnológicos, ora para a permanência na vigília por tempos ainda mais longos que aqueles sete dias (CRARY, 2013, p. 1-3). O assustadoramente óbvio é que, sejam alcançadas para fins militares – como, aliás, o foram tantas outras invenções, como o rádio, a internet, o microondas etc – tais descobertas entrarão na vida civil e cotidiana, “primeiro como uma opção de estilo de vida e, eventualmente, para muitos, como uma necessidade” (idem, p. 3).

 

Ao lado dessas pesquisas, estão outras iniciativas de se por a funcionar o indivíduo em um tempo não humano de 24 horas, 7 dias por semana. Em uma delas, satélites russos/europeus ao fim da década de 90 tentaram subtrair a noite a um determinado espaço de terra, através da reflexão da luz solar. No entanto, o foco do livro de Crary não é o detalhamento de experiências aparentadas à ficção científica. Nem mesmo, pode-se dizer com segurança, a exemplificação: suas análises um tanto genéricas abordam videogames, televisão, as tecnologias mais recentes, sem mencioná-los em suas singularidades. Uma das razões disso, que é evidentemente uma escolha, está em perceber o quanto procurar a singularidade de um aparato eletrônico é perder-se em sua própria estratégia. A fragmentação decorrente da exemplificação é a fragmentação do capital, uma forma de perder de vista o todo, o qual compreende métodos de controle social e natural, cuja explicação só pode ser dada através da demonstração de seu funcionamento sistêmico. Nesse sentido, o livro realiza o feito de possibilitar nossa associação de experiências singulares – como o uso de um Ipad, os downloads na internet, a proliferação de aplicativos – no sistema amplo da nova organização do capital, o 24/7. Basta que ele demonstre o geral para que tais minúcias encontrem outro sentido que não aquele divulgado por elas mesmas, e esse sentido é o da mediação de toda a vida à produção e ao consumo, com exceção ainda do sono. Os exemplos mencionados acima, do pássaro e do satélite, são apenas exemplos de como o capital tem encontrado novas formas de operar durante essa nova temporalidade, por Crary denominada 24/7. Não é necessário deslocar-se ao futuro para vê-la em pleno funcionamento. Em um desses raros exemplos do livro, ativistas se manifestaram contra o satélite que transformaria o dia em noite. Os argumentos eram de que corporações não poderiam roubar um direito humano e milenar de presenciar o céu noturno, de observar estrelas. Crary argumenta convincentemente que, seja direito ou privilégio, as grandes cidades iluminadas e em perpétua neblina já nos subtraíram essa experiência.

 

A obsessão do capital pela luz pode ser vista como permanência de seu primeiro sonho, o de valorizar-se, ampliar-se, o de manter-se em funcionamento sem pausas. É significativo que as torres gêmeas tenham sido reconstruídas de modo que a reflexão pudesse deixar o marco zero em perpétua luz, como a luz que nunca se apaga (HULLOT-KENTOR, 2012). As torturas empregadas pelos americanos em Guantánamo têm como prerrogativa a destruição dessas mesmas torres, e são executadas com luzes e sons intensos, de modo a impossibilitar o sono, naqueles que são chamados oficialmente de Camp Bright Lights, mas cuja alcunha utilizada pela comunidade militar é, notavelmente, Dark Sites (idem, p. 6). O espantoso do livro 24/7 não são esses exemplos – de fato mais numerosos no início, dando lugar à discussão teórica e bibliográfica, além de uma relação interessante de pesquisas sobre sono, atenção, uso de medicamentos etc. –, que podem ser vistos como exceções, mas aquilo mesmo que constitui a regra. Estes exemplos apenas reforçam em luz exagerada (possível prova de que nossa percepção tornou-se embotada) uma temporalidade que não permite pausas, que não pode retroceder, cuja voracidade desmantelou no dia-a-dia, fora do trabalho, qualquer possibilidade de emancipação. A temporalidade 24/7 é terrível o suficiente para tornar obsoletas em muitos aspectos a exploração que se dava apenas no trabalho e a exploração consumista e sempre-igual do tempo livre. Se para Marx o tempo fora do trabalho deveria ser direcionado para as necessidades sociais relacionadas à cultura, como, por exemplo, fazer amigos (MARX, 1996, p. 346), e não apenas para a reposição da força de trabalho; se para Adorno o tempo livre já estava sendo mediado pela oferta daquilo que um dia livremente se havia desejado; para Crary, “as aparentemente irredutíveis necessidades humanas – fome, sede, desejo sexual e recentemente o desejo de se fazer amizades – já têm sido refeitas em formas de monetização e mercadoria” (CRARY, 2013, p. 10). Mais um exemplo assustadoramente cotidiano: em 2010, no mínimo 50 milhões de americanos compraram pílulas para dormir (estatística que contabiliza apenas as receitas médicas), tornando o sono, assim como a água teve o seu dia, uma mercadoria a ser comprada (idem, p. 18).

