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Democracia, capitalismo e revolução (I)
Ângelo Novo (*)
A democracia política é uma aquisição civilizacional muito anterior ao capitalismo e muito dificilmente compatível com ele. A democracia burguesa é assim, em larga medida, um oximoro, e não a forma mais perfeita e acabada de domínio da classe que vive dos rendimentos do capital, conforme se pensava no marxismo clássico. Com o conhecimento histórico que temos hoje, podemos concluir que as formas constitucionais democráticas foram, no máximo, um expediente auxiliar da burguesia na sua fase ascensional e uma bandeira de propaganda quando o capitalismo teve de enfrentar as sérias ameaças sistémicas do “socialismo real” e do “terceiro-mundismo” de Bandung. De resto, a conciliação entre a democracia e o domínio do capital nunca foi fácil, nem óbvia, nem “natural”.
Durante 2,5 milhões de anos, os hominídios fabricantes de ferramentas viveram em comunidades, nómadas ou sedentárias, nas quais as decisões importantes para a vida social eram tomadas, segundo tudo indica, por consenso ou deliberação coletiva. A partir da revolução urbana, iniciada há cerca de 5.000 anos, isso deixou de ser assim. Surgiram a propriedade privada, a divisão social em classes, o patriarcado, a escrita, o dinheiro e o Estado (1). Desde então, as decisões relevantes para a vida coletiva são tomadas por uma elite, integrante ou cooptada pela classe detentora dos principais meios de produção e responsável apenas perante ela. É assim ainda hoje. Desde que surgiram as sociedades de classes, a democracia passou apenas a assomar, de forma sempre episódica e imperfeita, propulsionada pela luta social a partir de baixo (2).
No entanto, os regimes políticos na maior parte das nações contemporâneas afirmam a sua adesão ao princípio democrático. E o modelo social que nos é imposto retira daí uma grande parte da sua legitimação. Foi em nome da democracia que as classes dominantes conduziram a sua luta contra o campo socialista (1917-1989). É uma bandeira que não será facilmente descartável para elas, embora a incomodidade que lhes causa o regime democrático seja cada vez mais notória. Para lá dessa fachada institucional, haverá um campo aberto para a luta emancipadora das classes subalternas (3). Baluartes fortificados de poder social e de representação simbólica podem ser tomados e perdidos, numa incessante guerra de posições. É ainda e sempre no seio da democracia - defendendo, aprofundando e radicalizando o princípio da soberania popular – que se pode divisar um caminho para abolir a apropriação privada dos meios de produção e o regime de dominação social que lhe está associado.
Uma coisa é a democracia. Outra coisa, completamente distinta, é a questão do Estado, o Estado como institucionalização da dominação de classe, que é presentemente, em todo o mundo, o Estado capitalista. Os dois problemas intersecionam-se, como é óbvio, mas têm de ser rigorosamente distinguidos, concetualmente e na prática. A democracia, pela sua história e pulsação atual, será antes um anti-Estado, tendo como vocação política mais profunda contestar e desarticular a dominação de classe. Ademais, a expressão político-ideológica típica da dominação de classe da burguesia não é, nunca foi, a democracia mas o liberalismo. A democracia é uma tradição política ancestral, a que devemos respeito e estremosa veneração. É muito anterior ao capitalismo e há-de certamente sobreviver-lhe, se a humanidade houver de ter um futuro.
A alvorada da democracia
Está hoje firmemente estabelecido que não foi na Grécia clássica que se reinventou a democracia, em sociedades já socialmente estratificadas. O autogoverno popular em assembleia de iguais ocorria já em algumas cidades do Médio Oriente em plena Idade do Bronze. Por volta de 1.500 a.c. esse costume transmitiu-se ao subcontinente indiano, no início do período védico. Praticou-se ainda em cidades fenícias como Sídon e Biblos, antes de, por essa via, chegar finalmente à Grécia micénica. Só muitos séculos depois floresceria na Atenas clássica (4). Não foi assim uma dádiva ocidental ao mundo, como o quer ainda hoje um certo etnocentrismo de vezo neocolonial (5).
O fato, porém, é que estamos hoje muito mais informados sobre o surto democrático ateniense do que sobre os seus antecessores. E esse conhecimento é precioso para termos uma correta perspetiva do que é a democracia, para lá da sua integração tardia no arsenal de legitimação da dominação de classe burguesa sob o modo de produção capitalista.
