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Oitava carta a Jacques Julliard
Jean-Claude Michéa (*)
Não há grandes dúvidas, caro Jacques Julliard, de que um bom número dos nossos desacordos se deve, em grande parte, à diferença das nossas sensibilidades filosóficas. Sobre a questão do “Progresso”, por exemplo, sou evidentemente incapaz de partilhar o seu optimismo fundamental (mesmo que esse optimismo não deixe de ser moderado). Sete milhões de mortos em 2012 – segundo as estatísticas da OMS – pelo simples facto da poluição crescente do ar engendrada pela economia industrial de mercado, eis um facto que deveria incitar-nos a concluir, com George Orwell, que já seria tempo de travar a fundo e pensar, de uma vez por todas, em “utilizar com algum discernimento os produtos da ciência e da indústria, aplicando-lhe sistematicamente o mesmo critério: será que isto me torna mais humano, ou menos humano” (Orwell não deixava, aliás, de acrescentar que “o horror instintivo que todo o indivíduo sensível sente perante a progressiva mecanização da vida”, não deveria ser considerado “como um arcaísmo sentimental, mas como uma reacção plenamente justificada”). O problema, como você sabe tão bem como eu, é ser, por definição, impossível a um sistema económico fundado sobre a única necessidade de “produzir por produzir e acumular por acumular” - era esta, a fórmula de Marx – tomar realmente a sério este tipo de reflexão crítica, sem mudar radicalmente de natureza (a menos que acredite - como uma Cécile Duflot - no conto de fadas do “capitalismo verde”).
É por isso que, uma vez atingido um certo grau de bem-estar material (como bom epicurista, não confundo, evidentemente, o tipo de sobriedade que exigiria um mundo liberto dos constrangimentos do “crescimento ilimitado” com um qualquer ideal ascético) este sistema está estruturalmente votado a comprometer-se na via do que Guy Debord chamava “a baixa tendencial do valor de uso”. Dito de outro modo, esta tendência inerente a toda a sociedade liberal desenvolvida - na esperança de prevenir novas crises de excedentes - de privilegiar incessantemente a invenção de novos “gadgets” tecnológicos cada vez mais sofisticados, oficialmente destinados a tornar a vida mais “fácil”, mas que é infelizmente certo não a tornarem mais humana nem mais feliz (pensemos, por exemplo, neste sistema de ecrãs e próteses electrónicas no interior do qual toda a criança de hoje é obrigada a crescer, se quiser manter uma imagem positiva de si mesmo e junto dos seus amigos do “Facebook”). A tal ponto que o próprio Marx (que nem sempre era tão “marxista” como muitas vezes se pensa) não hesitou a assinalar nos seus Grundrisse: “Como parece sublime a antiga concepção (seja qual for a estreiteza da sua base nacional religiosa e política) que fazia do homem o fim da produção, em comparação como o mundo moderno no qual, pelo contrário a produção se tornou o fim do homem”. Juízo cujo carácter “nostálgico” ou mesmo “reaccionário” não deixará de ser notado por muitos leitores de esquerda que já que esqueceram a advertência que Guy Debord - ainda ele – nos deixou nos seu Panegírico: “Quando ser absolutamente moderno se tornou a lei especial proclamada pelo tirano, aquilo que o escravo honesto teme, acima de tudo, é que possa ser suspeito de passadismo”.
Outros desacordos, pelo contrário - entre aqueles que você evocava na sua última carta – parecem-me relevar sobretudo de questões de vocabulário (mesmo que as questões de vocabulário nunca sejam filosoficamente neutras). É o caso, entre outras, das que incidem sobre a minha interpretação do socialismo e do liberalismo e sobre a sua ideia de que a “vontade de poder” estaria não só inscrita no cerne do sistema, mas mais profundamente ainda, “no coração do próprio homem”. Devo, por isso regressar, por momentos, a estas questões.
O socialismo, escreve você, à luz da experiência soviética, “fracassou economicamente” e é tempo de que se resigne “a não ser um modo de produção” (“pelo menos para já”, acrescenta prudentemente o meu amigo) para voltar a ser aquilo que nunca deixou de ser, a saber, um princípio de justiça social e um fermento de indignação. Posição que não deixa de recordar a de John Stuart Mill quando sonhava em combinar o modo de produção capitalista – o único eficaz, a seus olhos – com um modo de repartição supostamente mais “socialista” (Marx via nesta solução híbrida – que anuncia a filosofia social-democrata dos anos 1930 - uma “tentativa de conciliação dos inconciliáveis”). E para prevenir a objecção ritual, segundo a qual o sistema económico instalado na Rússia de Estaline ou na China de Mao nada teria que ver com o verdadeiro “socialismo”, você não deixa de acarinhar a ideia preguiçosa segundo a qual as nobres intenções dos bolcheviques de 1917 teriam sido simplesmente traídas por “maus executantes”. Se, com esta tese, se tratasse apenas de recordar que o leninismo continha já, em potência, a maior parte das derivas do estalinismo triunfante, não poderia deixar de estar de acordo consigo. Rosa Luxemburgo já havia advertido Lenine, desde o início, sobre o carácter eminentemente previsível destas derivas. Fica de pé, no entanto, a questão de saber se esta ideologia leninista (que, de facto, toma de empréstimo muitas das análises de Marx e da social-democracia alemã antes de 1914) constitui realmente, a única incarnação possível do projecto socialista original.
Ora, aquilo que torna esta questão muito complexa e extremamente difícil de resolver, é o facto de termos adquirido o mau hábito - pelo menos, desde a revolução russa – de amalgamar sob o nome de “socialismo” (cujo uso só foi aceite por Pierre Leroux, após muitas hesitações) dois momentos filosóficos que, a meu ver, seria necessário distinguir. O termo “socialismo” pode, com efeito, ser utilizado para designar a nova corrente política e filosófica – surgida sob a Restauração e na senda da revolução industrial – cujo objectivo primário já não era, como a esquerda dos anos 1830, a luta contra a Reacção e o poder da Igreja católica, mas contra o sistema industrial capitalista nascente (foi esta, desde o início, a tese principal dos meus livros). Corrente que se inspirava em parte – o que a distingue, por exemplo, da crítica de um Joseph de Maistre, de um Ballanche ou de um Louis de Bonald – no ideal de igualdade e de emancipação da filosofia das Luzes e da Revolução Francesa. Mas apenas em parte, porque este ideal socialista, como tenho sublinhado, colhia uma outra parte a sua inspiração nas tradições de solidariedade e de socorro mútuo próprias do antigo companheirismo operário (aquele que a Revolução Francesa se esforçara precisamente por destruir, através da Lei Le Chapelier) e na memória colectiva de todas as revoltas populares do passado, inclusive – como Engels muitas vezes sublinhou – quando estas revoltas se alimentavam do elemento religioso ou se fundavam no mito da idade do ouro.
Basta percorrer a literatura socialista da época, para nos apercebermos imediatamente de que os primeiros representantes desta nova corrente política, não mostravam, entre si, nenhuma divergência de relevo desde que se tratasse apenas de criticar os princípios da nova ordem industrial (aquela que Pierre Leroux chamava, de um modo dialéctico, o novo Antigo Regime). Todos eles estavam de acordo na denúncia da lógica de um mundo fundado na apologia sistemática do cálculo egoísta, na concorrência generalizada dos indivíduos e dos povos (Louis Blanc via inclusive, nesta nova “liberdade económica ilimitada”, um verdadeiro “sistema de extermínio”) e na acumulação contínua do capital tornada possível pela exploração “racional” dos trabalhadores “livres” e “consentidores”. E mais ainda – como consequência inelutável desta concentração da riqueza colectiva entre as mãos de uma nova oligarquia – a separação crescente dos produtores dos seus “meios de produção” (a começar pela própria terra cuja posse, muitas vezes comum pelas antigas instituições aldeãs, os havia protegido de um dependência total em relação à aristocracia rural). Numa palavra, a maior parte dos fundadores do socialismo teria certamente aprovado o pronunciamento de Gustave Lefrançais quando este estigmatizava - em 1850 – o “irresistível movimento de concentração capitalista que vai permitir às companhias financeiras e industriais, em formação desde há dez anos, realizar sob a proteção do Estado uma verdadeira apropriação e constituir, nessa base, uma nova servidão bem mais maléfica do que a anterior” (seja dito, de passagem, que não descortino muito bem em que é que esta análise se teria tornado totalmente arcaica, na era do capitalismo globalizado, como pretende a esquerda ocidental moderna). É, pois, antes de tudo o mais, a existência desta crítica da sociedade capitalista, comum a todos os primeiros pensadores socialistas (não é por acaso, para tomar apenas um exemplo, que uma das melhores introduções a Le Capital de Marx, continue a ser, ainda hoje, a que foi redigida, em 1878, por Carlo Cafiero, aliás discípulo de Bakounine) que nos permite falar do socialismo original como de uma corrente política e filosófica relativamente unificada.
