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Anamnesis e Hypomnesis Platão como o primeiro pensador da proletarização
Bernard Stiegler (*)
1. A exteriorização industrial da memória
Todos nós já tivemos a experiência de perder um objecto que funcionava como um suporte de memória – um pedaço de papel, um livro anotado, uma agenda, uma relíquia, um fetiche, etc. Descobrimos, então, que uma parte de nós mesmos (como a nossa memória) existe fora de nós. Esta memória material a que Hegel chamou objectiva (1) (o Espírito Objectivo ou, em melhor português, objectivado) é parcial. Mas constitui a parte mais preciosa da memória humana; aí toma forma a totalidade das obras do Espírito, sob todas as suas formas e aspectos.
Escrever um manuscrito é organizar o pensamento consignando-o externamente, sob a forma de traços, símbolos, onde o pensamento pode realmente refletir-se a si mesmo, materializar-se, tornar-se repetível e transmissível, e fazer-se conhecimento. Esculpir, pintar, desenhar avançar para o exterior, e encontrar a tangibilidade do visível; é ver com as mãos e dar a ver, ser visto de novo: é treinar o olho e, assim, esculpir, pintar e desenhar o nosso olho – é trans-formá-lo. É esse o sentido daquilo a que Joseph Beuys chamou a escultura social.
A memória humana é originariamente exteriorizada e isso significa que é técnica desde o seu começo. Toma forma com o instrumento de pedra, há dois ou três milhões de anos. Suporte espontâneo de memória, o instrumento lítico não é feito, contudo, para armazenar memória: as mnemotécnicas, propriamente ditas só aparecem no paleolítico superior. São os mitogramas da sociedade mágica de que o churinga australiano é testemunho recente, as tatuagens no corpo do feiticeiro, o cordel com nodoso dos índios americanos. A escrita ideogramática só surge no período neolítico, e conduz mais tarde ao alfabeto – que ainda hoje organiza a agenda de todo o burocrata, mas este objecto de calendarização é hoje um dispositivo – o personnal data planner que já não é apenas uma mnemotécnica, mas uma mnemotecnologia.
Originariamente objectivada e exteriorizada, a memória que se expande tecnicamente de forma constante, alargando o conhecimento da humanidade e o seu poder, escapa, contudo, ao seu controlo e ultrapassa-a, pondo em questão tanto a sua organização psíquica, como a social, e isso torna-se particularmente sensível com a passagem das mnemotécnicas às mnemotecnologias.
Hoje, a memória tornou-se o elemento basilar do desenvolvimento industrial e todos os objectos de uso quotidiano são cada vez mais suportes de memória objectivada, e, portanto, formas de conhecimento. Actualmente, estas formas tecnológicas de conhecimento, objectivadas em equipamentos e aparelhos, engendram também, e muito especialmente, uma perda de conhecimento, no preciso momento em que se começa a falar de “sociedades de conhecimento” e “indústrias de conhecimento” e de “capitalismo cognitivo ou cultural”.
Relacionamo-nos de forma constante com aparelhos mnemotecnológicos de todas as espécies, desde a televisão ao telefone, incluindo o computador ou o sistema de orientação GPS. Hoje em dia, estas tecnologias cognitivas, às quais confiamos uma parte cada vez maior das nossas memórias, provocam uma perda de conhecimento cada vez mais acentuada. Perder um telemóvel é perder o rasto dos números de telefone de todos os nossos contactos e compreender que eles já não faziam parte da nossa memória psíquica, mas da memória do nosso equipamento. E aqui devemos inquirir se o desenvolvimento industrial massivo das mnemotecnologias não representa uma perda estrutural da memória, ou, mais precisamente, uma deslocação da nossa memória através da qual ela se torna objecto de controlo de conhecimento que constitui a base mnemotecnológica destas sociedades de controlo que Gilles Deleuze começou a teorizar no termo da sua vida (2). O que está na base desta hipótese é uma das mais antigas questões da filosofia suscitada por Platão, a quem devemos o termo de hypomnésis e que Michel Foucault viria a reactivar, também já no fim da sua vida, como questão dos hypomnémata (3).
Exteriorizamos no equipamento mnemotécnico contemporâneo um número crescente de funções cognitivas e, correlativamente, estamos a perder cada vem mais conhecimentos que delegamos tanto nos nossos aparelhos como também nas indústrias de serviços que os colocam em rede, os controlam, os formalizam, os modelizam e, porventura, destroem – porque os conhecimentos ao escaparem do nosso domínio, induzem uma “obsolescência do homem” (4) que entra cada vez mais em perda, e se torna oco pelo esvaziamento da sua interioridade.
Na medida em que os nossos automóveis melhoram, menos sabemos como conduzi-los – o sistema GPS de assistência ao condutor virá, a breve trecho, a substituí-lo inteiramente: este sistema teleconduzirá o veículo mediante uma condução automática: perderemos o nosso sistema sensório-motor que se formaliza à medida que se automatiza. Quanto mais delegamos a execução de pequenas tarefas que representam o dia-a-dia das nossas vidas, nos aparelhos e equipamentos da moderna indústria de serviços, mais vazios nos tornamos: perdemos não só o nosso “saber fazer” como o nosso “saber como viver”: só nos resta o consumismo cego, uma espécie de impotência, esvaziada destes sabores que só o saber – de sapere – que é o conhecimento pode proporcionar. Se é verdade que só o conhecimento confere poder à humanidade, tornamo-nos impotentes, se não obsoletos.
A economia de serviços que tem por base estas tecnologias através das quais o nosso comportamento é formalizado, formatado e gerido, é característico de uma época hiperindustrial que curiosamente volta a pôr em cena a análise platónica da hypomnésis. Se é verdade que a industrialização, em geral, é a generalização da reprodutividade mnemotécnica do comportamento motor dos produtores, a hiperindustrialização é a generalização da reprodutividade mnemotecnológica do comportamento motor dos consumidores. Tal como o produtor – cuja gesticulação é reproduzida e cujo saber-fazer é transferido para a máquina que o transforma naquilo que se chama um proletário – o consumidor que é espoliado do seu saber-viver (o seu saber-como viver bem), é desindividuado exactamente do mesmo modo: passando a ser uma simples instanciação de seu poder de compra, o que instala o consumismo desenfreado que destrói o mundo insensatamente.
Jacques Derrida, na sua Pharmacie de Platon (5) baseou uma parte substancial do seu projecto de desconstrução da Metafísica na sua leitura do Fedro (6), mostrando como este diálogo contrapõe a hypomnésis sofística à anamnésis filosófica, o que é erróneo, como o mesmo Derrida veio a demonstrar na sua Gramatologia (7); uma lógica que opõe o interior e o exterior é, de facto, equivocada; corresponde a contrapor uma memória viva à memória morta que é o hyponematon a apresentar a memória viva como o que pode ser conhecido. Onde a Metafísica assenta em oposições estáticas, há que rearticular composições dinâmicas: há que pensar em termos de processos. É a esses processos que Derrida chama différance.
Hoje torna-se claro que aquilo que Sócrates descreve no Fedro para dar testemunho de que a exteriorização da memória é uma perda da memória e do conhecimento, é experienciado na nossa vida de todos os dias, em todos os aspectos das nossas existências e cada vez com maior frequência, no nosso sentimento de incapacidade senão de total impotência – no exacto momento em que o extraordinário poder mnésico das redes digitais nos torna mais sensíveis à imensidão da memória humana que parece tornar-se infinitamente reactivável e acessível.
Este aparente paradoxo significa que a questão da hypomnésis é uma questão política e que o que está em jogo é um combate, um combate por uma política da memória e mais precisamente pela constituição de um meio hypomnésico sustentável.
A exteriorização da memória e do conhecimento, uma vez atingida a época hiperindustrial, é, simultaneamente, aquilo que pode permitir a prossecução do seu desenvolvimento, como o que pode favorecer o seu controlo – controlo pelas indústrias culturais e cognitivas no seio destas sociedades de controlo que, hoje, formalizam a actividade neuro-química e as sequências de nucleóticos e, assim, inscrevem os substractos neurobiológicos da memória e do conhecimento numa história do que se tem analisado como um processo de gramatização (8), cujo mais recente estádio é o das biotecnologias e das nanotecnologias que estão na calha, suscitando de uma forma cristalina a questão da biopolítica, da psicopolítica e da tecno-política da memória.
2. A gramatização como “história do suplemento”
A história da memória humana é história desta gramatização.
