Os partidos políticos no processo revolucionário de 1974-1975

 

Miguel Judas (*)

 

 

 

1. Considerações prévias

 

a) Elementos para uma discussão sobre o conceito de partido político

 

Para se compreender o papel dos partidos políticos no processo da Revolução de Abril e o seu “equilíbrio”/correlação de forças, tornar-se-á necessário reflectir, antes, sobre o próprio conceito de partido político e a sua evolução ao longo do tempo.

 

Num sentido estrito, um partido político consiste numa organização formal, dotada de programa, estatutos, estruturas organizativas, militantes, locais de trabalho e outros meios tecnológicos e materiais de acção, designadamente instrumentos de comunicação e, até, em situações democráticas, de eleitores e posições institucionais nos sistemas de decisão nacional.

 

Esta perspectiva redutora, que poderá servir para explicar alguns fenómenos em situações de estabilidade global dentro de um determinado paradigma/modelo societário, é manifestamente insuficiente e inaplicável em situações de crise ou quebra de paradigma.

 

Num sentido mais amplo (e correcto, na minha opinião) haverá que conceber um “partido político” como um nó visível, formalizado, institucionalizado, de uma vasta rede, informal e de geometria variável, de interesses políticos, económicos, sociais, culturais e territoriais, pessoais ou de grupo, nacionais e internacionais, cuja teia complexa e invisível contribui para a formulação de um Projecto de Futuro, estratégias, programas de acção e processos de decisão política, bem como para a ampliação e amplificação dos recursos de acção partidária.

 

Em todo esse complexo, o Projecto de Futuro (o paradigma ou modelo) proposto para a vida (organização e metabolismo) da Sociedade constitui o núcleo essencial definidor de um partido democrático.

 

Na época da “globalização neoliberal”, na qual tudo de compra e tudo se vende num mercado global, também o poder político representativo foi ficando, cada vez mais, no mercado, tendo sido, aliás, das primeiras peças do domínio público a serem objecto de “privatização”, isto é, a serem colocadas, normalmente por aluguer, ao serviço de interesses especiais, normalmente constituídos por poderes políticos externos de natureza imperialista ou neo-feudal (de dependências em cascata) ou por grandes conglomerados empresariais de diversos âmbitos (nacionais ou internacional) e sectores de actividade.

 

Em consequência, muitos partidos políticos em todo o mundo sofreram uma evolução degenerativa no sentido de se converterem numa espécie de empresas cujo produto consiste em “poder político”, o qual se coloca no mercado nas melhores condições de remuneração possíveis.

 

Assim, para além de usufruírem de uma renda fixa que provém dos impostos sobre os cidadãos e da gestão dos orçamentos dos Estados nacionais, esses partidos cobram ainda receitas comerciais do “aluguer” da fracção de poder político que lhes cabe nos sistemas de direcção nacionais.

 

Resultam daí benefícios/receitas que poderão ser utilizados para a reprodução e, se possível, ampliação das suas parcelas de poder, seja pelo aluguer de indivíduos com “notoriedade social” (em quê, como e para quê?), a contratação mais ou menos permanente de agentes e funcionários (os “aparelhos”), a manutenção de uma rede de angariadores de votos (através do clientelismo), a influência hegemónica nos principais órgãos de comunicação social de massas, a contratação de estruturas de propaganda e “convencimento” social: empresas de marketing e toda uma bateria de manipuladores/fazedores de informação/opinião (jornalistas, comentadores/opinadores e analistas, economistas, sociólogos e outros tecnocratas “científicos”, etc. – os equivalentes modernos aos clérigos da Idade Média, agora ao serviço da igreja “Mercados” e do deus “Dinheiro”), para além de acautelarem os seus próprios mecanismos de protecção ou auto-defesa (designadamente junto dos sistemas judiciais, policiais e militares), com vista ao seu encobrimento ou resguardo relativamente à verdadeira democracia, isto é, à opinião e acção esclarecidas da cidadania.

 

A intermediação entre os alugadores de poder político e os próprios partidos é normalmente feita através dos chamados lobbies, normalmente invisíveis ou clandestinos, tal como se processa em qualquer mercado de produtos proibidos (tráfico de pessoas, de drogas, armamentos, etc.).

 

Efectivamente, o comércio de poder político não pode, sob o risco de ruína do próprio negócio devido a eventuais insurreições populares democráticas, ser um comércio legalizado. Tem de ser, no mínimo, discreto.

 

Os “bons políticos”, nestas emergentes condições, deverão pois ser pessoas de hábitos discretos e vida social e familiar sem excentricidades, bons organizadores, excelentes angariadores de votos (comunicadores, “facilitadores”, etc.) e, fundamentalmente, bons gestores comerciais, pouco interessando a autenticidade pessoal e as convicções democráticas.

 

Dentro do mesmo figurino geral dos partidos como “empresas de prestação de serviços políticos” aos grandes actores políticos internacionais ou às grandes corporações económicas, muitas variantes organizacionais e de gestão poderão ser encontradas, para além do modelo standard acima descrito, desde modelos do tipo “federação de grupos de interesses específicos”, até à captação directa para cargos de direcção e governativos de elementos directamente ligados aos contratadores externos (em regime semelhante às “comissões de serviço”), como sejam, por exemplo, as sucessivas passagens dos negócios para a política e vice-versa ... Para não se falar da impossibilidade prática de qualquer free lancer que acredite ainda na “democracia a sério” poder fazer qualquer espécie de “carreira” dentro desses partidos.

 

Em consequência dessa evolução degenerativa, os Projectos de Futuro, que polarizavam as aspirações e a acção democrática dos povos, tenderam a ser substituídos por declarações vagas e circunstanciais ou meras imagens e espectaculares eventos de propaganda, reduzindo-se drasticamente, através da limitação contínua das vidas democráticas internas, as contribuições dos militantes e do eleitorado para a formulação das estratégias e políticas partidárias, passando a ser, simplesmente, elementos passivos a “convencer”.

 

Esses processos de captura das direcções partidárias por interesses especiais invisíveis (a mãe de todas as corrupções), conjugados com a necessidade de manter “fidelizados” os militantes e eleitorados, processos hoje relativamente expostos à opinião pública, não são, porém, um fenómeno novo/recente, tendo surgido, em Portugal, logo no início do processo revolucionário de 1974, como procuraremos mostrar.

