As ilusões do pós-modernismo

 

  

 

Bernard Stiegler (*)

 

 

 

Tudo isto está por pensar, por experimentar

Jean-François Lyotard

 

  

Silêncio, linguagem, tecnologia, testemunho

 

Uma organologia dos saberes – capaz de dar conta daquilo que afecta a Universidade contemporânea onde acontece, segundo Derrida, “algo de completamente diferente” - está hoje terrivelmente em falta, já que ela consiste no estudo das complexões organizacionais (1) e dos processos de individuação e desindividuação tornados possíveis pelas formas e articulações específicas das retenções terciárias.

 

A total ausência de crítica do sistema de que as agências de notação representam a face visível, e que a liquidação de toda a soberania torna evidente, seja qual for a escala geográfica sob a qual se encare, é um sintoma terrível e gritante de um desarmamento do pensamento perante um mundo onde a tecnologia se tornou a principal arma de uma guerra económica mundial onde não é fácil identificar os protagonista nem o desfecho do combate – que poderia e deveria conduzir a um tratado de paz - que exige um rearmamento que terá que passar por redefinição das condições de articulação entre a individuação psíquica e colectiva, e a individuação técnica (2).

 

Esta redefinição é a finalidade primária da política e particularmente da grande política que se concentra nas tarefas constitucionais. A entrada na esfera política (na polis) é a saída da guerra - quando o polemos se transforma em controvérsia lógica, e a armas passam a ser as armas da lei. O que está em jogo numa paz, de hoje, é a transformação das armas da guerra (ou seja, da barbárie) que a tecnologia põe à disposição do psico-poder enfeudado ao capitalismo financeiro em tecnologias do espírito postas ao serviço das controvérsias lógicas na paz civil.

 

Com algumas parcas excepções, como a dos três economistas portugueses do Porto e de Lisboa e, em França, de Paul Jorion, “o silêncio dos intelectuais” sobre a situação económico-política planetária, sobre a guerra económica que ela conduz e sobre as eventuais saídas pacíficas possíveis, é “ensurdecedor” (3).

 

“Silêncio dos intelectuais” foi uma expressão empregada no jornal Le Monde do 16 de Julho de 1983 por Max Gallo, na altura porta-voz do governo socialista que, desde há dois anos, detinha, nessa altura, o poder em França, o qual, segundo a reformulação proposta por Jean-François Lyotard apelava aos “intelectuais” a

 

«abrir o debate sobre a mutação de que a França precisa para recuperar o seu “atraso”, em matéria económica e social» (4).

 

No mês de Março do mesmo ano, o novo governo formado por Laurent Fabius nomeado, então, primeiro-ministro, havia lançado a “viragem do rigor”. A 8 de Outubro de 1983, no mesmo jornal, Lyotard analisava a comentava o apelo nestes termos

 

«O que se entende, precisamente por “intelectual”? O seu apelo solicita conceptores, decisores, especialistas, inteligências certamente, mas que assumem ou terão que assumir responsabilidades administrativas, económicas, sociais, culturais ou que, pelo menos, debatam a dita “mutação” sem perder de vista esta responsabilidades.»

 

Ora, um apelo deste tipo repousa sobre

 

«Uma confusão de responsabilidades. Não tem em atenção as dissociações que se produzem, por princípio, nas tarefas da inteligência» (5).

 

Estas dissociações procedem do que Lyotard chama um diferendo, que, como vimos, repousa, ao mesmo tempo, sobre a divisão da razão pensada por Kant no final do século XVIII, e sobre o papel dos “jogos de linguagem” que estruturam, segundo Wittgenstein (tal como o interpreta Lyotard), toda a vida noética. Este diferendo torna impossível uma síntese onde poderia produzir-se um ponto de vista unitotal que permitiria fundar e legitimar a acção histórica de um sujeito universal que incarnasse o bem-comum, e submete a idealidade do universal e do sujeito histórico que o incarna, ao desempenho sistémico do capitalismo.

 

Ora, num outro texto que apareceu em Outubro de 1981, ou seja, dois anos depois da publicação de A Condição Pós-Moderna e alguns meses após a chegada ao poder de François Mitterrand e do governo formado por Pierre Mauroy que associava socialistas e comunistas, Lyotard afirmava

 

«foi provado (…) que o sujeito universal que incarnaria o bem-comum, não aconteceu» (6).

 

E sustenta que é preciso tirar a consequência que se impõe, passando por Kant e Wittgenstein - tal como Lyotard os lê - leitura que explicitará 1983 no O Diferendo - a saber que

 

«“a sociedade”, como se diz é habitada por diferendos» (7).

 

Essa é a razão pela qual Lyotard desconfia, no mais alto grau, dos intelectuais que se apinham à roda do governo de Mitterrand e do governo socialista:

 

«A intelligentsia não regateou o seu apoio, os seus conselhos, a sua participação no novo poder (…). Creio que os misteres do espírito devem estar mais vocacionados para dar testemunho dos diferendos (…). A política é apenas negócio e a cultura não passa de tradição, se uma e outra não forem trabalhadas pelo sentido do diferendo, do qual, de resto, ninguém detém o privilégio» (8).

 

Ora, será que este diferendo é de natureza linguística, como argumentará Lyotard em O Diferendo, inscrevendo a sua argumentação no que se chamou, então, o linguistic turn? Será correcto interpretar, como ele o faz em A Condição Pós-Moderna, o desenvolvimento das tecnologias, como essencialmente fundadas sobre as “máquinas de linguagem” (9)?

 

Estas questões são fundamentais, já que é possível interpretar o diferendo em dois sentidos muito diferentes:

 

- seja, ele provém do carácter fundamentalmente linguajeiro do espírito e da alma noética, de tal modo que a linguagem é, desde logo, irredutivelmente idiomática, e por isso imediatamente fracturada por uma intraduzibilidade pensada por Wittgenstein, na sua teoria dos jogos de linguagem, interpretada aqui num sentido muito próximo da pensamento derridiano da heterogeneidade irredutível (10);

 

- seja a situação da linguagem, onde o diferendo toma a palavra nestes múltiplos modos irredutíveis, é, ela mesma, uma dimensão singular (11) de uma situação farmacológica muito mais profunda, procedendo este diferendo desta farmacologia que o abriga não deixando de o deslocar; nesta farmacologia que é uma “fármaco-lógica”, onde os polos não se opõem: cada um é a sua condição transdutiva, como potencial, tensão e desfasamento, isto é, a diferância do processo de individuação.

 

Creio que, na sua resposta a Max Gallo, Lyotard trata apressadamente as questões relativas à técnica e à tecnologia, em particular quando tende a opor a técnica e a linguagem para justificar a retração em que se mantém, perante os representantes políticos, as “testemunhas do diferendo”, como ele próprio o faz. Mas, antes de precisar estes pontos, há que regressar às hipóteses iniciais que foram apresentadas primeiramente em A Condição Pós-Moderna.

 

 

Sistémica e responsabilidade

 

A Condição Pós-Moderna é um “relatório sobre o saber” (é seu subtítulo) escrito a pedido do governo do Quebeque, sob a influência do ponto de vista sistemista que reinava, então, na América do Norte, em particular através dos escritos de Talcott Parsons, e no contexto de um conflito teórico entre Jürgen Habermas e Niklas Luhmann (12). É este o contexto que o conduz a definir a performatividade a partir da noção de sistema e a afirmar que

 

«A verdadeira finalidade do sistema, e é por isso que ele se programa a si mesmo como uma máquina inteligente, é a optimização da relação global entre os seus inputs e os seus outputs, ou seja, a sua performatividade. Mesmo quando as regras mudam e se produzem inovações, mesmo quando há disfuncionamentos como as greves, as crises de desemprego, ou revoluções políticas que podem fazer acreditar que existe uma alternativa e levantar as esperanças, não se trata senão de reajustamentos internos e o seu resultado só pode ser a “melhoria” da vida do sistema, já que a única alternativa a este aperfeiçoamento das performances, é a entropia, isto é, o declínio» (13).

 

O reinado desta performatividade e da sistémica que ela generaliza através do desenvolvimento das tecnologias e das suas “máquinas de linguagem” (14) corresponde á queda em desuso do modelo da Aufklärung, que Lyotard - rompendo aqui radicalmente com Adorno e Horkheimer, e até com o agir comunicacional de Habermas – identifica com alguma precipitação com o pensamento especulativo, ou seja, a proposição especulativa da dialéctica hegeliana da “substância-sujeito”, analisada a partir da sua transformação histórica em marxismo, isto é, em materialismo histórico e em materialismo dialéctico e na posteridade daquilo que Lyotard apreende como o seu fracasso (15).

 

O marxismo aparece aqui como combinação materialista (invertendo o sentido dos termos que combina) do ideal de emancipação das Luzes, da metafísica especulativa e do domínio da dialéctica em que consistiria a razão hegeliana, e o contributo próprio do materialismo que seria a noção da luta de classes, nas suas relações de produção, tal como a partir de uma interpretação da dialéctica do Senhor e do Servo, que atribui um papel revolucionário ao proletariado como sujeito da História.

 

A queda em desuso da Aufklärung que teria sido provada pelo fracasso do hegeliano-marxismo (que Lyotard acabava de abandonar (16) ) é aquilo que se traduz no fim das “grandes narrativas”:

 

«A grande narrativa perdeu a sua credibilidade, seja qual for o modo de unificação que lhe seja atribuído; narrativa especulativa ou narrativa de emancipação» (sublinhado meu) (17).

 

Com efeito, a questão é a unificação. Desde Kant, dirá O Diferendo, a razão é atravessada por um conflito – e deste conflito, e do seu trabalho, a sua perlaboração (18), a filosofia pós-kantiana deve dar testemunho, depois de passar pelo luto de uma concepção unificada e unificadora da razão. A Razão - se é que devemos manter esta grande palavra – já não é o Um, mas o horizonte que permite a passagem entre as faculdades da razão que formam um arquipélago (19).

 

Depois do kantismo, uma nova tentativa de unificação, mais totalizante e mais sintetizante do que qualquer outra será feita pelo hegelianismo, o que Lyotard designa por “narrativa especulativa” (A Fenomenologia do Espírito é de facto uma narrativa que conduz ao que Hegel chama a proposição especulativa), depois pela “narrativa da emancipação” a partir do destino histórico-político do hegelianismo desde Feuerbach (cuja tese tem por título Da Razão una, universal e infinita) até ao próprio Lyotard (20), passando por Marx, Engels, Lenine e alguns outros – designadamente Althusser. Esta dupla tentativa conduzirá a um duplo fracasso epistemológico e histórico, enquanto o pensamento, prosseguindo a fenomenologia onde se encontrou a si mesmo, encontrará finalmente os limites perante os quais deverá fazer o luto do Um - e afrontar o Diferendo.

 

Dito de outro modo, a queda em desuso da Aufklärung, que A Condição Pós-Moderna. Relatório sobre o Saber, pretende registar numa época definida como a das sociedades pós-industriais (21), não é apenas o fruto da performatividade induzida pelo desenvolvimento tecnológico que transforma as ciências e as “formas do saber” em geral numa mercadoria (22) explorada pelo sistema em que consiste o capital: esta queda em desuso é precedida e anunciada por transformações na arte, na literatura e no pensamento filosófico e científico.

 

«Mas há que assinalar, em primeiro lugar, os germes de “deslegitimação” e de niilismo que eram inerentes às grandes narrativas do século XIX, para compreender como a ciência contemporânea podia ser sensível a estes impactes bem antes de acontecerem» (23).

 

Estes germes seriam os elementos percursores daquilo que, segundo Lyotard, constitui uma nova época - época que, vinda depois do ideal de emancipação, isto é após a modernidade, deverá, consequentemente, ser chamada pós-modernidade, supostamente, pós industrial.

 

Numa época como esta

 

«a ciência (…) não pode (…) legitimar-se a si mesma, como supunha a especulação (…). O princípio de uni totalidade ou de síntese, sob a autoridade de meta-discurso, é inaplicável» (24).

 

É o que se descortina no final do século XIX e começo do século XX, muito antes do surgimento da era pós-moderna, com a crise dos fundamentos da matemática e com o pensamento vienense. Isto aconteceu - segundo Lyotard - porque, desde Kant, a razão se fragmentou nesta ilhas que são as faculdades que formam um arquipélago (se ainda é possível falar aqui de razão) e abre passerelles onde se formam linguagens acima das quais não há nenhuma língua universal, como acreditava o pensamento clássico do século XVII, nem nenhuma “síntese” nem “metadiscurso do saber”, nem sujeito universal, como acreditava o pensamento especulativo idealista e o materialismo do século XIX.

 

Desde então, a partir da crise do saber que advém no final do século XIX nas matemáticas e na física, mas também nas linguagens literárias e percepções artísticas, o arquipélago kantiano pode e deve ser traduzido numa heteronomia de jogos de linguagem, como os pensou Wittgenstein.

 

Ninguém pode falar todas as línguas (que são os saberes) não há metalíngua universal, o projecto do sistema-sujeito fracassou e o da emancipação nada tem que ver com a ciência (25).

 

- e esta última frase é uma espécie de pontapé dirigido contra Althusser.

 

Todas estas negações conduzem a um trabalho de luto que é uma experiência de deslegitimação. Ora, no momento em que Lyotard escreve, este trabalho de luto já teria sido feito e não haveria necessidade de repeti-lo:

 

«Este pessimismo é aquele que alimentou a geração do princípio do século em Viena: os artistas, Musil, Kraus, Hoffmannsthal, Loos, Schoenberg, Broch, mas também os filósofos, Mach e Wittgenstein. Eles levaram, sem dúvida, até ao máximo possível, a consciência, a responsabilidade teórica e artística da deslegitimação. Hoje pode dizer-se que esse trabalho de luto já foi feito. Não há que repeti-lo» (26).