 

Algumas palavras sobre a temporalidade 24/7 são necessárias. Já dissemos o quanto se apropriar do dia e da noite é uma necessidade do capital, cuja finalidade é converter tudo em mercadoria, sendo o que lhe escapa inútil e taxado pejorativamente. Como consequência, o capital prefere ao tempo cíclico, alternado um tempo de indistinção que não compreenda pausas. Um tempo de máquinas, nebuloso, sem nenhuma condescendência para com a vida humana, sempre falha em alcançá-lo. Nesse tempo, o sono é desnecessário e negativo, bastando ver nos aparatos eletrônicos a função “sleep mode”, a qual é apenas um breve período de suspensão, estando a máquina pronta a qualquer momento para voltar a sua funcionalidade desejada (idem, p. 13). É no esquema dessa temporalidade que não para e que não tem ciclos, que aumentam as estatísticas de indivíduos despertando durante a madrugada para checar e-mails – em outras palavras, o indivíduo tenta desesperadamente adaptar-se a este tempo que não é um tempo natural, e cuja impossibilidade de ser alcançado cria um permanente estado de frustração. O uso de medicamentos aumenta exponencialmente; para alcançar essa temporalidade que é a temporalidade do consumo e da produção, condições e respostas naturais de um indivíduo – algumas dessas respostas justamente a esse tempo esmagador – como timidez, aumento ou redução de apetite sexual, tristeza, são denominadas patológicas. O uso de drogas ilícitas também aumenta, como mais uma das tentativas de o indivíduo pôr-se a par da temporalidade 24/7. Tudo é tornado mercadoria, e o tráfico de órgãos e o tráfico sexual são a última alternativa em tornar mercadoria aquilo que resiste em ser inútil. O uso de cosméticos, segundo Crary, é menos uma fuga da morte que desejo do indivíduo de parecer-se a suas identidades online, àquele que ele é no tempo 24/7.

 

As tecnologias têm papel fundamental na permanência dessa nova temporalidade. Vistas no início como redentoras, como a nova salvaguarda dos potenciais de revolta política, são na realidade as maiores ferramentas de dominação já criadas pelo homem. Comparadas às grandes viradas de outros tempos, como a roda, a imprensa, a tecnologia digital inauguraria uma nova era, no sentido em que houve também um ponto de ruptura paradigmática na “era do bronze”. Crary aponta para a falácia dessa ideologia: para afirmá-la, deve-se esquecer os últimos 150 anos de criação e aprimoramento dos mais diversos aparatos de controle. Para tal, cita Foucault, a institucionalização, as crescentes formas de controle do corpo. Em seguida, citando Deleuze, fala da extrapolação desse controle para os gaps, lugares onde antes, mesmo na sociedade institucionalizada, havia espaço para promessas de relativa liberdade. Para Crary, não há uma substituição de um pelo outro, mas a coexistência dessa forma de controle e o aprimoramento de suas eficácias. Assim, convivem muros separando povos e nações, prisões iluminadas como panópticos, monitoramento por câmeras e instituições de toda sorte (nunca tendo havido tanto encarceramento na História), ao lado de técnicas de controle de dados, onde o próprio indivíduo entrega, muitas vezes conscientemente, seus dados para uma maior eficiência desse mesmo sistema e desse mesmo controle. Torna-se macabra a situação quando, além de sermos ditos como proceder, que acatemos e docilmente entreguemos as informações para aprimoramento de nossa submissão total a um sistema que só nos deseja enquanto mercadoria (defender o uso “consciente” de um aparato eletrônico é, para Agambem – citado por Crary – tornar-se justamente o produto que a máquina anseia), e que não hesita em nos fazer sofrer para que compremos nossa saída do sofrimento (buy off), até que sejamos descartáveis; e que, após entregarmos nosso feedback para melhor sermos controlados, preenchamos nossa vida sem sentido com os livros mais vendidos de “1000 filmes para ver antes de morrer, 1000 álbuns para ouvir antes de morrer, 500 livros para ler antes de morrer” (idem, p. 60).

