Os esteios do ecossocialismo revolucionário

 

Daniel Tanuro (*)

 

 

O conceito de ecossocialismo é baseado em uma dupla constatação paradoxal: a solução da "crise ecológica" provocada pelo modo de produção capitalista requer uma resposta socialista, por um lado, e o impacto ambiental do "socialismo realmente existente" foi catastrófico, por outro. Vou expor brevemente estes dois elementos e, em seguida, apresentar o desenvolvimento de alguns projetos de renovamento do ecossocialismo, tal como são concebidos na "Rede Ecossocialista Internacional". Espero assim mostrar que o socialismo ecológico não é uma nova etiqueta em uma velha garrafa. É antes uma alternativa necessária, adaptada aos desafios do nosso tempo.

 

Para os ecossocialistas, aquilo que se denomina de "crise ecológica" não é uma crise da ecologia. Não é a natureza que está em crise, mas a sociedade. E esta crise da sociedade provoca uma crise nas relações entre a humanidade e o resto da natureza. Em nossa opinião, esta crise não é devida à espécie humana como tal. Não é devida, em espcial, ao facto de a nossa espécie produzir sua existência social através do trabalho, que lhe permite desenvolver-se, dando substância à noção de progresso. É devida ao modo capitalista de desenvolvimento, ao modo capitalista de produção (que inclui um modo capitalista de consumo) e à ideologia produtivista e consumista do "sempre mais" que daí resulta.

 

Capitalismo = produtivismo

 

O capitalismo não produz valores de uso para a satisfação das necessidades humanas, mas sim valores de troca para a maximização do lucro. Este lucro é monopolizado por um sector minoritário da população: os proprietários dos meios de produção. Eles exploram a força de trabalho da maioria social, em troca de um salário menor do que o valor do trabalho fornecido.

 

Estes proprietários dos meios de produção travam entre si uma guerra de concorrência sem quartel, que obriga cada um deles a buscar continuamente maneiras de aumentar a produtividade do trabalho através do uso de máquinas cada vez mais sofisticadas. O "produtivismo" (produção pela produção, que implica o consumo pelo consumo), portanto, é uma característica congénita do capitalismo. O capitalismo implica acumulação. O economista burguês Joseph Schumpeter expô-lo com grande simplicidade: "Um capitalismo sem crescimento é uma contradição nos termos".

 

O capitalismo é um sistema de exploração muito eficaz. Melhora continuamente a produtividade do trabalho e a eficiência no uso dos (outros) recursos naturais. Mas esta melhoria está, obviamente, ao serviço da acumulação: as economias relativas em força de trabalho e em matérias-primas são mais do que compensadas pelo aumento absoluto no volume de produção, de forma que, em última análise, há um aumento dos recursos consumidos no processo. É por isso que a acumulação capitalista conduz inevitavelmente, ao mesmo tempo, a um aumento da exploração do trabalho humano e um aumento da pilhagem dos recursos naturais.

 

Quais são os limites da tendência capitalista ao crescimento? Para esta pergunta Marx respondeu que "O único limite do capital é o próprio capital". A fórmula é baseada na definição de capital, não como uma coisa (uma soma de dinheiro), mas como uma relação social: a relação de exploração pela qual uma soma de dinheiro se transforma em mais dinheiro através de extorsão de mais-valia correspondente ao trabalho não remunerado. Esta relação de exploração, obviamente, necessita de um insumo sob a forma de recursos (1). Dizer que "o limite do capital é o próprio capital", portanto, significa simplesmente isto: enquanto houver força de trabalho para explorar e recursos naturais para recolher, o capital pode continuar a acumular-se, esgotando, destruindo aquilo que Marx classificou como "as duas únicas fontes de toda a riqueza: a Terra e o trabalhador".

