A natureza da crise política no Brasil

 

 

Armando Boito (*)

 

 

Quem provocou a crise política, que levou à deposição do governo Dilma Roussef por intermédio de um golpe de Estado parlamentar, foi a ofensiva política do campo neoliberal ortodoxo, dirigido pelo capital internacional e pela fração da burguesia brasileira a ele integrada, e não a luta popular.

 

 

Comecemos por um truísmo: a conjuntura política é complexa e difícil para as classes populares no Brasil e na América Latina. No caso brasileiro, em que consistem essa complexidade e dificuldade? Ambas procedem fundamentalmente de duas características interligadas e definidoras da crise política atual: a ofensiva política restauradora da direita neoliberal, que foi a iniciativa que provocou a crise política que redundou na deposição do governo Dilma Rousseff, e a decisão do governo Dilma de adotar uma política de recuo passivo diante de tal ofensiva.

 

Essa ofensiva pode ser denominada restauradora porque visa – por intermédio do resgate do programa neoliberal ortodoxo do século passado – restaurar a hegemonia no bloco no poder do grande capital internacional e da fração da burguesia brasileira a ele integrada. Tal ofensiva restauradora teve como base social mais ativa a fração superior da classe média, que tomou as ruas do país em manifestações pelo impeachment, e logrou neutralizar ou atrair setores burgueses e populares que anteriormente dispensavam apoio político aos governos do PT. A Fiesp, que apoiava os governos petistas, aderiu à estratégia do golpe de Estado parlamentar, e a Força Sindical, na sequência de seus movimentos giratórios, acabou estacionando numa posição militante pelo impeachment. Para uma referência rápida, podemos dizer que esse campo representa “a direita”. Porém, é preciso ter claro quais são as classes e frações de classe que o integram e quais interesses elas perseguem, sem o que ficaremos prisioneiros de uma visão superficial e distorcida da crise política.

 

O recuo passivo do governo Dilma dificultou a definição da estratégia dos movimentos populares na crise atual. Se o governo resistisse à ofensiva política restauradora, mesmo que fazendo concessões menores e táticas para dividir o inimigo, os movimentos populares teriam tido um quadro mais favorável para, em primeiro lugar, barrar o golpe de Estado branco que se encontrava em marcha e, em segundo lugar e ao mesmo tempo, lutar pela adoção de um programa mais ambicioso de reformas, posto que as reformas modestas da era PT estariam preservadas. Teríamos, nesse cenário, uma continuidade, em bases novas, do quadro que se desenhou no segundo turno da eleição de 2014: uma campanha política que reagiu, no nível do discurso, à ofensiva restauradora que a direita já então iniciara. Porém, tendo optado por adotar uma política de recuo passivo, inclusive dando mostras de compartilhar ideias da oposição neoliberal, o governo Dilma criou um cenário novo e muito desfavorável para os trabalhadores. Este obrigou as classes populares a lutar – praticamente sozinhas, pois a resistência do governo e de seu partido foi pífia – contra o golpe e, ao mesmo tempo, a resistir às medidas e ameaças do governo às pequenas conquistas dos últimos anos.

 

Antes da crise

 

Os governos do PT, inclusive o último, expressam os interesses heterogêneos de uma ampla frente política que poderíamos denominar neodesenvolvimentista (1).

 

A força social hegemônica nessa frente foi a grande burguesia interna brasileira, que é composta pelas grandes empresas nacionais que atuam na construção pesada, na construção naval, no agronegócio, na mineração, em variados ramos industriais e no setor financeiro. Isso significa que a burguesia brasileira não se integrou de maneira homogênea e geral ao capitalismo internacional. É certo que deixou de existir a velha burguesia nacional, mas seguiu existindo um setor com base de acumulação própria, no interior do país, que possui conflitos com o capital internacional, mesmo que seja dependente dele. Interessante observar que essa fração burguesa não criou seu partido político. O que ela fez foi assediar e envolver um partido político que fora criado pelos movimentos populares para que este, o PT, passasse a representar prioritariamente seus interesses.