Em contrapartida, tudo muda quando se deixa o plano desta crítica radical do sistema capitalista para abordar o das soluções concretas e das descrições positivas da sociedade que haveriam de suceder-lhe (esta oposição entre um momento crítico e um momento positivo da doutrina constitui o cerne da filosofia de Auguste Comte e - através dela – do socialismo saint-simoniano). É só então que se torna efectivamente difícil deixar de dar razão ao jurista liberal Jean-Joseph Thonissen quando constatava, em 1849, em Le Socialisme et ses promesses (foi uma das primeiras obras de síntese sobre a questão) que as diferentes escolas socialistas “se guerreiam, entre si, da forma mais violenta, quando se cansam de perseguir, nas suas obras, o seu inimigo comum”. Ora, se tomarmos em consideração apenas este segundo aspecto da doutrina (aquele que respeita à natureza da sociedade que se supõe vir a suceder ao capitalismo) é perfeitamente lógico distinguir no seio do movimento socialista duas tendências radicalmente antagónicas que podem muito bem coexistir ocasionalmente no cérebro do mesmo pensador, mas cujo afrontamento contínuo jamais deixou de definir a história concreta do movimento. Aquela que – na linhagem de Thomas Moore e dos grandes utopistas – subordinava o surgimento da cidade socialista futura a uma prévia ruptura com toda a herança moral e psicológica da humanidade anterior (abolição integral da propriedade individual, da troca mercantil e da moeda, controlo pelo Estado da vida privada dos cidadãos, gestão centralizada da produção e da repartição das riquezas, convite à substituição do “velho homem” por um ser integralmente novo, suposto viver apenas em função dos outros, etc., etc.). Aliás, era precisamente para denunciar esta tendência autoritária já solidamente instalada (sendo que o modelo saint-simoniano parecia ser a sua incarnação perfeita) que Pierre Leroux havia anunciado, desde 1834, que ela conduziria inexoravelmente estes “socialistas” a edificarem um mundo inteiramente desumanizado “no qual o indivíduo se tornaria um funcionário arregimentado a uma doutrina oficial, com um credo oficial e a inquisição à porta”(é uma boa antecipação da futura Rússia soviética).
A outra linha era evidentemente aquela que – na senda de Proudhon, dos anarquistas e das principais correntes do populismo russo - entendia dever privilegiar, pelo contrário, a autonomia local, a democracia directa, o espírito de entreajuda e de cooperação, o respeito pela vontade popular e, de um modo geral, a recusa de todo o princípio de autoridade (foi, por exemplo, esta tendência democrática e libertária que inspirou a maior parte dos decretos da Comuna de Paris). A distinção entre “comunismo” e “socialismo” – então muito frequente – recobria, em parte, esta oposição inicial entre tendência “autoritária” e a tendência “democrática” ou “libertária” do movimento anticapitalista.
Tendo lido todas as suas primeiras obras, parecia-me, por isso, evidente que você seria, no seu conjunto, francamente favorável a esta apresentação da história do socialismo. Mas – se é esse o caso – por que razão, insiste você, de modo tão absoluto, em reduzir o princípio de uma organização socialista da produção (que, em todo o caso, deveria não só ser plural mas igualmente compatível com a existência paralela da pequena empresa privada) às tradições únicas do socialismo autoritário, de onde saiu directamente o leninismo (um “blanquismo com molho tártaro”, como lhe chamava Charles Rappoport)? Em vez de referir as inúmeras experiências do movimento cooperativo, da economia solidária, ou da autogestão operária (na sua obra, Adieu au capitalisme, Jerôme Bascher – que ensina nas zonas libertadas pelo zapatistas mexicanos – oferece-nos algumas análises extremamente ricas e particularmente estimulantes). Tanto mais que o próprio Marx – cujo temperamento não seria particularmente libertário – teve o cuidado de precisar, no Manifesto do Partido Comunista que “o que caracteriza o comunismo não a abolição da propriedade em geral, mas a abolição da propriedade burguesa”. Dito de outro modo, desta propriedade historicamente muito particular cujo desenvolvimento contínuo e ilimitado – minando progressivamente a base concreta de toda a autonomia individual e colectiva – conduz inexoravelmente a colocar as classes populares sob a dependência absoluta daqueles que controlam o capital e, por isso, as condições de acesso ao “mercado de trabalho” (era o princípio de uma nova escravatura assalariada cuja abolição era exigida por todos os primeiros socialistas). O velho Engels acrescentava inclusivamente - na Crítica do Programa de Erfurt, de 1891 - que num regime socialista, os estabelecimentos religiosos – desde que assegurassem o seu financiamento – deveriam, não só dispor de uma liberdade total de ensino, como também da propriedade plena e integral dos seus locais. (“Nem podemos proibir que fundem, com os seus próprios meios, escolas que lhes pertençam (sublinhado por Engels) onde ensinem as suas asneiras!”) Se Lenine, Trotsky e Estaline aparecem como herdeiros legítimos da tradição socialista original (e seria efectivamente absurdo negá-lo) não pode pretender-se que teriam sido osseus únicos representantes possíveis. Na verdade, caro Jacques Julliard, se passasse pela cabeça de um destes brilhantes intelectuais mediáticos, “demonstrar” que os escritos de Pierre Leroux, de Joseph Proudhon, de William Morris ou de Gustav Landauer (ou os do vosso querido Fernand Pélloutier, grande leitor de Proudhon) continham já, em potência, o Gosplan eo Gulag, você seria um dos primeiros a insurgir-se contra uma mascarada deste jaez.
Regresso agora às objecções que você me dirige em relação à minha leitura do liberalismo que, a seu ver, não faria inteiramente justiça a esta corrente filosófica. Por um lado, porque ela conduziria a imputar-lhe um certo número de derivas e de malefícios que, no seu entender, resultariam muito mais do desenvolvimento autónomo da técnica e do “individualismo democrático” (a suas posição, sobre este ponto, é bastante próxima da de Finkielkraut). Por outro lado, porque ela não poria suficientemente em relevo o papel histórico essencial desempenhado por este “verdadeiro” liberalismo “na defesa das liberdades democráticas”. Ora, parece-me que, aqui, o mal-entendido que nos opõe resulta sobretudo de que, a meu ver, você confunde, com demasiada pressa, o plano histórico (que é fundamentalmente o seu) com o plano filosófico (que é o meu). Do ponto de vista do historiador que você é, é claro que devemos, antes de mais, interrogar-nos sobre aquilo que Adam Smith, Benjamin Constant ou John Stuart Mill realmente disseram (o que, por vezes, não é exactamente o mesmo) e quais eram, as suas intenções e sentimentos reais, ao dizê-lo. Se fosse esse o conteúdo do nosso debate, ele nem chegaria a ter conteúdo.
As intenções originárias dos fundadores do liberalismo – e, portanto, a sensibilidade que eles exprimiam – eram, com toda a evidência, totalmente simpáticas e perfeitamente justificadas. Para entender a sua legitimidade, basta, de resto, recordar, por momentos, o mundo que era o pano de fundo das suas reflexões. Era o mundo que as tenebrosas guerras civis religiosas dos séculos XVI e XVII haviam deixado à Europa moderna (onde figurava, em lugar de destaque, a “monarquia absoluta”). E, a partir do momento em que parecia filosoficamente adquirido – precisamente à luz de guerras civis tão dramaticamente traumatizantes – que não só os homens eram egoístas por natureza, mas que, além disso, a questão dos valores (geralmente entendidos como uma simples máscara do seu interesse privado e do seu amor-próprio) só poderia precipitá-los, mais cedo ou mais tarde, na “guerra de todos contra todos” (no cerne da lógica moderna – de que a lógica liberal é apenas um subconjunto – está, em primeiro lugar, esta ideia pessimista de que é definitivamente impossível que os homens se entendam “sobre os gostos e as cores”) é muito compreensível que as propostas liberais tenham imediatamente despertado a simpatia de todos os espíritos honestos e tolerantes. Era, talvez você se lembre que eu o tenha recordado, o “lado” Georges Brassens do primeiro liberalismo (há incontestavelmente algum David Hume na Mauvaise Réputation!). Tratava-se, acima de tudo, de tornar finalmente possível a coexistência tranquila de indivíduos com sensibilidades ideológicas diferentes, cuidando de proteger simultaneamente - contrariamente às soluções absolutistas propostas por Hobbes ou Pascal - as liberdades individuais mais preciosas. Se por “liberalismo” se entende simplesmente designar esta forma particular de sensibilidade e de preocupações (que Spinoza igualmente partilhava, sem por isso ser um liberal em sentido estrito) não teria, pela minha parte, a mais pequena dificuldade em dizer-me “liberal”(é, de resto, neste sentido que Orwell falava muitas vezes afectuosamente dos velhos “liberais ingleses” do século XIX).
Infelizmente - e não é certamente a si que vou ensiná-lo - acontece muitas vezes que, na história das ideias, um comboio esconde um outro. O que é geralmente o caso sempre que os intelectuais tentam conferir ao que representava, até certo momento, uma forma de sensibilidade moral e psicológica particular, a forma mais sábia e mais abstracta de um sistema metafísico. Essa foi a razão pela qual tive, desde logo, o cuidado de precisar - na introdução ao meu livro Empire du moindre mal - que o verdadeiro tema dos meus ensaios não era tanto a análise histórica dos primeiros pensadores liberais (já existem muitas obras suficientemente inteligentes sobre esse tema, como, por exemplo, as de Pierre Manent), como a lógica filosófica que estes pensadores liberais tinham contribuído - por vezes, sem o saber - a pôr em movimento (e continuo, aliás, intimamente persuadido de que, se estes pensadores regressassem, hoje, ao nosso convívio, a maior parte de entre eles ficaria extremamente perturbada perante as consequências reais do desenvolvimento desta lógica). Em suma, não fazia mais do que retomar o método dialéctico utilizado por Marx em Le Capital, quando afirmava querer apreender a dinâmica histórica da acumulação do capital sob a sua forma abstracta e “quimicamente pura” e não sob a forma especificamente inglesa que tinha debaixo dos seus olhos (é, aliás, este carácter “abstracto” de Le Capital – designadamente nos livros I e II – que explica o seu espantoso poder de previsão política, uma vez que, nos nossos dias, é justamente com as formas integralmente desenvolvidas desta lógica que temos de nos confrontar).
