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Inovação vermelha
Tony Smith (*)
O dinamismo tecnológico do capitalismo tem sido sempre um argumento poderoso em sua defesa. Mas um dos seus segredos mais bem guardados é que, na raiz dessas mudanças, nós não encontramos nem empreendedores ousados, nem capitalistas de risco, nem empresas bem estabelecidas.
Investimentos que façam avançar as fronteiras do conhecimento científico são, simplesmente, demasiado arriscados. Os avanços pretendidos poderão não se verificar. Aqueles que ocorram efetivamente, poderão não ser comercialmente viáveis. Quaisquer resultados potencialmente rentáveis que surjam, podem levar décadas até começar a dar algum dinheiro. E quando finalmente começarem a dar lucro, não há garantias de que os investidores iniciais possam apropriar-se da maior parte do caudal daí resultante.
Há, portanto, uma poderosa tendência para o capital privado subinvestir sistematicamente em pesquisa e desenvolvimento de longo prazo. Apesar da percepção popular de que os empresários privados impulsionam a inovação tecnológica, as potências regionais mais importantes da economia global não deixam as etapas mais decisivas da mudança tecnológica entregues a investidores privados. Esses custos são socializados.
No quarto de século após a Segunda Guerra Mundial, os elevados lucros acumulados por multinacionais norte-americanas, devidos ao seu lugar excecional no mercado mundial, permitiram que laboratórios corporativos se envolvessem em projetos de "investigação a céu aberto" (“blue-skies research”). Mas, mesmo assim, o financiamento público foi responsável por cerca de dois terços de todos os gastos com pesquisa e desenvolvimento nos Estados Unidos da América, criando as bases para os setores de alta tecnologia de hoje.
Com o aumento da concorrência do capital japonês e europeu, na década de 1970, o financiamento do setor privado à pesquisa e desenvolvimento aumentou. No entanto, os projetos de longo prazo foram quase totalmente abandonados, em favor do desenvolvimento de produtos e projetos de investigação aplicada promissores de vantagens comerciais a curto e médio prazo.
A pesquisa básica continuou a ser financiada pelo governo, como o trabalho em biologia molecular que deu suporte ao movimento das empresas do agronegócio em direção à biotecnologia. O mesmo era verdade para projectos de interesse especial para o Pentágono - os desenvolvimentos associados à Agência de Projetos de Pesquisa Avançada em Defesa, por exemplo, que abriram caminho aos modernos Sistemas de Posicionamento Global (GPS) – e outras agências governamentais.
Mas a pesquisa e desenvolvimento de médio-longo curso, em geral, estavam em grande perigo de cair numa espécie de "vale da morte", entre a pesquisa básica e o desenvolvimento imediato, pois nem o governo nem o capital privado ofereciam um financiamento significativo para eles.
Com toda a sua retórica sobre a "magia do mercado", os responsáveis da administração Reagan sabiam reconhecer uma falha do mercado, quando a viam. Eles começaram a oferecer aos laboratórios de universidades federais ou com financiamento público diversas cenouras e paus para que eles assegurassem as finalidades de longo prazo em pesquisa e desenvolvimento do capital norte-americano.
Novos programas foram criados para proporcionar às empresas inovadoras (“start-ups”) recursos para desenvolver descobertas numa fase anterior à "prova do conceito" exigida pelos investidores capitalistas. Sob Reagan, a Lei dos Pequenos Negócios Inovadores (“Small Business Innovation Development Act”) determinou mesmo que as agências federais destinassem uma percentagem do seu orçamento de pesquisa e desenvolvimento para financiar a investigação das pequenas empresas. Estas e outras formas de parceria público-privado concederam ao capital dos E.U.A. enormes vantagens competitivas no mercado mundial.
Não é nenhuma novidade que a linha de produtos tremendamente bem sucedida da Apple - iPads, iPhones e iPods - incorpora doze inovações principais. Todas as doze (unidades centrais de processamento, memória dinâmica de acesso aleatório, discos rígidos, monitores de cristal líquido, pilhas, processamento único digital, a Internet, as linguagens HTTP e HTML, redes celulares, o sistema GPS, programas de inteligência artificial comandados por voz) foram desenvolvidas por projectos de pesquisa e desenvolvimento financiados publicamente.