A Grécia arcaica, do século VIII à primeira metade do VII a. c., foi um período de relativa tranquilidade social, sob o domínio indisputado da classe dos grandes terratenentes. Dele nos chegou um expressivo retrato no poema Os Trabalhos e os Dias de Hesíodo. A história humana obedecia a um curso cíclico, em perpétua harmonia com a natureza, de que colhia os frutos por intermédio de um labor honesto e persistente. Os problemas começaram depois (6).
Os séculos VII a V a. c. foram um período de grande expansão económica, com uma contínua acumulação de riqueza nas cidades mais progressivas. A navegação intensificou-se, bem como a colonização das costas e ilhas dos Mares Egeu, Negro, Adriático e Mediterrânico, com particular destaque para a Dalmácia, o sul da península itálica (Magna Graecia), a Sicília, a Sardenha-Córsega, o litoral sul de França, o Levante hispânico, a Cirenaica, a foz do Nilo, Creta, Chipre, todo o litoral da Ásia Menor, da Bulgária, da Ucrânia e da Geórgia, a Crimeia-Kuban e a foz do Don. Por volta do ano 500 a. c., quase metade dos gregos vivia nesta diáspora colonial. O comércio, a indústria manufatureira e a circulação monetária conheceram um grande incremento. Exportava-se azeite, vinho, têxteis, cerâmica, artefatos metálicos, em grandes quantidades. Importavam-se metais, madeira, cereais, peixe seco, couro, escravos. As cidades portuárias gregas pululavam de grandes multidões industriosas e irrequietas. Em breve uma grande parte desta cidadania livre começou a reclamar direitos políticos.
O regime político correspondente ao domínio dos grandes terratenentes era a aristokratía, o governo pelos melhores ou pela excelência. Durante toda a época clássica grega, nunca a classe proprietária deixou de ser a classe dominante. As fortunas que se faziam no comércio ou na indústria, eram normalmente consolidadas pela compra de terras, o que garantia infalivelmente acesso ao restrito grupo dos melhores. Todavia, o governo por uma minoria privilegiada começou antes a ser denominado por oligarkhía, um termo que Aristóteles depois consagraria como significando o governo pelos ricos (7). Com este alcance, está bem à vista que este conceito veio a ter um grande futuro. Uma oligarquia de base muitíssimo alargada integraria todos os cidadãos com meios próprios suficientes para lhes permitirem servir no exército como cavaleiros ou hoplitas, o que corresponderia a entre um terço a um quinto da população livre masculina.
A sociedade grega da época clássica poderá ser denominada de esclavagista, no sentido em que, com grande probabilidade, a maior parte do excedente social apropriado pela classe dominante era produzido por trabalho não livre, com predomínio do trabalho dos escravos, embora se deva ainda incluir nessa categoria o trabalho servo e o de remissão de dívidas. O trabalho assalariado era reduzido e ocasional, à exceção da época das colheitas. Todavia, o que dissemos atrás não significa que a maior parte do produto social fosse gerado por escravos, ou sequer pelo trabalho não livre. Quase de certeza, a maior parte do produto social era gerada pelos pequenos e médios camponeses independentes, formalmente livres.
Ora, uma parte importante do produto do trabalhador livre - camponês e também artesão - era igualmente apropriada pela classe dominante, a classe dos grandes proprietários. Era-o, em primeiro lugar, de uma forma direta e individual, por exploradores concretos, a quem o trabalhador livre pagava rendas fundiárias e juros por empréstimos, de quem sofria execuções por hipotecas. Era-o, por outro lado, de uma forma indireta e coletiva, por intermédio do poder estatal, sob a forma de tributação (em dinheiro ou em espécie), de serviços ocasionais compulsórios e do recrutamento militar. Uma vez que os escravos (cativos numa terra estranha, divididos por origens étnicas muito diversas) muito dificilmente se poderiam unir numa causa comum, era a exploração do trabalho livre que traçava a linha onde se jogaram os lanços fundamentais da luta de classes em toda a Antiguidade. A anulação das dívidas e a redistribuição da propriedade fundiária eram as reivindicações mais comuns das classes populares, que muitas vezes tomaram expressão tumultuosa ou mesmo insurrecional (stasis).