 

Na década de 1990, a burguesia interna, embora tenha se beneficiado com vários aspectos do modelo político neoliberal, teve também muitos de seus interesses contrariados pela abertura comercial e pelo definhamento do papel do Estado e do BNDES como propulsores dos investimentos produtivos. No final dos anos 1990, essa fração burguesa se aproximou do PT e da CUT. A diretoria da Fiesp chegou a prestar apoio oficial, público e ativo, à greve geral contra a recessão convocada pela CUT e pela Força Sindical em junho de 1996. Com a ascensão dos governos do PT, essa fração da burguesia foi contemplada com a intervenção do Estado na economia para estimular, dentro dos limites dados pelo modelo capitalista neoliberal, o crescimento econômico. A política de investimentos públicos em obras de infraestrutura – usinas hidrelétricas, o desvio do leito do São Francisco, estradas de ferro, obras da Copa do Mundo e da Olímpiada –, a política de conteúdo local que prioriza a compra de produtos e serviços nacionais, o ativismo do BNDES como financiador das grandes empresas nacionais e as medidas anticíclicas de política econômica diante da crise internacional formaram um contraste gritante com a abertura comercial sem peias, com o Estado raquítico, o BNDES privatizante e as medidas monetaristas ortodoxas diante das crises internacionais que caracterizaram o período FHC.

 

Além dessa força hegemônica, porém, a frente neodesenvolvimentista incorporou setores importantes das classes populares. A política neodesenvolvimentista da grande burguesia interna fez crescer o emprego, favoreceu a luta sindical por aumento real dos salários e esteve ligada a uma série de políticas sociais que atenderam a alguns interesses de distintos setores populares. Os programas de transferência de renda, o programa de construção de casas populares, o financiamento da agricultura familiar, as cotas raciais e sociais, a expansão e a facilitação do acesso ao ensino superior foram políticas sociais que fizeram grande parte da baixa classe média, do operariado, do campesinato e dos trabalhadores da massa marginal se tornar, de maneiras distintas, base de apoio popular à política dos governos petistas.

 

A oposição neoliberal ortodoxa, capitaneada no plano partidário pelo PSDB, vinha expressando e ainda expressa interesses, também heterogêneos, de outro campo político. Na direção desse campo, temos o grande capital internacional e a fração da burguesia brasileira integrada, das maneiras as mais diversas, a esse capital. O grande capital internacional engloba os fundos financeiros internacionais que especulam com títulos da dívida pública, com divisas e com ações das empresas brasileiras; as empresas industriais europeias, norte-americanas e outras que exportam seus produtos para o mercado brasileiro; as seguradoras que abriram filiais no país e as empresas industriais que possuem plantas no Brasil, como as montadoras de veículos. A fração da burguesia brasileira integrada como sócia menor ou dependente do capital internacional engloba as casas de importação de veículos, de confecções, de alimentos, bebidas e tantos outros produtos; os fornecedores de componentes para as empresas estrangeiras aqui instaladas – como a indústria de autopeças –; os capitalistas nacionais que são sócios minoritários em empreendimentos com o capital forâneo. É o bloco voltado para fora o mais interessado – embora não seja sempre o único – na abertura da economia, na redução do papel do Estado, na privatização, na política monetarista mais rígida e no definhamento do BNDES, enfim, no programa neoliberal puro e duro aplicado na década de 1990.

 

Fora do âmbito da classe dominante, esse campo político tem contado com o apoio militante da fração superior da alta classe média. Foi esta, como indicam todos os levantamentos empíricos, que tomou as ruas das grandes cidades contra o governo em 2015. O alto funcionalismo público, os diretores, gerentes e alto funcionariado das empresas privadas, e os profissionais liberais economicamente bem-sucedidos têm a percepção de que são eles que pagam as políticas sociais dos governos do PT. Ademais, veem com maus olhos a presença de indivíduos oriundos das classes populares frequentando instituições e locais que antes eram frequentados apenas pelos “bem-nascidos”. Mais recentemente, a agitação em torno da corrupção, obtida por intermédio da ação articulada de instituições do Estado com a grande imprensa, permitiu que o campo neoliberal ortodoxo neutralizasse e atraísse setores importantes das classes populares.