 

Não consigo deixar de ter as maiores dúvidas, e vejo, nesta afirmação, uma denegação – afirmação que a posteriori é difícil deixar de achar demasiado peremptória (mais de vinte anos depois, na posteridade de um tempo tal como se nos apresenta como história, a nossa história, e como a história de uma calamidade). Vejo aqui uma denegação, isto é, a experiência de uma resistência à necessária experiência da melancolia e, porventura, daquela forma de inteligência que só ela pode, por vezes, produzir. E fico surpreendido por reencontrar, no fim de contas, e como horizonte aberto por esta afirmação, um discurso que provém da Escola de Frankfurt, na sua versão tardia, a de Jürgen Habermas.

 

Porque se é preciso fazer o luto da “legitimação” pelas grandes narrativas, escreve Lyotard, nem por isso deve renunciar-se a procurar

 

«Uma outra forma de legitimação para lá da performatividade.»

 

Ora, esta outra forma de legitimação é a que decorre da linguagem e da comunicação,

 

«a nostalgia da narrativa perdida também se perdeu para a maior parte das pessoas

 

E como, contrariamente ao que temiam Adorno e Horkheimer

 

«não se segue necessariamente que estejam votados à barbárie»

 

Para a “maioria das pessoas”,

 

«a legitimação não pode advir senão da sua prática, da linguagem e da sua interação comunicacional» (27).).

 

É a posição de Habermas que é retomada aqui, mesmo se ela é retomada como possibilidade de se ver afirmada, nas práticas linguísticas e comunicacionais, pelo dissenso - em vez do consenso que Habermas ainda procura.

 

No entanto, que a nostalgia (da narrativa perdida e de outras coisas que entravam pelos olhos dentro) tenha sido “perdida para a maior parte das pessoas” que nem por isso são “votadas à barbárie”, na medida em que a sua “prática da linguagem” é suficiente para reconstituir a legitimação, é precisamente aquilo de que duvido em absoluto - e duvido, como “geração desclassificada” que se dirige à “geração lírica” de 1968, 65 anos depois de Adorno e Horkheimer quando, em 1944, se dirigiam a um mundo mergulhado na irrazão: duvido na posteridade de tudo isso ao mesmo tempo - e de muitas outras coisas (28). E receio que a crise actual do crédito e da dívida na qual mergulhou o século XXI, ainda nascente, proceda da mesma dúvida, que se abate mais ou menos sobre toda a gente e sobre cada uma de nós isoladamente, deixando-nos numa terrível solidão, por todos os cantos deste mundo.

 

O problema reside em que a “interacção comunicacional” foi feita em papas por razões que Lyotard soberbamente ignora (o que jamais foi o caso em relação a Habermas (29), embora ele tenha negligenciado gravemente a técnica, na língua (30) ) e por aquilo a que eu chamei, num sentido totalmente diferente do de Lyotard, a dissociação, isso é, a destruição dos meios associados que constituem os campos simbólicos em geral – que não são evidentemente redutíveis à linguagem e à comunicação e são sempre tecnologicamente sobredeterminados.

 

A gramatização das práticas e dos saberes em geral, incluindo o saber-viver, conduziu a uma proletarização generalizada que é igualmente uma dessimbolização, ou seja, a destruição do dialogismo em que consiste a individuação: esta proletarização conduziu a um processo de desindividuação massiva que instaurou uma situação de imbecilidade sistémica. Nós que entrámos no século XXI que Lyotard não conheceu, fazemos, hoje, a terrível experiência, uma provação onde já não é possível levar completamente a sério afirmações que, por vezes, parecem quase gracejos, e que, privilegiando a linguagem, fazem a economia de uma crítica da economia política, como hegemonia exercida sobre o devir tecnológico - isto é, fármaco-lógico.

 

Em particular, não é possível deixar de observar que as afirmações sobre a sistémica não conferem nenhum relevo à questão dos limites do sistema, ao facto de que todo o sistema dinâmico tem limites, que sempre chegará o tempo em que necessariamente os encontrará (31), enquanto a filosofia talvez tenha sempre consistido em pensar as passagens aos limites (32). Hoje vivemos precisamente esse tempo - o tempo em que encontrámos os limites, o tempo do risco da passagem aos limites (como passagem ao acto da Irrazão).

 

É, então, que acabamos por perguntar-nos se não seria talvez o tempo de reler – de um modo diferente – a filosofia do século XIX, e designadamente de interrogar aí

 

- o que faz a diferença (na repetição) entre proposição predicativa e proposição especulativa;

 

- o que significa “proletariado” e “proletarização”.

 

No seu passado marxista, como na sua passagem à pragmática dos diferendos, inspirada pelo pensamento sistemista, Lyotard retoma, tal qual, o conceito de proletariado, na forma pela qual é pensado na tradição clássica marxista. Sustentarei que é precisamente interpretando erroneamente, como Lyotard ainda o faz, o conceito de proletariado e de proletarização, que o materialismo perpetuará um ponto de vista metafísico na sua interpretação e reapropriação do hegelianismo, fracassando, no mesmo passo, no modo como pensa o devir do capital.

 

Antes regressar a este tema fundamental, que concluirá a primeira parte desta obra, devemos retomar o fio da resposta de Lyotard a Max Gallo quanto ao silêncio dos intelectuais e quanto à sua responsabilidade na época das “mutações” (Gallo) induzidas pelas “máquinas de linguagem” (Lyotard).

 

 

Tecnologias da responsabilidade e responsabilidade perante a tecnologia

 

Se o diferendo é essencialmente uma questão de linguagem, ele é todavia potenciado pelas “novas técnicas” e as “novas tecnologias” que deslocam e diferenciam as responsabilidades, escreve Lyotard no Le Monde, em 1983:

 

«As novas técnicas, essencialmente ligadas às tecnologias da linguagem, assim como a concentração das administrações civis, económicas, sociais, e militares, modificaram a própria natureza das responsabilidades intermédias e superiores e chamaram a si um certo número de espíritos formados nas ciências exactas, nas tecnologias de ponta e nas ciências humanas» (33).

 

Esta técnicas “essencialmente ligadas às tecnociências da linguagem” fizeram surgir agentes do saber performativo que, ao contrário de uma testemunha do diferendo, e de um sentido de responsabilidade fundado nessa experiência, fazem do saber uma luta de performances, ou seja, submetem o saber aos critérios económicos que se impõe num ou noutro momento, uma vez que o liberalismo está em vias de destruir a coisa pública que o Estado moderno incarnava (34). As novas técnicas operam por meio de competências que estão ao serviço de performances cujas finalidades são antagónicas a um acto noético e racional, no sentido da Aufklärung:

 

«Estes novos quadros (…) no exercício profissional da sua inteligência, não têm por objectivo incarnar, tanto quanto possível, no domínio das suas competências, nenhuma ideia de um sujeito universal, mas tão só o de realizar as melhores performances possíveis.»

 

A criteriologia que usam é simplesmente “técnica”. E se

 

«um espírito comprometido neste tipo de responsabilidades pode e, provavelmente, deve, ser conduzido a inventar novos dispositivos (…) não interroga os limites destes dispositivos» (35).

 

Um tal espírito, ignora também, diria eu, o seu carácter farmacológico: usa os farmaka, mas porque não conhece a sua toxidade, ignora a dimensão farmacológica em geral – ou seja o diferendo que, com efeito, está inevitavelmente presente.

 

Parece que Lyotard que já ignorava estes limites na sua apresentação da sistémica performativa que teria tornado caducas as narrativas de legitimação, como vimos anteriormente (36), aqui, continua a ignorá-los.

 

Em O Diferendo, as tecnologias deslocam as fronteiras entre aqueles que dão testemunho do diferendo e aqueles que o fazem trabalhar através das suas performances e de algum modo, à sua custa. Mas Lyotard admite que

 

«A proliferação das novas tecnologias não cessa de destabilizar esta divisão» (37).

 

entre “testemunhas” e actores (por exemplo os novos quadros) deste diferendo. Todavia, conclui que esta destabilização e este deslocamento, não muda nada, no que respeita à performatividade do sistema: não muda nada ao facto de que tecnologização da linguagem tem, em todos os casos, por consequência a submissão da responsabilidade à performance – que também poderia chamar-se eficiência, ou “princípio de realidade”. Sustentarei que, pelo contrário, esta tecnologização é uma gramatização que abre a linguagem à possibilidade de testemunhar e a muitas outras também.

 

Para Lyotard, a tecnologização conduz inevitavelmente à submissão da responsabilidade à performance:

 

«No momento em que um escritor, um artista, um sábio ou um filósofo assume uma responsabilidade deste tipo (isto é, como quereria Max Gallo, a propósito da mutação em curso, que se trataria de analisar) ele aceita ipso facto a regra do jogo que lhe está associada: ser eficiente no domínio que lhe compete» (38).

 

Não é surpreendente ver assim afirmada como um postulado a impossibilidade de redefinir uma partilha de responsabilidades, perante o facto de uma mutação tecnológica – que é precisamente aquilo que espera Gallo talvez sem o saber, aquilo que espera, sem esperar? Haveria uma ontologia – necessariamente unitotal do diferendo, que seria uma ontologia da responsabilidade?

 

Por outro lado, será que tudo isto significa que inevitavelmente estas tecnologias não podem deixar de ser postas ao serviço desta performatividade e que não é possível nenhuma outra política destas tecnologias (e da responsabilidade que, com toda a evidência, está sempre ligada à técnica e às tecnologias, enquanto elas constituem os instrumentos de todo o poder, a começar pelo poder que qualquer de nós tem de matar, desde que tenha nas mãos a mais insignificante navalha) – uma outra política que permitisse, por exemplo, desenvolver uma performatividade individuante, tal como a que veremos em breve reivindicada por Derrida? (39)

 

Esta é a minha hipótese e Lyotard, parece não a admitir. Porém, veremos (40) que ele mesmo abre essa perspectiva no fim de A Condição Pós-Moderna, mas, de certo modo, sem o saber, ou mais exactamente, jugando saber uma coisa diferente (outra coisa que julgo, mais tarde e na posteridade que nos separa dessa época, se tornou falsa).

 

Questionando de modo diferente, mas também aqui de forma brutal: será que este farmakon da performatividade, compreendida como eficiência, no sentido em que, segundo Platão, os sofistas compreendiam e assumiam seu próprio papel (de que a “cultura do resultado”, nestes nossos tempos miseráveis, é uma versão grotesca) é intrínseca e exclusivamente tóxico, ou uma farmacologia positiva pode e deve conduzir a repensar, na sua totalidade, a tecnologia da responsabilidade, isto é, da autonomia e da razão, como também da responsabilidade da tecnologia pelas “tecnologias do poder” (41), se é verdade que estes três termos – autonomia, razão e responsabilidade – são inseparáveis de uma heteronomia que está na raiz ou defeito de origem do que Lyotard chama o “diferendo” (como traço, repetição, etc.?).

 

 

A anamnese como “après-coup”

 

Num capítulo de O Inumano, Logos e tekhnè ou a telegrafia (42), Lyotard esboça esta hipótese – entreabre a sua possibilidade mas com as maiores reservas – distinguindo a escrita da telegrafia. Esta resposta é estranhamente próxima do discurso de Heidegger em Linguagem da tradição e linguagem técnica (43) (que comentei em La Désorientation (44) ) onde a telegrafia é definida como uma “tecnicização da linguagem” - isto é, uma desnaturação da linguagem.

 

Depois de ter distinguido três tipos de “efeito de memória”,

 

«De traçado (frayage), de rastreio (balayage), de passagem (passage) que coincidem, grosso modo, respectivamente com estes três tipos de síntese do tempo ligada à inscrição que são o hábito, a rememoração e a anamnese» (45).

 

E depois de ter especificado a história contemporânea do varrimento como típica do tekhnologos que se instala com a digitalização e que A Condição Pós-Moderna já analisava, a história do rastreio definida aqui como telegrafia e repousando essencialmente sobre o desenvolvimento das máquinas de linguagem que inauguram, de algum modo, um entendimento automático (46), Lyotard aborda o que chama, pois, a passagem cujo modelo é aquilo que Freud designa por Durcharbeitung que constitui a escrita como algo de irredutível à telegrafia:

 

«Algumas palavra sobre a “passagem” (…). É uma outra memorização, ligada a uma escrita que é diferente da inscrição por traçado ou por experimentação, diferente da repetição por hábito e da rememoração voluntária. Emprego o termo “passagem” por alusão à terceira técnica de rememoração que Freud opõe às duas primeiras na sua narrativa da “técnica psicanalítica”: o “passar” (infinitivo) em questão é o Durch alemão o Durcharbeitung ou o Through do working through inglês, o passar através da trans ou a perlaboração» (47).

 

Esta escrita seria irredutível a qualquer telegrafia, ou seja, a qualquer tecnização ou tecnologização da linguagem porque a perlaboração (ou translaboração)

 

«passa ao lado da síntese em geral (…) ou, se quisermos (…) pela recordação do que foi esquecido. Tratar-se-ia de recordar o que não pôde ser esquecido porque não foi inscrito» (48).

 

E só a escrita como anamnese, tal que, para Lyotard, ela não é telegráfica, isto é, hipomnésica, técnica de rastreio pode suportar “aquilo que não foi inscrito”:

 

«Vejo que só a escrita, ela mesma anamnese do que não foi inscrito, pode suportar a comparação com esta regra atécnica (49) ou a-tecnológica»

 

que seria a anamnese – da qual não podemos esquecer que ela terá sido a questão fundadora do saber filosófico em Platão (50).