 

b) Os paradigmas sociais dominantes e a “originalidade” da Revolução portuguesa

 

De facto, em 1974 verificou-se a ruptura formal do modelo político-económico-social-cultural-territorial em que assentava a vida nacional até então. De uma forma muito sucinta: um regime político autoritário (fascista), vivendo à custa da espoliação e exploração de outros povos (colonialismo), oprimindo e instrumentalizando o seu próprio povo, deixado ao abandono e a viver por sua conta e risco (mera subsistência, emigração).

 

No mundo normalmente considerado como “moderno”, desde Cromwell em meados do século XVI na Inglaterra e a Revolução Francesa, só se haviam conhecido, até 1974, três grandes paradigmas de organização e metabolismo das sociedades:

 

- O do liberalismo económico, isto é, da afirmação dos princípios do Liberalismo só na economia (capitalismo “selvagem”), opressão social antigo-regimentista na sociedade e colonialismo/conquistas externas, o qual durou até ao New Deal e ao Estado-Social. O nazismo e o fascismo constituíram, apesar de aparentemente pouco liberais, as variantes mais agressivas desse paradigma.

 

- O estatismo soviético, que embora tendo surgido de um impulso libertador (dentro e fora das suas fronteiras, estimulando os processos de libertação dos povos colonizados e oprimidos) se converteu num totalitarismo obtuso.

 

- O do New Deal/Estado-Social, baseado na redistribuição, pelos Estados, da riqueza produzida pelo capitalismo dentro e fora das respectivas fronteiras (através das trocas desiguais e de um intervencionismo tão soft quanto possível e tão hard quanto necessário) e pelo desenvolvimento social nos países do “centro”.

 

Contudo, a Revolução Portuguesa de 1974-1975, no meio da sua complexidade que adiante procuraremos ajudar a decifrar, veio colocar na ordem do dia a instituição de um novo paradigma (que se encontra globalmente bem descrito do “Documento Melo Antunes” ou “Documento dos 9) o qual se reflectiu no articulado da Constituição da República de 1976 e que, só cerca de 30 anos mais tarde, já no presente século, veio a emergir em outros países sob uma designação genérica de Socialismo do Séc. XXI):

 

- Uma Democracia não só representativa mas também participativa, com o reconhecimento de poderes às organizações sociais temáticas e de base territorial;

 

- A subordinação dos poderes fácticos, designadamente o económico e o comunicacional, ao poder político democrático, com o estabelecimento de deveres sociais à propriedade privada dos meios de produção (penalização do sub-aproveitamento deliberado ou expropriação do abandono);

 

- A instituição de três sectores de economia, estatal, privada e social-comunitária, equilibrados e complementares entre si;

 

- Instituição de formas de participação dos trabalhadores na gestão empresarial, pública e privada;

 

- Planeamento nacional democrático;

 

- Políticas sociais avançadas;

 

- Política externa independente, pacifista, virada para todos os horizontes, e desenvolvimento de relações de cooperação com as ex-colónias;

 

- A enunciação da perspectiva do socialismo.

 

Apesar de esta nova “utopia” - de um país soberano, profundamente democrático, pacífico e viável num quadro de relações internacionais de largo espectro – ter sido respaldada pela imensa maioria do povo português, tal “utopia” não cabia no quadro de referências geo-estratégicas que guiavam, ao momento, as grandes potências envolvidas na guerra-fria.

 

Não tanto por Portugal em si, apesar de tal “liberdade” nacional poder fragilizar de algum modo eventuais planos agressivos da NATO, mas, fundamentalmente, pelas alterações geo-estratégicas que o processo de descolonização pudessem proporcionar, designadamente quanto ao conjunto do continente africano e, muito especialmente, quanto ao seu cone sul (Rodésia, Namíbia e África do Sul).

 

Em consequência, a Revolução Portuguesa depressa se viu convertida num processo em que intervinham muitos milhares de actores nacionais de diversos tipos, operando em redes de perfil altamente variável e, também, uma grande quantidade de actores internacionais com grande poder de influência que procuravam que essas redes se estruturassem em função dos seus próprios objectivos.

 

Sem retirar importância aos aspectos meramente internos, à maior ou menor intensidade da luta de classes procurando viabilizar ou inviabilizar um projecto nacional soberano, viável e de justiça social, foram as questões externas ligadas à descolonização que vieram marcar as agendas e os timings de muitos dos actores nacionais, designadamente os partidos políticos.

 

Dada a convergência de interesses que se verificava no momento entre o MFA e os movimentos de libertação das colónias, não só quanto à descolonização em si mas, também, quanto à manutenção futura de relações de amizade e cooperação com os novos países, a qual se chocava com o interesse geral das potências “ocidentais” quanto a África, estas potências procuraram:

 

- Num primeiro momento, impedir a descolonização completa e irreversível das colónias – projecto de Spínola até à sua derrota temporária a 28 Setembro de 1974 e definitiva a 11 de Março de 1975 - no qual estiveram directamente envolvidas forças internacionais e vários partidos políticos nacionais.

 

- Num segundo momento, pela promoção acelerada da derrota da Revolução, impedir, pelo menos, a independência de Angola para o MPLA em Novembro de 1975.

 

Além do mais, a “utopia” revolucionária portuguesa (que veio a ser reflectida parcialmente na Constituição de 1976) era ao tempo tão original (a “originalidade” da revolução portuguesa foi isso mesmo!) que, mesmo no mundo intelectual e culto estrangeiro, marcado pela antinomia “comunismo soviético” vs “capitalismo imperialista” (em qualquer das suas versões), só via estes dois paradigmas possíveis devendo, por isso, aos seus olhos, a nossa “originalidade” constituir somente um “ponto de passagem” para qualquer um desses paradigmas “aceites” como viáveis.

 

A “utopia” socialista portuguesa, na qual esmagadoramente acreditámos como viável em 1974-1975, foi assim entendida, intelectualmente, como uma espécie de ovni ideológico!

 

Espera sinceramente o autor destas linhas que após o colapso, há mais de 20 anos, do paradigma comunista soviético e o, hoje já em curso avançado, colapso do paradigma do Estado-Social às mãos do novo paradigma entretanto surgido no final do século XX, na fase da globalização, o chamado “neoliberalismo”, o velho “Documento Melo Antunes” e a hoje corrompida Constituição da República de 1976 possam servir de inspiração para uma Alternativa decente, democrática, pacífica e de justiça social, à indecência política, económica, social e moral do mundo de hoje.

