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Transformar o "não" numa frente política Algumas lições do Syriza - e para onde vamos a partir daqui
Stathis Kouvelakis (*)
Todos aqueles que investiram esperanças nas perspectivas de um governo Syriza, ainda se encontram hoje em estado de "choque pós-traumático", como Seraphim Seferiades acertadamente afirmou. O choque é atribuível, em primeiro lugar, à derrota de uma estratégia política específica, mas a extensão dessa derrota e seu caráter estilhaçante é algo cujos efeitos se estendem bem para além das pessoas comprometidas, de uma forma ou de outra, com essa estratégia.
Como membro do comitê central do Syriza durante os últimos três anos, eu também suporto uma parte dessa responsabilidade coletiva. Claro, nós no Syriza não somos todos a mesma coisa. Como membro da Plataforma de Esquerda, ao longo dos últimos cinco anos, eu estive entre aqueles que fizeram intervenções consistentes em torno de questões como o euro, vendo o desastre que aí vinha, inevitavelmente, se um outro caminho não fosse tomado.
Mas seria demasiado fácil afirmar que o que aconteceu não me diz respeito. A linha maioritária no Syriza levou a um desastre, mas nós, os da minoria, pela nossa parte, não fomos capazes de impedi-lo, por mais que os eventos tivessem vindicado a nossa perspetiva.
Não obstante tudo isso, eu não estou participando nesta discussão com qualquer inclinação para a auto-flagelação, não só porque isso não seria útil, mas porque uma tal postura oferece um caminho fácil em demasia, uma forma de fuga à substância política do problema .
Aqueles de nós que aceitaram estas responsabilidades, cada um à sua própria maneira, devemos agora tentar contribuir para uma investigação coletiva sobre o que podemos ainda fazer juntos, deste ponto em diante, e não simplesmente depor as armas.
Aqui vão os meus pensamentos, dentro desta perspetiva, organizados em três pontos. O primeiro ponto é sobre exatamente o que é que foi derrotado nesta derrota. O segundo, por mais paradoxal que pareça, é sobre o que é que não foi derrotado - o que se mantém e continua a ter um potencial de uso no futuro. E o terceiro, naturalmente, é o que é que temos para fazer agora.
O que foi derrotado?
Nunca é auto-evidente numa derrota, e particularmente numa grande derrota de dimensões históricas, determinar exatamente o que é que foi derrotado. O exemplo mais característico disso é o da queda da União Soviética e do bloco Leste. Até hoje ainda não há nenhum acordo quanto ao que foi derrotado com o colapso desses regimes.
A maioria ainda acha que o que foi derrotado, em conjunto com a U.R.S.S., foi o comunismo, o socialismo, a revolução, a possibilidade de libertação social. Aqueles de nós que discordam disso são uma minoria, o que não quer necessariamente dizer que estejamos errados. Mas certamente significa que ainda não conseguimos emergir dessa derrota.
O júri ainda está em deliberação, portanto, sobre o que foi derrotado lá. Ora, eu não tenho nenhuma ilusão de que o que vou agora dizer, sobre a Grécia, possa contar com qualquer tipo de aceitação mais ampla. É completamente o oposto, na verdade. Parece lógico, no entanto, para começar, partir do que a meu ver são os pontos menos controversos. O que foi esmagadoramente derrotado foi uma estratégia política, a estratégia que a maioria de Syriza, e portanto o Syriza como tal, tem defendido durante os últimos cinco anos, e que aqui poderemos chamar de "europeísmo de esquerda".
Foi a concepção de que a austeridade e os memorandos poderiam ser revertidos dentro do quadro específico da zona do euro, e, de forma mais ampla, da União Europeia (U.E.). A concepção de que não há necessidade de um plano alternativo porque, em última análise, uma solução positiva se encontrará dentro do euro e que exibir credenciais de "bons cidadãos europeus" e profissões de fé no euro poderiam ser usados como moeda de troca.
Eu acho que foi exaustivamente demonstrado, ao longo dos últimos meses, que nada desse tipo é possível. Foi exaustivamente demonstrado, exatamente porque foi tentado por um sujeito político que acreditou, até o fim, nessa possibilidade, se violentou a si próprio para trabalhar dentro dessa perspetiva particular e, obstinadamente, se recusou a examinar qualquer outra.