A irrupção na política dos novos ricos e da plebe comum fez-se através do regime dos tiranos (tyrannoi), entre meados do século VII e finais do século VI a.c.. Tratava-se de um regime de poder pessoalizado, de caráter excecional, que se seguia normalmente a episódios de guerra ou de grande comoção político-social. Os tiranos legitimavam-se como protetores das massas populares laboriosas contra os abusos dos grandes latifundiários. Prosseguiram geralmente uma política de reforma social, promoção do comércio, da indústria, das artes e de grandes obras públicas. Pisístrato em Atenas foi um tirano modelar, entre 546 e 527 a.c.. Na esteira das tiranias, já bem adentrados no século V a.c., surgiu a demokratia, o governo pela maioria, pelo povo ou pelos pobres.
O surto democrático ateniense foi produto da revolução agrária ocorrida no início do século VI a.c. que seria institucionalizada pelas reformas do archon Sólon em 594-3 a.c.. O resultado foi a libertação dos pequenos e médios camponeses, não apenas das “dívidas”, mas de todos os laços de sujeição jurídica e política que sobre eles pendiam. Pela primeira vez na história, o pequeno produtor ascendeu a um estatuto de plena autonomia. Ao longo do século seguinte, até às reformas já plenamente democráticas de Clístenes, no final do século V a.c., a cidadania foi-se alargando progressivamente, em geometrias variáveis, a todo o mundo do trabalho independente (8). Não apenas os camponeses, mas também os artesãos, os trabalhadores ocasionalmente assalariados, os peões fundibulários do exército, os remadores da armada, enfim, toda a ralé popular denominada thetes, tinha agora acesso à magistratura e às assembleias deliberativas, para indizível horror de toda a aristocracia bem pensante. Praticamente toda a filosofia grega pós-socrática que chegou até nós é uma extensa e obsessiva diatribe anti-democrática.
A máxima expressão da democracia ateniense era a assembleia popular (ekklesia), onde as leis e as deliberações políticas e militares mais importantes eram aprovadas, por voto individual de braço no ar. Também se usou o método de deposição de seixos ou fragmentos cerâmicos numa urna. As assembleias eram realizadas numa colina granítica chamada Pnix, onde se escavou um anfiteatro que, após sucessivas ampliações, chegou a comportar a presença de 23.000 pessoas. Era esperada a comparência de todos os cidadãos do sexo masculino com dois anos de serviço militar. A participação era elevada, tanto mais que era remunerada, de modo a incentivar a presença dos mais pobres. Inicialmente, a ekklesia reunia mensalmente, mas chegou a reunir três a quatro vezes por mês. O mês político democrático na Ática clássica chamava-se pritania e equivalia a um décimo do ano, seja 36 ou 37 dias. Toda a gente tinha direito a falar e a fazer propostas na ekklesia, a partir do estrado central. As discussões eram feitas com método e geralmente ordeiras, mas por norma em ambiente de festa e irreverência popular, com muita chalaça e epigramas espontâneos. A assembleia era geralmente impiedosa para com intervenções vãs e mal informadas. Mas homens de qualquer condição social falavam livremente e faziam propostas sobre os mais elevados assuntos de Estado, civis, religiosos ou militares.
A direção corrente dos assuntos públicos era assegurada pelo Conselho dos Quinhentos (boule), que incluía cinquenta conselheiros indicados por cada uma das dez tribos áticas. A boule tinha poderes administrativos, mas não era, de modo algum, um órgão comparável aos modernos executivos. Aliás, o seu nome foi adotado contemporaneamente pelo parlamento grego. Os conselheiros tinham de ter mais de 30 anos. Depois de aprovados num questionário, serviam por um ano, que era o período de exercício do Conselho dos Quinhentos. Apenas poderiam integrar a boule uma segunda vez, em toda a vida. A função de conselheiro acabava por ser desempenhada, ao menos uma vez, por uma grande parte dos homens livres atenienses. Sócrates também por lá passou, afirmando-se contudo totalmente estranho à política. A transitoriedade, o sorteio e o amadorismo eram as garantias da democraticidade e da lisura no exercício dos cargos políticos. A permanência e a especialização eram as marcas da oligarquia, como se verificou durante o golpe antidemocrático de 411 a.c..