 

Em termos genéricos, a única alternativa concebível para o capitalismo será um sistema que não produza valores de troca para a maximização do lucro capitalista, mas sim valores de uso para a satisfação das necessidades humanas reais (isto é, não corrompidas pelo mercantilismo), democraticamente determinadas. Um sistema em que a colaboração substitui a competição, a solidariedade substitui o individualismo e a emancipação elimina a alienação. No entanto, um sistema deste tipo - mais do que um sistema: uma nova civilização - corresponde à definição teórica de uma sociedade socialista. Repito-o: em termos genéricos, não há outra alternativa concebível.

 

Produtivismo capitalista e produtivismo burocrático

 

Ao mesmo tempo, esta conclusão está confrontada com a dura realidade dos factos históricos: efetivamente, é indiscutível que o balanço do socialismo que "realmente existiu" no século XX é negativo, não só do ponto de vista da emancipação humana, mas também do ponto de vista do estabelecimento de relações quanto possível harmoniosas entre a humanidade e o seu ambiente natural.

 

Não há necessidade aqui de detalhar sobre este ponto: todo mundo já ouviu falar da secagem do Mar de Aral e do desastre de Chernobyl. Uma vez que este encontro é dedicado à luta contra as alterações climáticas, gostaria de acrescentar que a ex-Alemanha Oriental e a ex-Checoslováquia detinham o triste recorde mundial da emissão de maior quantidade de gases com efeito estufa por habitante. As suas “performances" nesta matéria foram ainda piores do que as dos maiores poluidores do mundo capitalista "desenvolvido", os E.U.A. e a Austrália.

 

Este balanço ambiental negativo do "socialismo real" é principalmente devido à burocracia contra-revoluconária que triunfou nos anos 1920 sob a liderança de Stalin. O produtivismo no Leste resultava, de fato, de um sistema de bônus que eram oferecidos aos gestores das empresas nacionalizadas para incentivá-los a irem além dos objetivos do plano. Por ganância, esses gestores estavam usando e desperdiçando o máximo de material e energia por unidade produzida... Eles não tinham que se preocupar com as consequências para a qualidade da produção daí resultantes, uma vez que os consumidores não tinham liberdade de escolha, nem liberdade de crítica ou possibilidade de contestar os efeitos sociais e ambientais de uma produção que não estava submetida a qualquer "controle operário".

 

Do ponto de vista dos danos ambientais, não houve diferenças entre o produtivismo capitalista e o do antigo Bloco de Leste. Mas o produtivismo capitalista resulta de mecanismos muito diferentes: ao contrário do gerente de uma fábrica nacionalizada na U.R.S.S., o chefe de uma empresa capitalista optimiza continuamente a quantidade dos recursos utilizados por unidade produzida, para maximizar o número destas unidades, considerando, por outro lado, a reação do mercado como um veredito sobre a qualidade de seus produtos.

 

Na verdade, o produtivismo do capital é racional do ponto de vista do capitalismo e inerente às relações sociais que o caracterizam. Em contraste, o produtivismo burocrático aparece como uma pura criação irracional da superestrutura política. Numa economia que deveria satisfazer as necessidades, a racionalidade exigia que a produção fosse guiada pela democracia dos produtores/consumidores; é porque esta democracia é incompatível com o parasitismo burocrático que o sistema, para funcionar fosse como fosse, dava incentivos materiais aos parasitas.

 

Esta comparação leva a uma conclusão importante: o produtivismo capitalista é endógeno ao seu modo de produção, enquanto o produtivismo soviético era exógeno. Daí resulta que o balanço ambiental desastroso da U.R.S.S. não forneça prova irrefutável de que o socialismo seja, por definição e inevitavelmente, tão ecocida quanto o capitalismo.

 

Stalin não explica tudo

 

Entretanto, o stalinismo e a existência de uma casta burocrática privilegiada não chegam para explicar esse registro desastroso. Para sinalizar o problema, eu me contento com uma citação do mais famoso opositor de Stalin: Leon Trotsky. De todos os teóricos marxistas, Trotsky é, sem dúvida, aquele que melhor compreendeu o fenômeno burocrático, mas ele não tinha consciência dos limites ambientais ao desenvolvimento humano. É o mínimo que podemos dizer.

