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Grécia: reflexões após a derrota
Alexis Cukier (*)
Os primeiros seis meses do governo liderado pelo Syriza formaram uma sequência política de importância decisiva para o futuro da Grécia e da esquerda radical europeia. O resultado é claro: o governo de Alexis Tsipras não conseguiu iniciar a implementação de uma alternativa política à austeridade e ao neoliberalismo. Ele capitulou perante a estratégia de diktat político e estrangulamento econômico das instituições europeias, ao aceitar um terceiro memorando cujas desastrosas consequências económicas (por exemplo, aumento do IVA) e políticas (incluindo o regresso da troika a Atenas) já são tangíveis. Isso é um desastre para a Grécia e para todas as forças sociais e políticas progressistas na Europa que se tinham solidarizado com o governo grego na luta contra a Europa neoliberal. É urgente analisar as causas dessa derrota, de modo que uma tal derrocada política não se torne a repetir, e que o prosseguimento da destruição econômica e política da Grécia por um governo de um partido de esquerda radical possa, ao menos, servir como uma lição de realismo para o futuro.
Neste texto, pretendo contribuir para a reflexão colectiva sobre as lições desta derrota, baseando-me no meu ativismo com o coletivo "Com os gregos" (Avec les Grecs) em França e na rede de movimentos sociais europeus, nos últimos meses, bem como nas seis semanas que acabei de passar na Grécia. Eu tive a oportunidade de me reunir com líderes e ativistas do Syriza, de participar em eventos públicos e debates, tendo "tomado a temperatura" da situação social e política grega. A partir dessa experiência, vou abordar duas perguntas simples: como é que este desastre pôde acontecer?; e de seguida: o que pensam os gregos sobre isso? Tratarei de forma transversal a questão da ruptura ou da reforma da zona euro e das instituições europeias, que está no centro do debate político na Grécia. Vou terminar com algumas reflexões gerais sobre o problema da execução de uma política de transição democrática na Europa de hoje.
Rumo à derrocada: retrospetiva
Muitas análises foram publicadas, nas últimas três semanas, sobre as razões para esta derrota, alimentadas pelo influxo de informações publicamente disponíveis sobre “os bastidores" da estratégia do governo grego. É agora claro que: 1. O governo encerrou-se a si próprio numa busca desesperada por credibilidade política junto das instituições europeias e na ilusão de que era possível obter, através da negociação e com base em argumentos razoáveis, um "compromisso honroso"; 2. Ele nunca considerou seriamente uma estratégia alternativa, o que as recentes declarações de Yanis Varoufakis e Alexis Tsipras definitivamente confirmam; 3. Colocado neste impasse, o governo (aparentemente de forma definitiva) endossou a posição da direita do Syriza (nomeadamente dos economistas Yanis Dragasakis e Giorgos Stathakis), que sempre defendeu não haver alternativa a um terceiro memorando.
O Acordo de 13 de Julho lança uma nova luz sobre toda a minha experiência política nos últimos meses. Nas reuniões dos movimentos sociais europeus em Atenas, a posição do Syriza tem sido constantemente repetida, como base para a mobilização internacional: nós não temos nenhum mandato para assinar um novo memorando, nem temos mandato para sair do euro. Esta dupla negativa foi apresentada como uma contradição fecunda para construir o equilíbrio de poder na Grécia e na Europa: a chave era manter as negociações a decorrer tanto tempo quanto possível, apoiar-se nesta sequência mediática para expandir as alianças sociais e políticas do Syriza em redor, e colocar as instituições europeias perante as suas responsabilidades, no contexto de um novo equilíbrio de poder. Em suma, como evidenciado pelos slogans que temos também desenvolvido em França, eles estavam jogando "democracia" (Syriza) contra a "austeridade" (U.E.) e a tornar manifesto o caráter anti-democrático das instituições europeias e das suas políticas neoliberais. A exigência unânime dos movimentos sociais era convergente: prolongar o confronto, de forma a ter tempo de construir, em conexão com a batalha grega, uma correlação de forças ideológica mais favorável à esquerda radical na Europa.