As tarefas quotidianas da boule, administrativas, legislativas e também judiciais, eram desempenhadas, não pelo Conselho no seu todo, mas apenas pelos cinquenta conselheiros da tribo que, rotativamente e por sorteio, assegurava, por uma pritania, as funções da sua presidência. De entre estes cinquenta “pritanistas”, sorteava-se quotidianamente um presidente (epistates), que assegurava essas funções apenas por um dia e uma noite, para jamais as voltar a desempenhar. Este era, por assim dizer, o “chefe de Estado” de turno em Atenas. Detinha a chave dos tesouros e arquivos da cidade, bem como o selo estatal. Juntamente com um terço dos pritanistas, formava um comité em sessão permanente que assegurava a gestão corrente dos assuntos da polis. Os democratas atenienses cumpriram antecipadamente o anseio de Lenine de que a máquina do Estado pudesse ser dirigida por uma cozinheira (9). Exceto, naturalmente, que teria de ser um homem.
O plenário do Conselho dos Quinhentos reunia duas vezes por pritania para deliberar sobre assuntos financeiros ou, extraordinariamente, para qualquer outro assunto de grave urgência. A função mais importante da boule, no entanto, era preparar a agenda e dirigir os trabalhos da ekklesia. As propostas de lei ou decreto e anúncios vários eram afixados em papiros, madeira pintada ou pedra cinzelada junto do monumento aos heróis epónimos, na Ágora. Os normativos aprovados e em vigor eram afixadas na Estoa Real, uma colunata dórica situada a alguma distância, no canto noroeste da Ágora, junto à via panatenaica. Qualquer cidadão podia propor uma lei nova ou a revogação de uma lei existente, devendo neste caso apresentar uma lei alternativa. As alterações legais eram aprovadas mediante a realização de um debate oral contraditório.
O poder judicial era assegurado por um sistema de tribunais populares (Heliaea). Os juízes eram não profissionais, eleitos pela ekklesia. Os jurados eram sorteados de entre todos os cidadãos que respondessem a um pequeno teste. As decisões judiciais eram tomadas por voto maioritário e inapeláveis. Só os casos criminais mais graves – homicídio, impiedade, traição - continuaram a ser julgados pelo Areópago, uma instituição de origem aristocrática, cujos membros tinham nomeação vitalícia mas ainda assim estavam sujeitos a escrutínio (10).
Entre os princípios afirmados como essenciais para a vida democrática estava o de que a sociedade devia expandir ao máximo a margem permitida de liberdade individual (eleutheria). E entre as liberdades do cidadão estava a de se exprimir, em todas as ocasiões, com toda a franqueza (parrhesia). Toda a gente tinha um igual direito a exprimir a sua opinião com toda a liberdade. A igualdade na expressão das suas opiniões políticas (isegoria) era congénita ao sistema constitucional ateniense (11). E qualquer cidadão era igual a qualquer outro perante a lei (isonomia). Todos os oficiais públicos, a qualquer nível de responsabilidade, estavam sujeitos a um apertado escrutínio público (euthuna). A partir de certa altura, uma parte das funções públicas passou a ser objeto de uma modesta remuneração, o que mais ainda apertou este princípio de permanente examinação de conduta. As nomeações para muitas funções eram aliás feitas por sorteio e tinham duração anual.
O novo espírito democrático era antidogmático, cético perante as verdades tradicionais, irrespeitoso perante os poderes estabelecidos. As coisas do mundo são mutáveis, em sentidos imprevisíveis, sendo o homem a única constante. Calicles, Górgias e Protágoras foram alguns dos expoentes inteletuais desta escola sofística, que seria depois incansavelmente caluniada pelos seus inimigos oligárquicos. Infelizmente, não deixou para a posteridade, em sua defesa, um registo original do seu pensamento. Mas os sofistas, ao que parece, nunca perderam em vida uma ocasião para se desforrarem antecipadamente dos seus adversários. Assediavam os poderosos do seu tempo com interrogatórios implacáveis, ridicularizando-os em público. E não se coibiam mesmo de, à sua passagem, na Ágora, libertarem estrondosos assomos de flatulência (12).
Questões particulares são levantadas pela relação entre a democracia ateniense e o seu império, por um lado, e o trabalho escravo, por outro. Há claras divergências entre os historiadores sobre o grau em que o funcionamento das instituições democráticas atenienses (nomeadamente, a remuneração de funcionários e participantes na ekklesia) dependia do tributo recolhido entre os seus protegidos da Liga de Delos. Certo é, porém, que as cidades tributárias de Atenas eram elas próprias regidas democraticamente. Onde prevalecesse o poder das armas atenienses, a luta social e o poder político resolviam-se em favor da demos. Megara, Argos, Corinto e Siracusa foram, em alguma época, outras proeminentes democracias clássicas gregas, independentes de Atenas. Rodes era uma importante democracia tributária de Atenas mas que também remunerava os seus agentes públicos. Não parece assim haver bases empíricas que suportem a tese de que a democracia da era clássica era um luxo político suportado por réditos imperialistas. Quanto ao trabalho escravo, a tendência mais recente da historiografia vai no sentido de reavaliar em baixa o seu peso na economia e na configuração geral da formação social ateniense.