A exteriorização não é precedida por nenhuma interioridade, mas, pelo contrário, é a exteriorização que constitui o interior como tal, isto é, o configura e o distingue no decurso do que Leroi-Gourhan descreve como um processo de hominização no decurso do qual esta configuração distintiva incessantemente se desloca, instituindo, a cada etapa, novas relações entre os indivíduos psíquicos e colectivos – novos processos de individuação psíquica e social (9), no sentido que Gilbert Simondon confere a estas expressões e quando estipula que a memória é o “meio associado” desta individuação.
Com o advento das mnemotécnicas, o processo de exteriorização que é o devir técnico, concretiza-se como história da gramatização. O processo de gramatização é a história técnica da memória em que a memória hipomnésica relança a constituição da tensão anamnésica da memória. Esta tensão anamnésica exterioriza-se sob a forma das obras do espírito em que se configuram as épocas da individuação psíquico-social; a gramatização é o processo pelo qual as correntes e continuidades que formam as existências são discretizadas: a escrita, como discretização do fluxo do discurso, é um estágio da gramatização.
Com a revolução industrial, o processo de gramatização exorbita subitamente da esfera da linguagem – da esfera do logos – para investir o domínio dos corpos. Em primeiro lugar, o processo discretiza os gestos dos produtores tendo em vista a sua reprodução automática, ao mesmo tempo que fazem a sua aparição os equipamentos mecânicos de reprodutibilidade do visível e do auditivo que tanto impressionaram Benjamin (10), inaugurando a idade dos meios de comunicação da massa.
A gramatização dos gestos, que constitui a base do que Marx descreve como o processo de proletarização, isto é, da perda do saber-fazer que continuará com a aparelhagem electrónica e digital de gramatização de todas as formas de conhecimento, sob a forma das tecnologias e mnemotecnologias cognitivas, como acontece com o conhecimento linguístico apropriado pelas indústrias de processamento da linguagem, até ao saber como viver, ou seja, a totalidade das acções humanas, desde o desenho dos perfis do utilizador até à gramatização dos afectos, que tem conduzido ao capitalismo cognitivo das economias híper-industriais de serviços.
A gramatização é a história da exteriorização da memória em todas as suas formas: memória neuronal e cerebral, linguística, primeiramente visual e depois auditiva, memória corpórea e muscular, biogenética, etc.. Esta memória exteriorizada torna-se objecto de um controlo sociopolítico e biopolítico, através dos investimentos de organizações sociais que reinstrumentalizam a organização psíquica através de órgãos mnemotécnicos, como as máquinas-ferramentas (Adam Smith, em 1776, analisou os efeitos da máquina no espírito dos trabalhadores (11) ) e toda a espécie de autómatos, incluindo os domésticos.
Esta é a razão pela qual o pensamento da gramatização exige uma organologia geral, ou seja, uma teoria da articulação dos orgãos corporais, dos orgãos artificiais e das organizações sociais (12).
A reencenação da questão do Fedro na época do objecto hypomnésico mnemotecnológico e do ponto de vista de uma organologia geral (fundando uma organologia simultaneamente política, económica e estética) reclama a redescoberta de que a questão da hypomnésis representa a primeira versão do pensamento da proletarização, postulando que o proletariado é actor económico sem conhecimento, porque não tem memória: a sua memória foi transferida para a máquina reprodutora dos seus gestos, que o proletário não precisa de conhecer, já que tem simplesmente que servi-la, e da qual se torna servo.
Examinar de novo a questão da memória técnica é reabrir a questão da hypomnésis, como questão da proletarização e do processo de gramatização no seio do qual, actualmente, é o consumidor que é, por seu turno, privado da sua memória e do seu conhecimento: trata-se de examinar um estádio de proletarização geral instaurado pela generalização das tecnologias hipomnésicas. A verdade de Platão vai reencontrar-se em Marx, desde que se extraiam duas conclusões suplementares:
- Marx jamais pensou a natureza hipomnésica da técnica e da existência humana, o que significa não pensou a existência humana como ex-sistência.
- A luta inaugural da filosofia contra a sofística, em torno da questão da memória e da sua tecnização, é o cerne da luta política que é a filosofia, desde tempos imemoriais; a reavaliação do alcance da hypomnésis em Platão, como a sua desconstrução por Derrida, deve tornar-se a base de um renovado projecto político da filosofia, onde o que está fundamentalmente e jogo é a técnica.
3. A filosofia como reacção ao estádio ortotético da gramatização
Se é verdade que a filosofia começa com Platão, ela é, em primeira linha, um combate contra os sofistas, em torno da questão da memória como mnemotécnica (a hypomnésis, mas também a retórica e as tecnologias linguísticas baseadas na logografia). A primeira questão da filosofia é a memória, ou seja, a épisteme, concebida como anamnésis; e é a época da gramatização que provoca esta questão na filosofia; esta constitui-se como a afirmação da anamnésis como reacção contra a prática sofística desta hypomnésis que é a escrita, definida como tecnicização da memória linguística e, como tal, um falso conhecimento (Górgias (13) ), dado que a técnica é, em geral, apreendida pela filosofia platónica, como um pseudoconhecimento (que só dá conta do devir contingente, sensível e acidental) e o verdadeiro conhecimento é o conhecimento do que é necessário, ou seja das essências inteligíveis do Ser imutável.
A gramatização é impensável no contexto destes pares concebidos por Platão com base na oposição entre anamnésis e hypomnésis, que o leva a a opor 1) o Ser ao Devir e 2) a alma ao corpo 3) o inteligível e a alma imortal, ao sensível do corpo mortal, que é também a sede das paixões e da queda, tudo redundando 4) na oposição do logos e da tekhné.
Opor a memória psíquica (viva) à memória técnica (morta) é tentar impor toda esta série de oposições. Em contraposição, repensar a memória como um processo de gramatização, onde o vivo e o morto incessantemente se compõem, é procurar sair do jogo destes pares de oposições. A arqueologia e a paleontologia humanas oferecem, hoje, uma via de resposta à oposição platónica da anamnésis e da hypomnésis, com uma teoria da memória que afirma que a tecnicidade é constitutiva da vida como ex-sistência, ou seja, como desejo e como conhecimento: isto possibilita pensar o processo de hominização como o aparecimento de uma memória epifilogenética de natureza tanto anamnésica como hypomnésica.
A questão da filosofia é a do amor pelo saber. Ora, esse amor pelo saber constitui-se na prova de um saber perdido. Esse saber perdido faz do saber um objecto do desejo, do philein como do eros, e todo o objecto do desejo é um objecto de antemão perdido: só é desejado enquanto fizer falta. Esse saber é perdido pela memória: a questão da memória apresenta-se pela primeira vez na filosofia de Platão em Ménon.
É aí que o saber é definido como reminiscência, como recordação. A relembrança aí surge como o fruto da dialéctica, ela própria uma actividade do pensamento, à qual Fedro opõe os artifícios da hypomnésis, que aí se tornam, qual corpo técnico, a própria queda. Retomando, com o mito da alma alada, o tema que Ménon declinava com o mito de Perséfone, Fedro ensina-nos através dele que se trata de um saber que foi esquecido devido a essa mesma queda. A questão amorosa da filosofia é a de um esquecimento tal que fica por cumprir uma anamnese, mas que deve ser distinguida da hipomnese dos sofistas: a memória do verdadeiro (da ideia) foi originariamente perdida, há, na origem, uma falta de origem, mas essa origem não é a origem verdadeira, não é senão aquilo que Platão define como queda, prefigurando assim a versão monoteísta da falta de memória como desobediência e falha, isto é, como pecado original. Esta queda faz tombar a alma na técnica que a encarcera dentro do corpo e, como paixão que esta memória artificial desencadeia (pela qual os sofistas produzem o pithanon, a persuasão e as crenças falsas – esquema que se irá repetir em Rousseau), a hypomnésis é a técnica em geral oposta à anamnésis como a alma se opõe ao corpo, e é isto que constitui a cena de Górgias.
Neste diálogo, a filosofia define-se contra esses sofistas que pretendem saber tudo através das técnicas (enquanto «polímatos») como amor por um saber perdido que o irredutível não-saber de Sócrates exprime – algo que a dogmatização do socratismo por parte de Platão tenderá progressivamente a esbater. Ora, o que constitui a questão filosófica, o objecto do seu desejo – o saber, épisteme, ou a verdade, aletheia – é, precisamente, uma questão do desejo (philein, philia, elo social na individuação, chamado justiça, o Um que o ser constitui, etc.) mas de modo a que esse desejo seja constituído pela sua tecnicidade, quando essa própria tecnicidade, cuja versão sofística causa problema na Atenas do século V, é recalcada pela filosofia. É este nó problemático que a oposição entre anamnese e hipomnese traduz, e é aquilo que constitui a filosofia como metafísica que nesta medida se trata de desconstruir.