 

Passemos então ao núcleo do Tema:

 

2. Os Partidos Políticos no Processo da Revolução

 

a) Do 25 de Abril ao 28 de Setembro de 1974

 

Para além de numerosos pequenos grupos políticos, de “extrema-esquerda” ou de acção directa, resultantes de dissidências do PCP ou das velhas tradições “reviralhistas”, antes do 25 de Abril de 1974 havia em Portugal dois partidos políticos partidos principais: a Acção Nacional Popular (antiga União Nacional), no poder, e o PCP, na clandestinidade, ambos temperados por mais de 40 anos de luta incessante.

 

Poder-se-á dizer, a outros 40 anos de distância, que após os sucessivos falhanços de várias estratégias e métodos para o derrube do fascismo (“putchismo” militar, tentativas de sublevação, ilusões eleitoralistas, acções directas pontuais), o PCP concebeu e propôs aos portugueses, a partir de 1965, uma verdadeira Alternativa ao fascismo, tanto na formulação dos objectivos a atingir (a configuração do novo regime democrático) como nos métodos de luta política: o conceito da “Revolução Democrática e Nacional”, a “Unidade Democrática” e a “Insurreição Popular Armada”. Passando por sucessivos testes da vida, entre os quais a experiência das “eleições” de 1969, onde a Oposição Democrática se apresentou dividida essencialmente à volta da questão colonial, essas propostas foram, de um modo ou outro, ratificadas globalmente pelo Congresso da Oposição Democrática de Aveiro de 1973 e tiveram real impacto na sociedade portuguesa.

 

O Programa do MFA foi redigido, no essencial, por Melo Antunes com o apoio de alguns outros militares, incorporando, em estilo próprio, os elementos fundamentais para a transição democrática contidos nas Teses desse Congresso: o desmantelamento do regime fascista, a eleição democrática de uma Assembleia Constituinte, a descolonização, a justiça social e uma política económica anti-monopolista.

 

Assim, logo no dia 25 de Abril de 1974 emerge em Portugal um novo “partido político” ao qual, apesar de “informal”, aderiu a esmagadora maioria do povo português: o MFA, considerado na perspectiva que defendi em 1. a), parágrafo 4º.

 

Num documento não publicado que elaborei em 2009 por ocasião de uma realização do ISCTE sobre a Revolução de Abril, escrevi:

 

“A Revolução do 25 de Abril é um daqueles acontecimentos que não se esgotam com o tempo. Por várias razões:

Primeiro, porque tendo sido desencadeada por um Movimento de militares mais ou menos desestruturado, apanhou as então débeis forças políticas democráticas sem qualquer capacidade de dirigir um tão vasto processo de transformação política, económica e social.

Tão pouco esse Movimento tinha condições para, por si, dirigir e concretizar um tão profundo processo de mudança. Daí, desde logo, este se ter desenvolvido numa dinâmica complexa de diversificadas componentes, civis e militares, naquilo que se designou por Aliança Povo-MFA.

A Revolução foi, assim, o resultado probabilístico de um complexo jogo de forças variáveis, aparentemente caóticas, que se alinhavam e desalinhavam com extrema rapidez em função das questões que, em cada momento, haveria que resolver.

Apesar de ter corrido numa época e num caldo cultural profundamente hierarquizados, o 25 de Abril foi, de facto, uma revolução “em rede” de onde, só numa fase muito adiantada, sobressaíram alguns “nós” com suficiente capacidade de coordenação e aglutinação de forças.”

 

Apesar de o PCP contar com alguns milhares de militantes formados na clandestinidade, também ele não tinha capacidade para a corrida que então se iniciava...

 

O PS era ainda um pequeno grupo que acabava de se formalizar no estrangeiro, não tendo estrutura nem militância social.

 

O PPD e o CDS polarizaram-se à volta de elementos mais ou menos dissidentes do anterior regime e correram a formar os seus embriões.

 

O próprio MFA, numericamente minoritário nas Forças Armadas, era ele próprio constituído por um conglomerado de boas vontades e generosidades onde se contavam (quase) pelos dedos as pessoas com alguma formação política. “Experiência”, então, ninguém tinha, salvo alguns generais. No entanto, conseguiu gerar, de imediato, uma fórmula programática largamente consensual consubstanciada nos 3D’s – Democratizar, Descolonizar e Desenvolver.

 

O autor destas linhas, na altura com 26 anos, supostamente “muito politizado”, só conhecia a luta clandestina e nunca tinha vivido uma democracia a funcionar...

 

Todos tivemos, pois, de aprender “em plena marcha”, com algumas ideias base como referências.

 

Uma revolução é assim que acontece. A próxima, se e quando surgir, será (quase) do mesmo modo... não haverá régua e esquadro nem cronogramas (talvez, diz-se, com mais internet...). Será um período em que também a “Ciência Política” entrará em crise e irá ter de “voltar à escola”!

 

Todos os partidos políticos foram, pelo menos até ao 28 de Setembro de 1974, “clientes” do MFA. Todos eles procuraram proteger-se e pescar nos novos mares que o MFA ia abrindo na sociedade portuguesa.

 

No entanto, se bem que todos mantivessem um discurso público que seguia as águas do MFA, como forma de cativar a aceitação popular, alguns destacados políticos já revelavam agendas políticas próprias, designadamente quanto ao âmbito e profundidade da democratização (o “caos” referido por Spínola em sucessivos discursos públicos) e ao “formato” da descolonização, tal como se verificou na “crise Palma Carlos” e no apoio velado a Spínola na sua tentativa de extinção do MFA através da sua dissolução na reumática hierarquia militar, nas manobras “federalistas” quanto às colónias e, no 28 de Setembro, na sua tentativa de se apossar pessoalmente do poder através do adiamento indefinido das eleições para a Constituinte e a sua legitimação democrática através de uma eleição para a Presidência que esperava ganhar apoiado em alguns partidos e na “maioria silenciosa”.

 

Foi-se definindo assim uma primeira linha de fractura dentro do MFA entre o sector “spinolista” defensor de uma democracia a conta gotas e de uma continuidade do Império sob outras formas (a opção a que algures chamei de “Império Revisitado”), e um sector defensor da ruptura democrática total com o regime anterior e de uma irreversível descolonização. Essa fractura servia de referência para o posicionamento dos diversos partidos.

 

Assim, as direcções do PPD, do PS e do CDS foram desenvolvendo, em maior ou menor escala, uma dupla agenda, uma com o MFA revolucionário e democrático, para agrado das massas populares, e outra, de apoio directo ao General Spínola, visando a travagem e contenção do processo revolucionário.