Ora, a lógica do sistema liberal - que, em consequência, distingo sempre da sensibilidade liberal inicial - repousa, desde o princípio, sobre dois postulados que, na época, podiam parecer relativamente anódinos, mas cujo preço jamais deixou de ser pago pela humanidade moderna. A ideia, em primeiro lugar, de que os homens jamais poderão viver em paz, entre si, a não ser que o Estado incumbido de manter o quadro institucional da sua vida em comum seja “axiologicamente neutro”. Dito do outro modo, se abstiver permanentemente de prescrever a menor norma de vida particular (uma vez que o único valor comum a todos os cidadãos de um Estado liberal só pode ser, bem entendido, a própria liberdade, ou seja, este direito suposto “natural” de cada indivíduo isolado se definir, por si mesmo, a totalidade dos seus valores). E, em segundo lugar, a ideia de que esta liberdade só se tornará efectiva, se o governo dos homens for substituído pela “simples administração das coisas”, oficialmente destinada a tornar impossível toda a forna de sujeição ou de dependência pessoal (já que, para um liberal - bastará pensar no mito do self-made man - é evidente que a liberdade se define, antes de mais, pelo facto de não se depender de nenhum outro ser humano, nem mesmo sob plano familiar ou afectivo - o que, de passagem, torna praticamente impensáveis os conceitos de alienação ou de viciação consumista). De aí a ideia eminentemente moderna (em parte inspirada pela física newtoniana) segundo a qual esta nova “governância” poderia ser integralmente garantida – desde que nenhuma intervenção moral, religiosa ou política, viesse, do exterior, perturbar o livre jogo de dois mecanismos anónimos e impessoais: o Mercado autorregulado (com a sua mão invisível) e o Direito abstracto (com a sua mecânica processual e os seus sábios equilíbrios de poder). Mecanismos anónimos e impessoais de cuja eficiência os liberais estavam plenamente convencidos de que jamais poderiam engendrar a menor dependência pessoal, como a que oprimia o servo medieval em relação ao seu Senhor (ao contrário do que Marx estabeleceria mais tarde em Le Capital, com a sua análise do “fetichismo da mercadoria”, isto é, as novas formas de domínio do homem pelo homem que são “mediadas pelas coisas”).
Acrescento que, aos olhos dos liberais, esta dupla dinâmica, ao mesmo tempo paralela e complementar, do Mercado e do Direito (de que a banda desenhada de Moebius me parece representar a metáfora mais apropriada), deveria igualmente permitir – sem necessidade de fazer apelo a qualquer virtude moral ou cívica dos indivíduos – a conversão automática dos efeitos hoje considerados perfeitamente legítimos do cálculo egoísta individual (numa sociedade liberal todo o homem se transforma numa espécie de comerciante e a própria sociedade numa sociedade comercial) em comportamentos que contribuem objectivamente para o interesse de todos. Tal era precisamente o sentido profundo da famosa fórmula de Mandeville – “vícios privados, virtudes públicas” – que certamente representa a definição mais concisa da lógica liberal (fórmula que Kant desenvolverá a seu modo, sustentando que uma lógica deste tipo funcionaria eficazmente “mesmo com um povo de demónios”).
Se aceitarmos que existe uma diferença essencial entre a sensibilidade liberal original (que poderíamos fazer remontar a Montaigne) e o sistema ideológico sofisticado que acabou por monopolizar todas as tradições políticas, as coisas tornam-se, ao que me parece, muito mais claras. Toda a lógica está votada, por definição - pelo menos se nenhum factor histórico exterior vier contrariar a sua dinâmica natural - a desenvolver, mais tarde ou mais cedo, o conjunto das implicações teóricas e práticas que a sua axiomática inicial potencialmente contém (no caso da lógica liberal, constitui o imenso mérito do Marquês de Sade - Pasolini recordá-lo-á - ter conseguido deixar-nos, na sua genial loucura, a integralidade mais coerente das suas implicações futuras). Se, durante perto de dois séculos, um tal facto se manteve relativamente inapercebido (salvo, bem entendido, pela crítica socialista) e a lógica liberal pôde transmitir, num primeiro tempo com alguma tranquilidade, os efeitos emancipadores de que era também objectivamente portadora (pelo menos quando se comparam estes efeitos com as estrutura inigualitárias, patriarcais e opressivas do Antigo Regime) foi porque o seu desenvolvimento histórico concreto teve lugar, durante um longo tempo, no seio de um quadro moral e cultural estruturalmente limitado (é o que você designa, na sua carta, o liberalismo restrito). E se o quadro moral e cultural era efectivamente limitado foi, em grande parte, porque a maior parte das elites liberais do século XIX conservava ainda uma relação mínima com o senso comum, esta honestidade ou até coragem intelectual que havia caracterizado os fundadores deste movimento político (não há, evidentemente, nenhuma comparação possível entre um Adam Smith e um Jean-François Copé ou entre uma Madame de Staël e uma Christiane Taubira). O que significa que estes liberais “históricos” continuavam, nos seus escritos e nas suas decisões, a apoiarem-se, sem que se dessem conta disso, sobre todo um tecido de valores morais, filosóficos e religiosos, que lhes pareciam evidentes, mas que não lhes seria possível fazer decorrer, sem contradição, dos seus axiomas iniciais (pensemos, por exemplo, no patriotismo reivindicado por Benjamin Constant ou no papel fundamental que Tocqueville atribuía à cultura religiosa no funcionamento quotidiano da democracia americana). De sorte que os primeiros liberais se assemelhavam finalmente àquela “pomba ligeira” evocada por Kant no seu segundo prefácio à Crítica da Razão Pura, cujo voo se sustenta pela resistência do ar, mas continua a imaginar, na sua radical ingenuidade, que poderia voar ainda com mais ligeireza, no vazio absoluto.
O problema reside em que esta dinâmica da economia entregue a si mesma que deveria permitir – sob o nome do “doce comércio” – refundar pacificamente o vínculo social (“o comércio - congratulava-se Benjamin Constant, que via nele o antídoto a todo o espírito guerreiro - está em vias de se tornar o fim único, a tendência universal, a vida verdadeira das nações”) tende hoje a produzir o efeito exactamente inverso, convidando continuamente à destruição de todos os fundamentos simbólicos da vida em comum, “para deixar subsistir como único elo entre os homens apenas o frio interesse e as duras exigências do pagamento a contado” (Marx). Cada um de nós pode verificar por si mesmo que são as novas exigências da “competitividade” e da concorrência “livre e não falseada” que constrangem cada capitalista individual a comportar-se como um “demónio” (economisando, por exemplo, na qualidade das mercadorias, piorando as condições de trabalho dos seus empregados ou decidindo deslocalizar a sua empresa) mesmo quando a sua consciência moral ou religiosa pessoal lhe indicaria o contrário. É esta libertação, muito previsível, “das paixões mais mesquinhas e mais odiosas do coração humano, todas as fúrias do interesse privado” (é ainda Marx, que nem sempre era o utilitarista de que se fala) que explica, em larga medida, esta dissolução lenta e gradual a que assistimos hoje de todas as barreiras normativas (sejam elas éticas, filosóficas ou religiosas) que a humanidade anterior havia conseguido instalar - para o melhor e o pior - a fim de esconjurar a ameaça sempre presente da sua própria barbárie. Até ao dia, naturalmente, em que – sob o peso desta desconstrução incessante de “tudo o que tinha solidez e permanência” (Marx) – é a própria noção de limite, quer se aplique à economia, ao direito ou aos costumes que, com toda a lógica, acabará por se tornar filosoficamente impensável (a não ser como único obstáculo à emancipação integral dos homens e ao advento final de uma “mundialização feliz”).
Com a desaparição correlativa dos últimos para-ventos intelectuais, psicológicos e morais que, durante tanto tempo, haviam permanecido, nos liberais históricos, estamos perante a inexorável transformação do “liberalismo restrito em liberalismo generalizado” (ou, se preferirem, “neoliberalismo”). Tal como a coruja de Minerva só levanta voo ao crepúsculo, é só nas comoções crepusculares do capitalismo desenvolvido (no seio do qual vivemos presentemente) que se torna efectivamente possível compreender, de uma vez por todas, que o princípio da ilimitação constituía, desde o início, o verdadeiro motor metafísico da lógica liberal. Princípio que durante longo tempo foi dissimulado sob a aparência inofensiva de um Estado “axiologicamente neutro” e dos seus “processos sem sujeito”, os do Direito processual e do Mercado autorregulado - cuja dominação gélida se alarga, actualmente, ao planeta inteiro (sendo que a independência do Banco Central Europeu e a High-frequency trading, são as mais claras ilustrações desta lógica estruturalista dos “processos sem sujeito”).