Liberalismo e democracia “representativa”
A democracia ateniense perdurou, com breves interrupções, por cerca de dois séculos. Foi lentamente estrangulada pelo domínio macedónio, a partir de 338 a.c.. Quando a ideia democrática reapareceu em força, no mundo ocidental, dois mil anos depois, era entendida de forma completamente diversa. Tratava-se agora de uma democracia representativa, concebida para entidades políticas mais vastas e populosas. As funções políticas não seriam mais desempenhadas pelo homem comum, mas por pessoal eleito especialmente qualificado. Por outro lado, levava-se em conta a necessidade de uma composição pacífica entre interesses sociais contraditórios (ordens, estados, partidos, etc.). A democracia grega clássica, embora tenha sido produto da luta de classes, laborava ideologicamente com base numa presunção de indivisibilidade da comunidade política (13).
As “cortes” convocadas por diversas monarquias ibéricas a partir do século XII (14) foram o precursor da moderna democracia representativa. Mas a ideia base deste pequeno embrião do constitucionalismo liberal – que depois foi transposta e adaptada para os “Estados Gerais” franceses ou o “Parlamento” inglês - estava muito longe do princípio da soberania popular. Tratava-se em primeiro lugar de ganhar o assentimento e a participação dos “homens bons”, a influente burguesia nascente, para a política monetária, a tomada de empréstimos e o lançamento de impostos. Outras questões de interesse político geral passaram depois também a ser objeto de debate e deliberação em cortes. Tratava-se de um sistema político baseado numa representatividade declaradamente oligárquica, que criava espaços de liberdade, participação e defesa contra a arbitrariedade que se destinavam apenas a uma pequena camada superior da população. A mesma observação vale para a famosa Magna Carta inglesa, arrancada pelos barões rebeldes ao rei João no ano de 1215, dizendo respeito sobretudo à tributação, à liberdade de culto, à justiça e aos princípios do processo penal. Em todas as longitudes europeias, foram as classes possidentes, cultivadas, orgulhosas da sua condição não-servil, que se consideraram a si próprias liberais e se proclamaram em luta contra o despotismo e as trevas.
Durante os próximos séculos o projeto político burguês vai se consolidar e clarificar, com passagem pelas repúblicas marítimas italianas do século XIII, a revolução portuguesa de 1383-85, as guerras hussitas na Boémia (1419-34), a Reforma Protestante, a revolta dos Países Baixos (1581), a revolução inglesa de 1640-60, a independência dos Estados Unidos da América e a grande revolução francesa. Não era de todo um projeto político democrático. As prevenções de Aristóteles contra a democracia continuaram sempre a gozar de grande prestígio. Como exemplo português de um pensador liberal ferreamente antidemocrático podemos citar, entre outros, Alexandre Herculano (15). O regime liberal, idealmente, seria o autogoverno da sociedade civil por intermédio do livre jogo de forças no seu seio, sem qualquer interferência de poderes a ela superimpostos, fossem eles o soberano absoluto ou a mais terrível ainda tirania da plebe. O liberalismo conviveu muito bem, na verdade encorajou e legitimou, a escravatura racializada, o extermínio de populações nativas, a servidão branca, o malthusianismo, o canibalismo social, a mais extrema misantropia (16). Foram os movimentos de consciência que se moviam contra estes fenómenos que se viram taxados de reaccionários e vestígios despóticos do “antigo regime”. Em muitos sentidos, a avançada social e política do liberalismo foi uma implacável máquina de agressão antipopular (17).