Por esta razão, falar de "traição" e do “traidor Tsipras", embora se deva a uma emoção compreensível - é bem justificado que alguém possa sentir-se traído quando, no tempo de uma semana, 62 por cento de "não" se tornam em "sim" - não nos ajuda a entender o que aconteceu.
Alexis Tsipras, o primeiro-ministro grego, não levou a cabo um plano secreto "para se vender". Ele se viu confrontado com a falência total de uma estratégia específica, e quando uma estratégia política falha, isso significa que resta apenas a escolha entre más opções e outras piores ainda. Ou melhor, só resta mesmo a pior opção - e foi exatamente isso o que aconteceu neste caso.
Portanto, a abordagem europeísta de esquerda, o eixo em torno do qual foi centrado o debate, tanto no Syriza como na esquerda europeia em geral - e em que tanto os conflitos do tempo como os limites do próprio Syriza se refletiram - sofreu uma derrota ignominiosa. Dentro desses parâmetros gerais, existem, no entanto, uma série de outros fatores que merecem atenção.
O primeiro é que a estratégia europeísta de esquerda, naturalmente, significou, numa grande medida, evitar a dinâmica da mobilização popular. A escolha de se concentrar em negociações com a troika, com vista a chegar a uma solução mutuamente aceitável, rapidamente levou ao primeiro grande fracasso, ou seja, o acordo de 20 de fevereiro, assinado entre o governo grego e o Eurogrupo.
Este acordo não se limitou a amarrar as mãos do governo Syriza, abrindo o caminho para a capitulação que se seguiu. Sua primeira e mais imediata conseqüência foi paralisar a mobilização, destruir o otimismo e a militância que prevaleceram nas primeiras semanas após a vitória eleitoral de 25 de janeiro.
Naturalmente, esta desvalorização da mobilização popular não é algo que tenha começado em 25 de janeiro, ou 20 de fevereiro, como conseqüência de uma tática governamental particular. É algo que já existia antes na estratégia da Syriza. É algo que acompanhou o desaparecimento das grandes mobilizações de massa que aconteceram nos dois primeiros anos do período de "terapia de choque" (2010-12), uma retirada que teve as suas próprias causas, subjetivas e, mais significativamente ainda, objetivas.
No entanto, a adaptação a estas condições, à retirada do movimento de massas, foi uma questão de escolha política para a liderança do Syriza. A partir de um certo momento em diante, a sua própria mudança para posições cada vez mais "moderados", a passagem das palavras de ordem "nenhum sacrifício pelo euro" e "o euro não é um fetiche" - slogans que foram ouvidos até tão tarde quanto o período de preparação para as eleições de 2012 - para "nós não vamos deixar o euro; eles vão aceitar o que dizemos e isso vai ser tão claro como a luz do dia" intensificou e reproduziu aquela retirada.
O segundo ponto da estratégia que foi derrotado foi a lógica de apaziguamento que prevaleceu na "frente interna", assim que o Syriza assumiu responsabilidades governamentais. Existem alguns aspectos marcantes desta lógica.
O primeiro é que foi feita uma escolha específica em favor de uma aliança com o pessoal político tradicional. Isto é evidenciado pela selecção de um homem da Nova Democracia, Prokopis Pavlopoulos, para ser presidente da República - para não mencionar outras preferências igualmente ominosas, como a escolha de Lambis Tagmatarchis, um jornalista totalmente integrado no sistema de mídia dominante, para diretor da empresa pública de radiodifusão reconstituída, uma escolha de forma nenhuma relacionada com constrangimentos das negociações e o conflito com os credores.
O segundo aspecto conciliatório, ainda mais profundo, é a lógica de evitar conflitos e de continuidade nos mecanismos do Estado profundo e do aparelho de Estado burguês. Dois exemplos bastam para ilustrar este aspecto: a nomeação de Panos Kammenos, o líder do partido ANEL, para assumir o comando da defesa e da política externa, independentemente do contrapeso fornecido pela presença de Costas Isychos, um vice-ministro da Plataforma de Esquerda, no Ministério da Defesa (mas com competências limitadas).