À queda, logo, à falha, ao pecado original pelo qual Platão pensa a falta de origem que precederia uma origem plena, uma interioridade, uma alma imortal, em suma, à oposição platónica entre anamnese e hipomnese, a arqueologia e a paleontologia humanas permitem responder com uma teoria da memória onde a tecnicidade aparece como aquilo que constitui a vida como ex-sistência, isto é, como desejo e como saber: é o que permite caracterizar a hominização pelo aparecimento de uma memória epifilogenética.
O sinantropos, descoberto em 1959, é um austrolantropiteco que data de um milhão e setecentos e cinquenta mil anos – e cujos mais antigos ascendentes remontam a 3,6 milhões de anos. O seu peso é de cerca de 30 quilos; é um verdadeiro bípede que tem um orifício occipital perfeitamente perpendicular ao topo da sua caixa craniana; libertou as pernas para a motricidade e libertou os membros superiores para o destinar ao fabrico de utensílios, e para a expressão, isto é, para a exteriorização. O seu esqueleto foi encontrado, junto com os seus instrumentos, na ravina de Olduvai. Com base nestes factos, Leroi-Gourhan mostrou que aquilo que caracteriza a humanidade do humano e representa uma descontinuidade na história da vida, é o processo de exteriorização da vida. O que fazia parte da história da vida animal, com as suas condições de predação e defesa, passa para além do domínio do vivo: a luta pela vida – ou melhor, pela existência – já não pode ser acantonada no cenário darwiniano. Os humanos conduzem esta luta, que pode dizer-se, por natureza, espiritual, através de orgãos não-biológicos, ou seja, através dos orgãos artificiais que são as técnicas.
A vida já não é simplesmente biológica: é uma existência, uma economia técnica do desejo (14) sustentada por meios hipomnésicos que são igualmente meios simbólicos, onde as pulsões são submetidas a um princípio de realidade, ou seja, o diferimento da sua satisfação, o que forma uma economia libidinal onde a energia das pulsões é transformada, e se converte em desejo e em sublimação.
A memória técnica sustenta esta economia alucinatória através do objecto epifilogenético, como fetiche e como reflexo do narcisismo primordial. Freud cuja teoria do inconsciente é uma teoria da memória e da sua repressão, é constantemente assombrado por esta questão sem ser capaz de formalizá-la, o que o conduziu a um neo-lamarckismo (15).
Devemos a Leroi-Gourhan a tese que a técnica é um vector da memória (16). Desde o Australantropus até ao Neandertal tem lugar uma diferenciação biológica do córtex cerebral que se chama a abertura do leque cortical. A partir do Neandertal, o sistema cortical representa praticamente o termo da evolução biológica: o equipamento cerebral do Neandertal é muito semelhante ao nosso. Mas, desde o Neandertal até hoje, o sistema técnico desenvolveu-se de forma extraordinária; isso significa que a evolução técnica deixa de depender da evolução biológica. O espaço da diferenciação técnica está fora da dimensão biológica, ou seja, fora deste “meio interior” onde se debatem, de acordo com Claude Bernard, os elementos constitutivos do organismo. O processo de exteriorização é, sob este prisma, a constituição de um terceiro nível da memória.
No âmbito do neodarwinismo, que partiu da biologia molecular, sustenta-se hoje, na senda da investigação conduzida por Weissman (17), que os seres vivos sexuados detêm duas memórias: a memória da espécie, o genoma, a que Weissmann chama o germe, e a memória individual somática, sediada no sistema nervoso central e onde se localiza a memória da experiência. Esta memória existe desde as limneas do Lago Lemam estudadas por Jean Piaget (18) até a todo o conjunto dos amimais invertebrados e vertebrados, incluindo o chimpanzé e o homem.
Mas a humanidade tem acesso a uma terceira memória suportada e constituída pela técnica. Um seixo moldado a partir a matéria inorgânica exibe uma matéria inorgânica organizada: o gesto técnico engrama uma organização que é transmitida por via do inorgânico, introduzindo pela primeira vez na história da vida, a possibilidade de transmitir um conhecimento adquirido individualmente, mas de uma forma não biológica. Esta memória técnica é epifilogenética: é simultaneamente o produto da experiência epigenética individual e o suporte filogenético da acumulação do conhecimento que constitui o phylum inter-geracional (19).
É porque o seu conhecimento é função desta exterioridade primordial da memória que o jovem escravo de Meno (20) faz um desenho na areia para encontrar o seu objecto geométrico: para pensar este objecto, tem que exteriorizá-lo organizando a inorganicidade da areia que, ao mesmo tempo a torna uma superfície plástica capaz de receber e conservar uma inscrição, o espaço de inscrição de um conceito geométrico. Por mais móvel que seja, o desenho na areia pode conservar mais duradouramente do que o espírito do escravo, o elemento característico da figura, já que o espírito é essencialmente fluído: os seus pensamentos passam e apagam-se porque a sua retencionalidade é finita. A memória desvia constantemente a atenção, é atraída por outros objectos, e tem dificuldade de intencionar o objecto geométrico - de tomá-lo na perspectiva da sua identidade orgânica, da sua necessidade, do seu eidos.
O desenho, como memória hipomnésica, é, pois, indispensável a este filósofo potencial, o jovem escravo, para a sua passagem ao acto, a passagem da dinamis à energeia ou enteléquia, isto é, à sua anamnésis: o desenho constitui um condensado de compreensão, um espaço de intuição inteiramente produzido pelos gestos do escravo que desenha na areia, a cada passo do seu raciocínio, figurando os efeitos que a areia retém e lhe permitem a prova geométrica. A oposição platónica do inteligível e do sensível, a oposição entre logos e tekhné, torna isto literalmente incompreensível e nos diálogos que se seguem ao Menon, a Metafísica constitui-se como denegação da tecnicidade originária da memória.
No devir do processo de gramatização, é a epifilogénese que engendra as mnemotécnicas que, com o advento da revolução industrial engendrará as mnemotecnologias, que, hoje em dia, se desdobram em microtecnologias, biotecnologias e nanotecnologias.
4. A transindividuação como o desafio da questão filosófica da memória
Todas as questões filosóficas são questões de transindividuação. A transindividuação é o resultado do processo de co-individuação dos indivíduos psíquicos no seio do indivíduo colectivo que os reúne como grupo humano – processo que não para de colocar e individuar a questão do Um e do Múltiplo (21). Ora, a individuação é uma operação de memorização psíquica e colectiva onde a transindividuação é a meta-estabilização de significações. E a transindividuação é, aquilo que, por intermédio dos indivíduos psíquicos, individuados psíquica e colectivamente, a partir de fundos pré-individuais constituídos e suportados por formas hipomnésicas (22) a meta-estabiliza a sincronia do nós, colectivo pelo concurso das diacronias dos egos singulares.
Postulemos que o indivíduo psíquico é um eu e que o indivíduo colectivo é um nós. O eu não pode ser pensado senão enquanto fazendo parte de um nós: constitui-se ao adoptar uma história colectiva que herda e na qual uma pluralidade de eus se reconhece.
Esta herança é uma adopção, no sentido em que posso, perfeitamente, enquanto neto de um emigrado alemão, reconhecer-me num passado que não foi o dos meus antepassados e que posso, no entanto, tornar meu enquanto francês: esse processo de adopção é estruturalmente factício, é uma memória intrinsecamente artificial (23).
Ora, esta artificialidade, que é um defeito de origem, é também aquilo que abre o jogo do ego, essencialmente enquanto processo e não como estádio: esse processo é uma in-dividuação enquanto tendência a tornar-se-um, isto é, in-divisível, tendência que nunca se concretiza (o que Kant questiona nos Paralogismos da Crítica da Razão Pura) porque depara – enquanto sistema aberto, neguentrópico e dinâmico – com uma contra-tendência com a qual forma um equilíbrio meta-estável: um equilíbrio no limite do desequilíbrio, num meio mnésico pré-individual onde o eu se co-individua num nós.
Isto só é possível porque este nós é igualmente um processo: a individuação do eu está sempre processualmente inscrita na do nós, enquanto, inversamente, a individuação do nós só se cumpre através das individuações – processualmente polémicas – dos eus que o compõem. O que liga o eu e o nós na individuação é o meio pré-individual, de acordo com as suas condições positivas de efectividade, dependendo de dispositivos retencionais pelos quais se forma como meio mnésico. Estes dispositivos retencionais são apoiados pelo meio técnico que é a condição do encontro entre o eu e o nós: a individuação do eu e do nós é igualmente, neste sentido, a individuação de um sistema técnico (o que Simondon, estranhamente, não viu). O sistema técnico é um dispositivo que goza de um papel específico (no qual todo o objecto é tomado: um objecto técnico só existe agenciado, no seio de um tal dispositivo, com outros objectos técnicos – é aquilo que Simondon designa por conjunto técnico). A espingarda e, de modo mais geral, o devir-técnico com o qual constitui sistema, são assim, em Foucault, a possibilidade de constituição de uma sociedade disciplinar (24).