A tradição liberal só viria a confluir, de forma parcial e imperfeita, com a democracia, já bem dentro do século XIX norte-americano. Foi aí que se criou o composto sincrético demo-liberal, que se tornaria hegemónico no mundo somente a partir do final da II Guerra Mundial. Com a queda do muro de Berlim a sua hegemonia alargou-se a todo o mundo contemporâneo, a ponto de Francis Fukuyama o ter conspicuamente considerado a estação final da História. A assimilação da democracia por parte da burguesia fez-se à custa da sua rarefação e mutilação (18). Enquanto na democracia clássica grega o cidadão trabalhador era livre, a democracia representativa contemporânea partilha em grande medida o princípio platónico da separação rígida entre classe dirigente e classe trabalhadora. Apesar de se ter paulatinamente chegado ao sufrágio universal (inclusivamente feminino), este rege apenas na esfera política, que é mantida em rigorosa separação e subordinação para com a esfera económica. Nesta última não há democracia, mas sim o absoluto despotismo da propriedade privada e do mercado. O privilégio político foi substituído pela coerção económica. Os cidadãos são, todos eles, formalmente iguais em direitos e deveres, mas esta fachada constitucional reveste e dissimula o mundo da vivência real, no qual a classe proprietária dos meios de produção se apropria da mais valia produzida pela classe que dispõe apenas da liberdade de vender a sua força de trabalho à melhor oferta (se alguma) de forma a poder sobreviver.
Na esfera política, o voto de um explorador vale formalmente tanto como o de um explorado. Mas a igualdade política (isegoria) esfumou-se, quando os mecanismos da representatividade reclamam das classes populares, não o exercício do poder, mas a sua confiança ou alienação ordeira a um pessoal especializado, todo ele (com cambiantes mínimas) fidelizado à classe proprietária. De igual forma, o princípio da soberania coletiva da demos cedeu lugar ao atomismo individualista das escolhas “racionais”. A democracia atual não significa a liberdade do povo em relação a patrões, mas a liberdade dos próprios patrões sancionada pelo consentimento do povo.
Longe de ser o fim da história, a democracia representativa burguesa constitui um estádio de equilíbrio altamente instável. A sua viabilidade depende de forma absoluta da contínua expansão do capitalismo. Quando a atual crise prolongada de lucratividade mostra à saciedade os limites históricos deste sistema social, vemos de forma cada vez mais clara que a democracia está constantemente a ser posta em causa. Estamos perante uma bifurcação histórica. A persistência do capitalismo implicará, sem dúvida, uma continuada rarefação da democracia, até chegarmos à sua completa extinção (um déjá vu). Caminharemos para um mundo cada vez mais rigidamente segregado, possivelmente até à criação, por manipulação genética, de uma nova espécie sobre-humana. A humanidade, como a conhecemos, será confinada, dominada e continuamente explorada em espaços geográficos próprios, em estado de extrema desolação demográfica e ecológica.
A perseverança no projeto democrático, implicará o seu alargamento progressivo à esfera económica, pondo em causa o império da propriedade privada. É o caminho da luta de massas anticapitalista, das organizações populares de base, da resistência ativa de coletivos profissionais e cívicos, do controle operário e dos consumidores sobre a produção, da defesa dos serviços públicos e do domínio público, do apoderamento coletivo sobre os espaços de vizinhança, da criação livre e partilhada, do desenvolvimento em comunhão de novos conceitos e iniciativas.
Antes, porém, de avançarmos para o aprofundamente, alargamento e densificação da democracia representativa, vais ser preciso defendê-la, inclusivamente no seu travejamento mais tipicamente liberal, como os direitos, liberdades e garantias essenciais de cidadania. Tudo isso vai ser - começa já a ser - objeto de assalto por parte da burguesia, cada vez mais forçada a governar em regime de “exceção”, à medida que agudiza a sua ofensiva de classe para preservar as suas margens de lucro. A voragem da globalização sob domínio dos oligopólios mundiais - de que são manifestação os grandes pactos comerciais multilaterais, a sujeição dos Estados a jurisdições arbitrais, a desregulamentação das transações financeiras internacionais, as uniões monetárias, a privatização de serviços públicos e mesmo de bens públicos essenciais, a “independência” dos bancos centrais, a imposição de limites para a política orçamental, etc. - implica uma ofensiva incessante contra a autodeterminação democrática. A democracia formal burguesa está cada vez mais cerceada e sob tutela. O poder efetivo reside nos mercados, esse artefacto ontológico a que os jornalistas chamam a “realidade”. Defender e afirmar a democracia, porém, só é possível participando nela. Sem ilusões, naturalmente, mas também sem prescindir, quer da sua função tribunícia, quer dos seus mecanismos de alternância no poder.