 

Em 28 de Setembro de 1974, o “golpe de Estado” de Spínola para se apossar pessoalmente do poder foi derrotado pelo MFA e as massas populares aliadas, levando as direcções desses partidos a reposicionar-se na esteira do MFA e da Revolução.

 

b) Do 28 de Setembro de 1974 às eleições para a Constituinte, a 25 de Abril de 1975

 

Com a renúncia de Spínola da Presidência da República nem por isso deixaram de se agravar os riscos para a continuação do processo revolucionário democrático, tendo como foco impedir as eleições para a Assembleia Constituinte previstas no Programa do MFA, a reversão das conquistas sociais alcançadas e, fundamentalmente, do processo de descolonização.

 

Esses riscos resultavam do aviso deixado no discurso de renúncia de Spínola quanto a um esperado caos económico mas, também, do regresso às unidades militares de numerosos oficiais seus fiéis, dispostos, quando oportuno, a obedecer ao seu chefe.

 

Ao mesmo tempo que acelerava os processos de negociação com os movimentos de libertação tendo em vista uma descolonização ordenada, o MFA e o povo português viram-se confrontados com uma sabotagem económica massiva por parte do empresariado privado que detinha todas as alavancas económicas, da banca à indústria até à agricultura latifundiária, visando a mais completa derrocada económica e financeira do país e a criação de condições para um regresso triunfante de Spínola.

 

A fuga de capitais e a descapitalização e abandono de numerosos empresas levou o MFA, através do Governo Provisório, a tomar medidas financeiras e de gestão (pelo Estado ou pelos próprios trabalhadores) dessas empresas a fim de assegurar a continuidade da sua laboração e a manutenção dos postos de trabalho.

 

Ao mesmo tempo que afirmavam publicamente, para consumo popular, o seu apoio às medidas que se tomavam, dirigentes do PS e PPD procuravam obstaculizar no Conselho de Ministros a adopção de um plano de medidas estruturais que fizessem frente a essa emergência ou, no mínimo, ausentavam-se quando havia de tomar decisões.

 

Foi assim que o 1º Ministro encarregou, a meados de Outubro de 1974, o Major Melo Antunes da elaboração de tal plano, o qual só veio a surgir, com largo atraso, na segunda quinzena de Fevereiro de 1975. Reflectindo embora, justamente, o gradualismo conceptual de Melo Antunes (e do MFA) quanto ao avanço da Revolução, no momento em foi apresentado já não reflectia as necessidades reais desta quanto à correlação de forças para a sua sobrevivência, assim como ainda carregava compromissos políticos e tecnocráticos que o tornavam ineficaz face à degradação económica realmente existente no terreno.

 

A economia, financeira, industrial e agrícola latifundiária, toda ela privada na altura, estava a ser utilizada como a principal arma política contra-revolucionária para a restauração de um poder pessoal autoritário (spinolista) e para comprometer o processo de descolonização. Esses grupos económicos dominantes, pela sua própria natureza exploradora e parasitária do Estado, nunca tiveram escrúpulos em usar a ferramenta do seu poder económico para submeter o “seu” próprio povo, esmagando-o pela fome e a carência se necessário. O único conceito de democracia que conheciam é o da “democracia orgânica”, aquela que existia no fascismo no quadro da Acção Nacional Popular e da Câmara Corporativa, isto é, a “democracia” entre eles próprios e, mesmo assim, enquanto uns não puderem afastar os outros, concorrentes nos mesmos interesses.

 

Sendo embora uma pessoa culta e informada, conhecedora deste facto, Melo Antunes esqueceu-se dele na circunstância, não entendendo que a sobrevivência da Revolução Democrática dependia da determinação do MFA, no quadro de uma correlação de forças militares que tendia a ficar desfavorável à Revolução, em retirar essa “arma de destruição massiva económica” das mãos das velhas classes dominantes.

 

Cito a propósito algumas expressões de Melo Antunes no livro “O Sonhador Pragmático”, referindo-se às classes

 

que liquidaram, de certa maneira, a experiência do gonçalvismo”: correspondiam “muito à ideia da falta de dinamismo, da falta de iniciativa, da falta de criatividade e de arrojo, do gosto de assumir riscos, que levou ao atraso económico, por um lado, e também à paralisia cultural, por outro”.

 

E continua em discurso directo:

 

Mas, repare, isso vem desde o século passado (o XIX) e do princípio deste (o XX) e penso que é fruto do modo como se fez a exploração colonial … viveram em grande parte à custa de um certo tipo de exploração colonial … à sombra de uma certa forma não produtiva de explorar essas grandes propriedades africanas. No fundo, a ideia de que as colónias existiam para manter um certo estilo de vida aqui na metrópole.”...

 

Também o Partido Socialista reconhecia, em 1979, no documento “Dez Anos para Mudar Portugal – Proposta PS para os Anos 80, aprovado no seu III Congresso, a incapacidade da burguesia portuguesa para liderar o processo de desenvolvimento nacional:

 

“Mais consequência do que causa do atraso económico português, esses desequilíbrios e carências têm de entender-se como a resultante de uma sociedade dominada por uma escassa minoria da população incapaz, dependente, sistematicamente apoiada num Estado autoritário, à sombra do qual prosperou, acumulou alguns meios financeiros, modelou um império colonial, dispôs de mão de obra e meios humanos nacionais, e afeiçoou a sociedade portuguesa do acordo com as seus interesses económicos. O atraso económico e social português não é, assim, um produto da fatalidade histórica, da reduzida dimensão do seu espaço físico, da carência de “iniciativas”, da inqualificação dos seus quadros, da inexistência de «elites», de erros de direcção, de constrangimentos externos e de toda a gama de «explicações» que se apresentam como justificativas do estado a que se chegou e das dificuldades presentes.

A História de um país molda-se conforme a estrutura económica e social dominante, de acordo com os moldes culturais que lhe são próprios, apoiada num poder político, que unifica e impõe como gerais os seus interesses particulares.

A sociedade portuguesa tem, assim, de ser entendida como a resultante de 150 anos de dominação de um certo tipo de burguesia, incapaz de desempenhar em Portugal o papel progressivo que lhe coube no desenvolvimento das forças produtivas em tantos países hoje desenvolvidos, por não ter aqui sabido superar o atraso legado por um regime senhorial.”

 

O plano de intervenção económica que foi solicitado atempadamente pelo MFA a Melo Antunes, muito mais do que um instrumento técnico ou académico de como “bem fazer” uma transição democrática na esfera da economia, deveria ser um instrumento de acção política, de combate pela Democracia, de neutralização do potencial destrutivo do inimigo – as “armas” económicas.