O sistema técnico é aquilo que sustenta a possibilidade de constituição dos dispositivos retencionais que são eles mesmos oriundos do processo de gramatização: este desdobra-se no seio do processo de individuação do sistema técnico. Os dispositivos retencionais dos meios mnésicos engendrados por cada novo estádio da gramatização são aquilo que condiciona os agenciamentos entre o indivíduo do eu e o indivíduo do nós num mesmo processo de individuação psíquica, colectiva e técnica (ou seja, mnésica, e onde a gramatização é um subsistema da técnica) (25), um processo que comporta assim três ramais, e onde cada ramal se divide ele próprio em subconjuntos processuais (por exemplo, o sistema técnico, ao individuar-se, individua também os seus sistemas mnemotécnicos ou mnemotecnológicos onde bifurcam os estádios da gramatização, etc.).
Antes mesmo da filosofia (chegada tardiamente), o que se coloca aos primeiros pensadores pré-socráticos (ao mesmo tempo geómetras, fisiólogos, poetas, legisladores e nomótetas) é a questão daquilo que articula o Múltiplo, constituído pela multidão dos cidadãos, dos «eus», com o Um – que se chama água (Tales) ou ser (Parménides) – que funda o «nós» até ao seu horizonte mais vasto: como universal.
A questão política assim formada é a das condições da meta estabilização das leis jurídicas, mas também epistémicas, enquanto horizonte comum, isto é, transindividual, das significações oriundas da individuação psicossocial e que os filósofos pensam como eidè, idealidades. Ora, o início do pensamento pré-socrático é o aparecimento deste pensamento do Um e do Múltiplo no momento em que a gramatização que conduziu à alfabetização abre a krisis da qual surge esse novo processo de individuação psíquica e colectiva que é a pólis - que substitui a sociedade basílica do «preste-rei». De Tales a Platão, esta krisis inaugura a era do pensamento crítico, ou seja, também, político, e como processo de individuação psicossocial: como processo no qual o cidadão se distingue do grupo, mas inventa esse grupo como estruturalmente incumprido e em devir, precisamente através dessa distinção onde ele se destaca como singularidade de direito. Este pensamento político-filosófico do Um e do Múltiplo é o pensamento da transindividuação enquanto tal – e, a partir de Platão que assim funda a metafísica, como mnémè atravessada pela tekhnè, isto é, ao mesmo tempo como anamnésis e hipomnésis.
A questão filosófica – passando pela krisis sofística e saindo assim da época pré-socrática – consiste então em saber em que condições é possível transindividuar na facticidade. E a transindividuação é a questão do espírito tal como se irá tornar princípio de unidade no monoteísmo cristão.
Quando o Um se torna Ser, este divide-se em regiões que constituem disciplinas: os saberes fundados nas «ontologias regionais», para falar como Husserl. Estes definem o que se transindividua entre o psíquico e o colectivo e a legalidade dessa transindividuação de acordo com esses regimes de individuação que formam também paridades (colectivos de pensamento e nós transcendentais, para falar ainda com Husserl). Estas ontologias regionais estão elas próprias de acordo com as regras fundamentais da transindividuação definida pela ontologia formal da lógica e / ou da metafísica, sendo esta, por sua vez, enquanto meta-transindividuação, aquilo que resulta da individuação filosófica. Estas operações urdem a história da metafísica, tal como foi diversamente desconstruída desde Marx até ao pensamento da gramatologia, passando por Freud. Mas para além desta desconstrução, e aquém dela (como na era pré-socrática), a questão da individuação permanece fundamental, e a da transindividuação na tensão anamnésica do Um e do Múltiplo permanece o objecto da filosofia propriamente (26). É por isso que a filosofia não acabou.
6. A transindividuação como retenção
A transindividuação como actividade da memória enquanto agir psicossocial revela que qualquer questão em torno da memória é uma questão de selecção, e, inversamente, que qualquer questão de selecção é uma questão de memória. A partir do momento em que selecciono (isto é, por exemplo, assim que falo e que calo aquilo de que não falo), estou a constituir uma memória, ou seja, transindividuo ou participo num processo de transindividuação. Para pensar esta selecção é necessário passar pela fenomenologia husserliana do objecto temporal (zeitobjekt) e criticá-la lá onde transparece que a transindividuação na qual o psíquico e o colectivo se conjugam, relação com as condições organológicas de retenções terciárias formadas pelos suportes hipomnésicos dos meios pré-individuais. A epifilogénese é o processo de produção dessas retenções terciárias hipommnésicas que suportam as retenções primárias e secundárias definidas por Husserl e que formam a urdidura da vida anamnésica. A retenção primária, e a sua distinção da retenção secundária, é aquilo que Husserl retira de uma análise fenomenológica da melodia. No «agora» de uma melodia, ou seja, no momento presente de um objecto musical que se escuta, a nota que está presente não pode ser uma nota, e não apenas um som, senão na medida em que retém em si a nota precedente, que aí permanece presente, nota precedente ainda presente que por sua vez, retém em si aquela que a precede, etc.. E não se deve confundir esta retenção primária, que pertence ao presente da percepção, com a retenção secundária, que é a melodia que posso, por exemplo, ter ouvido ontem, que posso tornar a ouvir na imaginação pelo jogo da relembrança, e que constitui o passado da minha consciência. Não se deve confundir, diz Husserl, percepção (retenção primária) com imaginação (retenção secundária). Mas existe uma terceira espécie de retenção que é hipomnésica: assim, antes da invenção do fonógrafo era absolutamente impossível ouvir duas vezes de seguida a mesma melodia. Ora, desde o aparecimento do fonograma, que é um caso de retenção terciária e um estádio da gramatização, ou seja, uma época do suplemento, a idêntica repetição de um mesmo objecto temporal tornou-se possível, o que permite, aliás, compreender melhor os processos retentivos. Porque o que aparece aqui como resultado é que:·Quando o mesmo objecto temporal se produz duas vezes de seguida, engendra dois fenómenos temporais diferentes, o que significa que as retenções primárias variam de um fenómeno para o outro: as retenções da primeira audição, tornadas secundárias, desempenham um papel de selecção nas retenções primárias da segunda audição – isto é verdade em geral, mas a retenção terciária que é o fonograma torna-o evidente. A repetição hipomnésica produz uma diferença.
Por outro lado, os objectos temporais terciarizados (fonograma, filmes, emissões de rádio e de televisão), gravados ou teledifundidos e, nessa medida, controlados, são tempo materializado que sobredetermina as relações entre retenções primárias e secundárias em geral e permitem, assim sendo, controlá-las. A diferença tanto pode então ser intensificada pela repetição terciária como anulada por ela: a repetição pode gerar indiferença. Ora, o jogo das retenções primárias e secundárias, enquanto é o jogo, anamnésico, de uma selecção – mas tal que se revela ser sobre determinada pelas retenções terciárias hipommnésicas – é aquilo que constitui a realidade concreta de toda a operação de transindividuação (27).
E o pensamento da retenção terciária, na medida em que as suas épocas constituem uma história do suplemento como gramatização, decorre da organologia geral onde a história do suplemento só é pensável na sua tripla dimensão fisiológica, técnica e social (28).
Em termos de filosofia política, a questão está em descrever e criticar (de discernir krinein) os processos concretos de transindividuação. Por exemplo, o jurídico é um processo concreto de transindividuação – concreto significa que ele pertence a uma época da gramatização que o sobredetermina. Produzir uma lei é transindividuar literalmente – e a operacionalidade recente das gravações da imagem animada e sonora nas instituições judiciárias levanta novas questões de transindividuação jurídica.
Esta transindividuação é feita de acordo com leis elas próprias constitucionais, no sentido filosófico, isto é, constituídas por uma lógica transcendental, e a filosofia política consiste em descrever as legalidades que permitem a transindividuação do jurídico a partir desta constituição que também condiciona a matemática, etc.. Ora, levar em conta a hipomnese na formação da anamnese torna impossível e caduca uma tal compreensão transcendental, isto é, a priori, da constituição. E não é por simples coincidência que a filosofia, enquanto «rainha das ciências», entra em crise no momento em que surgem novos estádios da gramatização, que não são já unicamente os das letras.