Em articulação com a luta social, a participação nas instituições da democracia respresentativa pode cumprir uma função muito importante. Por seu intermédio podem ser avançadas medidas transitórias de feição tendencialmente anticapitalista, programas mínimos de reforma estrutural que testem os limites de assimilação do sistema vigente. Deste modo pode ser conduzida uma estratégia de atrito permanente que faça avançar, na consciência política das massas, a constatação da necessidade de uma rotura. Para isso, é importante garantir que não haja qualquer solução de continuidade entre a luta por melhores condições de vida para as classes laboriosas e a luta, já mais avançada, pela apropriação e assunção de responsabilidades sobre os meios determinantes de produção e reprodução da vida coletiva. A experiência dos últimos vinte anos na América Latina (que se começa a procurar replicar em alguns países europeus) mostra que isso pode ser tentado com alguns resultados palpáveis. Mas para que esse processo se consolide é necessária nada menos que uma verdadeira refundação constitucional (19). Partindo necessariamente de bases nacionais, este movimento não poderá contudo ficar isolado e circunscrito. Terá de avançar de forma coordenada e envolvente, abrangendo grandes massas continentais potencialmente autosuficientes e, ao menos, alguns dos países capitalistas dominantes.
O chamado neoliberalismo assinala, de novo, um marcado distanciamento em relação à democracia do aparato político de domínio burguês, agora na sua fase declinante. A democracia burguesa será pois o campo onde se vai travar uma luta sem quartel entre as duas tendências (os dois “partidos”) que disputam o caminho para a sua superação. É aí que se vai jogar a morte ou transfiguração da democracia. Teremos uma nova “ditadura terrorista” das classes possidentes (alegadamente excecional mas na verdade permanente) ou a retomada efetiva do significado original da democracia, que é o de ser o regime em que o povo é quem mais ordena.
Se nos arriscássemos, depois de tudo o que atrás expusemos, a avançar um conceito de democracia, não intemporal, mas com uma certa transversalidade histórica, diríamos que esta é o regime político que: 1) proclama o princípio de que cada homem é igual a qualquer outro em dignidade, direitos e voz própria na resolução dos assuntos de interesse coletivo, devendo ter as mesmas oportunidades para desenvolver todas as suas potencialidades pessoais; 2) sem a superar, tempera e regula as arestas mais vivas e arbitrárias da dominação de classe; 3) introduz o princípio de que a exploração de classe, nas suas modalidades e, por fim, na sua própria subsistência, será sujeita ao consentimento dos explorados, que o darão mediante uma avaliação informada do seu interesse concreto, face às circunstâncias históricas que lhes são presentes e às opções por elas permitidas. Onde estas três caraterísticas não estiverem presentes, ao menos tendencialmente, não teremos algo a que possamos chamar democracia, mas sim uma oligarquia maquilhada.
(*) Ângelo Novo (n. 1961) é um pesquisador e ensaísta independente português, editor da revista eletrónica ‘O Comuneiro’. Foi advogado, jornalista, cineclubista e tradutor. Foi ainda redator ou colaborador permanente em diversas revistas culturais, literárias e de intervenção política, designadamente ‘Vértice’, ‘Última Geração’ e ‘Política Operária’. É autor de O estranho caso da morte de Karl Marx, Edições Mortas, Porto, 2000, para além de outras obras publicadas em poesia e ficção. Os seus escritos principais podem ler-se em linha na sua página pessoal na rede.
______________ NOTAS:
(1) V. Gordon Childe, What happened in history, Penguin Books, London, 1982. Este clássico imprescindível teve em Portugal uma única tradução, parcial, hoje esquecida e nunca reeditada: Gordon Childe, O Homem faz-se a si próprio, Edições Cosmos, Lisboa, 1947. Na verdade, este precioso volume é um arranjo autorizado pelo autor a partir de três originais seus – Man makes himself (2ª edição, 1940), What happened in history (1942) e Progress and archeology (1944) – concebido, traduzido e anotado por dois (então) jovens marxistas, Vitorino Magalhães Godinho e Jorge Borges de Macedo.
(2) V. Temma Kaplan, Democracy: A World History, Oxford University Press, Oxford-New York, 2015.
(3) O ponto de partida para este ensaio foi um artigo de Prabhat Patnaik, ‘O Estado e a Esquerda’, que o leitor poderá encontrar neste mesmo número de O Comuneiro.
(4) V. John Keane, Vida e Morte da Democracia, Edições 70, Lisboa, 2009, p. 11.