O papel do ministro da Defesa tornou-se evidente: por exemplo, na continuação da colaboração militar entre a Grécia e Israel – embora seja errado imaginar que só Kammenos carregue toda a responsabilidade por isso. O outro exemplo, é claro, é simbolizado pela colocação de Yannis Panousis, um típico político "da lei e da ordem", de extração Pasok, como ministro da ordem pública, e este, de facto, com poderes alargados. É um caso que revela uma escolha clara a favor da continuidade ao nível dos mecanismos repressivos do Estado, com óbvias repercussões para o equilíbrio político global e na corrrelação de forças entre as classes.
O terceiro aspecto: o apaziguamento do centro do poder econômico, a oligarquia, que é chamada em grego "diaploki", o nexo intrincado entre os interesses comerciais, políticos e do Estado. E aqui temos de ser absolutamente específicos. Seria, evidentemente, um erro atribuir toda a culpa a pessoas individuais. Mas devemos ser muito claros sobre o facto de que houve enclaves, dentro do Syriza, fornecendo pontes com setores da oligarquia, mesmo antes de o partido aceder ao poder.
Não há nada de acaso no papel excecionalmente opaco desempenhado pelo vice-primeiro-ministro, Giannis Dragasakis, como a pessoa por excelência dedicada a manter o status quo intocado em todo o sector bancário e financeiro, erguendo-se como uma barricada contra qualquer tentativa de mudança num sistema que hoje forma o centro nervoso, literalmente o coração do poder capitalista, na sua relação com o Estado.
O elemento final no fracasso da estratégia do Syriza foi a sua concepção do partido e a evolução da forma partido em si mesma - que é inteiramente coerente com tudo o que já foi dito acima. Mesmo antes de assumir a governação, o Syriza manifestou tendência a tornar-se cada vez menos democrático, como partido, não no sentido superficial do termo - ser ou não permitido expressar opiniões no seu seio - mas no sentido de que os seus membros tinham cada vez menos influência na formulação das suas políticas e sobre onde é que eram tomadas as decisões dentro do partido.
O que vimos ser construído depois de Junho de 2012 - passo a passo, mas sistematicamente - foi uma forma partido cada vez mais centrada no líder, centralizada, separada das acções e da vontade dos seus membros. O processo ficou totalmente fora de controle quando o Syriza foi para o governo. A partir desse momento, os altos círculos do governo e os principais centros de tomada de decisão política adquiriram autonomia absoluta em relação ao partido.
Basta mencionar o facto de que o comitê central só foi convocado três vezes desde que o Syriza chegou ao poder. Isso consumou o rebaixamento do partido como espaço de debate e de elaboração política, bem como a estratificação de sua estrutura interna.
O que não foi derrotado?
Para os pensamentos que se seguem, inspirei-me num texto da escritora comunista da Alemanha de Leste Christa Wolf, escrito antes da queda da República Democrática Alemã, mas publicada posteriormente, sob o título Was bleibt (O que resta, o que nos ficou).
É um trabalho muito significativo que, na minha opinião, está a tentar dizer o seguinte: a mais exigente auto-crítica não deve acabar por demolir o que foi um importante esforço colectivo. Mas isso não é tudo: a busca pelos fragmentos de verdade que eram inerentes, em meio a contradições, nesse esforço inacabado, adquire um significado particular em condições de derrota, pois destaca a forma como, mesmo não tendo sido realizados, há sempre outros potenciais dentro de uma aposta histórica.
A história nunca é escrita com antecedência: sua trajetória sempre passa por pontos de bifurcação, em que uma determinada direção, finalmente, prevalece sobre uma direção alternativa.
Então, o que é que não foi derrotado no Syriza? Em outras palavras, o que é que permanece como positivo nesta experiência, para a esquerda e para o movimento operário?
Como uma primeira aproximação, gostaria de apontar os quatro pontos seguintes, que também poderiam revelar-se úteis para a futura reconstrução da esquerda radical e para a reformulação de uma estratégia anticapitalista no nosso tempo.
Para começar, o argumento de que um governo unitário das forças radicais de esquerda é um instrumento necessário e testado para abordar a questão do poder foi validado. É claro que "abordar a questão do poder" não significa resolvê-la. É, obviamente, uma coisa ser o governo e outra bem diferente ter o poder. A questão é se somos capazes de utilizar o primeiro para alcançar o segundo, e de que forma.