 

A hora da crise

 

As divisões socioeconômicas de classe não se reproduzem de modo exato e fixo no processo político. Dito de outro modo, a linha que divide o campo neodesenvolvimentista do neoliberal ortodoxo não é reta e rígida. É sinuosa e flexível. Um fato conhecido e estudado é que, a partir da eleição presidencial de 2006, grande parte dos trabalhadores da massa marginal, que votavam nos candidatos do campo conservador, bandeou para o lado do PT (2). A política da frente neodesenvolvimentista estava, então, ingressando em seu período de ouro com apoio político crescente, com a economia internacional marcada pelo aumento de preços das commodities e com o PIB obtendo, em um ano ou outro, taxas de crescimento jamais imaginadas nos anos 1990. Os neoliberais do PSDB encontravam-se na defensiva. Nas eleições municipais de 2012, a oposição teve péssimo desempenho. Foi no início de 2013 que a correlação de forças começou a mudar.

 

A economia, que crescera 7,5% em 2010, permaneceu no biênio de 2011 e 2012 com crescimento próximo de zero. A oposição neoliberal levantou a cabeça. Percebeu uma oportunidade e retomou a iniciativa política. Elegeu o então ministro da Fazenda Guido Mantega e sua “nova matriz de política econômica” como inimigos principais. Os cadernos de economia dos grandes jornais passaram a martelar a necessidade de reduzir os gastos do Estado, acabar com as desonerações fiscais e aumentar a taxa de juros. A Selic tinha sido derrubada para 7,5% ao ano e o rendimento dos investimentos financeiros aproximou-se de zero.

 

Esse ponto é fundamental. Quem provocou a crise foi a ofensiva política do campo neoliberal ortodoxo, dirigido pelo capital internacional e pela fração da burguesia brasileira a ele integrada, e não a luta popular. Muitos se confundem ao examinar esse problema. O fato de as pesquisas de opinião indicarem que a imagem do governo Dilma foi abalada em decorrência das manifestações de junho de 2013 e, desde então, nunca mais tenha voltado aos patamares anteriores leva alguns analistas a sugerir que a crise política foi provocada pelo ascenso da luta popular. Duplo engano. Primeiro, porque apenas a primeira fase das manifestações de junho de 2013 teve caráter popular. Foi a fase em que o Movimento Passe Livre (MPL) lutava contra o aumento das tarifas de transporte. Numa segunda fase, as manifestações diversificaram os setores sociais envolvidos, incorporaram a alta classe média, ampliaram suas palavras de ordem, incluindo principalmente o discurso genérico contra a corrupção, e se tornaram dependentes da mídia, que passou a orientá-las contra o governo.

 

O que temos aí é uma articulação complexa entre dois tipos de contradição. A principal, que provocou a crise política e opõe o campo da burguesia internacional ao da frente neodesenvolvimentista, articulou-se, de maneira favorável ao campo neoliberal ortodoxo, com as contradições existentes no próprio interior da frente neodesenvolvimentista. A Revolta da Tarifa reuniu, como mostram as pesquisas, jovens de baixa classe média, trabalhadores que, na maioria dos casos, são também estudantes. É o setor beneficiário da política dos governos petistas de expansão do ensino superior, que dobrou o número de universitários brasileiros. Ocorre que o mercado de trabalho para os diplomados cresceu muito pouco. Os postos gerados foram, devido à reativação da função primário-exportadora da economia brasileira, predominantemente empregos que dispensam alta qualificação e pagam baixos salários (3). Foi a frustração da juventude de baixa classe média que se expressou na Revolta da Tarifa e mesmo na segunda fase das manifestações de junho (4). Essa frustração, contudo, permaneceu politicamente acéfala, inclusive em razão do culto ao espontaneísmo que caracteriza o MPL e pôde ser confiscada pela reação e canalizada para o crescimento das candidaturas neoliberais em 2014.