 

«É toda a questão do “après-coup” freudiano: será que o primeiro golpe (…) que não foi inscrito e só regressa como segundo golpe, disfarçado, terá sido registado na mesma superfície de inscrição onde se inscrevem o segundo e os seguintes, diferindo apenas por ser indecifrável?» (51)

 

A anamnese seria a estrutura de uma repetição que ainda não teve lugar e constituiria assim a questão da escrita - isto é, daquilo a que Derrida chama a arqui-escrita – que seria irredutível à telegrafia:

 

«Falo aqui daquilo a que a psicanálise chama anamnese, daquilo a que a chamada “pensée française” chama, desde há longo tempo, écriture» (52).

 

Todavia, além de que duvido que Derrida tenha oposto, nestes termos, a escrita e a telegrafia, para além do facto de que a proposição especulativa hegeliana procede igualmente de um tal aprés-coup, como iremos mostrar dentro em pouco, não seria necessário retornar a Lacan e à questão da Coisa – Das Ding?

 

Na análise de Lacan (53), Das Ding constitui um processo de substituição sem fim, uma suplementariedade primordial e interminável, uma diferância neste sentido, dado que o objecto do desejo é sempre o desejo de outro objecto – das Ding é precisamente o que jamais está presente, que nunca aparecerá, que não conhece nenhum presente e que poderíamos ser tentados a apreender como transcendência (54). Das Ding é a estrutura a priori do desejo, a coisa de que jamais tivemos experiência.

 

Propus, no entanto, uma leitura um pouco deslocada desta análise de Lacan (mais próxima da de Deleuze) na medida em que aquilo que Lacan se propõe pensar, esta suplementariedade sem fim como a estrutura de uma falta, também podemos lê-la como a de um defeito de origem – como defeito que condena a uma repetição que pode e deve tornar-se no que é preciso (ce qu’il faut)e nisso fazer uma diferença: como proteticidade, neotenia, exteriorização primordial que não é precedida por nenhuma interioridade e não pode ser interiorizada senão através deste pharmakon primordial que é, na construção do aparelho psíquico, o objecto transicional descrito por Winnicott (55).

 

O objecto primordial não é de natureza linguística, bem pelo contrário: ele precede o acesso à linguagem, é o objecto do infans. É através dele que pode compreender-se que Das Ding constitui o horizonte da consistência em geral - isto é, aquilo que não existe nem subsiste, mas consiste e é, como tal, infinitamente desejado. Este defeito que é preciso (le défaut qu’il faut) é a consistência farmacológica (a doença e a saúde, dizem Canguilhem e Deleuze) do que faz falta como objecto do desejo, onde Das Ding só aparece no modo do porvir (formando, nessa medida, a estrutura do que Derrida chama a promessa).

 

 

Invenção e resistência. A diluição da responsabilidade

 

A conclusão que Lyotard retira desta oposição entre técnica e linguagem ou telegrafia e escrita é de que, no campo da performatividade, das máquinas de linguagem e das tenologias de um mundo supostamente pós-moderno, as testemunhas do diferendo, não podem inventar nada: podem apenas resistir - a invenção está do lado dos “novos quadros” e outros especialistas que banham na eficiência sem limites.

 

A testemunha do diferendo resiste

 

«(no seu sentido não psicanalítico, penso antes no sentido de Wilson do 1984 de Orwell) nos traçados e de rastreio, nos programa espertalhões e nos grandes telegramas

 

É por isso que mesmo quando ele diz que tenta encarar a possibilidade de que a passagem, ou seja, a anamnese seja

 

«possível com, ou permitida por, o novo modo de inscrição e de memorização que caracteriza as novas tecnologias»

 

pergunta-se se os traçados e os rastreios próprios do digital (é assim que actualmente designamos as tecnologias que, hoje, constituem os suportes da maior parte das nossas actividades, quer o saibamos ou não)

 

«não impõem (…) sínteses e concepções, mais intimamente nas almas do que qualquer outra tecnologia precedente. Mas, por isso mesmo, não será que não ajudam a afinar a nossa competência anamnésica? Detenho-me com esta vaga esperança, demasiado dialéctica para ser séria. Tudo isto fica para pensar, a ensaiar(56)

 

Assim termina “Logos e Tekhné. A Telegrafia”.

 

Esta hipótese - na qual é evidente que Lyotard, em 1986, não acredita, que formula quase para agradar ao seu destinatário (57) - será dialéctica? O que é que se chama aqui dialéctica? Será sério convocar a dialéctica para imediatamente a mandar passear sem sequer a discutir? Será sério dizer que a dialéctica não é uma questão séria?

 

Um traço comum de toda a “pensée française“ desses anos - como marca de um corte definitivo com Althusser e com o marxismo de que Lyotard fora anteriormente um pensador e um militante - é o anti-hegelianismo, naquilo que ele tem de “totalizante”. E a síntese, em geral, representa, para Lyotard, esta totalização de que a própria ideia de universalidade, diz ele aliás, é o fantasma extenuado:

 

«O declínio, talvez a ruína, da ideia universal pode libertar o pensamento e a vida das obsessões totalizantes (sublinhado meu)» (58).

 

É nesta possibilidade que, no fim da sua resposta a Gallo, ele coloca a sua esperança de ver a disseminação e a multiplicação das responsabilidades:

 

«A multiplicidade das responsabilidades e a sua interdependência e até a sua incompatibilidade, sejam pequenas ou grandes, a obrigam e obrigarão aqueles que as assumem, à flexibilidade, à tolerância e à elegância…» (59).

 

Tal seria o “lado bom” da concepção pós-moderna.

 

Mas para além do facto de que se sente aqui despontar uma moleza política típica do final do século XX, portadora das maiores ameaças e que, neste início do século XXI, se tonou insuportável - no momento em que a soberania democrática ou republicana, está literalmente e muito perigosamente arruinada, como “ideia universal” – moleza das propostas políticas e económicas da filosofia de então que, a posteriori, parece representar uma terrível cegueira em relação àquilo que está em vias de se produzir com a revolução conservadora e o início da financiarização, e que, em abril de 2002, custará caro a Lionel Jospin (que estava presente no funeral de Lyotard), e a todos nós com ele, além de que seria evidentemente necessário precisar que é completamente abusivo relacionar a síntese hegeliana com as sínteses de traçado e de rastreio, passando por Kant como Lyotard faz a propósito de “telegrafia”.

 

A “flexibilidade”, a “tolerância” e “elegância” representarão aquilo com que devemos contar perante os limites sistémicos de que fazemos a experiência no século XXI? Esta experiência é a de uma catástrofe, isto é, a de um desenlace (60) de onde resulta que aquilo a que se terá chamado a pós-modernidade, cuja história coincide grosso modo, com a da revolução conservadora, foi a época da financiarização, isto é, da separação estrutural entre capitalismo financeiro e capitalismo industrial em que a oligarquia financeira abre uma guerra económica sistemática contra toda e qualquer forma de investimento, ou seja, toda a forma de imobilização do capital ou de limitação da sua mobilidade, e, portanto, contra toda e qualquer forma de poder público, enquanto organização mutualizada de investimentos. Ora esta guerra conduz à ruina que se cifra na diluição sistémica da responsabilidade que arrasta o sistema, no seu conjunto, aos seus limites, aos seus limites autodestrutivos.

 

“Flexibilidade”, “tolerância”, e “elegância” seriam, para Lyotard, os benefícios que poderia esperar-se do declínio do poder de unificação que seria a síntese. Que o poder de unificação que Kant distribui entre o entendimento (que produz os conceito da razão) e a razão (que produz os fins) por intermédio das sínteses da imaginação transcendental e daquilo a que Kant chama o esquematismo, deva ser pensado de outro modo - designadamente quando o saber que opera estas sínteses, exteriorizando-se em próteses que as automatizam e as tornam comensuráveis e calculáveis se tornou o principal factor da guerra económica - que seja preciso pensar estas sínteses de um modo diferente, a partir de uma heteronomia primordial, que sempre já as constituíram e sempre introduzirá o diferendo entre as sínteses, é evidente (61).

 

Que, então, o Uno só se produza como disseminação nas multiplicidades, é o que tenta pensar a repetição de Deleuze e a escrita de Derrida, como diferância e disseminação. Resta que:

 

- o poder de unificação das sínteses kantianas, que Logos et Tekhnè, ou La télégraphie, apresenta como modelos das sínteses de traçado e de rastreio (62) é de uma natureza completamente diferente da síntese dialéctica hegeliana e “unitotalizante”;

 

- aquilo que Hegel procura pensar como substância-sujeito e como proposição especulativa, deve ser pensado a novas custas e como a própria questão da individuação.

 

Ora, para pensar individuação, Simondon, confere um novo relevo à questão da proletarização: transformando-a numa questão de desindividuação que produz uma perda de saber por uma exteriorização do proletário nas máquinas e nos aparelhos.

 

Desta perspectiva, o que A Condição Pós-Moderna retrata é um novo estádio da proletarização - mas nem a obra nem o seu autor estão cientes disso. É por isso que esta obra não permite antecipar nem pensar a diluição da responsabilidade típica desta “pós-modernidade”, diluição fundada sobre uma perda total do saber económico que se transformou num automatismo sem decisão que se apresenta como uma fatalidade sem alternativa - destruição da decisão que se aparenta à que é induzida pela arma nuclear, apreendida como o “pharmakon” absoluto, segundo uma expressão de Derrida (63).

 

Lyotard escreveu todos estes textos precisamente no momento em que a revolução conservadora começava a pôr-se em marcha no Ocidente, dez anos depois das “experimentações” da Escola de Chicago, no Chile e noutros locais, onde, se vemos hoje, como a lógica ditada ao FMI por Milton Friedman e os seus colegas, para submeter os países emergentes ao “capitalismo da catástrofe”, ou seja, o “capitalismo fundamentalista”, é hoje aplicada à América do Norte, e igualmente à Europa, por via das agências de notação, como há trinta anos foi aplicada às economias do Sul, - fazendo entrar estes continentes industriais na via do subdesenvolvimento: na plena regressão imposta pelo reino da imbecilidade.

 

Talvez como nenhum outro filósofo da “pensée française”, Lyotard sentiu chegar alguma coisa que se preparava do lado do capital:

 

«Depois de trinta anos de expansão, o capital entrou numa fase de sobrecapitalização» (64).

 

As objecções dirigidas a Gallo, por razões perfeitamente compreensíveis (65) que é fácil criticar a posteriori, parecem, no entanto, conduzir a afirmar que é simplesmente impossível pensar uma alternativa, confirmando assim o famoso enunciado de Thatcher; este envio às malvas parece afirmar em princípio que é impossível inventar, uma vez que a operação da invenção for deixada aos tecnocratas em nome do diferendo e da remissão das testemunhas para a “resistência”.

 

 

Da dialéctica ao pós-estruturalismo e além disso. Releitura

 

Face a esta situação, não basta enviar a síntese dialéctica às urtigas - já que ela conduz à proposição especulativa - para escapar a uma totalização das “comensurabilidades”. O que acontece é exactamente o contrário: é preciso reler as proposições especulativas que tentam dizer o que elas são, não para as mandar de férias, mas para ver onde é que elas perdem de vista aquilo que trabalha através delas; como uma tentativa “idealista” de pensar, a nossas custas, o sujeito a partir do processo e não do indivíduo.

 

A crítica da economia política que tinha começado com Marx como pensamento de um processo dito materialista, pensado a partir de uma dialéctica “invertida”, foi abandonada pela “pensée française” dos anos 1960-2000, no decurso dos quais o empreendimento de Althusser foi respeitosa e definitivamente museificado - como se o pensamento de Marx não tivesse nenhuma espessura, como se a economia se tivesse tornado um tema vulgar e impensável, e como se a dialéctica não tivesse nenhum sentido histórico na história da filosofia nem nenhum sentido prático na história em geral (66).

 

A dialéctica, tornada materialista é, na realidade, aquilo que formula segundo uma grelha que continua a ser metafísica, as novas questões que se colocam com a tecnologia industrial, sob o ângulo da individuação e da desindividuação, numa situação que se torna manifestamente farmacológica, mas que a dialéctica impede precisamente de pensar como tal (como situação farmacológica, isto é, sem superação dialéctica, sem síntese unitotal).

 

Só a possibilidade de elaborar alternativas de todo o género e, em particular, no campo político e económico, constitui a possibilidade de uma responsabilidade. Todavia, segundo Derrida, como segundo os pensadores da sua época, incluindo Althusser, a responsabilidade

 

«Não passa, em última instância, pelo ego, “eu penso”, a intenção, o sujeito, o ideal de decidibilidade» (67).

 

Esta caducidade do “Eu penso” seria tornada definitiva ruína da dialéctica hegeliana e depois marxista. Esta caducidade seria reforçada pelo estruturalismo e tudo o que fará com que estes processos de individuação colectiva que são as estruturas - como a linguagem, os sistemas de parentesco, o direito, etc. - sejam pensados como a condição estrutural de toda a individuação psíquica, por exemplo, como enunciação de um sujeito, isto é, como sujeito pensado a partir do significante.

 

Todavia a referência à estrutura, tal como a síntese dialéctica fracassaram no pensamento das condições de emergência das singularidades, porque a metodologia, que é um traço maior do estruturalismo (que nisso fascinava Althusser e os seus alunos), repousava numa oposição entre génese e estrutura, isto é, entre diacronia e sincronia.