Em termos de filosofia política, a questão consiste em saber quem se apropria e quem controla os processos de transindividuação que poderiam ser ditos meta-transindividuantes e que permitem controlar as meta-transformações socioeconómicas e sociopolíticas através das hypomneses próprias a cada época da gramatização – estando as meta-transindividuações sobre determinadas pelas características técnicas e tecnológicas das retenções terciárias. Dito de outra forma, o e da individuação psíquica e colectiva, onde se formam as condições da transindividuação, é a técnica – e é, precisamente, aquilo que a filosofia tinha até agora excluído. É por isso que se deve constituir um novo horizonte filosófico onde a tecnicidade esteja no seio da transindividuação.
Esse caminho que passa pela desconstrução não se detém nela: esta só não é um beco sem saída, sob a condição de se fazer dela uma história técnica do suplemento concebido como retenção terciária no processo de individuação de uma organologia geral (29).
7. A Memória epifilogenética
Se a técnica, em geral, constitui para a humanidade o meio originário da memória epifilogenética, nem todas as técnicas têm por finalidade a conservação de traços mnésicos. Um sílex moldado é feito para cortar a carne ou trabalhar a matéria; acontece simplesmente que, por acréscimo e espontaneamente, ele seja também um vector de memória. No entanto, é apenas no decurso do paleolítico superior que as mais antigas mnemotecnologias, no sentido estricto do termo, fazem a sua aparição no repertório epifilogenético: sob forma de mitogramas, suportes de narrativas rituais, mas igualmente como tatuagens nos corpos dos feiticeiros ou como os primeiros instrumentos de cálculo. E é só na época do Neolítico as condições propícias ao aparecimento da gramatização como hypomnésis conduzem à escrita alfabética por transformação dos sistemas ideográficos de numeração e inscrição da memória social dos grandes Impérios nascidos invenção da agricultura e da sedentariedade.
Foi a alfabetização que constitui, em sentido estricto, a cidade-estado Grega, como comunidade onde se consolida o conhecimento crítico das regras da sua vida, na medida em que foram exteriorizadas e objectivadas na forma de um texto escrito, acessível a todos os cidadãos, formando, assim, o meio político como memória colectiva, o que significa, ao mesmo tempo, o nascimento da sociedade histórica.
O alfabeto é o sistema diacrítico de sinais de menos de trinta caracteres diferenciados que podem ser usados por qualquer cidadão, tanto no papel de leitor como de escritor, abrindo a possibilidade de um acesso literal ao que acontece da história das sociedades e do pensamento. Ainda hoje, ler o Menon, na língua grega da época de Platão, é ter um acesso directo ao seu pensamento: o leitor não tem a impressão de ler uma imagem vaga daquilo que Platão pensou; o livro coloca-o numa relação imediata com o que Platão pensou; a hypomnésis literal constitui aqui o elemento do pensamento de Platão e, mais genericamente, do Ocidente como organização alfabética do acesso à memória; foi esta a conclusão a que chegou Husserl no final dos seus dias (30).
O alfabeto é a primeira mnemotécnica que é ortotética por natureza. Ortotès significa exactidão e thesis significa posição: o alfabeto é ortotético na medida em que formata, em modo espacial exacto, o discurso oral que formaliza. A escrita alfabética é a síntese literal da memória linguística e configura-a na sua temporalidade histórica.
O aparecimento da imprensa, no final do século XV, como a primeira técnica mecânica de reprodução, vem ampliar e transformar os efeitos da síntese literal: a súbita acumulação de livros, cria rapidamente a necessidade de uma assistência ao leitor e surgem os primeiros sistemas de ajuda à leitura, com os primeiros instrumentos de orientação e acumulação de conhecimentos: catálogos de biblioteca, índices, bibliografias, arquivos que os livros impressos tornam possíveis por reenvio à paginação, resumos, tábuas de conteúdo e glossários. Um processo de orientação da leitura toma forma através de implementação de técnicas que, hoje, desembocaram nos suportes editoriais electrónicos e sistemas RAO. Com o desenvolvimento das técnicas de processamento da informação, virá a tomar forma uma verdadeira automatização da memória, anunciando o processo de exteriorização das funções do córtex cerebral, mais globalmente de todo o sistema nervoso. A invenção da imprensa teve por consequência política a aparição da Reforma (como foi demonstrado por Elisabeth Eisenstein (31) ) pela possibilidade alargada a toda a gente de ter acesso à Bíblia traduzida por Lutero, para a língua alemã. Max Weber mostrou também como a circulação do material impresso foi o que permitiu, pela generalização da prática calculatória e da circulação dos registos, o advento do capitalismo (32).
O século XIX assistiu ao advento das mnemotécnicas ortotéticas que permitiram a sintetização da percepção visual e auditiva: tal como o alfabeto, a fotografia a fonografia conservam e transmitem, com exactidão, elementos do passado, desta feita através do registo gravado das frequências da luz e do som emitidas por um objecto percepcionável, por via de um aparelho hypomnésico. Tal como não posso duvidar de que posso aceder ao pensamento de Platão, quando leio o Fedro, quando oiço uma gravação da voz da Sara Bernhard a minha emoção advém do facto de que não oiço uma imagem do que pode ter disso a sua voz, mas a sua própria voz. O mesmo de passa quando olha para o rosto de Baudelaire fotografado por Nadar.
Estas novas ortóteses que podem reconstruir muito mais níveis do passado do que os que podem ser reconstituídos por um livro – assumem a função mnésica atribuída à escultura, à pintura ou à arquitectura monumental e as artes da memória estudadas por Frances Yates (33) - e desenvolvem-se, sobretudo, no século XX, com o cinema, a radiofonia e a televisão: foi o nascimento daquilo a que Adorno chamou as indústrias culturais (34).
Com a difusão de objectos audiovisuais que escorrem, perante os nossos sentidos, em estricta coincidência com o tempo do fluxo da nossa consciência a que se dirigem, e dado que estas consciências formam as massas que se chamam audiências, as indústrias culturais têm a capacidade de condicionar o fluxo dos tempos de consciência, e a adopção de novos comportamentos: por exemplo comportamentos favoráveis ao consumo dos produtos que o processo de inovação permanente (o princípio reitor de toda a produção industrial) lança constantemente no mercado global.
Técnicas ortotéticas análogas criaram a possibilidade de uma verdadeira indústria audiovisual de objectos temporais que favorecem uma canalização massiva da atenção e constituem, por isso, uma temível tecnologia ao serviço do poder económico e político: trata-se de um psico-poder que alarga exponencialmente o alcance do biopoder das sociedades disciplinares estudadas por Michel Foucault, e instituem um novo estádio de gramatização que equivale, para Adorno, a uma regressão social massiva.
Porque, diferentemente do que se passa na síntese literal, onde escritor e leitor codificam e descodificam o mesmo registo ortotético, e onde cada leitor pode ser, potencialmente, um escritor, o que constitui um palco, ou uma cena, onde a anamnésis e a hypomnésis podem compor-se, pois não é possível, na síntese literal, ser um leitor, sem ser capaz de escrever (não necessariamente como um escritor) é, pelo contrário, perfeitamente possível receber uma mensagem audiovisual sem ter a capacidade de a produzir por si. Vemos aqui, com toda a clareza, que a memória humana, tanto psíquica como social, é sempre uma competência técnica.
Desde o início do século XIX, a indústria projectou, desde logo, a instalação de uma sociedade de consumo, por forma a amortizar os pesados investimentos exigidos pelo desenvolvimento do maquinismo. O problema é o de que a sociedade não está espontaneamente preparada para absorver esta produção em escala industrial. A sociedade industrial pressupõe a modificação permanente do comportamento dos indivíduos que são cada vez menos cidadãos e cada vez mais consumidores – uma vez qua a mercadoria se tornou o principal meio de socialização dos indivíduos – e é, sob este aspecto, que os meios de comunicação de massa são essências para o funcionamento das democracias industriais (35).
Ernest Renan mostrou que todas as sociedades se fundam num processo de adopção de um passado fictício que, deste modo, apaga as diferenças de origem dos indivíduos e permite a identificação de um futuro comum, através de uma política de memória e de esquecimento (36), onde a escola, como instituição de adopção de programas comportamentais, através do conhecimento obtido pela síntese literal, é o eixo – uma noção política estudada também por Pierre Nora, como história da constituição dos lugares da memória. É este processo de adopção que é radicalmente transformado pelo psico-poder desenvolvido pela sociedade industrial através dos seus meios de comunicação analógicos: as indústrias de programa tendem a substituir as instituições de programa: escolas de gramática, liceus e universidades.