Não tem sido tanto a dinâmica do mercado como a intervenção ativa do Estado que tem alimentado a mudança tecnológica.
A idade de ouro prometida
A tecnologia é mais do que apenas uma arma na competição inter-capitalista; é também uma arma nas lutas entre o capital e o trabalho. As mudanças tecnológicas que criam desemprego, diminuíram a qualificação da força de trabalho e permitiram que um setor da força de trabalho fosse jogado contra um outro, mudaram o equilíbrio de poder em favor do capital. Dada esta assimetria, os avanços na produtividade que poderiam reduzir o tempo de trabalho aumentando os salários reais, conduziram em vez disso a despedimentos forçados, ao aumento do estresse para aqueles ainda empregados e à erosão dos salários reais.
Dois desenvolvimentos tecnológicos em curso reforçaram ainda mais o poder do capital. Avanços nos transportes e nas comunicações permitem agora cadeias de produção e de distribuição estendidas por todo o globo, facultando ao capital a implementação de estratégias de "dividir e vencer" contra o trabalho com uma extensão sem precedentes.
Novas e surpreendentes máquinas de economia de trabalho também estão se tornando cada vez mais baratas. Um recente estudo exaustivo de mais de sete centenas de ocupações concluiu que nada menos do que 47% do emprego nos Estados Unidos da América está em alto risco de ser automatizado dentro das próximas duas décadas. Qualquer coisa que se aproxime deste nível de deslocamento de trabalho, vai trazer mais miséria, não progresso, para os trabalhadores comuns.
Mas o menor custo e maiores capacidades das máquinas também têm levado a mudanças de um tipo melhor. Como os preços do hardware de computador, do software e das conexões de Internet têm diminuído, muitas pessoas podem agora criar novos "produtos de conhecimento" sem trabalhar para grandes capitalistas.
Multidões em todo o mundo agora escolhem livremente contribuir para projectos de inovação coletiva de interesse para elas, fora da relação entre capital e trabalho assalariado. Os produtos daí resultantes podem agora ser distribuídos como bens livres ilimitados para qualquer pessoa que deseje usá-los, ao invés de serem mercadorias escassas vendidas para o lucro.
É indiscutível que esta nova forma de trabalho social gerou inovações superiores em qualidade e escala às originadas nas empresas capitalistas. Estas inovações também tendem a ser qualitativamente diferentes.
Enquanto a evolução tecnológica no capitalismo aborda primariamente os desejos e necessidades das pessoas com rendimento disponível, os projetos de código aberto (“open-source”) podem mobilizar energias criativas para enfrentar problemas que o capital negligencia sistematicamente, tais como o desenvolvimento de sementes para agricultores pobres ou remédios para tratamento de pessoas sem dinheiro para comprar os medicamentos existentes. O potencial desta nova forma de trabalho social coletivo para satisfazer necessidades sociais prementes em todo o mundo é historicamente sem precedentes.
A fim de florescer, no entanto, a inovação de código aberto exige o livre acesso aos bens de conhecimento existentes. Empresas capitalistas dominantes, na esperança de aumentarem a sua capacidade de lucrar em privado com a pesquisa financiada publicamente, têm usado seu imenso poder político para reforçar o regime dos direitos de propriedade intelectual, no seu alcance e nas sanções para a sua violação, restringindo severamente o livre acesso ao conhecimento que os projetos de código aberto requerem. Os direitos de autor foram prorrogados por mais vinte anos, na virada do século, justamente quando o acesso à Internet estava começando a explodir.
Apesar destes obstáculos, o sucesso de projetos de código aberto mostra que os direitos de propriedade intelectual não são necessários para a inovação. Outra prova disso é fornecida pelo facto de que a maioria dos trabalhadores científicos e tecnológicos envolvidos na inovação é forçada a assinar a renúncia a direitos de propriedade intelectual como uma condição para o seu emprego. Estes direitos, na verdade, prejudicam o avanço, aumentando o custo do engajamento na produção de novos conhecimentos e desviando recursos para a satisfação de custos legais improdutivos.
O mundo é plano?