Dito de outra forma, importa saber se o acesso ao governo, através de uma combinação de sucessos eleitorais e lutas de massas, pode ser utilizado como ponto de partida para uma estratégia de "guerra de posição", ou seja, para o desenvolvimento de mobilizações populares com vista a abrir um espaço para virar do avesso o equilíbrio global nas forças de classe.
Esta abordagem foi testado, até agora, apenas na América Latina. Nós agora temos um caso num dos principais centros do sistema capitalista mundial, a Europa, o que, pelo menos, indica que é possível a uma força minoritária da esquerda radical, numa situação de profunda agitação social e política, construir uma alternativa eleitoral bem sucedida, de forma a entrar no governo.
O limite desta comparação encontra-se, naturalmente, no facto de que, como um centro imperialista relativamente autônomo, a Europa está dominada por uma construção política muito particular, a União Europeia, que cada vez mais atua como o hegemon coletivo dos capitalismos europeus, colocando assim todo o tipo de restrições e de obstáculos, que são apenas parcialmente semelhantes à dominação exercida pelos Estados Unidos em seu "quintal das traseiras".
Segundo elemento: o programa de transição. A idéia do programa de transição é que nós não nos contentamos com um discurso anticapitalista abstrato, propagandístico, aplicável em todas as situações e que simplesmente reitera o objectivo estratégico do socialismo e da derrubada revolucionária do poder burguês.
As linhas divisórias experimentados e testados, as que permitem a ativação da ofensiva contra o inimigo de classe de forma eficaz, e a reviravolta no equilíbrio global de forças, devem ser definidas de novo, em cada nova ocasião específica.
Aqui, também, o objetivo anti-memorando foi, em minha opinião, muito corretamente o eixo central deste programa de transição - na condição, é claro, que não foi observada, de que uma tal linha anti-memorando fosse consistente e levasse inevitavelmente a um afrontamento em toda a linha com a zona do euro e com a própria U.E..
Quaisquer que sejam as suas limitações, particularmente em relação ao cálculo do seu impacto orçamental líquido, o chamado "Programa de Thessaloniki," com base no qual o Syriza ganhou o mandato popular em janeiro passado, foi uma aproximação incompleta, mas basicamente sã, a um programa desse tipo. Não há nada de acaso no modo como ele veio a entrar tão cedo em conflito com a linha a ser seguida pelo governo, até ao ponto de rapidamente se ter tornado tabu mencioná-lo dentro das fileiras do governo, e, em certa medida, também dentro do partido.
O programa de transição está também organicamente ligado - isso é algo que podemos aprender com a herança dos terceiro e quarto congressos da Internacional Comunista e com os subsequentes desenvolvimentos por Gramsci e Togliatti - ao objetivo da frente unida, o mobilizador de todas as forças do bloco das classes subordinadas a um nível político e estratégico mais elevado. Foi esta abordagem unificadora, implícita na ideia de um "governo da esquerda anti-austeridade", que incendiou a imaginação das grandes massas na Primavera de 2012, permitindo a ascensão do Syriza.
A razão para isso foi que o objetivo de um "governo da esquerda anti-austeridade" não era apenas um "governo Syriza", e muito menos o governo Syriza-ANEL que finalmente emergiu. Era uma maneira de reconstruir o próprio movimento popular, juntamente com suas referências sociais e formas políticas de expressão.
Mas, como sabemos, a meta defrontou-se com dois obstáculos, resultando em uma implementação extremamente problemática e intrinsecamente contraditória, depois de 25 de janeiro. Um fator foi a sua rejeição pelo resto das forças da esquerda radical (KKE e Antarsya), que provou ser incapaz de responder à questão fundamental daquele momento. Outro, foi um impasse que marcou os limites da estratégia Syriza, particularmente após a viragem para a "moderação" e subsequente desmoronamento após junho de 2012.
O acima exposto me leva à quarta e última observação sobre "o que resta" desta experiência - a relação entre o social e o político. O que temos visto, ao longo destes últimos cinco anos de memorando, é que os conflitos que se desenrolam no decurso dos confrontos de classe são reunidos e sintetizados, apelando-se à sua resolução a nível político. De um certo ponto em diante, o sucesso ou a vitória, mesmo uma vitória parcial, joga-se no nível político e torna-se uma condição para que a mobilização popular possa se desenvolver para um nível superior.