 

É neste contexto geral, esboçado aqui com demasiada rapidez, que emergiu o “pós-estruturalismo”. Todavia, tal como o estruturalismo, também este fracassou na tarefa de pensar o que o pensamento de Derrida tinha tornado pela primeira vez pensável, a saber, a técnica como superfície de inscrição da memória e, nisso, da exteriorização, e, portanto, tanto da desindividuação como da individuação - em cuja exploração o capital se lança, de maneira extrema, na época que Lyotard analisa como pós-modernidade. Mas para compreender isto é preciso reler Hegel, Marx e Simondon.

 

Derrida não tem razão em pretender pensar a responsabilidade sem passar pelo “sujeito, o ideal da decidibilidade” senão na medida em que este novo modo de pensar a responsabilidade, releva de uma política das retenções terciárias e enquanto uma heteronomia que condiciona toda a autonomia possível e toda a soberania, e onde o sujeito é um indivíduo psíquico que só pode individuar-se no seio de uma individuação colectiva tornada possível e impossível por uma individuação técnica que, enquanto que hipomnésica (como objecto-imagem, diz Simondon, em 1965) é também e necessariamente uma desindividuação – pelo que a individuação psíquica e colectiva é uma luta incessante contra a sua desindividuação, isto é, contra e com, a imbecilidade que daí resulta.

 

Esta maneira de pensar a responsabilidade consiste igualmente em pensar a escola, não como um simples lugar de traçados e rastreios, tal como Lyotard, sustenta em A Condição Pós-Moderna, ao fazer o luto da Aufklärung, mas como instituição do novo processo de individuação psíquica, colectiva e técnica, onde a retenção terciária se torna, enquanto pharmakon, objecto de uma farmacologia positiva, ou seja, uma experiência terapêutica das anamneses - contra os curto circuitos das formas democráticas e políticas de soberania. Esta farmacologia positiva é o que se trama através dos circuitos longos de transindividuação que constituem os saberes.

 

Pensar tudo isto supõe conceptualizar a técnica, o que significa, nos nossos dias, a tecnologia, isto é, no fim de contas, a indústria, e isso supõe repensar o lugar da Universidade neste mundo industrial - no novo mundo industrial que floresce desde o início de século XXI sem ter ainda encontrado, por sua vez, a capacidade de ser portadora de uma novo futuro mundial - praticando a anamnese do que terá sido a imensa irresistibilidade do pensamento de Hegel e de Marx sobre todo o pensamento do século XX.

 

 

 

Ler e reler Hegel após o pós-estruturalismo

 

 

O que é ler? (...) Na história da cultura humana, o nosso tempo arrisca-se a aparecer um dia com marcado pela provação mais dramática e mais laboriosa de todas, a descoberta e a aprendizagem dos gestos mais “simples” da existência: ver, ouvir, falar, ler”.

Louis Althusser

 

Quatro razões para tomar a sério dialéctica hegeliana

 

O espírito em formação amadurece lenta e silenciosamente até que uma nova figura, desintegre, fragmento por fragmento, o seu mundo anterior. (…) A frivolidade e o tédio que invadem tudo o que ainda subsiste e o vago pressentimento de um desconhecido, são os signos anunciadores de que algo está em marcha(68).

 

A dialéctica de Hegel deve ser tomada a sério e para lá dela, o materialismo dialéctico: tomá-los a sério, quer dizer, criticá-los - não repeti-los como macacos sábios. O motivo desta nova crítica, é o estatuto do desejo no pensamento hegeliano:

 

A verdadeira figura na qual a verdade existe só pode ser, o sistema científico dessa verdade. Colaborar nesta tarefa, aproximar a filosofia da forma da ciência – é o desígnio que uma vez atingido, permitirá que a filosofia possa depor o seu nome de amor do saber, para ser saber efectivamente real – foi isto que me propus(69).

 

Este desamor, que seria o preço reivindicado por Hegel, para o “saber absoluto” deve ser, mais do que tudo o resto, levado a sério, se é certo que ele veio a impor-se, no mundo de hoje, como destruição do desejo, dessublimação e generalização do capitalismo pulsional – mas, sem a menor dúvida, ao contrário de tudo aquilo que Hegel imaginava. É preciso tomar a sério tudo isto, e muitas coisas hegelianas (e também será necessário dizer as razões de tomar a sério a dialéctica platónica) (70).

 

Quanto a nós, os que chegámos depois do pós-estruturalismo, devemos tomar a sério a dialéctica hegeliana e a sua proposição especulativa, por quatro razões:

 

1. Hegel pensa a vida do espírito como dialéctica – isto é, como movimento do espírito – a partir da concepção aristotélica do Nous: como (auto) movimento induzido pelo objecto do desejo – o objecto de todos os desejos que Aristóteles designa por Theos (que não é um héteros, pois é a comunidade do todos os desejos, o que podemos ser tentados a assimilar ao Grande Outro ou à Das Ding).

 

2. Hegel concebe este automovimento do espírito desejante como um processo de exteriorização e é para pensar este processo que elabora a sua dia-léctica, cujo núcleo é a proposição especulativa, como superação da proposição predicativa, ou seja, a superação das determinações fixas do entendimento.

 

3. Aquilo a que Hegel chama a proposição especulativa é a enunciação de um movimento que é o espírito, como movimento de uma substância que é o devir sujeito em-si e para-si do sujeito que a pensa, de um sujeito que é essa substância como poder de exteriorização. A substância designa aqui, aquilo que existe no movimento do seu devir, e um dos aspectos fundamentais desta dialéctica é a superação da oposição do ser e do devir, bem como a do sujeito e do objecto.

 

No entanto, esta superação é também um dos problemas fundamentais que suscita a dialéctica: como automovimento desta dialéctica, esta superação traduz-se numa dissolução do devir (e do porvir) no ser como “síntese unitotal”. A dialéctica, concebida como dissolução das oposições e a superação como síntese unitotal, é o que recusam todos os pensadores pós-estruturalistas – se bem que a superação das oposições seja um traço típico do pós-estruturalismo, em particular em Deleuze e Derrida, em cujo pensamento a superação não é uma dissolução, mas uma resolução sintética. Mas continua a ser exacto que a dialéctica da substância-sujeito é uma tentativa de pensar a individuação a partir de um processo – como processo de exteriorização – e não a partir de um indivíduo constituído.

 

4. A versão materialista da dialéctica especulativa apreende a exteriorização como materialização e esta como auto-produção técnica do homem pelos seus “meios” de produção, afirmando, pela primeira vez de modo explícito, a questão da proletarização como destruição do saber induzida pela sua exteriorização, que é, no entanto, a condição fundamental da constituição de todo o saber.

 

Nisto, o materialismo dialéctico reencontra a questão primária do pharmakon. No entanto, este materialismo não produz nenhuma farmacologia: continua a apreender a técnica como um meio, através do qual os processos “tóxicos” (como a proletarização ou a sua consequência, a pauperização) não são senão traduções da luta de classes, como relações de produção.

 

Se bem que o processo de exteriorização seja descrito na obra Marx como uma gramatização (ele nunca é pensado como tal), e se bem que os Fundamentos da crítica da Economia Política descrevam a materialização dos saberes sob a forma do que eu chamo as retenções terciárias, a questão geral dos saberes na sociedade industrial jamais é verdadeiramente colocada pelo materialismo dialéctico: a técnica nunca é tematizada como factor, tanto do saber, como do não saber, e não há nem organologia dos saberes, nem economia dos saberes (isto é, do desejo sublimado).

 

Não suscitando, nem a questão da toxidade do pharmakon, nem a da sua capacidade curativa e da terapêutica (que é sempre um dispositivo de desproletarização), isso supõe que a dialéctica marxista do negativo conduz à ditadura do proletariado e não ao projecto político de desproletarização, ou seja, de reconquista dos saberes ao serviço da individuação dos cidadãos.

 

Isto acontece, não porque Marx se tenha enganado, mas porque a filosofia é um trabalho colectivo no seio do qual aqueles que contribuem para a sua individuação só podem chegar no seu tempo, quando o tempo deles se torna o tempo de todos nós. O mesmo pode dizer-se de Foucault, Deleuze, Derrida e Lyotard. Se, hoje, é preciso pensar a gramatização e os saberes de um ponto de vista organológico, isso supõe conceitos forjados por Nietzsche (a sombra), Freud (a economia libidinal), Husserl (a retenção e a protenção), Simondon (a individuação) (71) bem como os trabalhos saídos do pós-estruturalismo – ou seja, os trabalhos provindos do estruturalismo e, antes dele, do método saussuriano de investigação do objecto linguístico.

 

Marx não poderia evidentemente conceber tudo isso e o que, a partir disso, poderia vir a modificar os seus próprios conceitos. Não só porque não dispunha de tais conceitos, mas porque a própria exteriorização não havia ainda atingido o estádio a partir do qual se impõe que seja pensada como gramatização (como espacialização farmacológica do tempo, sob a forma de retenções terciárias), não lhe era possível suscitar a questão de uma farmacologia positiva, que o estruturalismo tão pouco suscita porque ignora o alcance do pensamento marxista da técnica, apesar das análises de Kostas Axelos (72). Por tudo isto, Marx não poderia encarar a capacidade curativa do pharmakon, como individuação tecno-lógica e industrial nem a possibilidade de reconstituir os saberes, e de lutar contra a proletarização.

 

Ora, como veremos, a completa assunção e, depois, a superação especulativa da dialéctica idealista do Senhor e do Escravo, bem como a sua releitura e o choque retrospetivo que essa releitura pode produzir, para lá do próprio Hegel, conduzem directamente a essa questão. Quanto a Lyotard, depois das suas obras do início dos anos 1970 (Derive à partir de Marx et Freud, 1972 e Économie libidinale, 1974) os seus raciocínios são apanhados pelo linguistic turn, e tornam-se, sob muito aspectos, senão hegelianos, pelo menos pré-marxistas – o que quer dizer que ele regride em relação aos elementos de crítica que Marx formulara contra o idealismo de Hegel, na medida em que, a partir da A Condição Pós-Moderna, ele privilegia a linguagem e deixa de ser materialista (pelo menos no sentido em que Marx o entende).

 

 

Hegel à letra

 

A fenomenologia do espírito é, para Hegel, um processo no qual o espírito se enuncia, isto é, se exterioriza neste elemento do logos que é a linguagem como poder de determinar. O que esta fenomenologia, tal como Hegel a reconstitui como processo, faz surgir é que o tema do enunciadoaquilo que é dito, e quanto ao seu ser, isto é, o quidé sempre, de algum modo, o sujeito da enunciaçãoaquele que o diz, pelo que o quem deve aquilo que é pela re-enunciação do enunciado – re-enunciação que, como veremos dentro em breve, é um enunciado escrito. O sujeito é, pois, essencialmente um leitor.

 

Com efeito, o dizer não pode, aparecer-se como tal, para si e no “après-coup” da sedimentação que é o seu em-si, senão transformando-se literalmente: o dizer do si, é uma escrita de si, bem como uma leitura de si. Dito de outro modo, esta fenomenologia (que passa pelo devir da proposição) só pode produzir-se senão num meio linguístico que foi alfabeticamente gramatizado, que tornou possível a consideração da proposição como tal, isto é, como uma frase (verbal ou nominal) que é aberta por uma maiúscula e fechada por um ponto – convenção ou norma de que a documentalística, depois a Web, com a SGML e, nos nossos dias, HTML e os seus derivados, são extensões.

 

Que esta condição literal tenha sido subestimada por Hegel (e até dissimulada por si a si mesmo) não impede que a literalidade do espírito seja expressamente reivindicada por inúmeras vezes na sua obra como condição desta fenomenologia do espírito como possibilidade de a reler à letra. Só a partir de uma tal possibilidade de repetição e de diferença, gerando um regime de diferença específica (específica de uma época da história do suplemento), o sujeito do enunciado (o que, o quid predicado) pode proceder do sujeito da enunciação, como Hegel sustenta a propósito daquilo que chama, por essa razão, proposição especulativa. Na proposição especulativa, isto é, literal, o que, é visto como provindo do quem, que individua um processo a que Hegel chama o espírito, e analisa como o foco individuante do que se cumpre como proposição especulativa.

 

A fenomenologia do espírito (o aparecer do espírito a si mesmo) é a sua exteriorização como saber, isto é, como constituição de um sabedor que é o sujeito que herda da exterioridade (daquilo que foi determinado pelo entendimento através da linguagem) interiorizando-o - individuando-o. É por isso que o movimento do para-si do sujeito que é o espírito que aparece a si mesmo (73), descobre o seu próprio saber de si, no sujeito do enunciado, mas sem o saber, enquanto não pensa, como tal, a especularidade da proposição especulativa, ou seja, o espelhar dia-léctico do sujeito nos seus enunciados – tanto aqueles que ouve como os que profere ou escreve - experiência especular que conduz ao “saber absoluto”. Na qual, descobre o sujeito da enunciação que é, e pelo qual o saber se individua – como fenomenologia do espírito.

 

Esta individuação colectiva do saber, tal como ela pode coincidir com a do indivíduo psíquico (como substância que devém sujeito e sujeito que se torna substância, segundo os termos de Hegel), deve ser pensada em termos de transindividuação.

 

Esta subjectividade é especulativa no sentido em que é o seu saber que se reflecte no que ela julga primeiramente (erradamente) receber do exterior através deste ou outro saber daquele enunciado herdado (herdado da ciência que aqui não se distingue da filosofia) e se revela ser na proposição especulativa – o que não aparece ao sujeito na proposição predicativa – aquilo que ele produz como momento que se mostra o seu (um momento do seu saber) e que esta produção é, ao mesmo tempo, a individuação do saber que coincide com a própria substância: esta fenomenologia especulativa do espírito é o processo de individuação do espírito, isto é, do saber em movimento pela leitura e como momento da escrita, ou seja, momento da individuação do exterior (74).