Nos nossos dias, toda esta aparelhagem está a ser desenvolvida no sentido da convergência das tecnologias analógicas de comunicação e as tecnologias digitais das indústrias da informação. Foi no decurso do século XX que a síntese ortotética digital fez a sua aparição, primeiramente sob a forma do processamento da informação, e, no início do século XXI, sob a forma de aparelhagem de todas as espécies: câmaras de vídeo, telefones móveis, gravadores, etc.. As tecnologias digitais provieram das indústrias da informação que nasceram quando, num mundo em constante mudança, a informação se tornou uma mercadoria estratégica que permite uma orientação nesta situação instável, constituindo, sob este aspecto, uma nova cardinalidade.
8. Memória e informação
A economia industrial da informação tornou-se uma realidade a partir do começo do século XIX. Louis Havas prefigurou o dispositivo industrial da sua exploração ao criar, em 1834, a primeira agência de informação da história, que viria a explorar a rede telegráfica assim que fosse completada a sua instalação. A informação é tratada essencialmente como uma mercadoria que correlaciona o tempo e o valor e, assim, perturba o tempo histórico. As redes de acontecimentos correntes (a actualidade) são elementos do vasto dispositivo através do qual a produção mercantil da memória se torna global e quotidiana, e logo depois ininterrupta - em tempo real – funcionando à velocidade da luz, já que os acontecimentos e as informações são mercadorias cujos valores decaem com tempo e é por essa razão que a informação não é conhecimento (o valor do conhecimento, pelo contrário, é constante e aumenta com o tempo). As indústrias da comunicação desenvolvem-se em combinação com as indústrias da informação. As redes de comunicação de massa implicam uma grande concentração de meios de produção: os custos da imagem televisiva exigem uma difusão por milhões de espectadores. Um pequeno número de imagens televisivas de eventos correntes é oferecido pela totalidade das redes globais produzindo a matéria-prima da memória feita pela seleção do que se considera actual. Desta dimensão global em seleção conjunta e transmitida à velocidade da luz resulta a fabricação industrial do presente: um acontecimento tem lugar apenas quando é “coberto”; mesmo quando não pode ser reduzido ao puro artifício, o tempo industrial é sempre coproduzido pelos meios de comunicação de massa. A “cobertura” segue critérios que reúnem os acontecimentos em pacotes com a finalidade de produzir uma mais-valia. Estamos perante uma máquina de produzir ideias-feitas (clichés) (37). A informação tem que ser “fresca” (38) e isso explica a razão pela qual o ideal de todos os orgãos de notícias é a eliminação das transmissões em diferido.
A informação é transmitida à velocidade da luz, ou seja, imediatamente, o que é tornado possível pelas ortóteses analógicas e digitais – contrariamente à ortótese literal que implicava um diferimento essencial entre aquilo que pode chamar-se um evento, por um lado, e a sua apreensão pela leitura, por outro. Mas, por esta apreensão pelos meios de comunicação e o seu processamento que o evento, analógica ou digitalmente informado, é submetido à lógica do tempo-luz. O acesso às redes-vectores da memória industrial requer a existência de orgãos de entrada e de saída, também chamados interfaces ou terminais: os rápidos avanços da fotografia conduziram rapidamente à belinografia e depois à cinematografia e logo as seguir à transmissão de imagens em directo paralelamente à transmissão telefónica e radiofónica. Se as redes do tempo-luz eliminam o intervalo entre a apreensão do evento e a sua recepção pela redução infinitesimal, do tempo da sua transmissão, esta instrumentação elimina, por completo, a distância entre o evento e sua apreensão.
Esta conjunção, por um lado, da apreensão real (a presença) pela coincidência temporal do acontecimento e a sua apreensão, e, por outro, o directo da transmissão, inauguram una nova experiência, individual e colectiva do tempo que é como que uma saída de uma época propriamente histórica, dada que uma época histórica é definida essencialmente pelo diferimento do tempo, isto é opor uma oposição constitutiva e principial entre a narrativa e aquilo que é narrado. Assim, Pierre Nora pôde escrever “uma imensa promoção da imediatidade a um estatuto histórico” (39) resulta da velocidade da transmissão analógica e digital.
A alunagem dos astronautas foi o modelo do evento moderno. O que lhe é específico é o facto de ter lugar numa cena imediatamente pública sempre acompanhada por um espectador repórter ou um repórter espectador, para ser visto em acto, e este “voyeurismo” é que confere ao acontecimento a sua especificidade e o seu sabor histórico.
No domínio da escrita, o medium da História, a regra é a de que o evento preceda a sua apreensão e que esta preceda a sua recepção pelo leitor. Isso corresponde à configuração do passado, ou seja, o tempo presente – como a retroactividade de um defeito original, de um diferimento da narrativa e da recepção do que acontece que só nesta sua recepção diferida se constitui. O tempo do relato, da narrativa, é sempre desfasado em relação ao que é contado ou recitado.
A quotidiana fabricação industrial do tempo por uma agência de informação não é um simples relato das notícias: as indústrias dos acontecimentos correntes não se contentam em dar conta “do que acontece” porque, em tal caso, tudo o que acontece teria que ser relatado. O que acontece, acontece apenas por não ser tudo, por se distinguir do resto e a informação tem valor apenas em função de uma hierarquização do que acontece: selecionando o que merece o nome de acontecimento; estas indústrias, pelo menos, coproduzem o acesso do que acontece ao estatuto de evento. Só aquilo que é “coberto” toma o lugar de evento. Isto é a espoliação da memória em geral como selecção do presente que passa e este seu passar, é a sua diminuição. Este é o tema do Funes, o memorioso, de Jorge Luís Borges (40). Mas aqui, o critério de selecção torna-se industrial, e a selecção é feita em tempo real e não através do trabalho do tempo que é a História, como History e como Geschichte.
A conservação da memória, do memorável (a selecção do interior do memorável que é a sua retenção constitui-o como tal) é sempre já também a sua elaboração: nunca é “o que tem lugar” porque o que tem lugar só tem lugar por não o ter. Memorizamos sempre esquecendo, apagando, selecionando o que merece ser retido no que poderia ter sido – e, do mesmo passo, antecipando negativa ou positivamente, o que poderia ter acontecido – isto a despeito de que Freud assinala que esta selecção é também, a nível psicológico, uma repressão, o que suscita a questão da articulação da memória psicológica e da memória social, o que é precisamente a condição da constituição do superego, pelo menos enquanto continue a existir. Porque um aspecto essencial da eliminação do tempo diferido, isto é, o trabalho da acção diferida, é o de que cria um processo de dessublimação e consequentemente de desindividuação pela perda de conhecimento na era da hipomnésis industrial.
Se pode dizer-se que os meios de comunicação da massa “coproduzem” aquilo que tem lugar e nesse sentido, produzem efeitos antecipando o que acontece, esta situação nada tem de novidade: a lei da memória é a de preceder-se a si mesma, e como resultado, o passado do presente não se situa atrás dele, mas “sempre o precedeu, como diz Heidegger, sem o determinar”. No entanto, algo de absolutamente novo acontece quando as condições de memorização, ou seja, os critérios de selecção de apagamento, de esquecimento, de antecipação, retenção e protensão, numa palavra de temporização, ficam concentrados numa aparelhagem industrial cuja finalidade é a produção de uma mais-valia: então, o imperativo que regula hegemonicamente a actividade da memória é o ganho de tempo, na medida em que a abstracção capitalizável (o dinheiro) não é mais do que o crédito atribuído ao futuro.
A retenção industrial é regulada pela lei das audiências como fonte do crédito, em todos os sentidos do termo. Esta lei predetermina irresistivelmente a natureza dos próprios acontecimentos: os actores antecipam as condições do registo dos seus actos em função desta superfície industrial do tempo. Neste sentido, os media jamais se satisfazem com os acontecimentos “coproduzidos”: e com cada vez mais frequência, produzem-nos de cabo a rabo. O 9/11 terá sido uma produção deste tipo.
Há uma verdadeira inversão pela qual os meios de comunicação de massa relatam a vida quotidiana com tal vivacidade, que este relato da vida parece não só antecipá-la como inclusivamente precedê-la. Isto é, determinar a própria vida. No âmbito da rivalidade que os alimenta, estes meios parecem orientados pelas pulsões – já que essa é a lei do sensacional – como se vê na encenação de actos terroristas ou na pornografia habitual da televisão. Consequentemente, os meios de comunicação tendem a destruir o superego, que é, no entanto, a condição sine qua non da transformação das pulsões em desejo, isto é, em energia social.