Esta foi, precisamente, a aposta que foi lançada do ano 2012 em diante, com todas as suas contradições e limitações. Isso quer dizer a combinação entre um governo de esquerda e um rico acervo de lutas populares, a qual, naturalmente, nunca pode ser dada por garantida, devendo ser continuamente reafirmada, de modo a abrir uma perspectiva de mudança social radical.
Deve-se insistir nesse último ponto. O que se passou na Grécia foi uma alternância completa no poder com todos os partidos que tinham atrás de si uma história de gestão do sistema. Não foi algo como a eleição de François Hollande em 2012, ou como a "experiência de centro-esquerda" de Romano Prodi na Itália nos anos 2000. Não foi sequer algo como o caso de François Mitterrand, em 1981, que no entanto chegou ao poder com um programa bastante radical para os padrões da época.
A aposta feita na Grécia foi muito diferente, carregando em si um poderoso potencial anti-sistémico. Exatamente por essa razão, desencadeou uma crise profunda, não só na Grécia, mas internacionalmente. Foi um confronto em larga escala, em que o nosso lado se mostrou inteiramente incapaz, não só de ganhar, mas mesmo de organizar uma elementar autodefesa, de modo que fomos levados para a capitulação que vimos.
Agora o que devemos fazer?
Neste momento, como disse anteriormente, a sociedade grega em geral ainda está em estado de choque pós-traumático. O nosso campo foi fulminado com a reversão da dinâmica desencadeada pelo estrondoso "não" do referendo, tudo dentro do espaço de poucos dias. Quando nós nos movemos fora dos círculos de ativistas e das camadas mais politizadas da sociedade, vemos que sentimentos contraditórios são predominantes. Há uma mistura de desilusão, raiva e profunda inquietação sobre o que está para vir, mas também uma margem de tolerância para com a escolha que foi feita pelo governo e pelo próprio Tsipras pessoalmente.
O ponto nodal para a recuperação, a partir deste clima, e para um reinício é o seguinte: os 62 por cento do "não" estão, neste momento, privados de qualquer expressão estruturada. A sua consolidação política e articulação é a tarefa imediata número um para todos nós. Esta consolidação política não pode ser vista como a extensão linear de qualquer das formações existentes - nem o Syriza nem o Antarsya nem qualquer outra formação, ou secções desses grupos.
Agora devemos falar em termos de um novo projeto político. Um novo projeto político que será de classe, democrático e anti-europeísta. Numa primeira fase vai assumir a forma de uma frente, aberta à experimentação e às novas práticas organizacionais. Uma frente que irá reunir movimentos de cima e iniciativas a partir de baixo - semelhantes às que surgiram durante a luta em torno do referendo com a criação das "comissões para o Não", mas também já depois disso.
Neste momento, é difícil, se não impossível, dizer mais sobre a forma concreta que este projeto político pode assumir (1). Está obviamente dependente, de forma decisiva, da luta interna que estamos atualmente travando dentro Syriza, ao lado dos companheiros da Plataforma de Esquerda e outros. Todos nós percebemos que, para que este projeto seja capaz de ir para a frente, muito mais é necessário.
Sob nenhuma circunstância deve a ala esquerda do Syriza, e mais especificamente a Plataforma de Esquerda, que é a sua componente melhor organizada, ser incentivada a reivindicar algum status exclusivo. Ela, no entanto, tem um papel central a desempenhar, como está agora a ser amplamente reconhecido, por amigos e inimigos. E isso, em certo sentido, está talvez entre os ganhos mais significativos das últimas semanas.
Quanto às suas metas, como elas foram recentemente resumidas, num belo artigo de Eleni Portaliou, minha companheira de muitos anos, a empresa está centrada nos seguintes eixos básicos:
- A libertação da nação e do povo gregos dos grilhões da zona do euro, com a elaboração imediata de um plano para a saída dos memorandos e do euro, em confrontação total com a U.E. que, na minha opinião, deveria ir tão longe quanto a retirada.