De que serve, então mobilizar, como você faz, a hipótese suplementar de uma “hubris” que seria inerente à própria democracia (isto é, se bem compreendo, ao controlo pelo povo das suas condições de existência)? Ou ainda os imperativos supostamente autónomos do desenvolvimento tecnológico? Porque se, com efeito, a política moderna deve transformar-se na “simples administração das coisas” (nada de mais nefasto – como já advertiam, em 1973, os ideólogos da Comissão Trilateral – do que uma política value-oriented), então é claro que uma decisão política - seja por exemplo sobre o problema da dívida ou das reformas - só pode legitimar-se se tiver a aparência enganosa de uma decisão puramente “técnica” (de onde este culto religioso da técnica e este reinado, sem partilha, dos “peritos” que hoje se generalizou). E, se todo o apelo a limitar - ou simplesmente a regular - o desenvolvimento sem fim do Direito e do Mercado (Hayek dizia que numa verdadeira sociedade liberal, cada um deve ser inteiramente livre do produzir, vender e comprar tudo o que lhe passe pela cabeça) deve ser considerado, por princípio, “fascista” ou “reaccionário” (basta ouvir Pascal Lamy), que outro tipo humano poderemos vir a ter senão este indivíduo-mónada integralmente dessocializado (e, se necessário, modificado geneticamente) eternamente inseguro dos seus direitos, que tem por única máxima o seu desejo de “viver sem tempos mortos e gozar sem entraves”?
Como você vê, caro Jacques Julliard, o simples desenvolvimento mecânico da lógica liberal - desde que não encontre nenhum obstáculo, como já precisava Marx em Salário, preço e lucro - é amplamente suficiente para dar conta de todos os fenómenos que você, a justo título, deplora (dos quais, um dos mais recentes, e mais aterrorizadores é, sem dúvida, o projecto de alguns investigadores do Pentágono – descrito por Jonathan Crary em Le capitalisme à l’assaut du sommeil – de “libertar” definitivamente os humanos da necessidade de dormir para que possam ser mobilizados ao serviço do crescimento, vinte e quatro horas sobre vinte e quatro por dia). É por isso que um “liberalismo restrito” (para quê? para quem?) não poderá ter nenhum desenvolvimento histórico – uma vez que alberga, no seu seio, o princípio de ilimitação deste “liberalismo generalizado” que vos inquieta tão profundamente.
Serei muito mais breve sobre a questão, seguramente crucial, da “vontade de poder”. Estou inteiramente de acordo consigo na rejeição da ideia – fundada sobre uma leitura simplista de Lévi-Strauss que se generalizou nos anos 1970 (e que veio a ser adoptada por toda a extrema-esquerda contemporânea) - segundo a qual existiria um corte metafísico absoluto entre a natureza e a cultura (designadamente, entre o homem e o animal). Corte este que tornaria legítimo o projecto de adaptar indefinidamente esta “cultura” ao gosto de todos os fantasmas do momento (que são geralmente aqueles que mais bem se ajustam a cada nova mutação do capitalismo). Não será certamente por acaso que esta ideia (que o antropólogo Philippe Descola mostrou até que ponto é profundamente etnocêntrica) se encontra actualmente no cerne dessa ideologia do género cujo postulado fundamental Judith Butler – a grande sacerdotisa do movimento – resumiu laconicamente – em Humain, inhumain – nesta sentença “não é por se ser uma mulher que se vai ao ginecologista, é por se ir ao ginecologista que se é uma mulher” (na mesma veia, poderia dizer-se que não é por se ser deficiente que se usa uma cadeira de rodas, mas é por utilizar uma cadeira de rodas que se é deficiente).
Também estou consigo – é inútil precisá-lo – quando você escreve que (nos nossos tempos isso deixou de ser evidente) deveríamos atribuir algum crédito à Bíblia, aos trágicos gregos, a Shakespeare ou a Freud, que, cada qual a seu modo, proclamam que, quando se consulta o seu desejo, há alguma coisa que se assemelha a um “invariante” (precisamente o contrário, em suma, desta ideologia universitária pós-moderna – de que Éric Fassin é hoje o representante mais caricatural - que não vê, nos autores citados, senão dead white Europeans, que a dominação universitária teria imposto a várias gerações de estudantes, sob o efeito de preconceitos “racistas”, “homofóbicos” e “sexistas”). Existe, de facto, senão uma natureza humana, no sentido estrito do termo, pelo menos, um certo número de invariantes antropológicos – como, por exemplo, a proibição do incesto, a lógica do dom, ou a rivalidade mimética - cuja origem imediata alguns encontram mesmo na ordem natural, como é o caso da procriação (o estabelecimento, hoje previsível, de um mercado de adopção e das “barrigas de aluguer” – que constitui, desde o início, a face oculta do “casamento para todos” – supõe, evidentemente, que uma enorme parte da humanidade, de preferência, a mais pobre, continue a procriar, as usual, para a maior felicidade dos ricos dos países ricos que poderão oferecer-se, sempre que o desejem, o último modelo de criança made in Africa). Se, por exemplo, um pai (para restaurar este termo quase em desuso) não pode amamentar os seus filhos, não é evidentemente porque tal “privilégio” lhe seria politicamente interdito. É muito simplesmente porque tal coisa é biologicamente impossível. Inversamente, basta considerar todas as impossibilidades naturais como interditos arbitrários e “culturalmente construídos” – essa é, entre outras, a posição surrealista (fundada na velha oposição burguesa entre natureza e indústria) que era defendia recentemente por Clémentine Autain – para tornar plausíveis as reivindicações mais fantasistas, seja o “direito de amamentar” para todos, “o direito à beleza física” para todos, “o direito à mesma esperança de vida” para todos, objectivo incontestavelmente emancipador que permitiria alinhar a duração da vida dos homens sobre a das mulheres que dispõem hoje do privilégio escandaloso de durar, em média, mais oito anos do que os homens).
Onde, pelo contrário, deixarei de vos acompanhar é quando você sustenta que a “vontade de poder” estaria inscrita no “coração do homem”. Trata-se, a meu ver, de uma proposição demasiadamente geral e que, além disso, se arrisca a confortar a ideia - que está no cerne do pensamento de Michel Foucault (e da sua discípula americana Judith Butler) - segundo a qual toda a revolução, não “societal”, é hoje totalmente impossível, uma vez que a humanidade estaria votada, por definição, a inscrever-se eternamente em relações de poder e de dominação (Foucault conseguiu extrair daí um curioso elogio do sadomasoquismo). Essa é a razão pela qual sempre insisti em precisar que o egoísmo (que constitui a mola psicológica última da necessidade de tratar os outros como meios) é, na realidade, muito menos natural do que inicial. Queria significar, com isto, que o desejo de omnipotência (que não é mais do que o reverso a situação inicial de dependência) é, primariamente, o que caracteriza a criança que todos fomos. A função primacial da educação – sejam quais forem as suas formas, que variam evidentemente de uma cultura a outra - é a de tornar progressivamente possível a dissolução (ou, no mínimo, a neutralização) deste impulso primário de omnipotência (o que supõe sempre, num ou noutro momento, a superação da relação fusional com a mãe e o correlativo reconhecimento da lei simbólica que permite essa superação) para permitir que a criança aceda à “maturidade”, dito de outro modo, a esta capacidade de autonomia que caracteriza o indivíduo plenamente humanizado. Basta que, por uma ou outra razão, esta educação claudique (seja que a falha se situe do lado de uma mãe demasiado possessiva ou, principalmente, do lado daquele ou a daquela que teria o encargo de assumir a função separadora paternal), para que a vontade de poder da criança se mantenha idêntica a si mesma, e continue a organizar clandestinamente - sob formas, também aqui, infinitamente variadas - a vida que será a sua, depois de “adulto”.
É, pois, num sentido, porque “fomos crianças, antes de sermos homens” (ainda Descartes) que este triste sentimento de não poder existir senão através do domínio – consciente ou inconsciente – exercido sobre os outros pode surgir como algo de universal, sem que esteja presente em toda a gente. Universal porque o fracasso da socialização é tão antigo como a humanidade (já Aristóteles denunciava aquele que se comporta, na sua vida quotidiana, “como uma peça isolada num jogo do empurra”). Mas não está presente em toda a gente, uma vez que a possibilidade de aceder (graças à educação dada pela família ou pelo grupo social) à maturidade e à autonomia – o que inclui necessariamente, no sujeito, a aptidão à empatia e a correlativa capacidade de dar, receber e retribuir (capacidade que, aos olhos do egoísta, dissimula sempre um interesse escondido) surge como igualmente antiga. Orwell chegou inclusivamente a pretender que, passados os trinta anos, a maior parte dos seres humanos consegue desprender-se do seu egoísmo inicial, adquirindo assim as bases morais e psicológicas da capacidade de amar e de estabelecer laços sólidos e duradouros, fundados na confiança mútua.