9. A ecologia da hypomnésis: o tempo dos meios associados
Diferentemente do que se passa com as ortóteses analógicas e digitais, a ortótese literal pressupõe que o leitor ou o receptor da mensagem, saiba ler e escrever. Um leitor é, ele mesmo, um aparelho “equipado” capaz de aceder, por si mesmo, ao conteúdo de um registo literal, uma vez que tenha passado um certo número de anos exercitando-se para instrumentalizar, automatizar e mecanizar o funcionamento da memória e transformando-se a si mesmo num instrumento de leitura.
Nas tecnologias analógicas e digitais, as funções de codificação e de descodificação são delegadas nas máquinas. O VTC “lê” a gravação vídeo, o computador “lê” o ficheiro. Contudo, a questão não é a da súbita instrumentalização da memória, mas a da deslocação da sua natureza instrumental para aparelhos onde emissor e receptor da mensagem deixam de ser o seu codificador e o descodificador, o que não pode deixar de ter consequências para a leitura e para a escrita: quando a memória colectiva se torna analógica ou digital, as relações entre as proposições, os emissores e os receptores são transformadas de modo considerável. Os dois polos passam a ser aquilo que se encontra nas duas extremidades de uma rede: de um lado, produtores industriais, do outro, consumidores.
Se o fluxo contínuo da informação tem o poder de impulsionar o consumismo actual da forma como o faz, nos nossos dias, a razão fundamental desse fenómeno reside na delegação das nossas capacidades de leitura e escrita nas máquinas, como resultado da história do sistema técnico e do devir mercadora da memória; esta última transformação teria sido impossível sem a primeira.
A organização da perda de conhecimento pela hypomnésis industrial é de tal ordem que parece ausente qualquer oportunidade de aparecimento da anamnésis. Estes meios hypomnésicos, sem anamnese, são meios dissociados: são meios industrialmente desorganizados, isto é, meios dessocializados e dessimbolizados: o simbólico é destruído pela aplicação das regras e regulações da divisão social do trabalho à vida simbólica, como um todo, através da generalização da hypomnésis industrial e esta industrialização do simbólico produz uma situação em que a sociedade é separada entre produtores e consumidores de símbolos.
Um meio mnésico simbólico é estruturalmente um meio associado que permite a constituição e a expressão de singularidades. Na interlocução que é a vida da linguagem, um receptor, aquele que ouve, só pode ser um ouvinte e participar na interlocução, na medida em que pode assumir a posição de emissor, tornando-se aquele que fala e emite um discurso que nenhum outro poderia proferir. Por outras palavras, não se pode escutar uma linguagem, se não formos capazes de falá-la, e falá-la de um modo singular. Sob este ponto de vista, a linguagem é consubstancialmente dialógica: o discurso é uma troca simbólica. Esta troca constitui um circuito onde quem recebe, sob forma verbal, uma mensagem simbólica, transmite a outros receptores com outras palavras aquilo que recebeu. Do mesmo fôlego, todos os falantes participam na transformação da linguagem: falando, participam num processo de individuação.
Neste processo de individuação psíquica e colectiva, compreende-se que a sua condição essencial é a de que o meio linguístico seja um meio de interlocução permanente, isto é, de participação de todos no devir de um meio linguístico. Este processo é, na sua essência, simultaneamente psíquico e colectivo: o falante individua-se, isto é, transforma-se e torna-se no que é, pelos enunciados que emite, mas estes enunciados, por seu turno, contribuem para a transformação da linguagem em que são emitidos, de acordo com o grau de individuação do próprio falante. A individuação psíquica de cada falante é, do mesmo movimento, a individuação colectiva que constitui a linguagem que todos partilham, e onde se constituem a si mesmos, falando-a.
A vida da linguagem é a sua interlocução, e é esta interlocução que os meios de comunicação de massa curto-circuitam e destroem. Os meios sociais nos quais mentes individuais se individuam e com elas individuam o grupo que partilham, trocam e transformam, são em geral, meios de individuação, apenas na medida em que são participativos: a individuação do meio tem lugar através da individuação daqueles que vivem nesse meio, e vice-versa. Em termos gerais, a economia de serviços, da qual os meios de comunicação de massa são o sector fundamental, é, pelo contrário, aquilo que priva os indivíduos psíquicos de todas as oportunidades de participação na individuação colectiva. A economia de serviços baseia-se no curto-circuito do conhecimento dos seus utentes, através da hipomnésis industrial.
Os aparelhos analógicos e, depois, digitais, que se desenvolvem na esteira do maquinismo industrial e das máquinas ferramentas, afectam tanto os modos de produção como as modalidades de consumo. Produz-se aqui um novo estádio da exteriorização dos saberes e da hipomnese que constitui o processo de proletarização generalizada como perda dos saberes. A gramatização literal é posta ao serviço da concepção, a gramatização dos gestos ao serviço da produção e a gramatização dos sentidos ao serviço do consumo: este capitalismo cognitivo e cultural constitui uma nova organização hipomnésica integrada que permite o controlo de todas as formas do movimento, isto é, da emoção e, desta feita, do inconsciente. O facto do aparecimento dos corpos no processo de individuação – quer seja o corpo do produtor controlado pelo gesto ou o corpo do consumidor controlado pelos sentidos – se dar no momento em que se formam os pensamentos nietzschianos e freudianos do desejo e da pulsão, como fenómenos surgidos do inconsciente, significa que (no momento em que vivemos) o reaparecimento da questão da anamnese e da hipomnese (no momento em que retorna, como telecracia, e em termos que ganharam uma dimensão industrial e tecnológica colossal, e mundial) – questão que a sofística colocava à filosofia e à democracia – reveste-se de um alcance que é uma reelaboração da questão do desejo enquanto propriamente constituído ou destituído hipomnesicamente e segundo os estádios da gramatização. Porque o processo de individuação é a economia do que, desde Freud, se chama desejo: é a economia libidinal. Ora, Freud não soube articular um pensamento da hipomnese em psicanálise, quando o seu pensamento é o da anamnese como tão bem o demonstrou Jean François Lyotard – uma anamnese pensada a partir da questão do narcisismo, do ideal do eu e da sublimação como poderes de individuação e de transformação espiritual do psíquico e do colectivo, através da constituição de um processo de transindividuação que já Aristóteles chamava philia, ou seja, amor. A questão que nos é actualmente dirigida a título de política da memória é pois a de uma política do desejo, isto é, também, de uma economia política do inconsciente. O inconsciente é aquilo que articula corpos sobre retenções terciárias e suportes hipomnésicos, constituindo o corpo como poder técnico, ou seja, como poder da imaginação, como potência do fantasma. Pensar actualmente a questão da memória, na medida em que esta é originariamente exteriorizada e permite ao mesmo tempo intensificar a individuação, e produzir desindividuação, por via da perda de saber e por proletarização, é reelaborar um pensamento hipomnésico e anamnésico da economia geral dos saberes na medida em que estes são formas da líbido. Porque, na nossa época – tal é o carácter eminentemente estranho e inquietante do capitalismo contemporâneo –, vemos que os saberes estão a ser destruídos, e através deles a líbido, por uma exteriorização que permite um controlo e uma intensificação dos processos pulsionais em detrimento da economia libidinal, isto é, da anamnese: o capitalismo das sociedades de consumo, mimético, gregário e pulsional, que é uma verdadeira gramatização do próprio desejo, reactiva as técnicas sofísticas a um grau incomparavelmente mais poderoso e perigoso que constitui um limite lá aonde se torna evidente que esse mesmo capitalismo se dirige – se nada acontecer que possa alterar este estado de coisas – e que irá conduzir ao seu desmoronamento por autodestruição.
No final do século XX, porém, o advento da rede da Internet modificou profundamente a situação: surgiram as tecnologias participativas onde a oposição produtor/consumidor pode ser ultrapassada e podem desenvolver-se práticas de auto-produção de memórias que se tornaram digitais. A internet abre uma era em que a hypomnésis pode constituir-se como um meio técnico associado, o que permite vislumbrar uma saída da época dos meios dissociados, isto é, aqueles que, pela separação das funções de produtor e de consumidor, privam os produtores e os consumidores do seu conhecimento e consequentemente das suas capacidades de participação na socialização do mundo.
Na sua análise do mecanismo de produção de energia eléctrica a partir da força das marés, Simondon fala de meios técnicos associados: esta forma de produção de emergia constitui um meio que se chama “associado”, porque o objecto técnico associa, estrutural e funcionalmente, a energia dos elementos naturais que compõem o meio, de tal modo que a natureza se torna uma função do sistema técnico. É o caso da turbina Guimbal que, nas fábricas propulsadas pelas marés, atribui à água salgada, isto é, um elemento natural, uma tripla função técnica: fornecer energia, arrefecer a estrutura da turbina e garantir estanquicidade do mecanismo.
Começa a vislumbrar-se uma ecologia dos meios hypomnésicos associados.