- A reconstrução deste país em ruínas - de sua economia, de seu Estado e do seu tecido social - liderada pelas classes trabalhadoras e pelo bloco popular, que serão chamados para conduzir este processo.
- Este projecto tem uma base marcadamente de classe. Ele vai ser suportado pelos principais setores da classe trabalhadora, que votou "não" e rejeitou austeridade por mais de 70 por cento, no referendo de 5 de julho. A sua espinha dorsal será constituída por forças provenientes das melhores tradições trabalhistas e do movimento revolucionário, em suas múltiplas expressões.
Ao mesmo tempo, é também nacional. E aqui, é claro, torna-se necessária mais uma explicação. Pelo que entendi, o termo "nacional" tem dois aspectos.
O primeiro é o "nacional-popular" no sentido gramsciano - que as massas trabalhadoras devem emergir como a principal força na sociedade, que devem tornar-se "a nação", a fim de reorientar essa "nação" em uma direção diferente.
Como Marx e Engels o formulam, no Manifesto do Partido Comunista, "uma vez que o proletariado deve, antes do mais, conquistar o poder político, deve elevar-se a ser a classe dirigente da nação, deve constituir-se a si própria como a nação, é ela própria, em si mesma, nacional, embora não no sentido burguês da palavra”. Nacional, aqui, não significa, portanto, nenhuma concepção trans-classista, do tipo “frente popular”, de unidade com alguma espectral "burguesia nacional", ou com alguns de seus setores. Refere-se à dimensão hegemônica de qualquer projecto centrado numa classe para conquistar a supremacia política.
Além disso, longe de conduzir a qualquer recuo à estreiteza nacional, ou ao nacionalismo, essa "nacionalização" do novo bloco hegemônico, como vou explicar em um momento, significa também que contém em si um profundo novo internacionalismo.
O projeto também é nacional no sentido de que, neste momento, há um problema de soberania nacional na Grécia - isto é, da existência da soberania popular e da própria democracia. O novo acordo, que foi assinado pelo governo grego, não perpetua simplesmente o domínio da troika, aprofunda-o. Estamos agora em uma situação em que o Estado grego, e qualquer governo grego eleito, essencialmente, não têm em suas mãos uma única alavanca para prosseguir qualquer política.
Este é, talvez, o objectivo mais profundo do memorando, acima e para além da imposição de mais um pacote de bárbaras medidas de austeridade.
O secretariado do rendimento interno, separado do resto do gabinete e colocado sob o controlo da troika, adquiriu uma autonomia total no governo. Um conselho financeiro está sendo estabelecido, que será capaz de instituir automaticamente cortes horizontais, se houver divergência em relação a qualquer objectivo fiscal estabelecido no memorando. O infame fundo de € 50 biliões também está sendo criado, sob o controle direto da troika, e toda a propriedade pública grega destinada à privatização está sendo colocada sob a sua jurisdição.
Mesmo o EL.STAT, serviço de estatística da Grécia, está sendo transformado em uma autoridade ostensivamente independente, que será na verdade controlada diretamente pela troika, servindo como um mecanismo de controlo e verificação, numa base diária, sobre a implementação pelo Estado grego dos objetivos do memorando.
A Grécia está assim sendo convertida - vou ao ponto de traçar essa analogia - numa espécie de Kosovo em mais larga escala, um país tolhido de pés e mãos em correntes neocoloniais e consignado a um estatuto de insignificante e arruinado semi-protetorado balcânico. Em tal conjuntura, a referência à nacionalidade indica que há um problema de recuperação da soberania nacional, como um pré-requisito para o exercício de políticas democráticas e progressistas do tipo mais elementar, para não falar sequer de políticas anticapitalistas.
Este projecto, finalmente, e isso não é de forma alguma incompatível com o que acaba de ser dito, é profundamente internacionalista. Isto não é só porque defesa dos interesses de classe vitais dos trabalhadores e das camadas populares de um país é, por sua natureza, internacionalista, uma vez que as pessoas exploradas de diferentes países têm sempre interesses comuns. É internacionalista num sentido muito mais concreto, porque uma brecha no elo fraco da zona euro e da U.E. abre o caminho para outras rupturas na Europa e assesta um poderoso golpe no edifício reaccionário e antipopular da U.E..