Para lá da inegável - ainda que obviamente insuficiente - dinâmica política suscitada, em diferentes países europeus, em torno do apoio à Grécia, é agora claro que esta estratégia, ao nível nacional e internacional, não era sustentável por, pelo menos, duas razões. Por um lado, uma tal "guerra de posição" ou de "desmoralização" do adversário, requeria que a Grécia possuísse meios econômicos suficientes para fazer face, de forma durável, à estratégia de estrangulamento económico da União Europeia. Ora, não era esse claramente o caso e nada foi feito nesse sentido, durante os seis meses do governo, mesmo quando, tão cedo quanto 5 de fevereiro, a decisão do B.C.E. de acelerar drasticamente a secagem de liquidez do Estado grego, tornou claro que o tempo estava se esgotando. Estando o colapso dos bancos e do Estado grego ao alcance do leque de opções de decisão política da União Europeia, a tática do governo grego conduzia diretamente à catástrofe política a que acabamos de assistir: um povo grego (e os povos da Europa) cada vez mais hostil aos memorandos e aos ditames da União Europeia, uma equipe de governo (e uma esquerda radical europeia) cada vez mais impotente para se lhes opor. Perante a determinação do bloco neoliberal europeu, e dada a destruição já avançada da economia grega, após cinco anos de terapia austeritária de choque, é razoável concluir que a existência de um plano B provisório (sem ruptura com os memorandos, sem política a médio prazo de transição económica e sem debate democrático sobre os meios para alcançá-la) não teria mudado em nada os dados da questão e teria levado ao mesmo impasse político.
Mas, por outro lado, o sentido de uma tal estratégia dependia da possibilidade de estabelecer alianças políticas com forças reconhecidas e temidas pelo adversário. Isso, obviamente, não é o caso dos movimentos sociais europeus, grandes ou pequenos; ademais, é duvidoso que a U.E. alguma vez cedesse por causa apenas de uma mobilização popular, por mais numerosa e intensa que fosse, se ela não fosse seguida por uma qualquer decisão política de um governo em seu meio. Mas nunca houve qualquer governo europeu disposto a isso, o que se tornou muito claro desde os primeiros dias de governo Syriza. Nestas condições, a campanha de mobilização internacional, ao invés de ajudar o governo grego a preparar e organizar uma política econômica alternativa, não fez mais que acompanhar, e até mesmo incentivar, a sua inclinação em direção ao que pode ser chamado de "suicídio democrático": a bem-sucedida campanha do “Não” no referendo, logo seguida da assinatura de um terceiro memorando uma semana depois.
Na véspera e no próprio dia do anúncio surpresa por Alexis Tsipras da realização do referendo, eu tive a oportunidade de conhecer - com Clémentine Autain, Pierre Khalfa e Danièle Obono - dirigentes do Syriza que mantiveram todos, perante nós, aproximadamente o mesmo discurso. Enquanto o governo tinha ido tão longe quanto possível em concessões, reduzindo ao essencial as suas "linhas vermelhas" (pensões, impostos, direito do trabalho), as instituições europeias começaram subitamente a endurecer as suas exigências, recaindo em propostas ainda mais drásticas do que no início das negociações (mais duras mesmo que as do "plano secreto" enviado ao Ministro das Finanças da Nova Democracia, Gikas Hardouvelis, em dezembro de 2014). O bloco neoliberal hegemônico na Europa dera início, obviamente, a uma nova fase, mais ofensiva, na estratégia do "parênteses de esquerda": reuniu, em Bruxelas, com os líderes da oposição, apoiou uma campanha contra o governo na Grécia (com o slogan "Nós ficamos na Europa"), acelerou a organização da corrida aos bancos, etc.. Nestas circunstâncias, os executivos do Syriza que conhecemos - fossem eles membros da corrente dos 53+ (1), da direção política ou do KOE (ex-maoístas, da ala esquerda do partido) – concordaram todos em que o Governo estava num impasse completo. De acordo com o seu posicionamento no partido, no entanto, a conclusão que tiravam não era a mesma: era questão, respetivamente, de realizar eleições sob uma base política renovada ("mesmo perdendo a batalha, mais vale continuar a lutar até o fim") ou de manter a todo custo a unidade do partido, apesar de uma derrota europeia, ou, por fim, de avaliar que o governo Syriza tinha permanecido um governo de esquerda apenas durante três semanas (até ao acordo de 20 de fevereiro), admitindo a ocorrência de uma derrota em toda a linha.