É imperiosa a implementação de programas de investigação sobre a economia hipomnésica que os meio digitais hoje possibilitam enquanto estes são portadores de possibilidades tanto anamnésicas como hipommnésicas de individuação e de transindividuação totalmente inéditas. Trata-se de pensar os hypomnémata digitais, e as formas novas de otium que daí podem brotar, e fundar uma nova economia política da memória e do desejo (41).
(*) Bernard Stiegler (n. 1952) é um escritor e académico francês, actualmente director do Departamento de Desenvolvimento Cultural do Centro Pompidou, depois de uma já larga carreira de direcção de institutos culturais públicos. Na sua juventude cumpriu uma pesada pena de prisão por assalto à mão armada. Iniciou-se na filosofia por correspondência, a partir da sua cela prisional. É, por assim dizer, um inteletual de “nova oportunidade”. Hoje é uma figura de proa dentro da tradição da pensée française, provavelmente o principal responsável pelo seu ressurgimento. É autor de uma já vasta bibliografia, publicada a partir de meados dos anos 1990, com destaque para ‘La Technique et le Temps’ (3 vols., 1994-2001), ‘De la Misère Symbolique’ (2 vols., 2004) e ‘Mécréance et Discrédit’ (3 vols., 2004-2006). 'Pour une nouvelle critique de l'économie politique' (2009) e 'Ce qui fait que la vie vaut la peine d'être vécue. De la pharmacologie' (2010). É animador de um grupo de reflexão política intitulado Ars Industrialis. A tradução é, como habitualmente, de João Esteves da Silva.
_____________ NOTAS:
(1) Vide Hegel, Encyclopédie.
(2) Gilles Deleuze, Pourparlers, Post-scriptum sur les sociétés de contrôle, Les éditions de Minuit. Paris, 1990/2003, p. 240.
(3) Michel Foucault, Dits et Écrits, Gallimard, Quarto, 2001.
(4) Günther Anders, L’obsolescence de l’homme, Encyclopédie des Nuisances, Ivrea.
(5) Jacques Derrida La dissémination, La Pharmacie de Platon, Éditions du Seuil, 1972, p. 79.
(6) Platon, Fédon.
(7) Derrida, De la Grammatologie.
(8) Este conceito de gramatização é tomado de empréstimo a uma análise de Sylvain Auroux da história do conhecimento da linguagem em L’ évolution Technique de la grammatisation, Mardaga, 1993.
(9) Gilbert Simondon, L’individuation psychique et collective, Flammarion.
(10) Walter Benjamin, A Obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica.
(11) Adam Smith, A Riqueza das Nações.
(12) Os fundamentos desta organologia são apresentados em Bernard Stiegler, De La Misère Symbolique 2. La Catastrophe du sensible, Galilée, 2006.
(13) Platão, Górgias.
(14) Sobre este ponto, ver particularmente, Bernard Stiegler, Mécréance et Discrédit, 3., L’esprit perdu do capitalisme. Galilée. 2006.
(15) Isto é particularmente claro nas obras de Freud, Moisés e o Monoteísmo e o Ego e o Id.
(16) Leroi-Gourhan, Le geste et la Parole.
(17) Albert Weissmann, Essays Upon Heredity.
(18) Jean Piaget, Memory and intelligence.
(19) Esta teoria da epifilogénese é desenvolvida por Bernard Stiegler em Technique et le Temps. La Faute de Épiméthée, Galilée.
(20) Platão, Menon.
(21) Referência a Garelli.
(22) A posição de Simondon sobre esse ponto é ambígua e hesitante. Sobre este tema, cf. La apolitique de Simondon em La Révue Philosophique, Outono de 2006 e «Nanomutations, hypomnémata, grammatisation» Avitel Ronell, no prelo.
(23) É este o pensamento de Renan em Qu’est-ce qu’une nation?
(24) «Marx faz, por exemplo, soberbas análises do problema da disciplina no exército e nas oficinas. A análise que vou fazer sobre a disciplina no exército não se encontra em Marx, mas que importa! O que se passou no exército desde o fim do século XVI e o início do século XVII até, praticamente, aos finais do século XVIII? No exército, que havia sido até então essencialmente constituído por pequenas unidades de indivíduos relativamente intermutáveis, organizados em torno de um chefe, sucedeu toda uma enorme transformação que fez com que estas unidades fossem substituídas por uma grande unidade piramidal, com toda uma série de chefes intermediários, de suboficiais, de técnicos também e essencialmente porque havia sido feita uma descoberta técnica: a espingarda com um tiro relativamente rápido e ajustado». Dits et Ecrits, Quarto Gallimard, p. 1006.
(25) Este último ponto encontra-se mais particularmente desenvolvido em La technique et le temps 4. Symboles et diaboles, ou la guerre des esprits, ed. Galilée, no prelo.
(26) Descrever aquilo que designei, em Mécréance et Discrédit 1. La décadénce des démocraties industrielles, Galilée, 200…, «regimes de consistência» é descrever regimes de transindividuação, onde o que permite transindividuar as existências são, justamente, as consistências.
(27) A própria anamnese deve ser pensada, nesta abordagem, com o conceito aristotélico de «acto», de energeia e de entelecheia: a partir de um par não oposicional do acto e da potência, onde a potência forma o pré-individual ao ultrapassar a oposição entre a forma e a matéria oriunda do esquema hilemórfico, como o demonstra Simondon.
(28) Mostrei algures de que modo os três níveis organológicos se articulam com as três formas de retenção, e como as três sínteses da imaginação transcendental que Kant estabelece na Dedução transcendental da Crítica da Razão Pura são constituídas por uma quarta síntese protética e a posteriori.
(29) Nietzsche, pensador da marca e da inscrição na Segunda Dissertação da Genealogia da Moral, é o filosofo que introduz a questão genealógica e, desta feita, organológica da selecção. Freud faz dela a questão do inconsciente, residindo o problema no facto do pensamento de Freud não conseguir pensar as retenções terciárias, logo, nem a técnica; facto que o encurralou numa fabulação neo-Lamarckista. Bergson, pelo privilégio que concede ao tempo, opondo-o ao espaço, fabrica um par oposicional que é muito diferente daquele de Husserl que, por sua vez, opõe as retenções primárias às retenções secundárias mas que exclui as retenções terciárias pelos mesmos motivos, ou seja, por serem espaciais e não temporais. Deleuze fica preso neste par oposicional bergsoniano que ele próprio opõe ao par oposicional bergsoniano. Nesta medida, Deleuze é mais bergsoniano do que nietzschiano. Os trabalhos de Barbara Stiegler (Nietzsche et la critique de la chair, PUF, 2005) mostraram que em Nietzsche a questão das relações entre o apolíneo e o dionisíaco coloca desde logo em fundo estas questões da técnica e da indústria. Pelo contrário, um pensamento como o de Bergson, que domina ainda Deleuze, não pode colocar a questão da técnica – como se pode ver, por exemplo, no «diagrama»... Daí a sua crítica das sociedades de controlo ser desesperada.
(30) Husserl, A origem da Geometria.
(31) Elisabeth Eisenstein,The Printing Revolution in Early Modern Europe.
(32) Max Weber, A ética protestante e o Espírito do Capitalismo.
(33) Frances Yates, The Arts of Memory.
(34) Adorno, Dialéctica da Razão.
(35) O velocípede, cujo fabrico foi patrocinado pela Compagnie Parisienne de Biciclettes, criada em 1867, não poderia desenvolver-se socialmente sem a criação de vários jornais (cinco publicações foram criadas entre 1880 e 1890) enquanto o Petit Journal, um diário com um grande numero de leitores lançou uma grande campanha de promoção da bicicleta; esta teve fundamentalmente por finalidade mostrar aos futuros ciclistas que era possível andar sobre duas rodas sem cair.
(36) Ernest Renan, Qu’est-ce qu’une Nation?
(37) O “cliché” é um processo inventado por Havas para vender artigos acabados de publicar em jornais.
(38) “Laurel? Yeah! Onde é que puseste o jornal? No seu lugar. O que queres dizer? No frigorífico! No frigorífico por quê? Para ter notícias frescas…”
(39) Pierre Nora, Faire de L’Histoire, 2, p. 295. Telstar, o primeiro satélite de comunicações “ao serviço da troca transatlântica de transmissões televisionadas” também impressionou Heidegger que é o autor da frase citada da sua conferência Langue de tradition, langue technique.
(40) Jorge Luís Borges, Artifícios, Funes, o Memorioso, Obras Completas, Emecé, Buenos Aires, 1974.
(41) Este programa é o que se encontra em Réenchanter le monde. La valeur esprit contre le populisme industriel.
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