Não só o nosso internacionalismo não tem nada a ver com o euro e com a U.E., mas do seu seio surgirão as manifestações de um cada vez maior rejeição e resistência a estas formações por parte dos povos da Europa.
A luta dos gregos e dos outros povos europeus contra a jaula de ferro da U.E. irá revelar o caráter de classe e imperialista deste edifício e, assim, permitir que as lutas no interior do centro histórico do capitalismo mundial se conectem com os movimentos mais amplos contra a dominação imperialista e capitalista à escala global, em especial com os movimentos do Sul global, que começam logo no outro lado do Mediterrâneo.
Não nos esqueçamos aqui que, no ano de referência de 2011, a primeira onda de rebelião popular após o início da crise de 2008 levou à explosão quase simultânea da Primavera Árabe e dos movimentos gregos e espanhóis da ocupação de praças de cidade.
O que podemos agora desenhar, como conclusão, a partir da experiência política que se seguiu, é que a perspectiva de uma verdadeira "outra Europa", que não pode deixar de ser socialista na sua orientação, exige a dissolução da zona euro de hoje e da U.E., começando com quebras no elos mais fracos. Além disso, essa dissolução é um pré-requisito para um corte muito devido e oportuno, por parte da Europa - tanto com o seu passado colonial como com o seu presente neocolonial e imperialista.
Como conclusão, gostaria de dizer que nos foi ensinada uma lição dura, e com um preço muito pesado. Como é geralmente verdade, neste tipo de situações, os primeiros a serem chamados a pagar o preço serão os trabalhadores, e neste caso a Grécia, como país e como sociedade. Mas para nós, para as forças da esquerda radical e anticapitalista, foi uma lição necessária. Ela pode levar à nossa destruição, mas também a um novo começo. Ou, como o nosso grande poeta Kostis Palamas exprimiu, a um "novo nascimento" - se pudermos refletir sobre ela e, ao mesmo tempo, atuar.
(*) Stathis Kouvelakis é doutorado em Filosofia Política pela Universidade de Paris VIII, onde foi professor. Desde 2003 ensina no King’s College de Londres. As suas áreas principais de investigação são a formação do pensamento de Karl Marx, a tradição marxista e o pensamento crítico mais recente. É membro do comité central do Syriza. Em França foi próximo de Daniel Bensaïd e um colaborador regular da sua revista Contretemps. Entre os seus livros publicados contam-se Dictionnaire Marx Contemporain(co-editado com Jacques Bidet) Paris, Presses Universitaires de France, 2001, traduzido em inglês; Philosophy and Revolution: From Kant to Marx, London e New York, Verso, 2003; La France en révolte. Luttes sociales et cycles politiques, Paris, Textuel, 2007; Lenin Reloaded: Toward a Politics of Truth (co-editado com Sebastian Budgen e Slavoj Zizek), Durham, Duke University Press, 2007, traduzido em alemão, italiano, espanhol e turco; Y a-t-il une vie après le capitalisme? (contribuição em livro coletivo), Paris, Le Temps des cerises, 2008; Crisis in the Eurozone (editado com Costas Lapavitsas), London, Verso, 2012. Este texto foi adaptado de um discurso na reunião pública organizada pela webzine Kommon, em Atenas, em 23 de julho de 2015. Tradução de Ângelo Novo, a partir da transcrição de Panagiotis Frantzis e da tradução inglesa de Wayne Hall.
___________________ NOTA DO EDITOR:
(1) Neste momento podemos já indicar que o projeto político almejado pelo autor acabou por concretizar-se e tomar expressão na frente Unidade Popular (Laïkí Enótita). Na marcha forçada para as eleições legislativas de 20 de setembro, convocadas por Tsipras, esta nova organização não pôde ainda muito mais do que reunir-se, à pressa, em torno dos 25 deputados da Plataforma de Esquerda do Syriza e do ex-ministro da Reconstrução, Ambiente e Energia, Panagiotis Lafazanis. Recolheu depois a adesão de algumas personalidades e organizações de esquerda alheias à Plataforma de Esquerda e mesmo ao Syriza. Nas urnas obteve 2,8% dos votos expressos e nenhuma representação parlamentar.
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