 

Em um discurso famoso, o autor de ‘A Revolução Traída’, disse do "homem socialista" que ele "moverá montanhas, encerrará os mares e desviará os rios". Eu não quero exagerar o significado dessa citação, nem especialmente a sua influência sobre o curso dos acontecimentos. Só a utilizo como uma ilustração do facto de que muitos marxistas tinham um olhar muito menos cauteloso e realista do que Marx sobre o desenvolvimento das “forças produtivas libertadas dos entraves capitalistas" e do que isso iria permitir realizar (2).

 

Na verdade, longe de fantasiar sobre os poderes fabulosos de super-homem socialista, Marx considerava mais modestamente que "a única liberdade possível (em relação com as leis da natureza) é que o homem social, os produtores associados, regularão racionalmente a sua troca de matérias com a natureza".

 

À luz desta citação de Trotsky, parece claro que a análise do balanço ambiental do "socialismo real" deve ir além da compreensão do produtivismo burocrático. Temos de ir mais fundo na análise crítica das concepções teóricas e ideológicas que marcaram o socialismo, em diferentes graus.

 

Neste espírito, a corrente ecossocialista a que pertenço, que se revê no Manifesto Internacional Ecossocialista escrito por Michael Löwy e Joel Kovel, identificou um certo número dessas concepçõs que merecem debate e revisão. Vou as citar e comentar brevemente.

 

Ciência, Tecnologia e Progresso

 

Uma primeira questão é a da relação com a "Ciência", ou melhor, as ciências – sem maiúscula. A maioria dos pensadores socialistas, começando com Marx e Engels, foram fortemente influenciados pelo cientificismo. No entanto, a idéia mecanicista de que as ciências acabarão por ser capazes de explicar tudo, até ao último detalhe, é manifestamente errónea, porque o mundo está em constante mudança. Além disso, a velocidade desta mudança aumenta à medida que nos interessamos por objetos cada vez mais pequenos, de modo que quanto mais as ciências progridem, mais elas estarão enfrentando fenômenos novos que levantam novos enigmas.

 

Romper com o cientificismo é uma questão importante para os ecossocialistas. Trata-se de acabar com o projeto de dominação humana sobre a natureza, que implica que a natureza seja considerada como uma máquina e que o ser humano seja encarado como um maquinista. Este projeto ilusório, instrumentalista e reducionista vai contra os princípios da precaução, da modéstia e da prudência, que são necessários hoje se quisermos reequilibrar as trocas entre a humanidade e o resto da natureza.

 

Uma segunda questão, relacionada com a primeira, é a da tecnologia, isto é, das ciências aplicadas à produção. Elas são neutras ou têm um caráter de classe? Embora enfatize o caráter "historicamente determinado" de todos os aspectos do desenvolvimento humano, Marx não se pronunciou sobre este ponto específico. A maioria dos socialistas posteriores considerou a tecnologia como neutra. Os ecossocialistas pensam que não é assim.

 

O fim não justifica os meios: alguns meios são contrários ao fim. Isto também se aplica aos meios de produção, logo às tecnologias. A energia nuclear, por exemplo, é contrária ao objetivo exposto por Marx de uma sociedade onde o(a)s produtore(a)s visam valorizar o património comum da natureza para o transmitir aos seus descendentes como “boni patres familias". O mesmo se aplica à queima de combustíveis fósseis, ao cultivo ao ar livre de organismos geneticamente modificados e aos grandes projetos de geoengenharia, por exemplo.

 

A rotura com o cientificismo e a crítica das tecnologias levantam imediatamente a questão da atitude para com o desenvolvimento e o progresso. Marx não tinha sobre isso uma visão linear, mas uma maioria dos marxistas teve-a ou ainda a tem. E quanto aos ecossocialistas? Eles rejeitam a ideia avançada por alguns defensores do decrescimento para os quais devemos "sair do desenvolvimento" pois que o progresso é negativo em si mesmo. Mas recusam igualmente a idéia de que qualquer progresso e qualquer desenvolvimento serão positivos por si mesmos. Consistentes com seu olhar crítico sobre as tecnologias, eles aprofundam a tese de Marx de que o capitalismo desenvolve cada vez mais "forças destrutivas", em vez de produtivas.