 

Se tivesse ficado concluído em Novembro de 1974 teria sido, por certo, um oportuno e ajustado instrumento de acção. Porém, três meses mais tarde, no fim de Fevereiro, já os estragos da “guerra económica” eram tantos que só medidas extraordinárias e drásticas poderiam resultar, como veio a acontecer, cerca de 15 dias mais tarde, na sequência do 11 de Março.

 

Este episódio do Plano Melo Antunes e os melindres pessoais que gerou, não deixaram de ter, daí para a frente, consequências no seio do MFA.

 

Entretanto, no início de Janeiro de 1975, o MFA, avaliando a correlação de forças militares e a necessidade de defender o processo democrático, decidiu, por unanimidade entre todas as mais diversas sensibilidades presentes, aprovar o princípio da unicidade sindical como medida transitória de manutenção da unidade orgânica do movimento sindical, considerado peça essencial na correlação geral de forças.

 

Logo os mais eminentes dirigentes do PS, talvez uns por “princípio” e outros de modo deliberado, visando o enfraquecimento do bloco que defendia o processo revolucionário democrático, se lançaram numa feroz campanha contra o que afirmavam ser a “comunização do regime”, justificando assim a legitimidade do que viesse a seguir para “defesa da liberdade”.

 

Como nota de curiosidade, lembro-me que numa conversa de “confidências” ocorrida no final de 1974/início de 1975 entre os sete membros da Comissão Coordenadora do MFA, 3 terem revelado identificar-se mais com o PPD, 2 com o PS, 1 com o MDP e 1 com o PCP. O certo é que, como muitos indícios apontavam, alguns dias antes do início da campanha eleitoral para a Assembleia Constituinte, os sectores chefiados por Spínola que se opunham à legitimação democrática da Revolução nessas eleições lançaram, a 11 de Março, uma tentativa militar de esmagamento do MFA e de reversão de todo o processo revolucionário.

 

Mais uma vez, foi a unidade do Povo com o MFA que fez gorar essa tentativa, fazendo enterrar de vez a opção spinolista do “Império Revisitado”.

 

Para além do muito que ficou por conhecer sobre as conivências políticas nesse golpe, sabe-se que dele foi dado conhecimento prévio a vários políticos destacados e feitas promessas de “carreira política” a elementos do MFA em caso de vitória sobre os “extremistas”.

 

Por exemplo, Vasco Lourenço referiu numa entrevista dada em Maio de 1975 ao jornalista José Amaro (publicada no Diário Popular ou no Capital, segundo informação do próprio V.L.) quanto a uma afirmação de Mário Soares a um jornal estrangeiro de que “ o MFA é uma nebulosa”:

 

 “Eu creio que o Dr. Mário Soares faz uma ideia um bocado diferente de nós do que é o MFA. E daí os contactos que estabeleceu com determinadas facções que se diziam MFA mas que nós não considerávamos bem MFA. E, digamos assim, ele enganou-se um bocado nas pessoas que escolheu para contactar dentro do Movimento. É um passado que não interessa agora estar a escalpelizar.”

 

Isso não impediu as mais diversas forças políticas, incluído o PS, de terem apoiado a nacionalização do sector financeiro que se seguiu e até, alguns dos elementos seus simpatizantes ou militantes terem justificado, defendido e concretizado os processos de nacionalização subsequentes (Silva Lopes, João Cravinho, etc.).

 

Mais uma vez se verificava a dualidade de agendas de alguns partidos ou seus quadros dirigentes, sendo que, por um lado, se cavalgava a opinião e o movimento popular favorável ao processo revolucionário democrático tendo como perspectiva o socialismo, tendo em vista as eleições próximas e, por outro lado, se animavam todas as acções tendentes a travá-lo e revertê-lo.

 

É relevante referir, no âmbito deste trabalho, duas questões que evidenciam a debilidade dos partidos políticos na sociedade, em contraposição com o prestígio que o MFA gozava junto das grandes massas populares.

 

A primeira, respeita às diligências que todos os partidos fizeram junto do MFA no sentido de a lei eleitoral para a Assembleia Constituinte conferir a estes, transitoriamente, a exclusividade da representação política (o famigerado monopólio de que até hoje os partidos nunca quiseram abrir mão e que tão mal tem causado à Democracia portuguesa!) com a justificação que ainda não estavam devidamente implantados na sociedade, temendo que candidaturas autónomas de cidadãos ou organizações sociais pudessem enfraquecer o processo democrático. Infelizmente, podemos dizer hoje, o MFA acedeu a tal pretensão.

 

A segunda refere-se ao Pacto MFA-Partidos, assinado a 11 de Abril de 1975 voluntariamente e de boa-fé (julga-se) pelo MFA, PPD, PS, CDS, PCP, MDP e FRS, no qual se reconhecia a importância do MFA como factor essencial para levar a bom termo o processo democrático nacional.

 

O período em apreço termina com a realização das eleições para a Assembleia Constituinte, as quais, tendo registado uma margem de abstenção pouco superior a 8%, constituiu uma autêntica festa do Povo e o acto político através do qual a Revolução foi por ele apropriada e legitimada.

 

Haverá contudo que se registar, especialmente para as gerações mais novas, que os “Projectos de Futuro”, as propostas e compromissos apresentados ao povo português pela generalidade dos partidos, designadamente pelo PS, eram de uma radicalidade revolucionária que quase fariam envergonhar a moderação geral dos elementos do MFA, alguns dos quais se interrogavam ingenuamente sobre o espírito temerário de Mário Soares, conhecedor, por certo, do que os americanos haviam feito há pouco mais de um ano, ao Presidente Allende do Chile, vizinho da Antártida e não do coração da Europa...

 

Só a leitura desses documentos da época, incluindo os do PPD e do CDS, que convido os leitores deste trabalho a procurar e consultar, poderá dar uma imagem mais nítida sobre a dissonância entre uma fraseologia pública revolucionária e democrática, cativante de votos, e uma prática realmente conservadora e, em alguns casos, reaccionária.

 

c) Das eleições para a Constituinte ao 25 de Novembro

 

Traços gerais do período:

 

Na sequência do 11 de Março e das eleições para a Constituinte, ficaram activas as Opções “Social-Democrática” e a “Soberana, de Desenvolvimento Autónomo, na perspectiva do Socialismo”, sendo que todas as forças derrotadas anteriormente passaram a enfileirar pela primeira, segundo a regra “do mal o menos”.