 

Esta fenomenologia do espírito é uma processualidade onde se trata de abandonar o indivíduo como ponto de partida (como sujeito cartesiano, como subjectividade transcendental do “Eu Penso”), e, sob este aspecto, ela constitui uma antecipação do ponto de vista simondoniano: o sujeito da enunciação é o saber que só surge individuando o seu fundo pré-individual que lhe aparece inicialmente como exterioridade – precisamente porque este fundo pré-individual foi exteriorizado (produzido) pelo espírito, pela sua fenomenologia: como a sua auto-aparição e como a sua sedimentação (que é também a sua auto-desaparição, a sua cegueira). Dito de outro modo, trata-se, para Hegel, de superar a oposição entre o psíquico e o colectivo – imperativo filosófico que ao pensar o indivíduo a partir do processo, contra o idealismo transcendental, e como idealismo histórico conduz à questão da substância-sujeito.

 

 

O espírito como exteriorização

 

O processo de exteriorização e de interiorização em retorno (75) que está na origem da vida do espírito é uma

 

«libertação da imediatidade da vida substancial» (76).

 

A vida substancial é a vida alienada às suas necessidades imediatas. A mediatidade – como modalidade da diferença – é a condição da libertação do imediato, que é, no entanto, também uma perda e uma alienação: o espírito produz-se como liberdade, encadeando-se, de algum modo, a si mesmo enquanto se exterioriza:

 

«A força do espírito é tão grande como a sua exteriorização, a sua profundidade só existe na medida segundo a qual ele ousa alargar-se e perder-se desdobrando-se» (77).

 

O que descreve Lyotard em A Condição Pós-Moderna. Relatório sobre o saber, é a época da sistematização e da exploração industrial desta exteriorização.

 

A Fenomenologia do Espírito sente que está a chegar esta modalidade nova da exteriorização que constituirá, muito em breve, a industrialização.

 

«Não é difícil ver que o nosso tempo é um tempo de gestação de transição para um novo período» (78).

 

E Hegel apreende este período de transição como um choque:

 

«O princípio do espírito novo é o produto de uma vasta transformação de múltiplas e variadas formas de cultura» (79).

 

Nesta revolução, todas as formas anteriormente herdadas do espírito se rearticulam e devem ser reanimadas, dessedimentadas e fluidificadas.

 

As formações precedentes tornadas agora momentos (daquilo que está a chegar, isto é, o novo estádio de exteriorização que é espírito cuja força só existe na medida da sua exteriorização) desenvolvem-se de forma diferente e adquirem uma nova configuração (80).

 

Este momento representa aquilo a que Simondon chama “um salto quântico” numa individuação colectiva, o qual consiste numa transformação da sua própria configuração (uma nova época do si), cujo processo ainda está em curso.

 

Isto acontece porque esta mudança interrompe a configuração precedente do espírito, enquanto a consciência está ainda, permanece ligada e tecida por esta herança, a mudança cumpre-se como aquilo que vem contradizer a consciência que permanece em atraso sobre o que a constitui como processo de individuação – onde ela está desfasada e destabilizada:

 

«Para a consciência, a riqueza do ser-aí precedente está ainda presente na interioridade da recordação. Ela ainda não encontra na figura que começa a manifestar-se a especificação do conteúdo (…) e o refinamento da forma em virtude do qual as diferenças se determinam com segurança e se ordenam mas suas relações» (81).

 

Esta consciência a caminho de uma nova idade do espírito, que é uma nova meta-estabilidade, fica desorientada porque perde a “rede de relações sólidas” que eram o seu oriente e o seu ocidente, isto é, a rede de relações meta-estabilizadas pelo precedente estádio de individuação colectiva que foi destruído e constituía o que Simondon teria chamado o transindividual (a significação) que formava “a riqueza do ser-aí anterior”. Esta desorientação é a inquietação da consciência em vias de se individuar, a contradição do “negativo” (que Simondon descreve como um desfasamento) que é, por isso, desindividuada.

 

Do ponto de vista farmacológico que defendo aqui, deve dizer-se que a exteriorização pela qual o espírito aparece a si mesmo não é apenas lógica, ou seja projectada espontaneamente através das categorias da linguagem que a gramática contribuirá para determinar como tais, como predicação: do ponto de vista farmacológico, esta exteriorização é primariamente técnica, o que não é evidentemente um ponto vista sustentável por Hegel, mas é, como veremos, o ponto de vista de Marx – e é contra o materialismo dialéctico e o seu sujeito histórico que, para Marx, é o proletariado, que Lyotard põe em causa aquilo a que chama “a narrativa especulativa”, a narrativa que conduz à proposição especulativa e, com Marx, como prossecução da crítica anti-idealista do projecto da Aufklärung, à “narrativa da emancipação”.

 

Deste meu ponto de vista que não é nem o de Marx, nem o de Hegel, uma vez que para Marx, os meios de produção, mesmo que os seus efeitos sejam muitas vezes descritos num registo farmacológico, não são pharmaka (se esse tivesse sido o caso, ele teria suscitado a questão ecológica, tanto como a da ecologia do espírito, como ecologia do ambiente) – o processo de destruição descrito por Hegel como o negativo da fenomenologia é o primeiro momento do duplo redobramento epokhal provocado pela exteriorização técnica num processo de individuação psicossocial, quando esta exteriorização altera o próprio sistema técnico que todas as exteriorizações precedentes materializavam e concretizavam e que nessa medida sustentavam o transindividual segundo as suas características farmacológicas (através dos objectos–imagens que constituem, para Simondon, ao artefactos técnicos).

 

 

Reler I – A fenomenologia do espírito

 

A tecnicidade desta exteriorização é ainda ignorada e, portanto, invisível para Hegel (quer dizer que ela é solúvel no espírito), como já o era para Kant (82). A tecnicidade é apenas um momento acidental do espírito e a sua opacidade é uma facto contingente que o espírito, ao aceder à sua pura racionalidade especulativa, poderá e deverá dissolver.

 

Esta dissolução é o que constitui o horizonte da proposição especulativa tal que a substância, aparecendo como sujeito é a verdade em pessoa que se torna especulativa pelo que se torna possível e necessário

 

«aprender e exprimir o Verdadeiro não apenas como substância, mas também como sujeito (…). Esta substância é o movimento de se afirmar como si mesmo ou a mediação entre si mesmo o seu devir-outro» (83).

 

Até Hegel, esta substância-sujeito não tinha ainda aparecido, como tal, a si mesma, porque se mantinha como exterior às suas enunciações, como, por exemplo, no enunciado “Deus é eterno”, predicação de um predicado para quem

 

«O sujeito é tomado como um ponto fixo, e os predicados são ligados a este ponto fixo como se ele fosse um suporte (por intermédio de um movimento que pertence a quem detém um saber deste sujeito, mas não pode ser encarado como pertencendo intrinsecamente a este ponto» (84).

 

A substância-sujeito não se sabe ainda nem sujeito nem substância, porque ainda não sabe que o sujeito do enunciado é o sujeito da enunciação no seu devir-outro – o que vai descobrir-se na proposição especulativa que se pensa como tal – e que o leitor da proposição é não apenas o seu autor, é também o seu enunciador. Na forma predicativa a proposição, a substância mantém-se ainda fora do sujeito da enunciação que é o leitor do enunciado que tampouco sabe (ainda) que ele se torna o sujeito da enunciação ao lê-la - que passar ao acto de leitura (85) é tronar-se o autor daquilo que é lido. O leitor não especulativo (predicativo) julga ainda que é apenas um leitor passivo do enunciado escrito: ignora que o texto que lê é o que ele pro-duz.

 

Que esta leitura seja uma pro-dução, isto é, uma espécie de escrita e não apenas uma recepção, é o que resulta do facto de que toda a verdadeira leitura (a passagem ao acto da leitura) é uma selecção entre as retenções primárias (o que retenho no que leio) que opera em função de critérios que são constituídos pelas retenções secundárias do leitor, ou sejam em função das recordações que o tramam como este leitor singular e não qualquer outro. É porque cada leitor tem retenções secundárias diferentes de todos os outros, que ele lê singularmente um enunciado filosófico: uma proposição só é filosófica na medida em que põe em causa e em questão a singularidade do meio associado (86) que foi constituído pelas retenções secundárias de cada indivíduo psíquico.

 

E é porque as obras filosóficas, escreve Hegel, são livros escritos de tal modo que se tornam incompreensíveis a quem não põe em causa o seu saber, como tecido de retenções secundárias, ou seja de recordações através das quais ele teceu a experiência – e que reitera a cada passo das suas novas experiências – é por isso que as obras filosóficas são vividas como sendo irredutíveis e essencialmente difíceis de ler.

 

A obra filosófica contraria uma leitura tranquila, que escorre sem sobressaltos. Quem a lê, é chamado a um trabalho, colocado na posição de contributor, ou seja, constrangido a individuar-se individuando aquilo que lê, a partir de si mesmo, lendo-se a si mesmo através daquilo de que lê (o que é a definição de Proust da leitura (87) ). A leitura tranquila releva daquilo a que Hegel chama a proposição predicativa.

 

A contradição da leitura tranquila, que torna difícil a leitura da obra filosófica, e que Hegel descreve como um travão a essa forma de leitura – é um travão que impõe uma repetição que contraria e inquieta o leitor:

 

«É sobre este travão inabitual que repousam as queixas quanto à incompreensibilidade das obras filosóficas, quando, por outro lado, se encontram presentes no indivíduo, todas as condições de cultura mental requeridas para essa compreensão. Por aqui também se descobre a razão pela qual se dirige muitas vezes o reparo de que têm que ser lidas duas vezes para se entenderem» (88).

 

A proposição predicativa mantém-se exterior a si: a sua determinação predicativa separa o enunciado do sujeito da enunciação, sujeito que é sempre o leitor.

 

A proposição especulativa, enquanto diz a essência do sujeito do enunciado através do predicado obriga, pelo contrário, o leitor a admitir que ele próprio predica o sujeito do enunciado passando pela proposição que desencadeia uma seleção activa da sua parte, seleção que constitui o conteúdo efectivo da predicação pelo sujeito da enunciação que é o leitor, de tal modo que o sujeito do enunciado devém a transformação necessária do próprio sujeito da enunciação, como nova experiência do sujeito, através da aquisição de uma nova retenção secundária que a proposição constitui para ele.

 

Na proposição especulativa, isto, é, filosófica em acto, o sujeito da enunciação que é o leitor que se transforma, se individua e se transindividua, como transinviduação do enunciado com o qual faz corpo, ao mesmo tempo de outros leitores que formam um “corpo social”, participando na aparição da substância-sujeito: na sua fenomenologia (89).

 

Mas este sujeito da enunciação pode não se reconhecer como tal e não passar ao acto da leitura – isto é, ao acto de leitura da proposição que só é filosófica na medida em que é especulativa, no sentido onde o sujeito leitor se revê no sujeito lido, sabendo-o, e assim, transformando-o, transindividuando a substância que é – porque solidificou o saber como sedimento da sua vida anterior, tornando-o “bem conhecido” (90) e, com este saber, solidificou as suas próprias retenções (a sua própria experiência) porque a proposição, lida com predicativa, confirma a solidez e a solidificação das suas determinações predicativas, através de um leitor que é incapaz de se reler e de se reconhecer nos seus critérios de seleção. Um leitor destes não se individua – porque, pelo contrário, a proposição lida o desindividua.

 

Esta desindividuação é possível porque o fundo retencional que constitui o indivíduo e onde ele se encandeia, do qual herdou e que suporta as suas retenções, foi amortecido, no sentido de se tornar morto e mortificante. Esta mortificação é o negativo, a exterioridade.

 

Aquilo que, em épocas anteriores absorvia o espírito dos adultos é rebaixado ao nível dos conhecimentos e exercícios semelhantes a jogos infantis, e, na profissão pedagógica, reconhecemos, em esboço, a projeção da história da cultura universal. Esta ser-aí, já passou a ser propriedade adquirida do espírito universal que constitui a substância do sujeito e que, ao exteriorizar-se constitui a sua “natureza inorgânica” (91).

 

Esta natureza inorgânica que é em-si e não consegue individuar-se para-si, e se mantém quieta, pode envolver-se no trabalho que seria a sua contribuição no seu autodesenvolvimento, engendra sempre uma forma de imbecilidade.

 

Na época em que foi escrita a Fenomenologia do Espírito, isto é, na época moderna, diferentemente da Antiguidade, a história da cultura universal sendo a da sua exteriorização, deve ser re-interiorizada e re-individuada e esta interiorização só se produz como raciocinação predicativa induzida pelo facto de que

 

«Nos tempos modernos (…) o indivíduo encontra a forma abstracta já preparada» (92).

 

Nos tempos modernos, o trabalho do seu espírito “na riqueza das suas determinações”, pelas relações que foram instauradas pelo entendimento no decurso desta formação desenvolveu-se a tal ponto que o espírito parece fixado e erra, por exemplo, através da recaídas formalistas ou espiritualistas da herança kantiana (93).

 

A tarefa que nos cabe é a de fluidificar esta forma, isto é de

 

«actualizar o universal como automovimento e infundir-lhe o espírito graças à eliminação dos pensamentos determinados e solidificados» (94).

 

A determinação é o fruto do entendimento como poder de discretização e de análise pela exteriorização, isto é, como espacialização e objectivação temporalidade do espírito, aquilo a que Hegel chama o espírito objectivo. Mas este destino (a determinação como espírito objectivo) é essencial à vida do espirito e é também um obstáculo a essa vida: apresenta-se como

 

«entendimento morto e conhecimento exterior» (95).