 

Os países desenvolvidos, em geral, não precisam de um desenvolvimento quantitativo, mas de uma partilha das riquezas necessária a um desenvolvimento qualitativo. Neste contexto, os ecossocialistas atribuem grande importância à cosmogonia dos povos indígenas e aos conhecimentos práticos das comunidades camponesas. Eles vêem tudo isso como uma fonte de inspiração para um progresso digno desse nome. Um progresso que questiona a ideologia capitalista produtivista. Um progresso baseado no entendimento de que a verdadeira riqueza brota do tempo livre, das relações humanas e de uma integração harmoniosa no meio ambiente, não da acumulação compulsiva de bens de consumo, que muitas vezes servem apenas para compensar a miséria da existência.

 

Centralização e descentralização

 

Uma quarta questão em debate é a da relação entre a centralização e a descentralização. Devido à experiência histórica da U.R.S.S., o socialismo está fortemente ligado à ideia de um plano centralizado. Eu não nego que esse plano era necessário na década de 1920, pois que o poder revolucionário não poderia ser mantido se a pequena classe trabalhadora industrial fosse incapaz de fornecer as máquinas de que maioria camponesa necessitava para melhorar a vida nas comunidades rurais e eliminar as fomes, tão freqüentes na história russa. Mas a linha de equiparação entre o socialismo e a centralização deve ser questionada.

 

Escusado será dizer que um governo que deseje conduzir uma política anticapitalista deve necessariamente quebrar o poder econômico da classe dominante, o que só é possível por intermédio da expropriação das finanças e dos principais meios de produção e distribuição. Também não é mistério que esses setores socializados devem então ser reorientados para satisfazer as necessidades humanas, o que exige planejamento central. Mas deve ser enfatizado que a democracia plena e a autogestão não podem existir plenamente sem estarem enraizadas na base, a nível local. Centralização e descentralização devem portanto ser articuladas.

 

Esta articulação não está ausente do pensamento de Marx: pelo contrário, ele viu na Comuna de Paris "a forma política finalmente descoberta da emancipação do trabalho", e essa experiência o levou a acreditar que a "ditadura do proletariado" se materializaria na forma de uma federação de comunas. Os marxistas posteriores, numa grande medida, perderam o fio desse pensamento. Os ecossocialistas o reencontram e tentam renová-lo, em conexão com o projeto de um "socialismo do século XXI".

 

O desafio das mutações climáticas faz com que esta reflexão seja incontornável: para ter uma hipótese de conduzir, em duas gerações, a transição para um sistema de energia 100% renovável, é preciso, sem dúvida, socializar o sector da energia. Sem isso, os capitalistas tentarão impor, tão prolongadamente quanto possível, o uso das enormes reservas de combustíveis fósseis que lhes pertencem (3). Mas o uso de energias renováveis exige a interligação de redes de energia descentralizadas. A sua gestão democrática por parte das comunidades e no interesse colectivo dos habitantes é uma possibilidade real, que os ecossocialistas devem aproveitar, colocando demandas locais concretas de controlo e de participação, em vez de se agarrarem ao modelo obsoleto das grandes empresas nacionalizadas.

 

Ecossocialismo e Ecofeminismo

 

Uma quinta questão sobre a qual os ecossocialistas trabalham é a do papel específico das mulheres na luta por relações sustentáveis entre a humanidade e a natureza. Para as feministas da nossa corrente, esse papel não é devido ao facto de as mulheres serem "por essência" mais próximas e mais respeitadoras da natureza, como pensam alguns teóricos do ecofeminismo.