 

A nacionalização da banca e dos sectores básicos e a expropriação dos latifúndios do Alentejo e Ribatejo constituíram uma necessidade de defesa e viabilização da democracia e não o resultado de qualquer “radicalismo revolucionário”. Ou a Revolução Democrática se sobreporia ao poder económico ou este, que tinha medrado sob o fascismo, destruiria a Revolução e a Democracia.

 

Depois de ter caído nas mãos da Revolução a responsabilidade de desmontar todo o aparelho público fascista e de refazer todas as instituições em moldes democráticos, o que foi, no fundamental, bem sucedido, tratava-se agora de um desafio ainda maior e mais complexo que consistia em controlar, reformar e por a funcionar em novos moldes, democráticos, socializantes e eficientes, todo o aparelho financeiro e produtivo nacional, a começar pelos sectores nacionalizados. Essa tarefa, nova para quase todos, exigiria uma grande concentração de esforços, uma grande unidade do MFA e das forças democráticas que se diziam “do socialismo”, incluindo, naturalmente, o PS.

 

Estabilizado o poder do MFA nas Forças Armadas e com a esquerda socialista (PS, PCP, MDP, UDP) largamente maioritária na Assembleia Constituinte (cerca de 58,5% de votos e 60% dos deputados - 152 em 250), não havia, à partida, necessidade de quaisquer outras medidas “radicais” a tomar, qualquer outro “aprofundamento” da Revolução a promover. Tanto mais que tais medidas serviam qualquer uma das Opções em presença, pois que, mesmo num quadro dos países centrais e evoluídos do capitalismo europeu, “social-democrata” ou “democrata-cristão”, defendidos respectivamente pelo PPD e pelo CDS, não havia assim uma tão grande aversão às nacionalizações, especialmente, como era o caso, de empresas e sectores nacionalizados que não tinham, por si, condições de subsistência sem uma forte presença do Estado. A excepção a essa “normalidade europeia” poderia ser a banca.

 

O povo português teve nas suas mãos, os meios de produção necessários para construir o seu próprio país, a partir do seu trabalho e engenho, sem amos exteriores, como soberano do seu destino. Mas essa soberania teria de ser ganha com muito esforço e muita aprendizagem; esta era uma via, a “Soberana, de Desenvolvimento Autónomo, na perspectiva do Socialismo”.

 

Então, se tudo isso era aparentemente verdade, se o poder democrático (Constituinte), o poder revolucionário militar (MFA) e o essencial dos poderes económico e mediático se encontravam nas mãos das forças que defendiam o Socialismo (o “verdadeiro”, democrático e não totalitário, e não o “capitalismo redistribuidor social-democrata”, que o PS rejeitava explicitamente), o que configurava uma situação e uma oportunidade única da história do mundo, o quê e porquê as coisas correram tão mal?

 

Será que a aparência correspondia à realidade? Que o que se proclamava, o que se escrevia e havia sido proposto aos portugueses, pelo MFA e os partidos políticos, era mentira?

 

Como já se viu anteriormente, a retórica revolucionária e socialista (da sociedade sem classes e da apropriação colectiva dos meios de produção, etc.) do PS, para efeitos eleitorais e para simpatia relativamente aos militares do MFA, não correspondia às suas alianças com Spínola desde antes do 28 de Setembro quanto ao “federalismo colonial” e ao activismo social revolucionário (a “maioria silenciosa” contra o “caos”), à sua oposição a medidas de controlo da economia contra a sabotagem económica da direita, à sua tentativa de dividir o movimento sindical quando ele era mais necessário estar unido, bem como à sua permissividade relativamente ao 11 de Março.

 

Todos estes factores apontavam para a conformação, pelo PS, de um projecto capitalista completamente alinhado com a social-democracia europeia, onde tinha “grandes amigos”, e, no plano geo-estratégico, com os interesses norte-americanos e da NATO, no quadro da guerra-fria e dos correspondentes interesses relativamente a Angola e a todo o cone sul de África.

 

Tal projecto “Social-Democrata”, assente na confiança do grande capital internacional e da burguesia interna (que o PS, e bem, definia como parasitária do Estado e rentista), com o mínimo de intervenção do Estado e dos trabalhadores, opunha-se frontalmente à Opção “Soberana, de Desenvolvimento Autónomo na perspectiva do Socialismo”, de carácter vincadamente anti-monopolista, dirigida contra os grandes interesses económicos e assente numa significativa intervenção do Estado, dos trabalhadores e das classes médias não monopolistas.

 

Em conformidade, as contas acima apresentadas quanto à repartição de poderes não correspondem à realidade dos projectos políticos efectivamente perseguidos atrás da cena, devendo, em seu lugar, na pior das hipóteses, considerar-se, na Assembleia Constituinte, cerca de 75% de votos a favor do projecto capitalista “ocidental” tradicional e cerca de 20% pelo projecto socialista, independentemente de o seu mandato ser exclusivamente constituinte.

 

Naturalmente que muitos desses 75% de votos reflectiam a confiança dos eleitores na retórica e programas socialistas do PS e que, se por hipótese meramente teórica, o MFA tivesse decidido concorrer às eleições (o que estava contra o seu programa e nunca foi considerado, esclareça-se) teriam recaído no projecto socialista democrático defendido pelo MFA.

 

Naturalmente, também, que muitos dos deputados constituintes eleitos mantinham ideias próprias, muito mais próximas do MFA do que de Mário Soares e que tal facto iria ter reflexos no conteúdo das disposições constitucionais que foram aprovadas. Nem todos, portanto, eram “sociais-democratas europeus”, havendo muitos deles que, com nuances embora, mas fiéis ao mandato popular que haviam recebido, confiavam no MFA e num projecto socialista “original” para Portugal. E isso reflectiu-se na redacção final do texto constituinte, no qual este desígnio era explícito e onde foi consagrada, contra os “civilistas”, a permanência do MFA no processo de transição e consolidação da Democracia.

 

Essa legitimidade eleitoral obtida pelo PS/Mário Soares, viria, no entanto, a servir de plataforma destabilizadora da marcha normal da Revolução através da intencional acentuação de conflitos e fracturas dentro da sociedade portuguesa, com reflexos políticos, sociais, económicos e, também no campo militar.