 

Este entendimento formal (96) é o que se concretiza como processo de gramatização através do qual se configuram as retenções terciárias que curto-circuitam o sujeito, como sujeito, isto é individuante e capaz de passar ao acto a novas custas.

 

O entendimento formal como exteriorização é, portanto, o principal factor da proletarização. Mas veremos que só o é porque concretiza, sob a forma de dispositivos materiais e de máquinas que concretizam dispositivos retencionais (97).

 

 

Reler II. O espírito objectivo e o impensado de Hegel

 

Evidentemente, Hegel não diz isto. E não o pensa; é precisamente o seu impensado. Mas na Fenomenologia do Espírito, como na Estética, em A Razão na História e na Enciclopédia das Ciências Filosóficas, ele não cessa de descrever a génese deste elemento que forma o entendimento concretizado pela sua exteriorização discretisante para que possa ser legado e herdado como espírito objectivo – no caso, como literatização, isto é, como espacialização à letra do tempo que é este processo em que o espírito aparece a si mesmo exteriorizando-se.

 

Assim, nos seus cursos sobre a História, Hegel diz

 

«A verdadeira história objectiva de um povo começa quando ela se torna história escrita» (98).

 

Este ponto de vista, que será analisado sob o ângulo da psicologia social por Jean-Pierre Vernant (99), nada tem de etnocêntrico, como os leitores apressados de Derrida se apressam a objectar (100). Porque, aqui, Hegel atribui, pelo contrário, a uma invenção técnica, ou seja acidental e não ao génio Ocidental ou à sua essência, o facto de que a fenomenologia do espírito se desdobra para se tornar um processo mundial.

 

Leroi-Gourhan argumentava do mesmo modo contra os teóricos racistas da arqueologia nazi que se a Europa era, de facto, o foco central de uma difusão planetária, por círculos concêntricos, das técnicas, isso não provinha de nenhum europeu (ariano) mas de uma concentração de terras aráveis e de um grande número de condições favoráveis, designadamente ao nível climático e outros acasos felizes para o Ocidente, e fatais para outra civilizações que pereceram (101).

 

A Fenomenologia do Espírito descreve a constituição do espírito pela sua exteriorização através de exemplos históricos de toda a ordem. E, todavia, não atribui nenhum estatuto à tecnicidade, neste processo dialéctico que é a exteriorização que se interioriza. Esta dialéctica é uma lógica: não é uma tecnológica, uma mecanológica ou uma organológica, e menos ainda uma fármaco-lógica.

 

A fenomenologia do espírito é, pelo contrário, a da sua realização efectiva como saber absoluto de modo que a filosofia

 

«pode abandonar o seu nome de amor do saber, para se tornar saber efectivamente real» (102).

 

A exterioridade aparece aqui com aquilo que era desde o princípio: uma realidade transitória, acidental, e solúvel no absoluto (acabada nesta dissolução). E o mesmo se passa como o desejo que, tendo atingido o seu fim, deixa de desejar; o saber torna-se insípido: sem sabor. Ou seja, não saber que, sem se conhecer como tal, não é desejado nem respeitado: esse é o verdadeiro fundo das falsas questões que François Hauter agitava.

 

Que o saber absoluto perca o sabor é algo de inimaginável para Hegel, que aquilo que designa por esse nome seria uma exterioridade absoluta que tornaria totalmente impossível, na sua modalidade idealista - ou seja, na sua denegação da sua dimensão farmacológica – toda a individuação psíquica e toda a individuação colectiva, pelo que toda a especulatividade filosófica se torna um processo de desindividuação psíquica e colectiva, não apenas massiva, mas total. Hegel ignora-o, porque ignora que a exteriorização é técnica e que esta tecnicidade provém de um processo de individuação técnica que é um elemento primordial da própria dinâmica que ele apreende como um processo puramente espiritual.

 

Hegel ignora-o, mas, ignorando-o, anuncia, sem o querer, aquilo que efectivamente se produz, uma totalização efectuada por ser uma síntese que não é a dialéctica mas precisamente uma tecno-lógica. Esta síntese totalizante e desindividuante é aquilo que confirma em absoluto Hegel e o infirma radicalmente. O que ele acreditava que viria a realizar-se como a razão final da História, apresenta-se hoje como irrazão. Separado da individuação psíquica como da individuação colectiva, o saber gramatizado através da individuação técnica fica sem saber, porque conduz, não ao saber absoluto, mas à destruição total dos saberes, isto é, à sua desaprendizagem e à proletarização, como proletarização generalizada.

 

Esta generalização da proletarização, concretiza-se quando a especularidade passa a ser a dos especuladores (pela razões históricas precisas que constituíram uma viragem na história do capitalismo que tentei descrever em diversa obras (103) ) e de uma “racionalidade económica” que coloca o pharmakon, isto é, o material gramatizado (assim tornado hipermaterial (104) ) ao serviço de uma auto simulação especulativa, no sentido em que elimina o seu terceiro que é precisamente o pharmakon e a sua dimensão farmacológica que abre toda a espécie de alternativas a esta especulação, e induz uma economia da incúria.

 

A proletarização generalizada implica assim uma irrazão que é uma deseconomia, onde a especularidade, dissimulando e dissolvendo a espessura da sua exterioridade, se torna imaterial e desinveste todos os objectos e liquida todos os desejos, por um saber racionalizado no sentido de Max Weber e de Adorno: um saber sem amor do saber porque sem objecto (e sem objecto transicional) que assim se transforma numa imbecilidade sistémica.

 

A fenomenologia do espírito conduz a esta exteriorização absoluta que, como proletarização, se opõe ao processo de individuação, ou seja, de transformação. É esta exteriorização absoluta que constitui o horizonte de A Condição Pós-moderna (mas também da A Gramatologia e de Capitalismo e Esquizofrenia). Este estado de facto não tem alternativa, enquanto A Fenomenologia do Espírito não for interpretada como uma farmacologia do espírito que supõe uma organologia genealógica (Simondon, diria “ontogenética”) do espírito.

 

A questão não é a de enviar Hegel às malvas, mas de dar o “passo além” daquilo que ele antecipou perfeitamente - o saber absoluto como imbecilidade sistémica - mas invertendo o sinal. Pelo contrário, o enviar de Hegel e da narrativa especulativa às malvas, consiste em repetir o gesto sem lhe conservar a grandeza. E veremos se se verifica em relação a Marx e à sua “narrativa da emancipação”.

 

O que deve fazer a farmacologia da proposição especulativa (e por detrás dela, do sujeito universal que seria o proletariado)? Em que medida, ela permite ou não, pensar aquilo a que Lyotard chama a anamnese - e a pensar para além da oposição, opondo-se à proposição especulativa?

 

Contrariamente ao que afirma Lyotard, reler, depois de Lyotard, o pós-estruturalismo, os textos em que se enuncia a teoria da proposição especulativa é uma tarefa necessária porque aquilo que diz Hegel nesses textos sobre a proposição especulativa consiste precisamente na rejeição da leitura da proposição por rastreio e fazer da repetição, que só a textualidade hipomnésica torna possível, a própria possibilidade de uma anamnese, aprendida como tal, ou seja: a possibilidade de uma diferença em que o leitor recorda aquilo que não viveu, prosseguindo assim, no novo rodeio, o movimento da diferância.

 

A proposição especulativa é uma fenomenologia da leitura que, se não problematiza a escrita como tal e faz dela apenas um elemento da fenomenologia do espírito, que aceda à proposição especulativa através de obras filosóficas de difícil leitura, mas também da experiência da certeza sensível fazendo, ao escrever, a experiência da noite e para descobrir que já é dia:

 

«O que é o agora? (...) agora é a noite (…). Anotemos, por escrito, esta verdade: uma verdade não perde nada pelo facto de ser escrita e ser assim conservada. Vamos, então, rever esta verdade escrita, ao meio-dia seguinte, e verificaremos que deveremos dizer que a sua verdade se evaporou» (105).

 

Enquanto proposição filosófica, a proposição predicativa é escrita. Mas a proposição predicativa, ao solidificar e fixar as determinações, curto-circuita o saber, se é certo que este é sempre, antes de mais, individuação do sujeito tornado maior, e não recebendo apenas o saber, mas transformando-o, e nisso se transformando a si mesmo.

 

Hegel não faz mais do que reformular a injunção kantiana quanto ao livro, como factor de “preguiça” e de “cobardia” (injunção que reformulava, por seu turno, o ponto de vista platónico sobre o pharmakon que é a escrita):

 

É tão fácil ser menor! Se disponho de um livro que faz as vezes do entendimento, um director que faz as vezes da consciência, um médico que decide por mim sobre a minha dieta, etc. etc., não tenho que me dar ao trabalho de ser eu-mesmo (106).

 

O que constitui a necessidade da escrita na repetição qua ela torna possível como diferença, é precisamente porque aquilo que se repete é aquilo que ainda não aconteceu. Catherine Malabou, sublinha, nesse sentido que

 

«A especificidade da proposição filosófica é a de dela não pode haver primeira leitura. O que se manifesta aquando da sua primeira apreensão é, com efeito, a sua ilegibilidade fundamental (…). No momento em que o leitor sofre “o choque em retorno”, ele não é algo para si, mas tem que fazer corpo como o próprio conteúdo (La Phénoménologie de l’esprit) da proposição, isto é, desposar o seu movimento de recuo (…) O leitor não encontra nada no lugar onde regressa. A origem jamais foi a primeira vez, o leitor não descobre qualquer presença substancial, nenhum substracto que esperasse ser identificado (…). O leitor vê-se, do mesmo golpe, projectado para a frente, impelido a dar forma» (107).

 

Este é o estado de choque filosófico, sem o qual não há pensamento filosófico. Mas este estado de choque só é possível como efeito retroactivo de um estado tecnológico. Se o entendimento, como determinação que opera (sem o saber) através da gramatização, tende a fixar o determinado e, de algum modo, impô-lo como estado de facto de uma exterioridade sem direito, e como objectivação do espírito, esta operação, na sua realidade efectiva, consiste na produção de retenções terciárias que tendem a ligar-se automaticamente fora de qualquer agente sabedor, e como objecto cognitivo, o que se chama, no nossos dias, tecnologias cognitivas, objectos comunicantes, Internet dos objectos (ou de coisas: Internet of Things).

 

A proposição especulativa que antecipa sobre este estado de facto, afirma, pelo contrário, uma possibilidade nova da individuação na gramatização que é também um movimento anamnésico de desproletarização daquilo que, após Hegel e após Marx, não se deve apreender nem como um sujeito, nem como uma sustância-sujeito (que não permite pensar o substracto tecnológico das determinações como indeterminações, ou seja, como individuações) mas como um processo de individuação ao mesmo tempo psíquico, colectivo e técnico.

 

Se o hegelianismo não permite, só por si, pensar esta individuação é porque concebe a desproletarização como uma assimilação da exterioridade pela interioridade. É o que Hegel descreve como o saber absoluto que abandona o seu nome de amor do saber. Mas esta dissolução do amor, fundada sobre uma assimilação da exterioridade, é a ignorância total da constituição do desejo pelo objecto transicional que não é nem exterior nem interior, mas é o fundamento de toda a anamnese que se apreenda como tal (108). E ignora também o papel do desejo em toda a individuação, como princípio neguentrópico (no sentido em que Canguilhem usa este termo depois de Schrödinger) que o saber absoluto curto-circuita.

 

Os curto-circuitos que se produzem naquilo que conduz a este não-saber absoluto e a esta proletarização generalizada não são, todavia, devidos ao facto de uma “essência da técnica”: resultam de uma guerra que o capital, que se tornou especulativo, isto é, ignorante tanto da necessidade como dos limites do material, faz hoje ao investimento, ou seja, à individuação. É por isso que se devem reler as considerações sobre a proposição especulativa lendo previamente os Fundamentos da Crítica da Economia Política de Marx.

 

Mas, para os ler correctamente, é preciso ler previamente a dialéctica do Senhor e do Escravo, de onde eles provêm.

 

 

Reler os Fundamentos da Crítica da Economia Política

Para além de dois mal-entendidos marxistas e pós-estruturalistas

 

 

O crescimento da força produtiva do trabalho apresenta-se como o acréscimo de uma força exterior e como o enfraquecimento do trabalho. O instrumento de trabalho faz o trabalhador independente e torna-o dono de si. A maquinaria, enquanto capital fixo, faz dele, um objecto de apropriação. O maquinismo só produz este efeito quando toma a forma de capital fixo, e só tem esse carácter porque o individuo se torna um assalariado”.

Karl Marx

 

Descerebrai, matai, cortai as orelhas, arrancai a finança, e bebei até à morte, é a vida dos Salopins, é a felicidade do Senhor das Finanças.”

Alfred Jarry

 

Só a partir da história do pensamento, da teoria da história, se poderá dar razão da religião histórica da leitura: descobrindo que a história dos homens que está nos Livros, não é um texto, todavia escrito nas páginas de um Livro, descobrindo que a verdade da história não lê num discurso manifesto, porque o texto da história não é um texto onde falaria uma voz (o Logos) mas a inaudível e ilegível notação dos efeitos de uma estrutura de estruturas…

Regressemos a Marx, para notar que podemos precisamente apreender nele, não só naquilo que diz, mas naquilo que faz, a passagem de uma primeira ideia e prática da leitura, a uma nova prática da leitura e a uma teoria da história, capaz de nos dar uma nova teoria da leitura.”

Quando lemos Marx, estamos, desde logo perante um leitor que, diante de nós e, em voz alta, lê.”