O capitalismo também dificulta a capacidade de grande parte do mundo para contribuir para o avanço tecnológico. Regiões inteiras da economia global não têm a riqueza suficiente para dar um apoio significativo à inovação. Hoje, apenas quatro países gastam mais de 3 por cento do seu PIB em investigação e desenvolvimento; apenas seis outros países dedicam 2 por cento ou mais.
O capital nessas regiões favorecidas tem a oportunidade de estabelecer um círculo virtuoso, apanhando boleia do avultado investimento público discutido mais acima. Acesso privilegiado a investigação e desenvolvimento avançados permite aos capitalistas apropriarem-se de altos rendimentos por inovações de sucesso; estes rendimentos permitem a essas empresas fazer uso eficaz dos avanços tecnológicos no próximo ciclo, preparando o terreno para lucros futuros.
Ao mesmo tempo, as empresas de regiões mais pobres, sem acesso a insvestigação e desenvolvimento de alto nível, encontram-se presas em um ciclo vicioso. Sua incapacidade presente para fazer inovações significativas que lhes permitam competir com sucesso nos mercados mundiais enfraquece as suas perspetivas futuras. Apenas um punhado de países - como a Coréia do Sul e Taiwan - foram capazes de avançar a partir desta desvantagem de partida.
As disparidades mundiais na mudança tecnológica, por si só, não explicam por que razão um por cento das pessoas no mundo possui neste momento 48 por cento da riqueza global. Mas elas são uma parte importante da história; a mudança tecnológica é uma arma que permite aos privilegiados manterem e ampliarem as suas vantagens globais ao longo do tempo.
Não-destruição criativa
Os efeitos destrutivos acima examinados não são caraterísticas necessárias da mudança tecnológica; eles são características necessárias da mudança tecnológica no capitalismo. Superá-los exige a superação do capitalismo, mesmo que só tenhamos uma noção provisória do que isso possa significar.
As tendências perniciosas associadas com a mudança tecnológica nos locais de trabalho capitalistas estão enraizadas numa estrutura em que os gestores são agentes dos proprietários dos ativos das empresas, com um dever fiduciário de promover os interesses privados destes.
Mas os meios de produção de uma sociedade não são bens para consumo pessoal, como uma escova de dentes. A reprodução material de uma sociedade é uma questão inerentemente pública, como o desenvolvimento tecnológico do próprio capitalismo, baseado em fundos públicos, confirma. Os mercados de capitais, em que títulos privados sobre recursos produtivos são comprados e vendidos, tratam poderes públicos como se fossem apenas mais um item para uso pessoal. Eles podem, e devem, ser totalmente eliminados.
Empreendimentos produtivos de grande escala devem, pelo contrário, ser reconhecidos como um tipo distinto de propriedade pública. Exercícios de autoridade dentro desses locais de trabalho devem ser considerados como atos de autoridade pública. O princípio da democracia deve, então, entrar em jogo: todos os exercícios desta autoridade devem estar sujeitos ao consentimento dos que são afetados por eles.
Embora fossem ainda necessários regulamentos adicionais para os gestores serem eleitos e sujeitos a revogação de mandato pelo conjunto da força de trabalho, os avanços tecnológicos na produtividade não causariam agora o desemprego involuntário de alguns e o excesso de trabalho dos outros, mas sim o trabalho uniformemente reduzido para todos.
Sabemos isso porque os trabalhadores dizem que querem mais tempo para passar com as suas famílias e amigos ou em projetos de sua própria escolha. Com a democracia no local de produção, a tendência para introduzir tecnologias desqualificadoras do trabalho seria substituída por uma busca de formas para tornar o trabalho mais interessante e criativo.
Suponhamos que as decisões sobre o nível geral dos novos investimentos também eram um assunto para debate público, eventualmente decididas por um órgão democrático. Se houvesse necessidades sociais prementes, a taxa global de novos investimentos poderia ser aumentada; se isso não fosse o caso, poderia ser estabilizada. Estes organismos poderiam, então, reservar uma parcela dos novos fundos de investimento para fornecer bens públicos de forma gratuita, colocando os produtos e serviços mais essenciais fora do alcance do mercado.
Os bens públicos de conhecimento científico e tecnológico resultantes da investigação básica e desenvolvimento de longo prazo seriam desmercantilizados, como o seriam também os frutos da inovação de código aberto. Isso poderia ser desencadeado pela abolição dos direitos de propriedade intelectual e proporcionando uma renda básica suficiente para todos - permitindo que qualquer pessoa que desejasse participar em projetos de código aberto o pudesse fazer. Se fossem necessários incentivos especiais, prêmios generosos poderiam ser atribuídos ao primeiro que resolvesse desafios importantes.