 

Seria fastidioso e desnecessário, no âmbito deste trabalho, enumerar todos os “casos” públicos, gerados intencionalmente pelos dirigentes do PS para provocar controvérsias, desconfianças e fracturas no campo democrático, desde o da manifestação do 1º de Maio logo após as eleições, ao “caso República”, às saídas/greves dos seus Ministros no Governo, à amplificação artificial das “ocupações” (de casas devolutas ou de terras), etc., etc., procurando criar um ambiente de alarme social quanto à expropriação dos bens pessoais, ao “comunismo” e à “eliminação das liberdades”.

 

Seria igualmente muito complexo tentar demonstrar as conivências e concertações mútuas que mantiveram tanto com os partidos da direita representados na Assembleia Constituinte como as articulações (directas ou indirectas) com toda uma série de grupos fascistas de acção clandestina e violenta cujos actos o PS e os partidos da direita não condenavam, antes apresentando estes actos como uma resposta “natural” e legítima do “povo” face aos “perigos do comunismo”.

 

Seria igualmente desnecessário explicitar a “conveniência” para o desprestígio da Revolução, especialmente junto das classes médias, dos actos aventureiros e provocatórios de toda uma série de grupos “esquerdistas”, super-revolucionários, os quais enchiam os escaparates dos media com extremismos injustificados e atentados às liberdades individuais e políticas...

 

Porém, todas essas actividades de desestabilização social e política conjugadas se esgotariam em si próprias se não tivessem como objectivo a desestabilização interna do próprio MFA e não fossem acompanhadas com um grande esforço de intriga e de captação de alguns dos seus elementos mais destacados. Para defrontar o “partido” MFA, o qual se havia consolidado e fortalecido com o alargamento dos seus órgãos representativos (a Assembleia do MFA e outras estruturas internas a cada um dos Ramos) bem como através da inclusão de representações de sargentos e praças, a única forma de o fazer seria dividi-lo e fragmentá-lo em facções que se viessem a anular ou a liquidar mutuamente, o que não seria muito difícil face à grande heterogeneidade do Movimento e à permeabilidade de muitos dos seus elementos a factores e influências externas mais diversas.

 

Mas, se a actuação do PS (que aqui se refere como a cabeça de toda a “oposição”, dado os outros partidos à direita se limitarem a “ir nas águas”) seria censurável na perspectiva do MFA e do projecto socialista democrático que o povo apoiava, também a actuação do PCP merece sérios reparos.

 

Se bem que este partido, o PCP, procurasse, ao nível da sua direcção, acompanhar e apoiar as posições que o MFA autonomamente ia tomando na marcha da Revolução, muitas das suas organizações, locais ou sectoriais, também se deixaram arrastar na onda “esquerdizante” como se o ser de “esquerda” fosse objecto de uma competição.

 

Esse “empurrar para a frente” ao mesmo tempo que a direcção do PS “empurrava para trás”, criou ilusões em alguma militância quanto à necessidade de uma espécie de “revolução de Outubro” para a defesa das conquistas alcançadas, sem compreenderem a substancial diferença de situações, isto é, que na Rússia de 1917, entre Fevereiro e Outubro, nenhum dos objectivos vitais da revolução democrática havia avançado um passo (como as questões da paz e da terra), justificando-se uma nova revolução política para os concretizar; pelo contrário, em Portugal, os grandes objectivos da “Revolução Democrática e Nacional”, que era a parte fundamental do seu programa, estavam plenamente alcançados (o fim da guerra colonial, a liquidação das estruturas fascistas, a mais participada democracia, a liquidação dos monopólios financeiros/industriais, a reforma agrária, grandes conquistas sociais...), e que havia de centrar os esforços na defesa da mais alargada unidade popular (incluindo as camadas médias da sociedade) e na reorganização e relançamento da economia nacional.

 

Apesar de insistir na necessidade imperiosa na reunificação do MFA após o “documento dos 9”, a direcção do PCP não usou o seu prestígio junto de muitos militares (de várias “tendências”) nesse sentido, nem, no plano político civil, suscitou publicamente qualquer espécie de aproximação com o PS, apesar de, à partida, não ser de esperar qualquer receptividade; pelo contrário, à arrogância eleitoralista do PS respondeu de modo igualmente arrogante e deu um muito mau sinal quando, durante uma breve ausência de Álvaro Cunhal do país, participou na FUR, ao lado dos “esquerdistas” e aventureiros mais recalcitrantes, fazendo supor que poderia haver algum caminho a percorrer com eles. Este episódio mostra bem como a desorientação estratégica havia perturbado níveis elevados da direcção do PCP.

 

O episódio do “cerco à Assembleia Constituinte”, já em Novembro, de que o PCP formalmente veio a distanciar-se, é igualmente revelador de como mesmo em sectores onde tinha uma grande influência, o aventureirismo esquerdista facilmente penetrava.

 

Do mesmo modo, no MFA, menos maduro politicamente e, por isso, mais permeável às influências externas ou a “sonhos” próprios, se verificaram processos paralelos que ainda tinham menos razão de ser. Os “9”, deixaram-se convencer, pela intriga externa, que outros camaradas com quem sempre viveram e trabalharam com lealdade absoluta e sem qualquer fricção eram “marionetas” do PCP e que preparavam um “assalto ao poder”. Outros, empolgados pelo sucesso da Revolução, começaram a “inventar” ideias obtusas do MFA como “movimento de libertação”; outros ainda, tornaram-se, de repente, mais esquerdistas e libertários que os próprios esquerdistas; alguns, culturalmente reaccionários, transformaram-se em gurus revolucionários; outros, revolucionários, em reaccionários...; finalmente, o juízo e a responsabilidade política foram substituídos pelos zelos moralistas e pelas idiossincrasias e lealdades pessoais.

 

No meio dessa desorientação política estratégica, entre outros, foram cometidos dois erros graves que serviram para amplificar de forma infantil a campanha de amedrontamento popular que o PS realizava quanto às “liberdades públicas”: os “casos” do jornal República e da Rádio Renascença, ambos resultantes de complacências do MFA com o esquerdismo e o “obreirismo”.

 

O primeiro, provocado de facto pelo PS, serviu de pretexto para o lançamento de uma grande campanha, nacional e internacional, de suspeição sobre os caminhos da Revolução, com impactos no seio do MFA e na estabilidade do Governo Provisório. A sua não resolução adequada e atempada, no quadro de uma visão política clara e da legalidade então em vigor, constituiu um grave erro político, por proporcionar o argumento de se estar a “calar a boca” ao PS, cujas diatribes contra a Revolução teriam de ser combatidas de outra forma.