É neste ambiente depressivo que a notícia do referendo - decidido por Tsipras, como todas as decisões importantes nos últimos meses, sem consultar o partido - foi recebida com alegria: o governo não capitularia! Ele apelava (finalmente...) à mobilização popular! Esta alegria partilhei-a eu com os camaradas - incluindo muitos franceses – dos movimentos sociais europeus (vindos a 28 de junho para uma reunião onde foi decidido iniciar uma campanha europeia pelo “não”), com a minha família e com o(a)s atenienses com quem discuti durante toda essa semana. Desde a noite do dia 27, o povo de Atenas (e eu acredito que era o mesmo em muitas outras cidades na Grécia) conheceu uma experiência de politização excecional: reuniões diárias na Praça Syntagma, discussões em cafés, nas filas das caixas de tele-banco (às vezes transformadas em pequenas assembléias populares), nos locais de trabalho. Sabemos qual foi o resultado desta grande mobilização popular: Apesar da intensa propaganda da mídia (nenhum anúncio para o "não" passou na TV...), do apelo explícito de alguns empregadores a que os seus empregados deixassem o trabalho para se demonstrarem a favor do sim, na quarta-feira 3 de julho, o controlo de capitais e a limitação dos levantamentos a 60 euros por dia, os rumores de fecho dos bancos na segunda-feira, 6 de julho, etc., o "não" prevaleceu com 61,31% dos votos e - de acordo com todas as estimativas - mais de 75% dos votos entre os jovens e mais de 80% nos bairros populares. Era claramente um voto de classe, e fomos muitos os que vivemos esta vitória não só como uma mensagem determinada enviada ao governo e às instituições europeias, mas também como uma importante intervenção do povo na cena política. Mas eis que sobrevém a catástrofe - previsível, é certo, mas que a experiência política da semana anterior tinha tornado de novo inimaginável -: após uma semana de novos recuos do governo, Tsipras regressava de Bruxelas, em 13 de julho, com um terceiro memorando que todos entenderam, aqui, ser ainda mais desastroso para a Grécia do que os dois primeiros...
Nas últimas semanas, tanto em jornais como em discussões privadas, todos os géneros de explicações têm sido propostos para dar conta da lógica incompreensível do governo: último suspiro antes do colapso, puro cálculo de política doméstica, impreparação econômica e cegueira política face a um iminente (Alexis Tsipras tinha sido advertido disso pela ala esquerda do Syriza, mas não quis acreditar) fechamento dos bancos pela União Europeia, a crença mágica final na virtude salvífica da democracia, etc.. Todas essas explicações parecem-me plausíveis e podem ser entendidas à luz do objetivo principal de Alexis Tsipras nestas últimas semanas: permanecer no poder a todo o custo, praticando agora regularmente não só a negação da realidade ("nós mudamos o Europa"), mas também a manipulação política (veja-se, por exemplo, o modo como decorreu a última reunião do Comité Central) e a mentira nos meios de comunicação (ver, por exemplo, declarações relativas ao prosseguimento da exploração mineira na floresta de Skouries). Esta curva à direita e traição ao mandato popular não devem fazer esquecer, no entanto, tudo o que aparecera já claramente no final de junho e que tantos de nós estivemos dispostos a esquecer, de 27 junho a 5 julho: a estratégia do “parêntese de esquerda” desenvolvida pelas instituições europeias - colapso do governo do partido Syriza ou sua mutação em partido memorandista - decorreu muito bem. Aqui está, pois, um primeiro ensinamento da derrota grega: a U.E. está disposta a fazer qualquer coisa para impedir a execução de uma política económica de esquerda, e no seu seio não haverá alternativa ao neoliberalismo.
O que se pensa disto na Grécia?
É agora bem conhecido na Grécia que o governo nunca teve preparado um plano B; ingenuamente acreditou que a legitimidade democrática, poderia, em última análise, ser uma arma eficaz nas negociações; fez por se autonomizar plenamente dos debates e posições tomadas no partido Syriza e agora governa com o apoio da direita. Como explicar então - peça-chave da argumentação daqueles que querem justificar a rendição de 13 de Julho, a começar pelo executivo de Alexis Tsipras - o apoio ainda maioritário da população ao governo?