Louis Althusser

 

Reler III – Domínio e servidão: a propósito da “ditadura do proletariado”

 

O problema da dialéctica hegeliana reside em que ela faz do “momento” exterior, um meio transparente, ou seja, um momento cuja heteronomia é auto-solúvel (ab-solvível) numa Ciência da Lógica onde o real se revela como aquilo que efectivamente é: racional – um idealismo que não consegue ver que, desde que postula esta transparência, o “espírito objectivo” e a sua racionalidade não podem deixar de desembocar numa racionalidade absolutamente irracional, isto é, uma irrazão universal que se manifesta, como imbecilidade e como loucura.

 

Nesta Ciência da Lógica que não é uma ciência da tecnologia ou organológica, a exterioridade do espírito não é um suplemento: não é farmacológica, permanece puramente lógica, pelo que está votada a dissolver-se na ciência da lógica cuja heteronomia é um mero momento de uma negatividade, ela mesma, solúvel. Para dizer o mesmo, em termos mais próximos de Nietzsche, esta negatividade não é trágica.

 

É como se fosse uma exterioridade superável, isto é, relevável ou sintetizável numa unitotalidade: eis o que a dialéctica afirma como princípio. Esta síntese revela-se, a nós, os que chegámos mais tarde, como sendo tecno-lógica e não dialéctica: atingido o estádio da gramatização digital, a tecnologia analisa a sintetiza o mundo na sua totalidade – e neste mundo sintético, o racional tornou-se, de facto, efectivamente uma racionalização, como generalização da imbecilidade sistémica e da loucura, como irrazão universal. Essa é a nossa “realidade efectiva”.

 

Todavia, a proposição especulativa, porque não pode neutralizar a literalidade da linguagem, onde se mantém, ou seja, a necessidade da sua inscrição à letra, pode e deve ser relida de um ponto de vista organológico, isto é, tomando a sério a inorganicidade (da tecnicidade) dos orgãos de leitura do espírito objectivo.

 

Este modo diferente de ler Hegel, mostra que a diferença que é preciso fazer entre rastreio e passagem não é uma questão de técnica de registo a que escaparia uma anamnese definida como passagem “atécnica” ou a-tecnológica, como sustenta Lyotard, mas um modo de ler (e portanto, de escrever) a partir das possibilidades abertas pela tecnicidade da leitura. O problema de Lyotard é o de que ele continua a ser demasiado hegeliano (demasiado idealista) para tomar verdadeiramente a sério a suplementariedade. Hegel, pelo contrário, toma-a, sem dúvida, muito a sério, já que faz dela a condição do espírito objectivo; mas acaba por dissolvê-la na síntese total: pelo que esta condição, é encarada como uma simples “momento” provisório. É isso que Lyotard repete.

 

É porque este momento é a condição do espírito objectivo que, em Razão na História, Hegel afirma que a exterioridade não é apenas aquilo que espacializa, (a posteriori), o tempo mas o que o constitui como tempo histórico, fazendo surgir a necessidade da exteriorização em geral (109), mesmo se esta exterioridade acabe por ser dissolvida no saber absoluto, libertada em absoluto de toda a heteronomia.

 

A história tem que ser escrita porque, como Geschichte, ou seja, como nova modalidade de individuação psíquica e colectiva, onde se produz aquilo a que Hegel descreve como a fenomenologia do espírito (que é história da filosofia) e não apenas como História (como ciência da história e saber académico), a história é uma modalidade do tempo – tal como é reconfigurada (num sentido próximo do que escreve Paul Ricoeur) pela retenção terciária literal, como estase temporal específica (110), abrindo a época das formas de leitura.

 

No interior desta Geschichte, os modos de ler (e portanto, de escrever) são farmacologicamente condicionados pelas mnemotécnicas literais, pelas retenções terciárias produzidas à letra. Esta é a questão da atenção (compreendendo a atenção flutuante onde se produz a perlaboração Durcharbeitung) tal como é constituída por uma relação entre as retenções primárias (R1) secundárias (R2) e terciárias (R3), onde, como vimos no capítulo anterior:

 

A = R3 (R2/R1) – S1 (111)

 

S1 sendo um seleção primária (não há retenção que não seja uma seleção – (e aqui é preciso passar por Nietzsche).

 

Desde então o problema da capacidade de produzir práticas e pragmáticas que preservem e cultivem a possibilidade da anamnese, o que é, no fundo, a preocupação de Lyotard, em 1979 (no final da A Condição Pós-Moderna) sobre a qual regressa em 1986 (no final de Logos e Tekhné. A telegrafia) mas, nesse tempo, já não acredita, é um caso de política das retenções terciárias - e não apenas o problema das “testemunhas do diferendo”. É o que ele precisaria de ter dito a Max Gallo. Trinta anos mais tarde é, sem dúvida, mais fácil de o dizer (112) - mas continua a não ser feito.

 

Se Lyotard já não acreditava, é porque perpetuava ainda uma profunda incompreensão dos conceitos de proletariado e de proletarização – incompreensão que foi, aliás mantida pelo próprio Marx. Esta incompreensão é também um profunda contradição. Porque herdar da dialéctica hegeliana é, em primeiro lugar, para Marx, herdar a dialéctica do Senhor e do Escravo - ela mesma fundada sobre a dialéctica do desejo e do reconhecimento. Ora o que conduz à inversão da dialéctica do Senhor pelo Escravo que se torna “consciência de si, para-si” é, para Hegel, a sua conquista do saber, isto é, a sua conquista das determinações do entendimento pelo trabalho, ou seja, pela utilização de técnicas em cujo manejo o escravo se tornou artista, isto é, detentor de um saber e de uma individuação e de uma propriedade que é a sua individuação, a sua existência reconhecida:

 

«O trabalho (…) é o desejo refreado, ou retardado: o trabalho forma (…) A operação formadora é, ao mesmo tempo, a singularidade ou o puro para-si da consciência. No trabalho, este ser para-si exterioriza-se e passa ao elemento da permanência» (113).

 

O trabalho é a exteriorização por excelência, isto é, a individuação. Como tal, ele é a exteriorização do para-si da consciência, a sua retenção fora de si, e o elemento da sua permanência, que só é permanente porque se tornou terciária.

 

Por esta conquista de si na exteriorização de si e para o senhor, a consciência servil atinge a consciência em-si e para-si, no decurso desta dialéctica,

 

«no senhor, a consciência servil tem que ser para-si como um outro, aí onde é para ela; no medo (o medo do escravo que se tornou escravo pelo seu recuo perante a morte que outro não temeu, e assim veio a ser o senhor) o ser para-si existe apenas em-si; na formação que é trabalho, imposto pela servidão como etapa de uma Bildung, o ser para-si torna-se um si-mesmo, e atinge a consciência em-si e para-si. A forma, pelo facto de ser exteriorizada, (hinausgesetz, posta lá fora, precisa Hippolyte, proletarizada, de algum modo) não é para a consciência trabalhadora, um outro de si mesmo; porque esta sua forma é precisamente o seu ser em-si e para si que, deste modo, se eleva à verdade. No trabalho precisamente, onde parecia ter um sentido estranho a si, a consciência servil, pela operação de se descobrir por si a si-mesma, ganha o seu sentido próprio» (114).

 

Esta dialéctica do trabalho e dos trabalhadores, que veio a ser um dos fundamentos do marxismo, descreve, todavia, em Hegel, menos a situação do operário que se torna proletário, do que a do artesão que se torna empresário, ou seja, burguês. Dito de outro modo, a sua reapropriação pelo marxismo, repousa sobre um mal-entendido.

 

Aquilo que Hegel não pensa aqui – ao analisar o devir do espírito no e pelo trabalho e como uma etapa do “trabalho do conceito” – é o trabalho com a máquina que priva o trabalhador da sua singularidade, isto é do seu trabalho que se transforma num emprego (contra um salário) negatividade que faz dele uma pura força de trabalho que propriamente não trabalha – se o trabalho é, como explica Hegel, um processo de individuação do trabalhador que opera simultaneamente o seu objecto que se individua tecnicamente (é o que procurei descrever como trabalho num meio associado).

 

É por isso que aquilo que veio a impor-se, na teoria económica marxista, como a ditadura do proletariado, supostamente fundada sobre esta dialéctica, é uma profunda desinterpretação. Porque, nos Fundamentos da Crítica da Economia Política (Grundrisse), o próprio Marx mostra que aquilo que se opera na exteriorização nas máquinas, como gramatização, é o que priva estrutural e materialmente o trabalhador ou o escravo de todo o saber - escravo que se tornou o trabalhador salariado, cujo estatuto tem o destino de se estender a “todas as camadas da população”, como escrevem Engels e Marx no Manifesto do Partido Comunista (115).

 

É precisamente porque o materialismo, herdeiro da “narrativa especulativa”, despreza esta questão - e aquela que necessariamente a acompanha, a questão do desejo (de reconhecimento, isto é, do trabalho como retardamento e diferância do desejo e tudo o mais, o desejo do Outro e da “Coisa”, ausente da teoria lyotardiana da anamnese) – é por tudo isso que o materialismo fracassa em construir uma “narrativa de emancipação” (como se o materialismo e a dialéctica não fossem senão histórias contadas às crianças, como as que conta Platão no livro II da República, e um pouco ao modo da pequena história que Lyotard conta em O Pós-Moderno explicado às crianças (116)) como um horizonte de luta política que abra alternativas.

 

E Lyotard fracassa também, como todo o marxismo de onde provém e que jamais criticará: preferindo enterrá-lo. Porque criticar implica reler – e reler em pormenor contra os clichés dominantes. Mas, para isso, é preciso acreditar e “ele já não acredita” - com o risco de passar por cínico. Esta não crença, a que chamo descrença deve-se à confusão mantida pelos marxistas em geral quanto ao que significa proletariado. E o facto de que Lyotard não vê esta confusão marxista (e marxiana, se é verdade que O Capital tende a identificar proletariado e classe operária, ao contrário do que faz o Manifesto do Partido Comunista) é tanto mais estranho, quanto é certo que ele se refere explicitamente a Marx e aos Fundamentos da Crítica da Economia Política, na sua análise da condição pós-moderna do saber.

 

Isto acontece porque ele repete o gesto de Marx precisamente por não o ter criticado (de o ter tomado a sério até esse ponto). Este gesto consiste, de um lado, em fazer do conceito de proletariado, um sinónimo da classe operária e, por outro, em fazer da negatividade da condição proletária um horizonte insuperável, jamais suscitando a hipótese da desproletarização – deriva marxista que prolonga a metafísica hegeliana.

 

O que Hegel não pensa é a técnica como aquilo que curto-circuita o saber do próprio escravo. Marx, por seu turno, tenta pensar a técnica maquínica, mas sem tirar quaisquer consequências quanto à dialéctica do Senhor e do Escravo. É por essa razão (porque se esquece de “pensar” a farmacologia positiva e negativa desta organologia) que ele faz da negatividade o sujeito universal da história (que seria o proletariado), o sujeito revolucionário, enquanto que só a positividade curativa do suplemento farmacológico, tal como pode proceder do trabalho, é capaz de inverter a lógica da desindividuação, como técnica de si, pode tornar possível uma nova época da individuação, ou seja, do saber – como nova idade histórica do amor do saber, e dos seus sabores, como saber-fazer e como saber-viver, e também como saber-teorizar – que é aquilo que procuro fazer aqui.

 

Aquilo que está em jogo em A Condição Pós-Moderna, Relatório sobre o Saber, é o saber “colocado em exterioridade em relação ao sabedor”, exterioridade que torna possível a “performance”, e inacessível a experiência do “diferendo”. Esta exteriorização, porém, é aquilo que Platão já denunciava na escrita enquanto pharmakon. Sustentei que esta denúncia é o primeiro momento do pensamento do processo de proletarização (117) - e que é assim que deve ser lido Derrida, com ele, senão contra ele.

 

O processo de proletarização é aquilo que Marx descreve no Manifesto do Partido Comunista (1848), descrição aprofundada nos Fundamentos da Crítica da Economia Política (1857), e que constitui o material de base que Althusser e os seus alunos Étienne Balibar, Roger Estabelet, Pierre Macherey e Jacques Rancière convocaram a sua geração a ler e reler, a saber: Ler O Capital (1965), demarcando-se do que chamavam “a ideologia estruturalista” (118). Todavia, do Manifesto ao Capital, a questão do saber e da perda do saber, foi-se perdendo, E ficou perdida para os marxistas, entre os quais Lyotard.

 

Aquilo a que Lyotard chama, em A Condição Pós-Moderna, “a colocação em exterioridade” é concebido explicitamente em referência a Marx nos Fundamentos da Crítica da Economia Política (119). Mas o que é estranho é que Lyotard não pense isso como proletarização. Tal acontece, porque, como todos os marxistas, Lyotard não percebe que o proletariado não é a classe operária, mas a classe dos incapacitados, isto é, dos desclassificados: aqueles que já não sabem, mas estão ao serviço dos dispositivos de exteriorização do saber, os técnicos de que fala A Condição Pós-Moderna e de que se pretende não poderem testemunhar do “diferendo”, como tantos outros submetidos aos dispositivos retencionais do consumo (quer dizer, toda a gente), que na falta de um trabalho, almejam apenas um emprego.

 

Aqui, a questão não é a de dar testemunho do “diferendo”, salvo se for para reconstituir os circuito amnésicos – isto é, pensar e praticar o diferendo como experiência do defeito, no seio da qual se conduza uma luta farmacológica contra a proletarização, de pensar, ou seja, fazer, além de que dizer se torna dizer pela exteriorização que institui um diferendo entre o sujeito do enunciado e o da enunciação, através de um terceiro, fautor de proletarização: aquele que é constituído pelas retenções terciárias, as máquinas e aparelhos, e não apenas pela performatividade dos “speech acts” ou da “dogmática gestionária” (120), um terceiro curativo ou terceiro-saber - saber organológico.