 

Também no “caso” da Rádio Renascença o MFA se ensarilhou numa prolongada confrontação com a Igreja Católica (sem valorizar adequadamente a importância da religião católica na estrutura cultural de muitos portugueses), tendo Otelo Saraiva de Carvalho recusado actuar conforme lhe foi solicitado pelo 1º Ministro Vasco Gonçalves e outros membros do Conselho da Revolução, no sentido de se devolver de imediato a Rádio Renascença à Igreja Católica.

 

Foi nesse quadro de desorientação e indecisão política, já com o MFA fracturado, que, após o “Documento dos 9 e da “Autocrítica revolucionária do Copcon”, a chamada “esquerda militar” (uma designação genérica daquilo que nem sequer chegava a ser um “conglomerado”), não conseguiu, contrariamente ao oportunamente consensualizado, propor ao “grupo dos 9”, sem condições prévias, quer antes quer depois da Assembleia do MFA de Tancos, uma proposta de trabalho que reunificasse, de modo estável e duradouro, o MFA, deixando que a situação de antagonismo apodrecesse até à decomposição.

 

Esta desorientação interna do MFA fragilizou extraordinariamente o poder político, levou à queda do IV Governo Provisório e ao prolongamento da debilidade do poder nacional, com profundos reflexos no interior do país mas também no plano dos processos de descolonização, designadamente em Angola, que entrou em completa desestabilização, levou à retirada massiva de centenas de milhares de portugueses e comprometeu, até ao presente, por várias e as piores razões, à perda de uma linha de cooperação com peso estratégico para Portugal.

 

Estava, finalmente, concretizado o grande objectivo de toda a direita e do PS, apostados na canibalização e subsequente liquidação do MFA e na abertura de um caminho para a reposição de Portugal como um cliente do sistema capitalista/imperialista mundial.

 

Bastava desferir o “golpe de misericórdia” no MFA como força determinante do processo revolucionário, o que acabou por se verificar com a operação político-militar do “25 de Novembro” de que resultou a liquidação do MFA e de duas das suas facções (“esquerda militar” e “Copcon”), sobrevivendo somente, com poderes muito mais reduzidos, o “Grupo dos 9”.

 

Essa operação político-militar contou com a participação do “Grupo dos 9”, nos seus aspectos militares e, no âmbito político geral, com um conglomerado heterogéneo de forças agregadas pela acção decisiva das grandes potências capitalistas, designadamente os grandes partidos sociais-democratas da Europa e o embaixador norte-americano em Lisboa, Frank Carlucci, que assumiu, em Portugal, a “coordenação geral” de todas as forças, legais e ilegais, de acção política ou acção violenta, que pudessem repor a Revolução nos estreitos limites do paradigma “ocidental”. Foi, por isso, várias vezes homenageado pelos seus amigos em Portugal e teve, no seu país, o reconhecimento desse mérito através de uma brilhante carreira que o levou a director da CIA.

 

O facto de o PS se ter vangloriado, anos mais tarde, das medidas que tinha tomado para o eventual início de uma guerra civil no caso de, no “25 de Novembro”, as operações em Lisboa não alcançarem os objectivos traçados e, ainda, de ter mobilizado o apoio de navios e aviões de guerra estrangeiros para uma eventual intervenção em território nacional, mostra bem o grau de degradação do pensamento político e de rebaixamento patriótico a que haviam chegado os seus dirigentes.

 

Ainda assim, a presença política do Conselho da Revolução após Novembro de 1975 e a consciência cívica da maioria dos deputados à Assembleia Constituinte asseguraram que a Constituição da República consagrasse, já em 1976, aspectos fundamentais das conquistas revolucionárias, incluindo a continuidade do CR por mais alguns anos.

 

Contudo, foram tão profundos os efeitos da Revolução de Abril na consciência do povo que foram ainda necessários alguns anos mais até que algumas das suas conquistas fundamentais fossem desmanteladas, especialmente nos planos económico e moral.

 

A corrupção despudorada e a degradação democrática só irromperam com toda a claridade cerca de 15 anos depois...

 

Hoje, passados quase 40 anos, chegou a vez de ruírem a dignidade nacional e a justiça social mínima...

 

O que nos resta?

 

Uma Constituição da República que, para além de abastardada por sucessivas alterações tácticas, é tratada pelo Poder como um mero papel descartável?

 

3. Conclusões

 

1. O MFA, consubstanciando valores democráticos pluralistas, um inabalável patriotismo, a mais rigorosa ética republicana, um elevado sentido de justiça social e uma visão estratégica viável para Portugal, foi, apesar da sua curta vida existencial, a força política que mais uniu e marcou a consciência cívica dos portugueses em toda a época moderna.

 

2. Os partidos políticos portugueses nasceram e/ou desenvolveram-se ao abrigo da dinâmica libertadora promovida pelo MFA.

 

3. Desde o início das suas existências, alguns partidos políticos deixaram-se perverter por dependências e intromissões alheias aos interesses dos portugueses e de Portugal, prosseguindo a sua evolução degenerativa ao ponto de não terem hoje qualquer Projecto de Futuro e colocarem em perigo a própria legitimidade da democracia representativa.

 

4. Verificaram-se, desde há cerca de 30 anos, alterações profundas nos paradigmas societários do mundo que estão a questionar o “modelo” dos partidos políticos tradicionais e a questionar os pressupostos da estratégia nacional que tem vindo a ser prosseguida.

 

5. Nessa circunstância, e face à crise nacional em que Portugal actualmente se encontra, os Valores de Abril constituem, ainda hoje, uma referência fundamental para qualquer processo de convergência e unidade dos portugueses e para a sua mobilização para restaurar a Dignidade da Pátria e a Confiança no Futuro.

 

6. Dado o grau de degenerescência evolutiva (política, ética e organizacional) da generalidade dos partidos actualmente existentes, algo de novo, limpo e actualizado terá de surgir da cidadania que possa contribuir para regenerar a Democracia Portuguesa e para o ressurgimento de Portugal, como Povo e como Estado soberanos.

 

 

 

 

 

 

(*) Miguel Judas (n. 1948) é um militar de Abril, tendo integrado, como jovem oficial da Armada, a Assembleia Geral do Movimento das Forças Armadas (MFA). É atualmente membro da Associação 25 de Abril. Desenvolve intensa atividade de ensaísmo político e participou recentemente, com reflexões originais, em diversas iniciativas da sociedade civil, como o Movimento de Intervenção e Cidadania e o Forum de Cidadania pelo Estado Social.