É preciso entender que a popularidade de Tsipras nas pesquisas (que é razoável, nestes tempos de propaganda política intensa, considerar com precaução...) é uma das consequências da onda de choque de derrota e da ausência, até hoje, de uma alternativa credível para o governo. Também é questionável: uma pesquisa recente de Bridging Europa retrata uma realidade diferente, indicando que se Alexis Tsipras continua a ser o político preferido do(a)s grego(a)s (mas os percentuais diminuiram notavelmente: 51%), uma clara maioria considera que o Syriza abandonou o seu programa (83%) e capitulou perante as exigências dos credores (76%). De modo que - dramática reversão em relação a inquéritos anteriores - 77% da população discorda da política do governo. E, de fato, quantas vezes, nas duas últimas semanas, tenho ouvido que Tsipras foi o único que tentou fazer algo para a Grécia, mas estava errado e não conseguiu? Que ele é certamente o mal menor, uma vez que não há atualmente nenhuma outra força política credível na esquerda, oferecendo uma alternativa real ao Syriza, mas que, finalmente, é um político como os outros, procurando acima de tudo permanecer no poder a todo o custo? Para além desta questão secundária da quota de popularidade do primeiro-ministro grego (que começa a degradar-se, e que pode entrar em colapso tão rápido quanto as esperanças depositadas nele foram grandes), é evidente que o partido do status quo, do TINA (2) e da hostilidade ou descrença para com a esquerda ganhou uma nova arma poderosa, com a capitulação do governo.
No entanto, pode-se ver as coisas de uma forma diferente: se o abismo separando o governo do povo é novamente claro, é também verdade evidente que a quantidade e qualidade da politização popular conheceu, nos últimos meses, um aumento notável. Todo o mundo na Grécia discute as propostas da Plataforma de Esquerda (em resumo: o programa de Tessalónica (3) acompanhado pelo projeto de nacionalização dos bancos e de empresas estratégicas, bem como o retorno a uma moeda nacional), incluindo a oportunidade de uma saída do euro; o acordo de base ou os pontos de desacordo entre Schäuble, Merkel, Hollande, Renzi, Dijssellbloem, Draghi; o papel dos E.U.A. na assinatura do acordo de 13 de Julho; a razão pela qual a possibilidade de uma parceria económica com a Rússia e os BRICs não conseguiu mudar a situação nas negociações; e, de um modo geral, o grau de preparação da sociedade grega para a implementação do programa democraticamente escolhido a 25 de janeiro de 2015.
Nesta perspetiva, é muito frustrante ler, na Grécia, as doutas explicações dos comentaristas estrangeiros que, em vez de contribuir para o debate sobre estas questões (que dizem respeito, eminentemente, a toda a esquerda europeia) afirmam, de uma forma ou de outra, que estas questões não se colocam… quanto mais não seja porque os gregos não vêem outra alternativa para as decisões do governo Syriza. Fui surpreendido, nestes últimos meses, pelo desinteresse constante do(a)s camaradas franceses a respeito das discussões e controvérsias na sociedade grega – isso enquanto se erigia o povo grego em vanguarda da luta contra o neoliberalismo - e no Syriza – enquanto se fez dele um modelo para a esquerda radical europeia - para não mencionar a cegueira e incredulidade manifestadas perante a ostensiva autonomização do governo em relação às mobilizações populares e ao próprio partido a partir do qual se formou.
Foi por isso que tive a idéia de trazer aqui alguns elementos de discussão política, colhidos ao sabor de encontros casuais nas últimas semanas na Grécia. Já mencionei algumas discussões com executivos do Syriza, por isso vou agora cingir-me ao resultado de um exercício muito instrutivo para tomar a temperatura política na Grécia: as discussões ocorridas em táxis (lembremos que uma corrida de táxi, em Atenas, não custa muito caro, por isso os motoristas são parte da classe média empobrecida, muitas vezes têm dois empregos - por exemplo, secretário de dia e taxista à noite - e vêm passar pelo seu carro uma amostra menos restrita da população ateniense do que seria o caso, por exemplo, em Paris). Assim, entre o final de junho e o final de julho, "entrevistei" doze taxistas atenienses; entre eles, dez davam mais confiança a Alexis Tsipras do que aos representantes da Nova Democracia, do Pasok e do To Potami (4), oito votaram mesmo Syriza em janeiro; mas sete foram pela saída do euro e cinco declararam-se a favor da saída da União Europeia. E entre os cinco motoristas de táxi com quem discuti depois de 13 de Julho: cinco se opuseram ao acordo de 13 de Julho; quatro votaram "não" em 5 de julho; três esperavam a vitória da Plataforma de Esquerda nas batalhas internas no Syriza e relataram não querer votar em Tsipras no futuro (votando antes na força "anti-memorandista mais credível nas próximas eleições", o Antarsya ou o KKE). Este não será, certamente, um inquérito representativo, mas também não confirma em nada o lendário "bloco popular por Tsipras e contra a saída do euro" imaginado pelos comentaristas estrangeiros.