 

Acreditamos que não há uma essência feminina ecologista, como não há uma essência feminina pacifista, por exemplo. O papel específico das mulheres é-lhes atribuído pela divisão capitalista do trabalho na sociedade e na família burguesas. Uma das manifestações da sua opressão é de facto de que elas assumem a maior parte do trabalho de cuidado, geralmente sob a forma de serviços gratuitos que não são reconhecidos socialmente como trabalho. Além disso, as mulheres globalmente são responsáveis por 80% da produção mundial de alimentos.

 

As mulheres sabem o que significa "cuidar dos vivos". A sua experiência neste domínio dá-lhes um papel de liderança no processo de transição, porque a humanidade é precisamente confrontada com a necessidade de "cuidar" (do resto) da natureza e que grande parte da população - especialmente no mundo desenvolvido e urbanizado - não sabe, pura e simplesmente, como o fazer. Mas este papel das mulheres não pode ser plenamente valorizado, no interesse de todos, sem que a sua opressão seja reconhecida e combatida. Isso requer a luta autónoma das mulheres pela igualdade de direitos na sociedade em geral, o princípio "salário igual para trabalho igual" no mercado da força de trabalho e a partilha das tarefas domésticas. Nesse sentido, os ecossocialistas apoiam a luta ecofeminista.

 

A questão do sujeito

 

Tomar em conta o papel específico das mulheres levanta uma outra questão que quero abordar antes de esboçar uma conclusão. Em muitos aspectos, isso é ainda uma questão decisiva para o ecossocialismo: a questão do "sujeito" da transformação social.

 

Classicamente, os teóricos do socialismo consideram que a classe trabalhadora - ou seja, não só os trabalhadores de fábrica, mas todos aqueles e aquelas que são obrigado(a)s vender o seu trabalho por um salário - é O sujeito, que arrasta na sua esteira a pequena burguesia e todas as camadas oprimidas. Este papel central como classe revolucionária resulta do seu lugar no presente modo de produção: com efeito, enquanto classe mais explorada, a classe trabalhadora não tem outra perspetiva histórica possível senão a gestão colectiva dos meios de produção, para atender às necessidades sociais democraticamente determinadas.

 

Esta análise tradicional engendrou de seguida a idéia de que a classe trabalhadora joga, em qualquer hora e lugar, um papel de liderança, mesmo involuntariamente, de forma "objetiva". Ora, a luta contra as mutações climáticas permite ver uma realidade completamente diferente: na linha de frente estão os camponeses, os agricultores sem-terra, os povos indígenas e as comunidades em luta contra projetos de mineração, exploração florestal ou de infra-estruturas que destroem o seu meio ambiente.

 

O facto de estratos sociais diferentes da classe trabalhadora, em sentido estrito, desempenharem um papel de vanguarda não é sem precedentes. A juventude, por exemplo, tem muitas vezes servido como um detonador através de lutas que, revelando uma situação social ou política insuportável, conduzem de seguida a classe trabalhadora a sair de uma relativa passividade. O Maio de 68 em França, onde a repressão da "noite das barricadas" no Quartier Latin desencadeou uma greve geral de dez milhões de grevistas, é um exemplo clássico dessa interação entre camadas e classes sociais distintas. Existem muitos outros.

 

No entanto, aquilo com que nós atualmente nos defrontamos na frente ambiental é diferente e a imagem do detonador não permite apreendê-lo. Um detonador preenche uma função temporária: provoca a explosão. Mas sobre as alterações climáticas, vemos há muitos anos as lutas persistentes de camponeses, povos indígenas e comunidades, sem que essas lutas, até agora, tenham feito explodir fosse o que fosse na classe trabalhadora. O problema é mais profundo. Não é simplesmente um caso de "discordância dos tempos", uma lacuna entre os ritmos de sensibilização de diferentes camadas e classes sociais.

 

A explicação é, na verdade, relativamente simples. Quando os camponeses lutam contra o agronegócio, quando os povos indígenas lutam contra a apropriação das florestas como sumidouros de carbono ou como fonte de biomassa, quando as comunidades estão lutando contra projetos extrativos que destroem o seu enquadramento de vida e os seus recursos,... estes combates por reivindicações imediatas para a vida dos grupos envolvidos coincidem diretamente com o que precisa de ser feito para salvar o clima.