 

Como indicamos, há contradições no seio da frente neodesenvolvimentista. A contradição da juventude de baixa classe média com a frente foi uma contradição nova, que se desenvolveu conforme se expandia o alunado universitário, sem a correspondente expansão dos empregos para os diplomados. Mas havia e há também contradições originárias, que estiveram presentes desde o início dos governos da frente neodesenvolvimentista. No campo das classes populares, o movimento sindical foi muito ativo nesse período na luta grevista e logrou obter uma melhoria geral dos salários (5). Conflitos econômicos duros ocorreram entre sindicatos e grupos da grande burguesia interna. O movimento camponês, apesar das políticas sociais que beneficiaram os assentados, sempre esteve insatisfeito com a drástica redução das desapropriações. No âmbito das classes dominantes, havia e há contradições no interior da própria burguesia interna. O mais notório é o conflito entre os grandes bancos nacionais e o setor produtivo nacional em torno da política fiscal e da taxa de juros. Surgiram, além disso, contradições novas. O deslocamento da política energética da prioridade para o etanol para o pré-sal afastou o setor sucroalcooleiro do governo Dilma.

 

O fato é o seguinte: quando o campo neoliberal ortodoxo iniciou sua ofensiva restauradora, a frente neodesenvolvimentista vinha se esgarçando. Isso apareceu em diversos aspectos da cena política. Acabou o apoio unânime das grandes centrais sindicais em torno do governo, o PSB foi para a oposição, o PMDB dividiu-se e, num segundo momento, passou a agir abertamente pela deposição do governo. Michel Temer, o vice-presidente da República, passou a conspirar contra o governo Dilma e uma entidade empresarial da importância da Fiesp passou, como já indicamos, do apoio ativo aos governos neodesenvolvimentistas a uma política de oposição (6).

 

O movimento popular e a crise política

 

A crise política entrou em nova fase devido a deslocamentos nos conflitos e alianças entre as classes sociais. O governo Temer tem força. Apresentou um programa que agrada ao capital internacional, à fração burguesa que sempre se opôs ao PT e também à grande parte da burguesia que apoiava os governos petistas. A política externa anunciada por José Serra é música para os ouvidos do imperialismo: agressões verbais aos países latino-americanos, promessa de priorizar acordos bilaterais com os países imperialistas, ataques ao Mercosul. A coisa foi tão longe que até a burguesia brasileira assustou-se. E José Serra foi obrigado a sair remendando seus documentos e declarações. A política econômica proposta é um ajuste fiscal pesado, favorável ao rentismo, ao capital estrangeiro, e à privatização. A política social, como vimos pela “Super DRU” que foi aprovada no Congresso, é de redução dos programas sociais.

 

Porém, é evidente que o governo apresenta debilidades, mostra-se vacilante, avança e recua. Por que? Penso que devido a dois motivos. A reação popular ao afastamento de Dilma existe e tem um papel importante, embora ela não tenha sido muito forte até aqui e não receba da mídia a cobertura que mereceria receber. Os trabalhadores da massa marginal, que foram os beneficiários dos programas sociais — Bolsa Família, Mais Médicos, Luz Para Todos, Pronatec — permanecem dispersos e politicamente passivos. Não foram organizados como base de sustentação dos governos petistas. Tinham com tais governos uma relação populista: esperavam iniciativas do alto para a solução dos seus problemas. Não contam com as próprias forças, imaginam que o governo tudo pode e não têm consciência de que, na crise, o governo é que depende deles. A relação do sindicalismo, dos sem-terra e dos sem-teto com o governo estava abalada devido ao recuo passivo de Dilma que assumiu, com o Joaquim Levy, boa parte do ajuste neoliberal. As manifestações que ocorreram são importantes, estão criando problemas para o governo Temer e poderão crescer muito, embora a política do segundo mandato Dilma esteja dificultando a mobilização.

 

As políticas do PT não contemplaram nenhuma reforma estrutural, mas permitiram melhorias na condição de vida das classes populares: aumento forte do emprego, valorização do salário mínimo, programas de transferência de renda, moradia popular, quotas raciais e sociais e outras. Houve, então, um movimento de ascensão social coletiva. Contudo, nem o governo, nem o PT, fizeram a luta de ideias para mostrar à população o que permitia essa ascensão.