Os fundos restantes poderiam então ser distribuídos aos demais órgãos eleitos, a diversos níveis geográficos, cada um dos quais determinaria que parte iria para os bens públicos da sua região. O remanescente seria distribuído aos bancos comunitários locais, que seriam encarregados de o alocar a empresas geridas por trabalhadores.
Várias medidas qualitativas e quantitativas poderão ser utilizadas para medir o grau em que essas empresas utilizaram as tecnologias para atender às necessidades sociais de forma eficaz, com os resultados a determinarem o rendimento a receber pelos seus membros, para além do nível básico (e o rendimento dos membros dos bancos comunitários que alocaram fundos de investimento para elas).
A abolição dos direitos de propriedade inteletual teria a vantagem de assegurar que as regiões ricas não poderiam usar o conhecimento tecnológico como uma arma para criar e reproduzir desigualdades na economia global. Este perigo seria praticamente eliminado se a cada região fosse concedido um direito fundamental à sua quota per capita em novos fundos de investimento.
Finalmente, se os locais de trabalho utilizassem os avanços de produtividade para libertar tempo para os seus trabalhadores, em vez de aumentar a produção de mercadorias, os recursos seriam gastos e os resíduos gerados a uma cadência muito mais reduzida. Abolir os mercados de capitais e substituí-los pelo controlo democrático sobre os níveis de novo investimento, seria libertar a humanidade do imperativo de "crescer ou morrer", com as consequências ambientais que daí decorrem.
Se as empresas forem reconhecidas como matéria de inerente interesse público, isso eliminaria a obscena absurdidade de ter o destino da humanidade dependente do facto de as empresas petrolíferas com fins lucrativos terem, ou não, poder político e cultural suficiente para extrair e vender um número estimado de $20 triliões de dólares de reservas de combustíveis fósseis, como elas claramente planejam fazer.
Se a inovação de código aberto florescer, as energias criativas do trabalho social coletivo em todo o planeta podem ser mobilizadas para enfrentar os desafios ambientais. Se às regiões pobres, com ecologias frágeis, forem garantidos o seu quinhão de novos fundos de investimento, a pressão para sacrificar a sustentabilidade a longo prazo ao crescimento de curto prazo será superada.
É claro, todas essas propostas são vagas e provisórias. No entanto, elas mostram que as consequências sociais da mudança tecnológica poderiam ser muito diferentes do que são hoje. Nós não precisamos da propriedade privada dos meios de produção, ou de mercados dedicados a ativos financeiros, para termos uma sociedade tecnologicamente dinâmica. Com as mudanças políticas necessárias, o avanço tecnológico não seria mais associado à superacumulação, às crises financeiras, à asfixia da inovação de código aberto, às gravíssimas desigualdades globais, ou à ameaça cada vez mais palpável de catástrofe ambiental.
Precisamos libertar todo o enorme potencial do engenho humano. O modo como a tecnologia avança já é socializado, de uma forma importante, embora restrita e inadequada. Podemos terminar esse trabalho e garantir que os seus frutos sejam dirigidos ao benefício das pessoas comuns.
(*) Tony Smith é professor de Filosofia na Universidade Estadual do Iowa (E.U.A.). As suas áreas de investigação privilegiadas são a Filosofia da Tecnologia, a Teoria Ética, a Economia e o Feminismo. É autor dos seguintes livros: The Logic of Marx’s Capital: Replies to Hegelian Criticisms, State University of New York Press, 1990; The Role of Ethics in Social Theory: Essays from a Habermasian Perspective, State University of New York Press, 1991; Dialectical Social Theory and Its Critics: From Hegel to Analytical Marxism and Postmodernism, State University of New York Press, 1993; Technology and Capital in the Age of Lean Production: A Marxian Critique of the “New Economy”, State University of New York Press, 2000; Globalisation: A Systematic Marxian Account, Brill, 2005. O original deste artigo foi publicado no nº 17 da revista norte-americana Jacobin. Tradução de Ângelo Novo.
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