 

A situação da classe trabalhadora é bem diferente. Com efeito, especialmente no contexto atual, em que a classe trabalhadora está enfraquecida, ideologicamente desorientada e empurrada para a defensiva, as demandas mais imediatas que surgem espontaneamente, para defender as suas condições de vida, não coincidem com o que precisa de ser feito para salvar o clima, mas sim com a sua desestabilização. Para criar ou salvar empregos, por exemplo, uma maioria de honestos trabalhadores espera por uma expansão da produção, uma recuperação econômica do capitalismo, novos negócios. É claramente uma ilusão acreditar que isso reabsorverá o desemprego. No entanto, é essa ilusão que se impõe, à primeira vista, como a resposta mais lógica e mais fácil de implementar. Em alguns setores poluentes ameaçados, como o do carvão na Polônia, os sindicalistas chegam mesmo ao ponto de duvidar da realidade das mutações climáticas, porque reconhecem aí uma ameaça aos seus empregos.

 

A luta contra o desemprego, questão central

 

Como lidar com este problema? Os ecossocialistas tentam dar resposta propondo reivindicações que atendam tanto às necessidades sociais do mundo do trabalho como às necessidades ambientais (nomeadamente a redução drástica e rápida das emissões de gases com efeito estufa, que é essencial para a estabilização do sistema climático). Para simplificar, portanto, nós dissociamo-nos tanto de ambientalistas que acreditam que os impactos sociais das medidas ambientais são um problema secundário, como dos sindicalistas que acreditam que a prioridade é social, sendo o meio ambiente um problema dos ricos, do qual deveremos ocupar-nos mais tarde. Ambas estas estratégias nos parecem antecipadamente condenadas.

 

A luta contra o desemprego é a principal ansiedade do mundo do trabalho (ela determina o nível dos salários, a organização do trabalho, a defesa dos sistemas de protecção social...). Os ecossocialistas propõem uma resposta geral, que se articula em três níveis:

 

- A expansão do emprego público não-deslocalizável (nomeadamente através de planos públicos de renovação energética dos edifícios, de transformação do sistema de energia e da reversão da automobilização total por intermédio de sociedades públicas de transportes comunitários), enfatizando a descentralização e o controle democrático pelos usuários e pelo(a)s trabalhadore(a)s;

 

- A reconversão coletiva, sob controle operário, dos trabalhadores e trabalhadoras de indústrias desnecessárias ou nocivas (principalmente a indústria de armamento e a indústria nuclear, mas também os setores automóvel, petroquímico, etc.) para outros setores de atividade;

 

- A redução radical do tempo de trabalho, sem perda de remuneração, com engajamento compensatório de mais trabalhadores e redução dos ritmos de trabalho, a fim de trabalharmos todos, vivendo melhor e desperdiçando menos.

 

Esta última reivindicação nos parece de grande importância estratégica. De facto, como observou Marx, trata-se aqui tanto da demanda social por excelência como do meio, por excelência, por intermédio do qual "o homem social, os produtores associados" podem "regular racionalmente as suas trocas de matéria com a natureza" agindo "da maneira mais conforme à natureza humana".

 

Face ao desemprego, apenas um programa desse tipo é capaz de enfrentar o duplo desafio, social e ambiental, em especial climático. A sua aplicação requer uma direção anticapitalista e faz apelo a outras reivindicações que não vou detalhar aqui: a expropriação dos setores da energia e das finanças – uma condição sine qua non da transição - por um lado, e uma política de longo prazo para o desenvolvimento do emprego rural local - na agricultura orgânica e na manutenção dos ecossistemas - por outro.