Parece-me que a principal vantagem de uma concepção desta ordem – além do facto de se apoiar sobre o núcleo racional da psicanálise – é a de oferecer uma base muito mais precisa (e menos dramática) à crítica da vontade de poder. O homem de poder (ou a mulher de poder) é aquele (ou aquela) que jamais conseguiu ultrapassar a fase da infância. De onde esta multiplicação bem conhecida de comportamentos infantis e narcísicos (obsessão ridícula de obter sinais de proeminência, susceptibilidade doentia, rivalidade mimética exacerbada, gosto pronunciado por rupturas de comunicação, megalomania, paranóia, etc. etc.) que pode observar-se quase sempre, em diferentes graus, quando nos aproximamos das cúpulas de qualquer hierarquia, quer seja fundada sobre o poder político e administrativo, a riqueza ou a notoriedade mediática. Com efeito, a partir do momento em que um indivíduo goza de um poder qualquer (em todos os sentidos do termo gozar) ele fica, por definição, isento de uma larga parte destes limites que definem a condição humana comum (tem, por exemplo, o poder de gastar sem contar, de impor os “seus caprichos de diva”, e ordenar intervenções militares nos Balcãs ou em África). E é, evidentemente, o facto jubilatório de viver à margem da vida comum e dos seus limites estruturantes que, ao falsear a relação com os outros, contribui, de modo decisivo, para manter o indivíduo (ou fazê-lo recair) num estado de infância prolongada (Pascal escreveu coisas admiráveis a este propósito no seu Discours sur la condition des grands).
Naturalmente (e, sobre este ponto, estou inteiramente de acordo consigo), este desejo infantil de submeter os outros ao seu ego - que pode mesmo ocasionalmente albergar-se sob a máscara da dedicação sacrificial ou do militantismo – não é um privilégio exclusivo das elites políticas, económicas e culturais, mesmo que seja certo que, nestas, tenda a tornar-se uma “segunda natureza”. A existência do “desejo de ter êxito” (que também pode conferir sentido a essa “recusa de êxito” que, segundo Albert Thierry, definiria a própria essência do espírito anarquista) é prova bastante de que a necessidade de dominar os seus semelhantes – dito de outro modo, a incapacidade psicológica de suportar relações de igual para igual – pode também manifestar-se nas classes populares e dominadas, como é tantas vezes exibido nas experiências de vida militante ou associativa. Mas, por um lado, é justamente o interesse filosófico da tradição anarquista o ter colocado este problema crucial no centro das suas preocupações e ter convidado a uma reflexão sobre a natureza das instituições e das práticas que poderiam erradicar – ou pelo menos, neutralizar – as ambições dos Robert Macaire ou Netchaïev potenciais. Por outro lado, estou certo que você conceder-me-á que esta necessidade obsessiva de viver à custa dos seus semelhantes é geralmente menos marcada no universo das pessoas comuns (o chupista continua a ser um modelo humano relativamente minoritário, neste ambiente, mesmo que pareça estar em progressão). Nem que seja porque – como escrevia Orwell – as pessoas comuns atribuem, por definição, muito mais importância aos “sentimentos humanos correntes, como o amor, a amizade, a alegria de viver, o riso, a curiosidade, a coragem ou a integridade” do que as alegrias repetitivas da luta pelos lugares. Simon Leys tinha apreendido com muita perspicácia este aspecto das coisas quando sublinhou, no seu notável ensaio sobre Orwell, que este último tinha permanentemente a preocupação de recordar aos militantes sacrificiais que “na ordem normal das prioridades, é necessário que o frívolo e o eterno passem à frente da política”. De sorte que, subscreveria de bom grado o juízo de Alexander S. Neil quando confessava que teria a impressão de ter fracassado se “uma criança de Summerhill viesse um dia a ser Primeiro-Ministro”. A questão de saber se a educação ministrada em Summerhill era a mais apropriada para evitar este género de fracasso, é uma questão completamente diferente.
Situando assim o eixo do “mal radical” – para usar a sua terminologia – não na natureza do homem mas na passagem, sempre problemática, da infância à idade adulta (sabemos, aliás, toda a importância que as sociedades ditas “tradicionais”- diferentemente das nossas – atribuíam aos ritos de iniciação, sinal de algo de antropologicamente essencial de que o liberalismo perdeu a chave), torna-se possível escapar, em larga medida, à visão trágica da história que coloria a sua última carta. Porque se o mal está metafisicamente inscrito “no coração do homem” – como você parece pensar – só um combate heróico de todos os instantes (combate, aliás, sem fim) poderia permitir aos pobres humanos que nós somos chegar um dia a acabar com os nossos demónios interiores. O que nos deixa muito poucas possibilidades – como você mesmo confessa – a este projecto de uma sociedade decente (segundo a expressão de Orwell) que você almeja tanto como eu. Ora, foi justamente para contornar esta armadilha de uma concepção essencialmente heróica (ou mesmo estóica) da moral quotidiana que Orwell decidiu atribuir um papel de tanto relevo à ideia de common decency – onde o termo common designa simultaneamente o que é partilhado e o que é comum. Eis o que irá permitir-me – e será a minha última parte – dizer finalmente algo sobre este conceito politicamente maior e que não deixa de suscitar a ira do clero universitário (há que dizer que Albert Thierry – que escolheu ser fiel, durante toda a sua vida, ao seu ofício de professor primário – considerava a universidade como “a bomba elevatória para o êxito dos arrivistas”).
Sublinhar, como fazia Orwell, que o socialismo comporta necessariamente uma dimensão moral, é dizer, com efeito, pelo menos, três coisas politicamente essenciais. É dizer, em primeiro lugar, que a tomada de consciência por parte daqueles que produzem a riqueza colectiva do imperativo de abolir um sistema que monopoliza o seu tempo de vida e sacrifica a sua humanidade no altar do lucro privado e da “competitividade” a qualquer preço, nunca advém – ao contrário do que pensava Lenine – de uma compreensão estritamente intelectual das “leis científicas da história”, crença que conduzia Lenine a aprovar sem reservas, o juízo de Werner Sombart, segundo o qual “de uma ponta a outra, o marxismo não contém uma migalha de ética”. A tomada de consciência nasce quase sempre de um sentimento de cólera e de injustiça – isto é, de uma revolta moral – perante o modo como a busca desenfreada do lucro (que deve ter, com efeito, alguma relação psicológica essencial com aquilo a que você chama “o isco do ganho e a cupidez”) e a concorrência impiedosa que daí resulta conduz, não só a transformar os trabalhadores, segundo as palavras de Marx, em simples “máquinas de produção de mais-valia” (com tudo o que isto implica em termos de gestão), mas igualmente em submeter progressivamente o conjunto da sociedade aos meros imperativos do cálculo egoísta e da guerra de todos contra todos. Competirá, bem entendido, a um movimento socialista digno desse nome, desenvolver, depois, esta “economia moral” espontânea das classes populares (para retomar a expressão célebre de E. P. Thompson) fundamentando as suas intuições sobre uma análise tão objectiva quanto possível da dinâmica real do capitalismo. E nada indica que um tal desenvolvimento teórico – seguramente indispensável – seja o privilégio exclusivo dos intelectuais de profissão.
É dizer, em segundo lugar, que o combate para instituir uma sociedade decente exclui, por definição, a ideia pretensamente “realista” (desenvolvida, por exemplo, por Trotsky, em A moral deles e a nossa) segundo a qual a legitimidade dos fins prosseguidos autorizaria o emprego dos meios mais imorais – incluindo, entre “camaradas” – a partir do momento em que se supõe que favoreçam o triunfo do objectivo final. Insistindo sobre esta evidência moral (a sua experiência espanhola abriu-lhe definitivamente os olhos sobre a natureza do estalinismo) Orwell inscrevia-se do modo mais claro possível na corrente do socialismo original – designadamente nas suas formas anarquistas e populistas – que atribuíam uma importância central à questão moral e à luta contra aquilo a que chamavam o “jesuitismo” político (a recente tradução, pelas edições Pontcerq, da história dos Tchaïkovtsy, redigida no final do século XIX por um dos seus partidários anónimos, confirma, aliás, até que ponto o populismo russo – contrariamente à apresentação mentirosa que é hoje fornecida pelos meios de comunicação e pelo mundo universitário – se manteve sempre ancorado na dupla preocupação de nunca derrogar a moralidade comum e de neutralizar, na medida do possível, a dialéctica das ambições pessoais).
É, enfim, e porventura sobretudo, que a construção de uma sociedade socialista decente – longe de implicar a fabricação prévia de um homem integralmente novo – deve, pelo contrário, sustentar-se sobre um determinado número de recurso morais e culturais já existentes, cuja unidade Orwell tentou apreender sob o termo de decência comum. Trata-se, é certo, de uma noção muito geral e essencialmente descritiva (embora seja suficiente reler a Homenagem à Catalunha para nos apercebermos imediatamente que a distinção entre uma política decente e uma que o não é repousa em critérios muito menos arbitrários do que aquilo que os intelectuais de esquerda estão inclinados a pensar). Essa foi, acima de tudo, a razão pela qual escolhi, desde os meus primeiros livros, esclarecer a verdadeira significação e aquilo que está em jogo nesse conceito, à luz dos dados da antropologia de Marcel Mauss – que foi, ele mesmo, um militante do movimento socialista cooperativo – e dos seus herdeiros contemporâneos (mesmo sendo verdade que os meus críticos - à imagem de Philippe Corcuff ou de Fréderic Lordon - desenvolvem, geralmente, todos os recursos do seu engenho para ocultar aos seus leitores este ponto absolutamente crucial da minha argumentação.