 

Convém lembrar que, no início do Bolsa Família, durante o primeiro governo Lula, quem defendia que o PT ou o governo deveriam organizar e educar politicamente os beneficiários do programa foi derrotado. Pois bem, quem entrou no vácuo foram as igrejas neopentecostais. Elas ofereceram uma narrativa ideológica, ilusória, segundo a qual a ascensão coletiva, possibilitada por medidas políticas do governo, era uma ascensão individual propiciada, apenas e tão somente, pelo trabalho persistente de cada indivíduo. É a narrativa da chamada “teologia da prosperidade” que, como se sabe, é herdeira de toda a tradição do cristianismo protestante.

 

Isso nada mais é do que a ideologia burguesa de ascensão social individual pelo trabalho árduo, transmutada em linguagem teológica. Tudo acontece como se, de modo estranho e extravagante, a população pobre tivesse sido, na década de 1990, preguiçosa; e, na década de 2000, tivesse mudado de atitude. As igrejas neopentecostais fizeram trabalho de massa; o PT, não. O PT plantou com as políticas sociais e as igrejas colheram com a teologia da prosperidade. Tais igrejas cresceram muito, como se sabe. E hoje são a vanguarda na luta contra os movimentos feministas, LGBT e contra a esquerda em geral.

 

O elemento mais importante, que melhor caracteriza essa nova etapa e que pode explicar a instabilidade do governo, é a decepção da base de massa da campanha pelo impeachment com a equipe governamental de Temer. Esse é um ponto que tem escapado aos observadores. Do mesmo modo que a frente neodesenvolvimentista rachou com a defecção de grande parte da burguesia brasileira, a frente neoliberal ortodoxa está perdendo o apoio da alta classe média desde a ascensão de Temer. Entramos numa fase nova da crise política. A campanha do impeachment teve como tema central a corrupção. É verdade que fez-se muita agitação em torno da crise econômica, fez-se a crítica à política neodesenvolvimentista, apresentada como endividamento irresponsável e fator de inflação. Mas o combate, suposto ou real, contra a corrupção teve um papel importante.

 

Parte da classe média acreditava, de fato, que, além de mudar a política social do PT, o novo governo seria um “governo honesto”. Os setores populares neutralizados ou atraídos para o campo do golpe supunham o mesmo. E mais: parte do Ministério Público, do Judiciário e da Polícia Federal não esperava outra coisa. Estamos vendo que as investigações e pedidos de prisão não cessaram. Rodrigo Janot pediu a prisão dos senadores Romero Jucá e Renan Calheiros, do deputado Eduardo Cunha e do ex-presidente Sarney. Muitos observadores, inclusive no campo da esquerda, não esperavam por isso. Imaginavam que, Dilma afastada, só ficaria faltando tornar Lula inelegível.

 

Não é o que estamos vendo agora. A classe média mobilizada está insatisfeita com o governo Temer, composto por citados, denunciados, investigados e condenados pela Justiça, a começar pelo chefe, Michel Temer, inelegível em decorrência de condenação pela Justiça Eleitoral. O “partido político” dessa classe média, a Lava Jato, dá mostras de que não vai parar as investigações. Se a caravana continuar nesse rumo, poderemos dizer que a força dirigente do golpe — os políticos profissionais da burguesia — perdeu o controle sobre a força auxiliar, no caso, burocratas do Judiciário ligados à alta classe média.

 

Há elementos que evidenciam quanto será difícil a recomposição do programa neodesenvolvimentista. A defecção de grande parte da burguesia interna, a prisão de quase todo o segmento da construção civil pesada e a guerra econômica contra as grandes construtoras reduziram muito a força do neodesenvolvimentismo. A queda do preço das commodities, a recessão mundial, tudo isso conspira contra. O instrumento político da frente neodesenvolvimentista, que é o PT, está em crise. Contudo, reviravoltas não podem ser descartadas. O governo Temer pode vir a definhar, sequer chegar ao fim do seu mandato ou, então, um novo governo petista surgir em 2018 — ou mesmo um governo neodesenvolvimentista que não seja do PT, projeto que Ciro Gomes, pré-candidato à presidência da República pelo PDT, parece acalentar.