 

Este programa não pode ganhar influência no movimento operário senão articulando-se na luta da esquerda combativa contra os aparelhos dominados pelo social-liberalismo ou por outras correntes burocráticas. Com efeito, a perspetiva destes aparelhos consiste geralmente em acompanhar a transição energética tal como ela é concebida pelo capitalismo (uma transição que, de nenhuma maneira, cumpre o objetivo de sustentabilidade, por ser demasiado lenta e recorrer massivamente ao nuclear, aos agrocombustíveis e à captura-seqüestro de carbono), pedindo apenas que essa transição seja "justa" (4). Os ecossocialistas incentivam os movimentos camponeses, dos povos indígenas e das comunidades a estabelecer ligações e a buscar convergências com aquela esquerda no seio dos sindicatos.

 

Sair das generalidades e avançar um programa de proposições concretas, bem argumentadas, para a transição energética e social, por exemplo, a nível europeu, constitui a meu ver o maior desafio que os ecossocialistas devem esforçar-se por atender. A tarefa é tanto mais difícil quanto não é suficiente substituir as energias fósseis pelas renováveis: dado o atraso acumulado, desde há 30 anos, por sucessivos governos, as emissões de gases com efeito de estufa devem ser reduzidas tão fortemente e de forma tão rápida que isso já não pode ser feito sem redução na produção material e nos transportes (5). Todos compreenderão que essa restrição complica ainda mais a resposta ecossocialista ao desafio do emprego.

 

Ecossocialismo, conceito aberto

 

O ecossocialismo pode ser resumido como um desejo de convergência entre as lutas ambientais e sociais, a partir da compreensão de que a austeridade e a destruição ecológica são dois lados da mesma moeda: o capitalismo produtivista. Definido desta maneira, é um conceito aberto, suscetível de diferentes declinações estratégicas e programáticas. De facto, existem presentemente diversas variedades de ecossocialismos. A variedade que vos apresentei poderá ser definida como marxista, revolucionária, feminista e internacionalista. Há outras e nós não pretendemos o monopólio, senão um debate o mais amplo possível.

 

 

 

 

 

 

(*) Daniel Tanuro é um engenheiro agrónomo e ambientalista belga, membro da ONG Climat et justice sociale e colaborador habitual da revista ‘Le Monde Diplomatique’. É autor do livro L’impossible capitalisme vert, La Découverte, Paris, 2010 e co-autor de Pistes pour un anticapitalisme vert, Syllèpse, Paris, 2010. Foi também autor do longo ‘Relatório sobre mudanças climáticas adotado para servir de base à resolução que seria tomada sobre o assunto no 16.º Congresso Mundial da IV Internacional (Secretariado Unificado) em março de 2010. Este texto é baseado em uma comunicação feita no fim de semana de mobilização sobre o clima organizado, de 10 a 12 de abril de 2015, em Colónia, pela Fundação Rosa Luxemburgo, em colaboração com várias organizações ambientalistas alemãs. Ver Kampf ums Klima 2015. Tradução de Ângelo Novo.

 

 

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NOTAS:

 

(1) A natureza oferece estes gratuitamente ao capitalista, o que explica o apetite do capital pela exploração de minas, de florestas naturais ou de reservas haliêuticas - especialmente em tempos de recessão, quando o chamado "extrativismo" atrai capitais em busca de superlucros.

 

(2) A ironia da história é que aquele que tentou, em parte, implementar a visão deTrotsky foi... Stalin, quando acarinhou o projeto de inverter o curso dos rios siberianos de norte para sul, para irrigar a Ásia Central...

 

(3) Lembremo-nos de que, para termos uma hipótese de 60% de não ultrapassar os 2° C de aumento da temperatura média, em relação ao período pré-industrial, precisamos que dois terços a quatro quintos das reservas de combustíveis fósseis comprovadas nunca sejam exploradas.

 

(4) Um exemplo muito claro dessa estratégia de acompanhamento é a escolha, por parte da maioria dos sindicatos franceses, de não contestar a indústria nuclear.

 

(5) Os cenários de transição para um sistema 100% renovável que se pretendem compatíveis com a manutenção de um crescimento de 2 a 3% por ano não têm em conta a energia fóssil necessária para a produção de conversores renováveis e para os trabalhos de melhoramento da eficiência energética dos edifícios, com as emissões que daí resultam.