O maior mérito dos ensaios de Marcel Mauss (designadamente, o Essai sur le Don, que apareceu em 1924) é o de ter estabelecido - baseando-se em dados etnológicos mais tarde amplamente confirmados - que o fundamento primário do vínculo social, nunca pode ser, como gostaria a metafísica liberal, o contrato jurídico ou a troca mercantil (para não falar da fábula da troca directa cara a Adam Smith e aos primeiros economistas), mas, antes de mais, a tripla obrigação universal – originariamente associada aos jogos de honra, isto é, à problemática do rosto – “dar, receber e retribuir” (Mauss via aqui um verdadeiro “penedo” antropológico). Contrariamente ao preconceito liberal hoje dominante, esta tripla obrigação (que comanda um modo de circulação das coisas e das prestações fundado sobre o primado “dos laços sobre os bens”, mesmo quando estes laços são “agonísticos” - como no caso do potllach – ou negativos, como no caso da vendetta) não caracteriza apenas o modo de vida das sociedades ditas “primitivas” ou “tradicionais” (caso em que o Essai sur le Don teria apenas um interesse histórico). Este penedo continua, de facto (mesmo nas sociedades oficialmente individualistas e dominadas pela lógica do Direito e do Mercado), a organizar - de um modo, é certo, tácito e, por vezes, invisível – uma parte essencial das relações humanas, designadamente aquelas que se desenrolam face a face, como acontece no seio da família, entre amigos, ou entre vizinhos ou colegas de trabalho. Estou, por exemplo, convencido, meu caro Jacques Julliard, de que, se amanhã, um dos vossos vizinhos viesse pedir-lhe emprestada uma perfuradora eléctrica para usar no fim-de-semana, não vos viria ao espírito a ideia de o fazer assinar um contrato “em boa e devida forma” e ainda menos de apresentar-lhe, de imediato, uma factura (o que deveria obviamente acontecer se seguíssemos à letra os princípios “racionais” da economia liberal). Aqui, temos que nos haver com esta “lógica do dom”, com um verdadeiro invariante antropológico – que se manterá, pelo menos, enquanto a lógica liberal não tiver conseguido submeter ao seu espírito calculador a integralidade da condição humana.
Bem entendido, se nos mantivermos a este nível de generalidade, é claro que a lógica do dom não prescreve, por si mesma, nenhum conteúdo normativo particular. Ela não especifica, de modo algum, aquilo que convém concretamente dar, receber ou retribuir, nem a quem, nem de que forma, nem em que circunstâncias (cabe, em suma, a cada cultura particular, preencher, à sua maneira, a páginas deste caderno de encargos morais deixadas em branco e de definir - para retomar uma expressão do escritor polaco Stanislaw Lem – a sua própria “barra de solidariedade”). Todavia, o simples facto - comum a todas as civilizações (com a excepção, ainda mais uma vez, desta sociedade liberal moderna que só reconhece oficialmente a lógica calculadora do “toma lá, dá cá”) – de se ser moralmente “obrigado”, em certas condições, a corresponder a esta condição de reciprocidade, sob pena de perder a face (recusando, por exemplo, “socorrer a viúva e órfão”, comportando-se como um cobarde ou cometendo um “crime”) é suficiente para definir objectivamente as formas a priori de todo o comportamento humano honesto, bem como as virtudes morais correspondentes da generosidade e da gratidão. É neste sentido preciso que é possível dizer - como nunca deixei de fazer – que a lógica do dom constitui o verdadeiro pano de fundo antropológico de toda a common decency. E a ideia, inseparável, da consciência moral moderna (entendo esta consciência moral como uma interiorização pelo sujeito individual dos imperativos colectivos do dom – dito de outro modo, como a capacidade adquirida de cumprir o seu dever “em sua alma e consciência” e não apenas em função do olhar dos outros), segundo a qual se violar um mandamento ético maior, jamais poderei olhar-me num espelho, mostra bem até que ponto a própria consciência moderna está enraizada na temática tradicional da honra e da face.
Eis o que já seria suficiente para justificar (contra toda a forma de relativismo cultural pós-moderno) o princípio, seguramente minimalista, segundo o qual, em toda a sociedade digna desse nome, “há forçosamente – como escrevia Orwell – coisas que não se fazem”, sob pena de desonrar o seu autor (note-se, de passagem, que esta noção de honra - cuja dimensão universal foi recentemente posta em evidência pela filósofa ganesa Kwame Appiah – não pode ter o menor sentido no interior da lógica relativista dos liberais). Mas esta antropologia do dom apresenta igualmente a vantagem de tornar muito mais precisas as razões pelas quais “a sociabilidade primária” (esta “esfera das relações entre as pessoas” - escreve Alain Caillé – que “funciona essencialmente em função da obrigação de dar, receber e retribuir”, não podendo, aliás, funcionar sobre outra base, sob pena de “se dissolver”) não é compatível com a lógica axiologicamente neutra do toma lá, dá cá. Lógica na qual o cálculo se substitui à confiança e que, no entanto, os liberais continuam a considerar como a única base possível do vínculo social moderno, assente no cálculo “racional” e na liberdade individual.
Como você vê, caro Jacques Julliard, nunca sustentei a tese (que me é muitas vezes atribuída) segundo a qual a decência comum poderia bastar, por si só, para definir a totalidade do projecto socialista. Sempre sustentei, pelo contrário, que ela era apenas o ponto de partida, um princípio regulador, e que o projecto socialista implicava uma crítica específica do sistema capitalista. Tampouco sustentei que seria possível deduzir integralmente os princípios concretos desta decência comum a partir apenas das propriedades universais da lógica do dom. Porque se a tripla obrigação de “dar, receber e retribuir”, contribui incontestavelmente para proteger as diferentes civilizações humanas contra o reino dissolvente do “cada um por si” (é mesmo o principal obstáculo cultural que encontra o capitalismo quando procura implantar-se numa nova região do mundo) não ignoro, evidentemente, que esta forma de proteção pode também efectuar-se sob o primado de um vínculo social hierárquico e inigualitário (as obrigações definidas pelo dom - em latim, munia, que se encontra na origem palavras “comum”, “comunidade” e “comunismo” - podem tornar-se, em grande parte, simples fardos. Obriguei-me mesmo a recordar regularmente que o laço social “tradicional”, por muito caloroso que seja, pode muitas vezes revelar-se sufocante – mesmo nas sociedades mais igualitárias - quando o sujeito individual acaba submergido sob o peso de dívidas simbólicas demasiado numerosas e difíceis de suportar psicologicamente (existe toda uma literatura antropológica sobre a obrigação de entrar em vendetta que põe em evidência este aspecto).
Na medida em que o Mercado e o Direito podem permitir abrir efectivamente espaços subtraídos aos constrangimentos simbólicos do dom (um direito, por exemplo, é necessariamente incondicional e não exige dos sujeitos nenhum contra dom particular) sempre tive o cuidado de sublinhar (no Ensino da Ignorância, há um longo capítulo dedicado a esta questão) que estes dois mecanismos anónimos e impessoais podiam – sob condição de se manterem encastrados em certos limites morais e culturais - contribuir, de modo decisivo, para a emancipação dos indivíduos e para a constituição de uma verdadeira esfera privada. Não são, portanto, o Direito e o Mercado, em si mesmos, que eu critico, mas o princípio liberal da sua extensão indefinida a todas as esferas da existência humana. De sorte que não tenho nenhuma dificuldade em reconhecer que as formas concretas da decência comum dependem, numa parte importante, da História e das tradições próprias a cada civilização particular (em L’Ange et le Cachalot, Simon Leys assinala que as formas da decência comum - é o termo que ele emprega - que caracterizam a cultura popular chinesa não podem ser plenamente compreendidas se não tivermos em conta a herança confuciana). Era essa, aliás, a posição de George Orwell quando observava (por exemplo, no seu admirável ensaio sobre Dickens) que a common decency nas classes populares britânicas - tanto operárias como pequeno-burguesas - encontrava a sua fonte num certo número de reflexos culturais igualitárias adquiridos historicamente e ligados não só ao hábito de viver e trabalhar em conjunto (estas relações horizontais de entreajuda e de solidariedade que caracterizam, por definição, todas as comunidade de base do mundo, sejam ou não aldeãs) mas também a sua experiência histórica de injustiça e opressão (e Orwell jamais se esquecerá de recordar o papel desempenhado pela cultura cristã na formação destes reflexos igualitários ocidentais).