Mas interessei-me ainda mais por alguns dos argumentos empregues, que me pareceram expressar bem a atmosfera política peculiar nestas últimas semanas na Grécia. Alguns eram desconcertantes, inclusive para mim, como o do motorista que votara Syriza em janeiro, "sempre apoiou" Alexis Tsipras, mas votaria "sim" em 5 de julho, estimando - e não se enganou... - que o acordo, em caso de vitória do "não", seria ainda mais catastrófico do que aquele sujeito a referendo pelo voto. Ou aquele outro motorista que me explicou que a saída do euro era politicamente possível, por várias razões, sendo a principal delas: tendo os jovens das camadas burguesas e de classe média alta já emigrado para a Europa e não contando regressar mais à Grécia, o tempo jogava a favor de uma nova geração radicalizada, intocada pelos "absurdos europeus", que experimentou em toda a sua vida adulta apenas a perda de poder de compra após a chegada do euro à Grécia (em 2002), que estima agora ter pouco a perder na transição econômica, após uma saída do euro. (Recordemos uma piada popular na Grécia: "Eu saio do euro todos os meses, no dia 15, quando a minha conta bancária passa a negativo".) Mas o mais impressionante foi que nem um dos motoristas se reclamando de esquerda apresentou a Europa como uma coisa positiva: após cinco anos de memorandos, as instituições europeias são maioritariamente concebidas na Grécia como sendo uma máquina monstruosa ao serviço dos "poderosos". Por outras palavras, para usar a metáfora de Yanis Varoufakis: a U.E. aparece como um Leviatã impondo sua vontade absoluta em detrimento dos povos, em nome de uma suposta "paz social" que na verdade equivale a uma guerra econômica de alta intensidade. O problema não é saber se é possível "democratizar a Europa" e sua política econômica - a partir da Grécia, esta perspectiva parece risível - mas avaliar se o euro é um mal necessário, por falta de alternativas, ou um mal radical que deve ser eliminado.
Sobre este assunto, vamos aqui reproduzir o argumento de um motorista de táxi particularmente falador (e cultivado), que me disse, aproximadamente: "Como quer você democratizar um império ou negociar com um Império? E mais ainda, com um Império jovem, que não tem ainda 50 anos e que visa organizar-se e construir-se contra a vontade dos povos? Lembre-se: quem queria o euro? As pessoas ou a elite política e econômica, os nossos inimigos? Você pensa que essa elite alguma vez deixará o Império em nossas mãos? A esquerda grega, os camaradas de Syriza, perderam as suas cabeças: eles achavam que poderiam lutar contra um império com argumentos razoáveis, ou com um referendo. Mas um império democrático não existe. É por isso que Alexis Tsipras não pôde sequer travar realmente uma batalha contra a Europa: não se combate um império com um mandato democrático. E é por isso que, para a esquerda, não há outra via senão a saída da União Europeia e do seu braço armado, o euro.” Em seguida, discutimos (este é um debate bastante comum hoje na Grécia...) as dificuldades económicas após uma saída do euro: a necessidade de que o Estado compre mercadorias estratégicas (petróleo) ou essenciais (medicamentos) e os distribua por racionamento; a possibilidade de reconstrução em velocidade acelerada da agricultura grega, literalmente destruída pela União Europeia; vantagem ou não de manter-se a especialização grega na indústria turística; de desenvolver as áreas da energia ecológica; inventando parcerias económicas com a China e a Rússia e geopolíticas com os governos de esquerda na América Latina, etc.. Em seguida, o taxista fez-me uma pergunta que continua ainda hoje a fazer-me pensar: pensa você - você que é universitário, que faz política, etc. - que a União Europeia continuará ainda a existir daqui a 20 anos?