(5) Foi um banqueiro whig britânico, George Grote, na sua History of Greece, em doze volumes (Londres, 1846-56), que espalhou esta lenda, tremendamente influente ainda hoje, da democracia ateniense como longínquo precedente e farol do liberalismo ocidental.
(6) Em muito do que vamos expor de seguida sobre a Grécia clássica apoiamo-nos sobretudo em Geoffrey E. M. Ste. Croix, The Class Struggle in the Ancient Greek World, Cornell University Press, New York, 1981. Leia-se também, Moses I. Finley, A Economia Antiga, Afrontamento, Porto, 1986 (2ª edição). Estes dois extraordinários classicistas britânicos, declaradamente marxista o primeiro, simpatizante o segundo, mantiveram entre si um cerrado e curiosíssimo despique inteletual.
(7) Cf., por exemplo, Aristóteles, Tratado da Política (2ª edição), Publicações Europa-América, Lisboa, 2000, pp. 89 ss..
(8) Leia-se Ellen Meiksins Wood, Peasant-citizen and slave. The foundations of Athenian democracy, Verso Books, London-New York, 2015.
(9) Lenin, Can the Bolsheviks retain state power?, 1917
(10) Quem quiser saber mais pormenores técnicos sobre o funcionamento da democracia ateniense, com remissão para as fontes primárias disponíveis, pode consultar em linha Demos: Classical Athenian Democracy.
(11) “A constituição que nos rege não tem nada que invejar às dos outros povos; serve-lhes de modelo; não as imita. Ela tomou o nome de Democracia, porque o seu objectivo é a utilidade do maior número e não a de uma minoria. Nos assuntos particulares, todos são iguais perante a lei, mas só àqueles que se distinguem por algum merecimento se tributa consideração. Bem mais que as distinções sociais é o mérito pessoal que abre o caminho das honras. Nenhum cidadão capaz de servir a pátria é impedido de o fazer, pela indigência ou pela obscuridade da sua condição.” Péricles, ‘Um discurso’, Livraria Educação Nacional, Porto, 1941, pp. 11-12. Como se vê bem, trata-se de um programa político da maior atualidade, que ainda hoje está em grande medida por cumprir. Como é bem sabido, os escravos, os estrangeiros e as mulheres estavam excluídos da democracia ateniense. Neste mesmo discurso de Péricles, escontra-se esta passagem da mais extrema misoginia que é possível encontrar, em qualquer época ou lugar do mundo: “Às mulheres (...) Uma só palavra me basta. Que elas ponham todo o seu orgulho em se mostrarem fiéis ao carácter do seu sexo, e em adquirirem, junto dos homens, a menor celebridade possível, quer no bem quer no mal” (pp. 22-23).
(12) Cf. John Keane, ob. cit., p. 84.
(13) Cf. John Keane, ob. cit., p. 199.
(14) Por exemplo, as cortes do reino de Leão, convocadas por Afonso IX a partir de 1188, as cortes do reino de Castela reunidas pela primeira vez em 1211 (Toledo), as cortes portuguesas reunidas pela primeira vez em 1254 (Leiria) no reinado de Afonso III, as cortes do reino de Aragão reunidas pela primeira vez em 1283.
(15) Cf. Joaquim Barradas de Carvalho, As ideias políticas e sociais de Alexandre Herculano, Seara Nova, Lisboa, 1971.
(16) Cf. Domenico Losurdo, Liberalism, a counter-history, Verso Books, London-New York, 2011, uma implacável obra prima de história do pensamento social.
(17) Cf. E. P. Thompson, Costumes em comum, Companhia das Letras, São Paulo, 1998. Para a experiência portuguesa, leia-se José Manuel Tengarrinha, Movimentos populares agrários em Portugal (1751-1825), 2 vols., Publicações Europa-América, Lisboa, 1994 e Maria de Fátima Sá e Melo Ferreira, Rebeldes e Insubmissos. Resistências populares ao liberalismo (1834-1844), Afrontamento, Porto, 2002.
(18) Em muito do que vamos expor neste parágrafo e no próximo baseamo-nos em Ellen Meiksins Wood, Democracy against capitalism. Renewing historical materialism, Verso Books, London-New York, 2016 (1ª edição 1995).
(19) Leia-se Frédéric Lordon, ‘Pela república social’, in Le Monde Diplomatique, edição portuguesa, n.º 113, março de 2016, pp. 19-21.
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