 

A tecnologia tem, portanto, papel preponderante nessa nova subsunção total ao capital. Em primeiro lugar, uma estatística levou a universidade de Cornell a considerar a televisão como fator para o aumento considerável de autismo em crianças, o qual pulou de 1 em cada 2500 em 1970 para 1 em cada 150 há poucos anos atrás (idem, p. 85). As razões para a televisão constar como variável ao lado de fatores genéticos, eventos pré-natais, vacinação etc., foi sua multiplicação nas residências americanas a partir de 1980, ao lado de videocassetes, videogames e canais a cabo. O estudo considera que a televisão não é algo ao qual se assiste, mas sim “uma fonte de luz e som à qual se é exposto” (CRARY, 2013, p. 86) A conclusão é de que a televisão, tanto quanto a adicção a jogos violentos ou pornografia, diminui a capacidade de resposta, substituindo prazer pela mera repetição (idem, p. 87). O argumento de Crary não é o de uma estratégia de engano das massas, como diz, mas “estados de neutralização e inatividade, nos quais se é subtraído do tempo” (idem, p. 88). E prossegue afirmando que uma das formas de subtração de poder causada pela temporalidade 24/7 é a ausência de daydreaming, de pausa, de momentos de reflexão (1). Todos os aparatos têm reduzido o tempo de espera, evitando deixar-nos a sós com a realidade, encurtando ou mascarando o tempo de loading, que é o tempo que necessitam para reeditar essa realidade de um modo mais fragmentário. É interessante observar a diferença entre o ensaio de Adorno e essa posição atual relatada por Crary. Para Adorno (1995, p. 66), o tédio – ecoando uma tese de Schopenhauer – era fruto da percepção de que algo está errado aliada à impotência de se mudar tal estado de coisas, algo semelhante ao que ocorre na retração política dos indivíduos que se sabem incapazes de mudar a situação política na qual se sentem oprimidos. Talvez para Crary, mesmo essa impotência, esse tédio – chamado por Adorno de “desespero objetivo” – ainda seria uma possibilidade de resistência ao capital.

 

Portanto, a diminuição do espectro de respostas é interessante ao capital. Tornando as respostas previsíveis, pode oferecer produtos cada vez mais adaptados a essas respostas. Os produtos farmacêuticos, como já brevemente exposto, operam em um nivelamento dos espectros de resposta. Tratando-se de empresas globais, indivíduos em lugares absolutamente distintos estarão na mesma temporalidade 24/7, assim como a igualdade dos produtos vendidos em todos os cantos do planeta, a homogeneização dos aparatos eletrônicos que, aliás, para Crary são chamados de inteligentes (smart) não porque são operacionais ou “[...] pelas vantagens que podem dar ao indivíduo, mas por sua capacidade de integrar seus usuários mais plenamente em rotinas 24/7” (CRARY, 2013, p. 84). Tais aparelhos estão inseridos no que o CEO da Google chamou de “economia da atenção” (attention economy): tanto mais vendável será um produto quanto mais olhos (eyeballs) puder controlar (2). No entanto, são tantos produtos a chamar a atenção que a cena de alguém sentado em um sofá, celular ao lado, laptop no colo e televisão ligada não é algo difícil de se imaginar. Cada aparelho requer sua atenção. A sensação é a de, mesmo utilizando apenas um único programa de um único aparato, estar conversando com alguém e ao mesmo tempo ser “cutucado” por outras pessoas, a sensação opressiva de muitas necessidades a serem preenchidas ao mesmo tempo; o curioso é que esse constante self management, como diz Crary, é uma adaptação a rotinas 24/7 cujo plano de vida não foi escolhido por ninguém (p. 46). Ainda segundo Crary, à frente da televisão o indivíduo reproduz em parte uma postura típica da fábrica: está parado, passivo, sem contato com os outros, destituído de sua ação política e, ao mesmo tempo, produzindo constante mais-valia.