Eu respondi, com cautela, que tão só a erosão ou desmantelamento da zona euro já seria um evento literalmente revolucionário; que este género de acontecimentos nunca são os mais prováveis; que em França e na Alemanha, uma maioria da população, e da própria esquerda, ainda pensa que a União Europeia é um bom projeto que deu errado, mas que um dia ainda vai poder finalmente ser uma instituição democrática e progressista, etc.. E então, este incrível motorista disse-me o seguinte (que não é inteiramente correto, do ponto de vista histórico, mas que eu achei muito interessante): "o Império de Roma teve uma doutrina, a «Pax Romana», que se assemelha à idéia de paz europeia hoje, que era ao mesmo tempo uma idéia militar, política, ideológica; outros impérios foram formados apenas a partir de alianças entre soberanos, por isso nem sequer eram uma questão de paz ou de guerra, mas apenas de interesse; mas acha você que um Império com 50 anos e já tão contestado pode ser mantido por muito tempo?". Eu respondi-lhe que a "opinião pública", infelizmente, não tem nenhuma força por si própria; que as pessoas devem sempre organizar-se e encontrar formas políticas de expressão; que o euro ou a União Europeia poderiam continuar a existir, mesmo com 90% dos europeus sendo-lhes opostos. Mas a minha resposta realmente não me convenceu, ou melhor, levou-me a uma outra questão, que nos traz de volta às lições da derrota: será sério considerar seriamente uma transição para a democracia (que constitui, como eu a entendo, o núcleo central da proposta política do “Ensemble!” (5) ) nos domínios social, ecológico, econômico e político, sem passar por uma emancipação da tutela do Leviatã da União Europeia?
Em vez da ideologia "europeísta", é a própria idéia de uma transição que eu quero finalmente interrogar, a partir de uma questão que muitos de nós nos colocámos a nós próprios, na Grécia, nas últimas semanas: para que serviu exatamente o programa de Tessalónica?
Conclusão - O problema da transição
Em vez de trazer uma pedra mais para o edifício das sábias considerações estratégicas sobre a maneira de conduzir "negociações" ou o "equilíbrio de poder" com a União Europeia, parece-me razoável pensar primeiro sobre este facto simples, que constitui a substância das discussões na Grécia nas últimas semanas: o governo foi eleito com base em um programa que continuou a defender, nas primeiras semanas após a sua eleição, mas que ele falhou por completo e agora renunciou mesmo a implementar.
Lembre-se que este programa consistiu em quatro componentes: medidas de emergência contra a pobreza, a reforma democrática do Estado, relançamento econômico, solução do problema da dívida pública. Ora, o terceiro memorando anula o essencial das medidas de emergência contra a crise humanitária aprovadas em fevereiro, e em vez disso, vai aprofundá-la. Estamos tão longe de uma reforma democrática do Estado que os bens públicos gregos estão a ser privatizados sistematicamente e de forma acelerada, que a Vouli (Parlamento) vota novamente em procedimentos expeditos as medidas redigidas pelas burocracias europeias, enquanto os homens de preto das instituições estão de volta a Atenas. O impacto recessivo destas medidas, que contradizem ponto por ponto o Programa de Tessalónica (nomeadamente em matéria de pensões e impostos), é óbvio. E não é agora questão de cancelamento, mesmo que parcial, da dívida, mas pelo contrário de uma nova acumulação (pelo menos 80 mil milhões) e de uma reestruturação que não está de modo algum garantida, sendo evidente que não vai, de qualquer maneira, remover a espada de Dâmocles que pende sobre a economia e a vida política do país. Finalmente, um outro desastre está a caminho: a retirada popular do campo de batalha político, tanto no plano das lutas sociais (que não obtiveram nada, ou quase nada, em cinco anos) como na política parlamentar, que para muitos gregos demonstrou o seu caráter inútil, absurdo e nefasto. Nesta fase, portanto, lembrar o Programa de Tessalónica tem um objetivo principal: medir a dimensão da derrota.