Estamos, em suma, próximos destes “customs in common” – destas formas de resistência espontânea que as classes populares do mundo inteiro sempre souberam opor, de modo singular em cada circunstância, à desmontagem metódica do seu modo de vida tradicional pela lógica calculista do capitalismo moderno - que E. P. Thompson analisou de um modo tão magistral. Não há nada na análise proposta por Orwell - à qual continuo fiel - que autorize o clero universitário a pontificar permanentemente sobre o seu “essencialismo” ou a ironizar sobre a sua suposta idealização das classes populares. Mesmo se continue a ser evidente - e não o contesto – que, para poder acolher uma representação de tal modo positiva (e tão acolhedora) destas classes populares - representação cujos princípios são, de resto, regularmente confirmados pela maior parte das investigações empíricas existentes, à imagem da que foi conduzida nos Estados Unidos por Paul Piff - é efectivamente necessário admitir previamente um postulado filosófico, do qual o mínimo que pode dizer-se é que não corresponde à visão universitária do mundo. O postulado segundo o qual temos muito mais possibilidades de compreender a verdadeira natureza de uma sociedade dada - e nos comportarmos de forma consequente - quando somos constrangidos a observá-la a partir de baixo - isto é, do ponto de vista das pessoas comuns do que quando temos o hábito ingénuo de analisar o seu funcionamento (sem mesmo nos darmos conta disso) do ponto de vista das elites políticas, económicas e culturais, cujos inúmeros privilégios, incessante mobilidade e conhecimento superficial da vida popular tendem a afastar da moral comum e do simples bom senso (e sem dúvida que devemos ver neste distanciamento de classe a raiz primária de todos os preconceitos ideológicos contemporâneos contra a própria ideia de decência comum). Eis o que responde, de um modo mais preciso, às objecções que você suscita no final da sua última carta. Entre a common decency dos subúrbios comunitários - escreveu você - e a dos antigos proletários, expulsos para a periferia, está você seguro que de a base dos valores comuns, ainda existe?”.
Reconheço que você levanta aqui um problema fundamental. O simples facto, por exemplo, de que o culto da mobilidade (tanto no plano geográfico como profissional e afectivo) se tenha tornado o princípio de adesão ao espírito do capitalismo explica efectivamente o caracter cada vez mais “multicultural” das sociedades modernas – caracter que não facilita, como é óbvio, a reunião de todas as forças populares de uma nação dada sob uma bandeira política comum. Acrescentarei mesmo, para complicar ainda mais o quadro, que o conflito de culturas e dos interesses leva, não só a levantar as diferentes categorias populares umas contra as outras (vemo-lo bem, por exemplo, no antagonismo cultural que opõe os trabalhadores do sector privado aos do sector público). Sob o reinado do capitalismo desenvolvido, este conflito atravessa cada um de nós, na medida em que todos os sujeitos são permanentemente incitados, enquanto consumidores, a privilegiar certas escolhas quotidianas (por exemplo, comprar produtos low cost fabricados no outro extremo do mundo por crianças escravizadas) que poderão, a seu tempo, virar-se contra eles, enquanto trabalhadores submetidos à concorrência mundial.
Parece-me, todavia, que este problema é menos novo do que poderia crer-se. Feitas as contas, a classe operária do século XIX não era mais homogénea do que a de hoje (basta observar a diversidade dos ofícios e dos estatutos que caracterizavam as diferentes secções da Primeira Internacional). E, no entanto, esta heterogeneidade constitutiva não representava, na época, um obstáculo insuperável ao florescimento de um poderoso “movimento operário”, seguro dos seus valores e da justeza da sua causa, já capaz de associar à roda do seu ideal filosófico fracções inteiras do campesinato e da pequena burguesia (só o partido social-democrata alemão contava, nas vésperas da primeira Guerra Mundial, mais de um milhão de aderentes!). Mas aquilo que tornava, então, possível esta força colectiva da classe operária (se deixarmos, aqui, de parte alguns aspectos materiais da questão - sociedades dependentes do carvão ou do petróleo - tais como as analisa Timothy Mitchell no seu notável Carbon Democracy) era, evidentemente, a existência de uma grande narrativa colectiva que permitia que categorias sociais cujos interesses imediatos estavam muito longe de coincidir, se reconhecessem numa imagem de um futuro comum. E compreende-se, do mesmo passo, o papel fundamental que desempenha o elemento moral na construção de um “bloco histórico”, visto que o princípio básico de toda a ética é justamente a capacidade de o sujeito, seja individual ou colectivo, pensar e agir para além dos seus interesses imediatos.
Ora, aquilo que hoje desapareceu claramente (já o sublinhava na minha primeira carta) foi justamente a ideia de que este tipo de narrativa colectiva pudesse manter ainda algum sentido, na época do capitalismo desenvolvido. Com efeito, a partir do momento em que se admitiu - sob a influência, entre outros, de Bernard-Henri Levy e de Michel Foucault (cujo impacto intelectual decisivo sobre a elites políticas da esquerda é impossível subestimar) - que “comum” e “totalitário” eram forçosamente sinónimos (é aquilo a que Foucault chamava a “ditadura do On”) e que era urgente terminar com toda a crítica global do capitalismo (foi precisamente a partir deste momento - o início dos anos 1980 - que intelectuais de esquerda iriam dissociar sistematicamente liberalismo económico e liberalismo político e cultural), tornava-se cada vez mais difícil propor às diversas categorias populares um programa de emancipação colectiva, ao mesmo tempo, federador e coerente. O que Felix Guattari e Daniel Cohn-Bendit não deixaram, evidentemente, de teorizar à sua maneira (num texto retumbante publicado em 1986 cujos efeitos politicamente desastrosos foram exibidos brilhantemente pelo pensador americano John Sanbonmatsu, em The Postmodern Prince), sustentando que o objectivo político primário de uma nova esquerda já não poderia ser o de “chegar a um consenso aproximativo de alguns enunciados gerais cobrindo o conjunto dos problemas em curso, mas, pelo contrário, favorecer o que se chama uma cultura do dissenso, abrindo para um aprofundamento de posições particulares e para uma ressingularização dos indivíduos e dos grupos humanos”. E estes compadres não perdiam a ocasião de acrescentar alegremente: “Que inépcia pretender pôr de acordo sobre uma mesma visão das coisas, os imigrados, as feministas, os amantes do Rock, os regionalistas, os pacifistas, os ecologistas e os apaixonados da informática!”
Não é muito difícil reconhecer nesta celebração pós-moderna da cultura do dissenso o verdadeiro fundamento ideológico desta nova luta liberal “contra todas as discriminações” (de que Jim Yong Kim - o presidente do Banco Mundial - reconhecia, há pouco tempo, que ela tinha por objectivo essencial permitir finalmente a todos os indivíduos produtivos “a participação plena no mercado de trabalho”) que representa, hoje, o único marcador simbólico da esquerda liberal (um vago “antifascismo” acrescido, de um modo geralmente grotesco - designadamente no microcosmo parisiense - suficiente para ocupar o lugar do morto, isto é, o lugar do socialismo desaparecido). Resta que, se recursarmos considerar como uma “inépcia” a ideia de que todas as culturas populares - incluindo, por consequência, aquelas que colhem a sua principal inspiração no Islão - são massivamente irrigadas pelas lógicas do dom e do contra dom (todos estes salamaleques que tanto irritam os teóricos da troca “racional”) nada permite afirmar, pelo menos para já, que seria definitivamente absurdo procurar definir - partindo, ao mesmo tempo, desta “base cultural fundadora” que é a lógica do dom e da sua experiência comum da despossessão, da exploração e da atomização do mundo - as bases políticas concretas de “uma mesma visão das coisas”, face ao que constitui ainda, até prova do contrário, o inimigo comum de todas “as pessoas comuns” (trata-se, em suma, de um caso particular do problema que Gramsci se esforçava por resolver quando analisava a questão do Mezzogiorno”). Basta que nos recordemos (contrariamente a este universalismo abstracto que, nos nossos dias, convida a considerar toda a inscrição num determinada cultura – seja basca, bretã ou cigana - como um simples fechamento “xenófobo” e “reaccionário”) que a verdadeira universalidade - este “universal concreto” que permite a povos e grupos sociais de culturas diferentes reconhecerem-se em certos valores morais comuns e num projecto político comum – jamais tem origem no sacrifício das identidades particulares (que nunca são fixadas de uma vez por todas), mas unicamente no desenvolvimento crítico do que constitui o verdadeiro sentido humano (velha lição hegeliana que o pensador americano Josiah Royce formulava, no século XIX, a seu modo, lembrando que “só aquele que tem costumes está realmente em condições de compreender os costumes dos outros”).
Dito isto, não tenho nenhuma intenção de esconder-me por detrás de um arbusto. Com efeito, é impossível negar que o desenvolvimento permanente da contracultura liberal poderá conduzir, num futuro próximo, a modificar radicalmente os termos desta análise (emprego aqui o termo contracultura a fim de designar este novo sistema de estratégias simbólicas que está no cerne do capitalismo mundializado e cujo único princípio motor - à imagem do que pôde ter o movimento punk - é a intenção permanente de destruir todos os códigos e todas as montagens normativas existentes). De facto, tornou-se difícil, hoje, - sobre este ponto, você infelizmente tem razão – não começar a interrogar-nos sobre as possibilidades de sobrevivência “a curto prazo” destas diferentes culturas populares (note-se que se trata de um problema histórico inteiramente inédito, visto que, até ao presente, houve civilizações e culturas que desapareceram na sequência de catástrofes naturais ou de uma conquista, mas nunca sob o efeito de uma contracultura imposta de forma industrial). Porque se a possibilidade de se comportar de uma forma globalmente decente nas condições comuns da vida (deixo evidentemente de fora o caso de “situações históricas extremas” que Michel Terestchenko – grande leitor de Mauss - tão finamente analisou em Un si fragile vernis d’humanité) não requer a priori nenhum heroísmo moral particular, é porque a common decency – longe de ser coisa de indivíduos isolados pelos muros protectores da decência comum – sempre encontrou, até aqui, as suas condições de possibilidade quotidianas no exercício de práticas e instituições colectivas – à imagem daquelas que caracterizam a vida de bairro – que se encontram ainda massivamente ordenadas pela tripla obrigação antropológica de dar, receber e retribuir. Ora, são precisamente estes muros protectores da decência comum (a começar pela família e as relações de vizinhança) que a lógica liberal - designadamente através das suas formas de instalação urbana, de aceleração do tempo e de mobilidade generalizada - contribui para destruir em profundidade, favorecendo “a atomização do mundo” (Engels) e a correspondente proliferação de “comportamentos neuróticos, parasitários, anormais e sociopatas” (tomo esta fórmula radical de um ensaio notável, recentemente publicado por um colectivo libertário - La Lampe hors de l’horloge: élements de critique anti-industrielle).