 

Quanto à capacidade revolucionária da tecnologia, para Crary deve ser repensada. Pois a confiança cega nessa capacidade pode aliar ao consumo tecnológico uma esperança salvadora: sua comparação é com o esquema de Ponzi, na década de 1920, conhecido como pirâmide e que funda seus ganhos (e a perda do investidor) em uma falsa esperança baseada na especulação. Porque a tecnologia guarda em si a promessa de que nós, ou uma próxima geração, teremos enfim total acesso a suas capacidades emancipatórias, nos tornando capazes de gerir toda a informação ilimitada a nosso favor. Porém, não haverá esse momento. O catching up é utópico e funciona como preservação desse sistema de obsolescência planejada (p. 41). Ter um objeto tecnológico é ter a certeza de sua vida breve, de sua inutilidade cada vez mais próxima. E crer que se poderá usar o sistema contra ele mesmo (outwit the sistem) é apenas uma figura ideológica, vazia, encarnada na ficção do hacker solitário (p. 46). Para se ter um produto novo, é preciso esquecer que logo ele se tornará velho; é desse modo que a lógica da novidade e da obsolescência planejada opera uma “descapacitação da memória coletiva, e signifi ca que a evaporação do conhecimento histórico não mais tem de ser implementada de cima para baixo” (p. 45). Contudo, tendo em vista as manifestações ocorridas em todo o planeta, as “primaveras” políticas, Crary não deixa de observar a funcionalidade dos aparatos tecnológicos. Diz, no entanto, que a revolução russa utilizou toda a tecnologia a seu dispor, mas não fez dela um fetiche, um fim em si mesmo; apenas como ferramenta tais tecnologias podem ser úteis, desde que não sejam elevadas a mártires, e desde também que haja real encontro em algum lugar fora dessas mesmas tecnologias.

 

O conceito de temporalidade 24/7 pode ser sintetizado como a fragmentação do tempo sem ciclos, repetições ou padrão, um tempo maquinal de constante fluxo de dados e de mercadoria; tal temporalidade só foi possível após o fim da bipolaridade do Oeste, quando foram reduzidas as barreiras ideológicas para o capital. Tendo existido antes, tendo estado embrionariamente nos sonhos capitalistas da fábrica com sua luz a gás acesa durante toda a noite, em pleno funcionamento, foi tornando-se maior; seus limites foram sendo ampliados, as barreiras derrubadas uma a uma. É de um lado a mediação de toda vida exterior; de outro, a voracidade de expropriar-se de cada vez mais aspectos da vida interior, lançá-los à luz, torná-los próprios para consumo. A tecnologia contribui para isso. Nós contribuímos, quando tornamos público e monetizável aquilo que era singular e próprio. O sonho último do capitalismo é transpor também a barreira daquilo que em si é inalienável: o sono. Alguns experimentos – que Crary rotula de absurdos – já tentam captar neurologicamente imagens do sonho. Muitas foram as invenções do século XIX que simulavam o sonho, sendo protótipos do cinema, como o caleidoscópio; outras descobertas, que embora interessantes eram incapazes de se transformarem em mercadorias, como a pesquisa do modo hipnagógico da sonolência, foram abandonadas; tem-se na indústria cultural já a imaginação de que o sonho é invadido, tornado útil e mercadorizado, ou mesmo que seu conteúdo possa ser baixado em arquivos. Para Crary, até mesmo a redução do sonho ao desejo encetada pela psicanálise é parte dessa tendência burguesa.

 