Claro, não podemos ficar por aí e este diagnóstico deve servir um objetivo político positivo: elaborar e defender os meios que permitam realmente implementar este programa. Na Grécia, é esta a tarefa imediata de todos aqueles que, observando a curva à direita do governo e o correlativo realinhamento do Syriza, procuram construir fora deste partido uma nova coalizão para representar o "não" de esquerda aos memorandos e à austeridade. Mas esta reflexão também diz respeito a todas as forças da esquerda radical europeia: trata-se de nada menos que a sua credibilidade política. Ora, também deste ponto de vista, lembrar-se o Programa de Tessalónica produz um efeito de desfasamento em relação com a maior parte dos debates em curso na Europa. Nem o "Plano B", mais ou menos sistematicamente preparado por Yanis Varoufakis, e mais ou menos a seriamente considerado por Alexis Tsipras, nem qualquer das várias propostas («IOU» (6), contrôlo de capitais, moratória sobre a dívida) visando "aguentar o cerco" face à estratégia de drenagem de liquidez orquestrada pela U.E., permitirá responder à demanda pelos meios de implementação - num ambiente institucional hostil - deste programa. Ater-se a estas propostas, sem levantar a questão da transição, traduz-se nos factos em aprovar a estratégia desastrosa do governo grego (negociar o máximo tempo possível até uma completa rendição) e levar água ao moinho daqueles que alardeiam não haver alternativas possíveis.
É preciso, por conseguinte, colocar o problema dos meios de aplicação de uma política de transição. Esta questão, o partido Syriza colocou-a claramente de volta no palco central, elaborando um programa politicamente moderado, mas que se revelou anti-sistêmico. Como os factos vêm lembrar-nos, não é possível, por exemplo, a luta contra a evasão fiscal internacional, fazer uma política económica de tipo keynesiano ou reduzir o peso da dívida pública no quadro da União Europeia; nem controlar, reduzir ou obstaculizar o poder das finanças, se nós não controlamos o banco central e a criação monetária (nem democratizar os meios de comunicação, desde que estes pertencem a proprietários privados, etc.). E este foi o principal erro da política do governo Syriza, que o conduziu diretamente à rendição: não ter desenvolvido, discutido e defendido os meios concretos para implementar o seu programa. É provável - como eu tento mostrar num livro que está sendo escrito sobre a relação entre trabalho e democracia hoje - que levar a sério a questão da transição implique ir muito mais longe do que o Programa de Tessalónica; é preciso transformar a "caixa negra" da organização dos meios e fins de trabalho, para que os trabalhadores possam se tornar sujeitos na reforma democrática das instituições. Mas, para nos quedarmos apenas pelas lições imediatas da derrota do governo grego, acho que a esquerda europeia do século XXI não terá agora nenhuma hipótese de ser credível, a menos que coloque abertamente o problema da transição, isto é, da transformação democrática e ecológica das instituições, que implica desmantelar completamente algumas, reformar outras, criar algumas novas.
Nesta perspetiva, a questão da saída imediata ou de uma tentativa de mudança democrática e de esquerda do euro e das instituições da União Europeia, deverá ser considerada de forma pragmática em cada país: as instituições existentes permitem resolver os problemas sociais prioritários e implementar o programa com que a esquerda radical de dotou? Para a Grécia, a demonstração foi feita de que, não só para implementar uma transição democrática baseada no Programa de Tessalónica, mas até mesmo para as medidas de emergência social e económica, as instituições europeias são um obstáculo absoluto. Tendo-se revelado impossível uma reforma ou uma negociação, resta apenas a opção pela saída do euro, e talvez da União Europeia. Isto requer um esforço importante de preparação ideológica, de reestruturação económica e de participação democrática, mas agora "não há alternativa" para a Grécia.
Para os outros países europeus, não parecendo razoável esperar-se, nos próximos anos, por uma vitória eleitoral como a do Syriza a 25 de janeiro, o dilema entre um programa de transição democrática e a adesão à U.E. pode, pelo menos, ser claramente colocado. Deveremos - como faz o Podemos, claramente, após a derrocada grega - rever em baixa as ambições de justiça, de democracia e de emancipação, uma vez que não queremos considerar romper com as instituições europeias? Ou será que devemos, como está agora a considerar um número crescente de eleitores, ativistas e líderes da esquerda radical grega, colocar em questão a pertença a essas instituições e preparar a ruptura, para iniciar, enfim, nos domínios econômico, ecológico e político, um processo de transição democrática? Esta é, em minha opinião, a segunda lição da derrota do Syriza: a esquerda deve escolher entre a adesão a todo o custo à União Económica e Monetária e a implementação de um projeto de emancipação económica e política; não existe mais uma terceira via entre estas duas opções, como não foi possível ao Syriza manter-se, mais do que alguns meses, no duplo vínculo "nem saída do euro nem memorando”.