 

Nesse ponto, é importante ter em mente o seguinte. Na primeira etapa da crise, era o PSDB que comandava o processo. O objetivo era conquistar a adesão do PMDB. Agora, quem comanda é o PMDB. Boa parte dos tucanos apoia a contragosto o governo Temer. São as circunstâncias do processo. Ocorre que o partido orgânico do capital internacional é o PSDB, e não o PMDB. Esse é um partido fisiológico. Não está ideológica e politicamente preparado para aplicar um ajuste pesado. Temer se revela hesitante. Já adiou as propostas de reforma trabalhista e de reforma previdenciária. Prega o ajuste fiscal, mas tomou uma série de medidas que elevaram enormemente o déficit público. Dirigentes importantes do PMDB declararam-se contra o programa de ajuste. O PSDB começou a se afastar do governo. Fernando Henrique Cardoso está criticando Temer publicamente. As contradições no interior do governo são muitas.

 

Seja como for, penso que o movimento popular deve trabalhar no sentido de compor uma frente e um programa que, sem descartar todo e qualquer acordo com setores burgueses, abra mais espaço para as classes populares, estabelecendo objetivos mais ambiciosos, como a regulamentação democrática da mídia, a reforma do sistema político, a reforma agrária, uma reforma tributária que onere o capital e os ricos e outras.

 

 

 

 

 

 

(*) Armando Boito é professor de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade de Campinas (Unicamp). É ainda diretor do Centro de Estudos Marxistas (Cemarx) e editor da revista ‘Crítica Marxista’. Desenvolve pesquisa sobre as relações de classe no capitalismo neoliberal no Brasil e na América Latina. Entre as suas obras publicadas contam-se O Golpe de 1954: a burguesia contra o populismo (Editora Brasiliense, 1982), O sindicalismo de Estado no Brasil - uma análise crítica da estrutura sindical (Editoras Hucitec e Unicamp, 1991), Política neoliberal e sindicalismo no Brasil (Editora Xamã, 1999), O Sindicalismo na política brasileira (Editora IFCH-Unicamp, 2005) e Estado, política e classes sociais (Editora da Unesp, 2007). É também organizador de diversos volumes coletivos, entre os quais A obra teórica de Marx - atualidade, problemas e interpretações (Editora Xamã, 2000), A Comuna de Paris na História (Editora Xamã, 2001), Marxismo e Ciências Humanas (Editora Xamã, 2003), Marxismo e socialismo no século XXI (Editora Xamã, 2005) e Política e classes sociais no Brasil dos anos 2000 (Alameda Editorial, 2012).

 

 

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NOTAS:

 

(1) Ver a esse respeito Armando Boito Jr., “As bases políticas do neodesenvolvimentismo”, Fórum Econômico da FGV-SP, 2012.

 

(2) André Singer, Os sentidos do lulismo, Companhia das Letras, São Paulo, 2012.

 

(3) Marcio Pochmann, Nova classe média?, Boitempo, São Paulo, 2012.

 

(4) Marcelo Ridenti, “Que juventude é essa?”, Folha de S. Paulo, 23 jun. 2013.

 

(5) Armando Boito Jr., Andréia Galvão e Paula Marcelino, “A nova fase do sindicalismo brasileiro”. In Seminário Internacional “Sindicalismo Contemporâneo: 1º de maio – uma nova visão para o movimento sindical brasileiro”. Campinas: Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit), Unicamp. 2015. pp. 206-223.

 

(6) Para o apoio ativo da Fiesp ao segundo governo Lula, ver Armando Boito Jr., “Governos Lula: a nova burguesia nacional no poder”. In: Armando Boito Jr. e Andréia Galvão, Política e classes sociais no Brasil dos anos 2000, Alameda, São Paulo, 2012.