Que pensar, por exemplo, deste novo “site” de Montpellier – que descobri, há momentos – que propõe, em toda a legalidade, nada menos do que fornecer aos homens de negócio locais, sugar babies disponíveis e consentidoras, ou seja, estudantes universitárias recrutadas in loco? Sobretudo, quando se descobre um pouco mais à frente a reacção destas sugar babies: “Sim, há homens que me alugaram – reconhece uma delas – mas não fiz nada de mais, dá para pagar os estudos”. Enquanto uma outra declara, ainda com maior simplicidade: “Gosto de dinheiro e adoro sorrir. Graças a este “site” gostaria de viver noites de loucura, onde se gasta sem fazer contas” (Gazette de Montpellier de 10 de abril de 2014). Perante estes exemplos, que hoje podem multiplicar-se indefinidamente, torna-se impossível ignorar que a dinâmica real do capitalismo global atingiu este ponto de não retorno onde são atacadas directamente todas as formas de decência comum (e é precisamente aqui que o sociólogo de “extrema-esquerda” deve desempenhar o seu papel habitual de idiota útil do Sistema). Ao ponto em que a hipótese de uma desaparição integral desta commom decency – e a instalação generalizada do reino do cada um por si e da guerra de todos contra todos – já não releva de um cenário hollywoodesco. Ao ponto de tornar plausível – pela primeira vez na história da humanidade – a ideia de “uma civilização humana axiologicamente neutra” cujo ritmo vital seria permanentemente definido (mesmo nas esferas mais íntimas da existência pessoal) apenas pelas lógicas bipolares da troca mercantil e do contrato jurídico, eventualmente completadas por algumas manipulações genéticas apropriadas. Em suma, as núpcias consumadas da utopia mercantil de um Jean-François Copé e do sonho contratualista de um Noël Mamère com os delírios biopolíticos de uma Christiane Taubira.
Supondo, todavia, que um tal mundo à Blade Runner possa um dia vir a tornar-se real – o que supõe que os ideólogos da esquerda “pós-moderna” teriam, entretanto, conseguido impor a todos os povos do planeta as suas novas normas de vida pós-humana – não será caso para pensar, caro Jacques Julliard, que a sua cara filosofia do “Progresso”, terá alguma coisa a ver com isto? Porque há que convir que o velho dogma das Luzes segundo o qual tudo o que é novo constitui, por definição, um progresso indiscutível da Razão e da Liberdade (que só um “conservador” ou um “reaccionário” poderiam ainda contestar) conduz mecanicamente a esquerda, desde há mais de trinta anos, à obrigação de acompanhar, um após outros - ou mesmo a antecipar - todos os passos em frente da megamáquina capitalista, quer seja no plano da economia ou da política ou da cultura e dos costumes. Quanto à questão de saber se esta ou aquela inovação particular representa um progresso verdadeiro ou uma alienação suplementar, essa é que deveria ser da competência de um debate democrático, e não da mera lógica do Direito e do Mercado.
Certamente, reconheço que é hoje muito difícil, após mais de três séculos de crença religiosa ininterrupta num misterioso “sentido da História” (“para o filistino - escrevia em 1911 Gustav Landauer - nada é mais importante e mais sagrado do que a Técnica e o Progresso”), libertarmo-nos inteiramente do estranho fascínio que se apodera do ser humano perante esta fuga em frente perpétua que define a modernidade capitalista. O próprio jovem Engels não lhe escapou: “Não reconheço nada que seja mais importante - escrevia em 1845 - do que o espectáculo oferecido pelo Tamisa quando se sobe o rio vindo do mar à London Bridge. A massa do casario, os estaleiros navais em ambas as margens, sobretudo a montante de Woolwitch, os inúmeros navios alinhados ao longo dos cais, que se apertam uns contra os outros e não deixam no meio do rio senão um caminho estreito sobre o qual uma centena de barcos a vapor se cruzam velozmente – tudo isto é tão grandioso, tão enorme, que se fica submergido e estupefacto perante a grandeza da Inglaterra, mesmo antes de pisar o seu solo”.
Se Engels tivesse sido um homem de esquerda, a sua descrição teria ficado por aqui. Mas, e essa é a grande diferença, ele observava em primeiro lugar, este mundo industrial nascente, como socialista. Daí, esta segunda parte do seu texto que hoje é forçosamente ininteligível para a maior parte dos eleitores de François Hollande e Daniel Cohn-Bendit: “Quanto aos sacrifícios que tudo isto custou – continuava o amigo de Marx – só os descobrimos mais tarde. Quando percorremos durante alguns dias o pavimento das ruas principais, quando abrimos penosamente uma passagem, através do corropio de filas sem fim de viaturas e tipóias, quando visitamos os bairros mais degradados desta metrópole, só então é que começamos a dar-nos conta de que estes londrinos tiveram que sacrificar a melhor parte da sua qualidade de homens para realizarem todos os milagres da civilização”. De facto, como imaginar que uma compreensão tão dialéctica do “Progresso” e dos malefícios do capitalismo moderno, possa, hoje, encontrar algum eco intelectual entre os ingénuos seguidores da nova esquerda “cidadã” e “antirracista”?
O problema reside em que, ao renunciar a criticar este universo capitalista (com a sua preocupação de “tranquilizar os mercados” e culto suicidário do crescimento e da competitividade internacional, em vez da antiga luta por uma sociedade decente e sem classes) esta nova esquerda “cidadã” comprometeu as suas últimas oportunidades de voltar a unir e a unir-se, às classes populares, cujas condições de vida, já suficientemente difíceis e precárias, são todos os dias desfeitas pela “mundialização feliz”. Porque para que pudesse haver uma esperança de vir a reencontrar algum espaço no coração daqueles que se debatem no porões insalubres do navio liberal (enquanto os passageiros de primeira classe dançam, na ponte, ao ritmo frenético do Grande Jornal do Canal +) seria necessário, em primeiro lugar, que esta esquerda “cidadã” começasse a expulsar do templo socialista todos estes “escravos honestos” de que outrora troçava Guy Debord, quando deles dizia que o seu único medo era o de que pudessem ser suspeitos de passadismo”. Escravos honestos que acabaram logicamente por vir a constituir finalmente o núcleo duro das suas legiões militantes e “associativas”, a fonte permanente do seu moralismo arrogante e da sua insuportável boa consciência. Uma tal esquerda - hoje muito mais próxima de Adolphe Thiers do que de qualquer outra grande figura histórica da esquerda, como Marx, Proudhon ou Rosa Luxemburgo - poderia, ainda hoje, manter os recursos morais (para não falar nas capacidades intelectuais) que lhe permitissem tomar decisões radicais e contrárias aos seus interesses eleitorais imediatos (uma espécie de Bad Godesberg, ao contrário)? Pela leitura das minhas cartas anteriores, compreenderá, caro Jacques Julliard, que se trata de uma perspectiva na qual não consigo acreditar.
(*) Jean-Claude Michéa (n. 1950), filho de resistentes comunistas, foi ele próprio militante do PCF até 1976. Professor de filosofia aposentado no Liceu Joffre (Montpellier), é um pensador anticapitalista independente, influenciado por George Orwell e pela escola antropológica seguidora de Marcel Mauss. Desde há muitos anos leva a cabo uma luta sem quartel contra a esquerda oficial, rendida à religião do progresso e à mercantilização completa da vida social. Entre as suas obras destacam-se: L'Enseignement de l'ignorance et ses conditions modernes, Climats, 1999; Impasse Adam Smith. Brèves remarques sur l'impossibilité de dépasser le capitalisme sur sa gauche, Climats, 2002, reedição Paris: Champs-Flammarion, 2006; Orwell éducateur, Climats, 2003; L'Empire du moindre mal: essai sur la civilisation libérale, Climats, 2007, reedição Paris: Champs-Flammarion, 2010; La double pensée. Retour sur la question libérale, Champs-Flammarion, 2008; Le complexe d'Orphée: la Gauche, les gens ordinaires et la religion du progrès, Climats, 2011; Les mystères de la gauche: de l'idéal des Lumières au triomphe du capitalisme absolu, Climats, 2013; Le plus beau but était une passe. Écrits sur le football, Climats, 2014. O presente texto constitui uma peça epistolar integrante de um diálogo mantido com o jornalista e historiador Jacques Julliard, editorialista nas revistas ‘Le Nouvel Observateur’ e ‘Marianne’. Foi publicado num volume em co-autoria destes dois pensadores, La Gauche et le Peuple, Flammarion, 2014. Tradução de João Esteves da Silva.
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