Sem responder democraticamente a esta questão, há um grande risco de que a esquerda europeia continue a participar, contra si própria, na desertificação da política, abrindo um caminho real para a extrema-direita, deixando as forças populares, como agora de novo na Grécia, sem nenhuma arma eficaz na guerra conduzida contra elas pelo poder financeiro e pela Europa neoliberal. Mas se o conseguirmos fazer - reconhecendo que a derrota do Syriza não é estranha às nossas próprias fraquezas, revelando os impasses de algumas das nossas posições políticas - então a esperança nascida na Grécia em 25 de janeiro e 5 julho de 2015 poderá abrir o caminho, na França como em outros países da Europa, à construção e à vitória de uma esquerda verdadeiramente radical e, finalmente, realista.
Atenas, quarta-feira, 5 de agosto de 2015
(*) Alexis Cukier (n. 1985) está vinculado ao ensino e à pesquisa no Departamento de Filosofia da Universidade de Poitiers, sendo neste momento doutorando no Laboratório Sophiapol na Universidade de Paris-Oeste, em Nanterre, La Défense. Os seus domínios principais de investigação são: Filosofia Social e Política, Teoria Crítica, Pragmatismo, Marxismo, Fenomenologia, Teoria Social, Psicologia, Epistemologia das Ciências Sociais, Teorias Contemporâneas do Trabalho, do Estado e do Poder. É autor, colaborador ou organizador em diversas obras coletivas, como Les paradoxes de l'empathie (2011), Emancipation, les métamorphoses de la critique sociale (2013), La réification: Histoire et actualité d'un concept critique (2014) e La théorie sociale de G. H. Mead (2014). Pertence ao agrupamento Ensemble! Mouvement pour une alternative de gauche, ecologique et solidaire, que integra o Front de Gauche. Milita ainda no coletivo de solidariedade com o povo grego Avec les Grecs, no âmbito de cujas atividades se desenrolaram as experiências pessoais de que dá conta neste ensaio. Tradução e notas de Ângelo Novo.
_________________________ NOTAS DO EDITOR:
(1) O chamado “Grupo dos 53” é uma convergência política informal de deputados do Syriza, situados ao centro, equidistantes entre a Plataforma de Esquerda e os indefetíveis tsipristas mais “pragmáticos” e carreiristas. Entre os seus membros mais proeminentes estão o ex-ministro das Finanças Euclid Tsakalotos e o ex-porta-voz governamental Gabriel Sakellaridis. Embora alguns dos seus membros se tenham abstido na aprovação do terceiro memorando, praticamente todos se mantêm ainda no Syriza, constituindo agora a sua nova ala esquerda. A ex-presidente do Parlamento, Zoe Konstantopoulou, contudo, aderiu à frente Unidade Popular, onde se juntou aos seus colegas da antiga Plataforma de Esquerda.
(2) Acrónimo para o chavão “There is no alternative”, apregoado pela antiga primeira-ministra britânica Margaret Thatcher.
(3) O Programa de Tessalónica foi o manifesto político com que o Syriza se apresentou às eleições que venceu em 25 de janeiro de 2015. Foi revelado ao público na Feira Internacional de Comércio de Tessalónica, a 13 de setembro de 2014. Previa o completo abandono da austeridade e continha uma série de medidas expansionistas e de relançamento industrial, na base de expetativas completamente irrealistas de entendimento com as instituições da União Europeia.
(4) To Potami (O Rio) é um partido centrista (do extremo-centro para usar a feliz expressão de Tariq Ali), com algumas pretensões reformistas mas inteiramente obediente à institucionalidade europeia, fundado em 2014 pelo jornalista televisivo Stavros Theodorakis.
(5) O Ensemble! Mouvement pour une alternative de gauche, ecologique et solidaire é um novo movimento político lançado em França em 23-24 de novembro de 2013, e constituído efetivamente em janeiro-fevereiro de 2015, aglutinando Les Alternatifs, Convergences et alternative, a Fédération pour une alternative sociale et écologique, a Gauche anticapitaliste(dois agrupamentos dissidentes do Nouveau Parti Anticapitaliste), e uma larga maioria dos militantes de Gauche unitaire, para além de .muitas adesões individuais. Com 2.500 militantes, é já a terceira força constitutiva do Front de Gauche, a que aderiu.
(6) Acrónimo de “I owe you” (eu te devo). Trata-se de notas de reconhecimento de dívida que, garantidas pelo Estado, poderão, numa emergência, substituir ou complementar a circulação monetária.
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