O ideal dessa nova temporalidade é a transformação de todos os espaços em uma totalidade mercantil. Para isso, torna o indivíduo não tanto dócil quanto brando (blandness, p. 56). Com um espectro curto de respostas, é capaz de ser satisfeito em seus desejos com maior rapidez. Ao mesmo tempo, novos desejos e necessidades podem ser reinventados a todo instante, incessantemente, disponíveis online 24 horas, 7 dias por semana, de tal modo que nossa vida fora desse tempo será sempre frustrante, pois nada pode ser mais interessante, engraçado, informativo, tocante em nosso cotidiano do que aquilo em plena operação e em oferta ilimitada (idem, p. 59). A alteridade é minada no sujeito, consequentemente sua capacidade política: mesmo o ato de fazer amizades torna-se serial, um modo de estímulo-resposta. Na vida do lado de fora do 24/7, estamos em intervalos: uma fila, a qual de outro modo seria o respeito pelo outro, desenvolvimento da paciência, hoje nos vê irritados, em constante competição. O tempo não é mais o tempo cíclico, alternado entre dias e noites e estações, pacientemente lento, mas o tempo implacável das máquinas a que estamos submetidos. Antes, como diz Crary, o sono era o momento em que nos entregávamos ao cuidado do outro, responsável pela nossa proteção. Hoje, é um indesejado impedimento ao consumo e à produção de mais-valia. Uma temporalidade que repele o sono é, também, uma temporalidade que repele o outro. Como me disse um amigo certa vez, quando trabalhava durante as madrugadas fazendo ronda de segurança em um condomínio fechado: “O que me deixa indignado não é a condição de trabalho, ou o salário, ou o fato de que o tempo não passa; o que me deixa indignado é o sono dos outros”. O certo é que o capital tomou inicialmente o tempo da jornada de trabalho; em seguida, ampliando o consumo e a indústria cultural, o tempo livre; agora, tomou todos os gaps, tornou os indivíduos mais frustrados e dependentes de modo a ampliar a necessidade de consumo, e tenta de todas as maneiras penetrar a última instância a oferecer resistência, o sono. Nesse contexto, soam particularmente estranhas as seguintes palavras do Canto XIX, da Odisséia: “Mas apagar o sono não se consente aos homens. Os deuses estabeleceram limites para cada setor na produtiva superfície terrestre.” (HOMERO, 2008, p. 219).

 

 

 

 

 

(*) Tiago Basílio Donoso é Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Teoria e História Literária da Unicamp. Formou-se em Letras pela Universidade Estadual de Londrina e trabalhou por dois anos como secretário da Associação Nacional de pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística (ANPOLL). O título de sua dissertação é "A primeira pessoa envergonhada em Contemplação, de Franz Kafka". E-mail: tiagobdonoso@gmail.com. Este ensaio foi publicado originalmente nos Cadernos Cemarx, nº 8 – 2015, pp. 11-30.

 

 

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NOTAS:

 

(1) Um recente filme norteamericano, A vida secreta de Walter Mitchell, mostra um rapaz que está em constante daydreaming. É só quando se livra de suas fantasias, inserindo-as na realidade (por exemplo, viajando ao Himalaia), que consegue aquilo que tanto havia desejado. A vida secreta, de acordo com o capital, deve ser tornada pública, mediada, capaz de mover-se no constante fluxo de mercadorias.

 

(2) Um dado interessante: quando perguntado sobre a violação de privacidade dos usuários do Google, esse mesmo CEO disse que, se as pessoas estivessem fazendo coisas que os outros não pudessem saber, talvez elas não devessem fazê-las (“They should not be doing it in the first place”). In: Documentário: Terms and Conditions may apply.

 

 

 

 

Bibliografia

 

ADORNO, T. W. “Tempo Livre”. In: Palavras e Sinais. Petrópolis: Vozes, 1995.

 

BENJAMIN, Walter. “O narrador”. In: BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas. v. 1. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1986.

 

______, Walter. O capitalismo como religião. São Paulo: Boitempo, 2013.

 

BROWN, Nicholas. The Work of Art in the Age of its Real Subsumption under Capital”. In: Nonsite.org. Disponível em linha. Acesso em: 11 de jul. 2014.

 

______, Nicholas. “A obra de arte na era da sua subsunção real ao capital”. In: DURÃO, F. A.; MUSSI, D.; MARANHÃO, A. P. (Org.) Marxismo Cultura e Educação: Contribuições do VII Colóquio Internacional Marx Engels. São Paulo: Nankin, 2015.

 

CRARY, Jonathan. 24/7. Londres: Verso, 2013.

 

HOBSBAWM, Eric J. A era dos Impérios: 1875-1914. Trad. Sieni Maria Campos e Yolanda Steidel de Toledo. Paz e Terra: São Paulo, 2014.

 

HOMERO. Odisséia III. Edição bilíngue em três volumes. Trad. Donaldo Schüler. Porto Alegre, RS: L&PM, 2008.

 

HULLOT-KENTOR, Robert. Entrevistas com Robert Hullot-Kentor. Org. De Fabio Akcelrud Durão. São Paulo: Nankin, 2012.

 

MARX, Karl. O Capital, Vol I. Col. Os economistas. São Paulo: Abril Cultural, 1996.

 

RANCIÈRE, Jacques. A noite dos proletários. Arquivos do sonho operário. Trad. Marilda Pedreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

 

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