 

Desde então, em vez de dizer que não há legitimação possível em virtude a informatização da linguagem, devemos afirmar performativamente – mas num sentido diferente daquele a que Lyotard chama performatividade – que a gramatização, de que a informatização é o desenvolvimento coevo de A Condição Pós-Moderna e que hoje se tornou a digitalização, onde a informática é acessível a toda a gente e não reservada aos “informáticos” e outros “técnicos” das “máquinas de linguagem” e se estende bem para lá da linguagem, que esta gramatização digital transforma radicalmente os espaços e os tempos públicos e privados (o que Lyotard vê chegar, mas não consegue pensar) como a escrita fez em relação à polis, segundo Hegel. E, por esta transformação, a gramatização digital abre a possibilidade de uma farmacologia positiva, como desproletarização generalizada.

 

Esta narrativa da gramatização, como experiência do pharmakon, conta a história da ideia daquilo que há mais elevado no ser não-inumano e que só é possível como experiência daquilo que há de mais baixo, aquilo a que Deleuze chamava a baixeza – que pode causar vergonha, e dar que pensar.

 

Quanto à possibilidade terapêutica do pharmakon digital, ela não surge como uma iluminação vinda não se sabe de onde, mas porque a retenção terciária digital que constitui um estádio original da exteriorização que é a gramatização, a torna possível e necessária no momento em que se afunda o modelo industrial imposto pelo capitalismo consumista que generalizou a baixeza e impôs a proletarização generalizada, como tarefa do pensamento e da acção sob todas as suas formas, porque a irracionalidade da racionalização que esta baixeza engendra é óbvia e patente, no momento em que já operam modos diferentes de organização que praticam a desproletarização.

 

No entanto, se o negativo da dialéctica hegeliana nada tem de tóxico (e é superável, isto é, redutível e relevável, solúvel num espírito tornado absoluto) a negatividade farmacológica é, pelo contrário, in-solúvel: quer dizer, não pode encontrar nenhuma solução definitiva onde se dissolva. Ela é objecto de uma luta de todos os instantes. A sua toxidade, que se revela como desindividuação e perda de sabor, ou seja, como não-saber absoluto tem que fazer parte da terapêutica como dependência, ou seja, como heteronomia irredutível: o indivíduo não se individua senão na medida em que sabe lidar com a toxidade irredutível do pharmakon.

 

Isto significa que a toxidade como prática de intoxicação voluntária, pode ser curativa: o curativo não é o contrário do tóxico (121). É por isso que Bateson (122) afirma que o álcool pode ser bom para o alcoólico e deve se reconhecido como tal, no momento da desintoxicação. O que dizem os alcoólicos anónimos ao candidato à desintoxicação é que ele tem que compreender o que era bom para ele no álcool, para poder passar a algo de diferente, para poder prosseguir e lutar contra a desindividuação em que se tornou o álcool como dependência. O que significa também que, do ponto de vista farmacológico, não há síntese final, mas um saber-viver-com-as-suas-dependências (o que Nietzsche chamava as cadeias, as daquele agrilhoado que foi Prometeu: um saber-viver sempre singular, isto é, individuante.

 

Lyotard afirma, pelo contrário, que a colocação do saber numa exterioridade que não comporta um retorno ao sabedor, e sem horizonte alternativo, é um facto insuperável: é precisamente esta impossibilidade de retorno que constitui o pós-moderno em sentido estrito – onde “there is no alternative”. Ora isso é que parece altamente contestável, como mostra, por exemplo, o movimento da programação livre que representa uma organização industrial do trabalho fundada sobre a desproletarização, ou seja, na partilha dos conhecimentos e das responsabilidades, numa reconstituição dos meios industriais associados – enquanto, até hoje, a industrialização conduziu sempre à dissociação, isto é, à desindividuação (123).

 

Que seja possível chegar a uma situação farmacologicamente positiva, não significa que a tendência à dissociação possa ser superada, ou relevada no sentido da Aufhebung hegeliana, significa sim

 

- que a situação presente deve ser combatida e contida e que é possível uma nova política económica e industrial do século XXI, que seja o princípio de uma nova organização e das linhas de fuga onde se projetem novas finalidades.

 

- que essa é a responsabilidade das universidades.

 

 

Reler Os Fundamentos da Crítica da Economia Política

 

Marx inverte a definição hegeliana e idealista do entendimento, afirmando que a exteriorização em que ela essencialmente consiste, é, antes de mais, a dos seus meios de produção: nisso consiste o seu “materialismo”. Mas, ao romper com o idealismo, Marx perde de vista a questão da idealidade, ou seja, a questão da idealização que opera necessariamente em todo o investimento e em todo o saber do objecto de um desejo. E foi isso igualmente que o pós-estruturalismo deixou na sombra, tendendo a confundir o desejo com a pulsão – o mal-entendido sobre o proletariado é também o mal-entendido sobre o desejo.

 

Em A Ideologia Alemã (1845) o materialismo de Marx consiste, em primeiro lugar, na identificação do primeiro “acto histórico” dos seres noéticos com a sua capacidade técnica. Os seres humanos

 

«distinguem-se dos animais desde que começam a produzir os seus meios de existência, passo em frente que é consequência da sua organização corporal» (124).

 

A questão hegeliana da exteriorização reposta é assim “sobre os seus pés”, e de algum modo, como questão da organologia geral, onde a dialéctica materialista atribui o ser (e o seu devir) ao fazer, ou seja à produção:

 

«O modo pelo qual os indivíduos manifestam a sua vida reflete exactamente aquilo que são. Aquilo que são coincide portanto com a sua produção, tanto o que produzem, como com o modo como o produzem. O que são os indivíduos depende, pois, das condições materiais da sua produção(125).

 

Que esta exteriorização possa conduzir à proletarização dos trabalhadores, é explicado nos Fundamentos pelo facto da passagem do instrumento à máquina, isto é, por um novo estádio de exteriorização:

 

«O instrumento de trabalho sofre (…) inúmeras metamorfoses, cuja última é a máquina, ou melhor, o sistema automático de máquinas (…). Só quando se torna automática é que a maquinaria encontra a forma mais adequada e mais acabada e se transforma num sistema (…)»

 

Este autómato é composto por inúmeros orgãos mecânicos e intelectuais o que transforma os operários em simples acessórios conscientes (126).

 

E Marx prossegue

 

«A máquina nada tem em comum com o instrumento do trabalhador individual. É completamente distinta do instrumento que transmite ao objecto a sua actividade (…) que agora se limita a vigiar a acção transmitida pela máquina às matérias-primas, e a prevenir os seus disfuncionamentos.

Com o instrumento, passa-se exactamente o contrário; o trabalhador animava o objecto com a sua habilidade própria, pois o manejo do instrumento dependia do seu virtuosismo. A máquina detém a capacidade e a força, no lugar do operário, passou a dominar todo o processo, porque as leis da mecânica agem nela e dotam-na de uma alma» (127).

 

Esta análise é a base do que diz Simondon em Du mode d’existence des objects téchniques. O processo de desindividuação é uma paráfrase da descrição de Marx:

 

«O indivíduo técnico torna-se, durante um tempo, o adversário do homem, o seu concorrente; no tempo em que só existiam instrumentos, o homem centrava em si a individualidade técnica; agora a máquina toma o lugar do homem, porque este cumpria uma função de máquina, de portador de utensílios» (128).

 

Marx sublinha que com esta divisão industrial do trabalho, e a substituição dos operários e dos utensílios por máquinas é também uma mudança no estatuto do saber e da ciência que se prepara. O saber científico é posto ao serviço do processo de exteriorização do próprio saber, em geral, que se exterioriza:

 

«A ciência constrange (…) os elementos inanimados da máquina a funcionar como autómatos úteis. Esta ciência deixa de existir nos cérebros dos trabalhadores; em vez disso, através da máquina, ela age como se fosse uma força estranha, o poder da máquina» (129).

 

Assim se opera, se seguirmos Marx à letra, uma descerebração - como dirá o rei Ubu em 1896. O que se transforma simultaneamente é tanto o saber científico – o trabalho intelectual – como trabalho manual; ambos morrem.

 

O trabalho intelectual é posto ao serviço da redução da parte do trabalho manual, no processo de produção:

 

«O processo de produção deixa de se um processo de trabalho (…) os poucos trabalhadores vivos (…) não são mais do que um elemento do sistema, cuja unidade não reside nos trabalhadores vivos, mas na maquinaria viva (activa).

(…) o capital tende, necessariamente, a aumentar as forças produtivas e a reduzir ao máximo o trabalho necessário» (130).

 

O trabalho é posto ao serviço da sua apropriação pelo capital sob a forma de capital fixo:

 

«A acumulação do saber, da habilidade, bem como de todas as forças produtivas gerais do cérebro social, são absorvidas pelo capital que se opõe ao trabalho; elas aparecem, agora, como uma propriedade do capital ou mais exactamente do capital fixo, na medida em que entra no processo de trabalho como um meio de produção efectivo» (131).

 

É neste sentido que, para Simondon, uma máquina é uma cristalização de gestos repetíveis tornados “estruturas de funcionamento”:

 

«O que reside nas máquinas é a realidade humana, o gesto humano fixado e cristalizado em estruturas de funcionamento» (132).

 

A subordinação do trabalho (a servidão) ao capital (o domínio) opera-se pela materialização do saber, isto é, pela espacialização da memória viva do trabalho (do tempo da experiência acumulada pelo trabalho), a sua gramatização que permite eliminação final do operário em benefício de uma autonomização da técnica, sob a forma a automação:

 

«A força produtiva de uma sociedade mede-se segundo o capital fixo em que se materializa (…). O trabalho vivo fica subordinado ao trabalho materializado, que age de modo autónomo. A partir daí, o trabalhador torna-se supérfluo» (133).

 

Esta gramatização aparece com a tecnologia maquínica que substitui a técnica instrumental, por aplicação da ciência, o que implica a perda do saber empírico que se opera por deslocação das finalidades (ou destinos) do saber formal ou teórico:

 

O conjunto do processo de produção deixa de estar subordinado à habilidade do operário; torna-se uma aplicação tecnológica das ciências. O capital tende, por isso, conferir à produção um carácter científico (134).

 

Desta forma, o saber muda de estatuto, tanto do lado do saber-fazer, que é substituído por um saber materializado em autómatos maquínicos, como do lado do saber teórico que só pôde operar esta transformação tornando-se ele mesmo tecnologia - isto é, como veremos, perdendo a sua dimensão teórica e tornando-se um pseudo-saber proletarizado, ou seja uma racionalização (135) produtora de imbecilidade sistémica.

 

Estes desenvolvimentos conduziram a uma contradição que Marx descreverá mais tarde como a baixa tendencial da taxa de lucro:

 

«O tempo de trabalho - simples quantidade de trabalho - é, para o capital, o único princípio determinante. Ora, o trabalho imediato e a sua quantidade deixaram de ser o elemento determinante da produção, e, portanto, da criação de valor de uso. Com efeito, o trabalho foi reduzido quantitativamente a um papel, por certo, indispensável, mas subalterno, em relação à actividade científica geral e à aplicação tecnológica das ciências naturais no desenvolvimento das forças produtivas do conjunto da organização social (…). É assim que o capital, como força dominante da produção, trabalha no sentido da sua dissolução» (136).

 

Existe uma contradição entre o facto de o trabalho ser a única fonte possível do lucro para o capital e sua tendência para reduzir o seu papel, transformando-se em capital fixo, o que conduzirá à baixa tendencial da taxa de lucro.

 

Assim, a invenção tornou-se o eixo do capitalismo.

 

A invenção torna-se o fundamental ramo do negócio e a aplicação da ciência à produção imediata, determina as invenções ao mesmo tempo que as solicita (137).

 

Esta invenção é, antes de tudo o mais, o avanço do processo de gramatização como espacialização, reprodução e repetição do tempo dos gestos que se tornam movimentos automáticos da máquina, tal como a palavra veio a ser o texto no início da História como Geschichte (e, nos nossos dias, com a digitalização a palavra é escrita e lida automaticamente):

 

«A via seguida, em geral, pelo maquinismo (…) é um processo de análise, o da divisão do trabalho, por exemplo, que transforma cada vez mais os gestos do operário em operações mecânicas, de tal modo que se chega a um ponto em que mecanização ganha a partida» (138).

 

É este processo de gramatização, que ultrapassa a oposição da linguagem e da técnica (ou seja, o “logocentrismo”), o que está em jogo na diferância e portanto, na escrita, no sentido em que Lyotard a convoca na sua teoria da anamnese. Desde então, a oposição entre as duas formas de exteriorização que organiza os argumentos de A Condição Pós-Moderna e de O Inumano, revela-se profundamente metafísica: é uma regressão filosófica.

 

Para Althusser,

 

«o texto, a história é a inaudível e ilegível notação dos efeitos de uma estrutura de estruturas» (139).

 

e trata-se, para o marxismo, de ultrapassar o logos e o logocentrismo da história ideológica e idealista, pensando, lendo e escrevendo este texto como esta “notação dos efeito de uma estrutura de estruturas”.

 

Mas, os Fundamentos mostram que esta abordagem supõe pensar em termos de gramatização (140) - passando não só por Derrida, como também por Leroi-Gourhan, outro estruturalista (141), mas que não reduz a questão estrutural às da combinatória e da linguagem; pensa, pelo contrário, as estruturas em termos daquilo que Althusser chama a combinação de Marx, mais próxima do que Deluze e Guattari pensarão sobre este ponto. Balibar cita o livro II de O Capital:

 

«Quaisquer que sejam as formas sociais de produção, os trabalhadores e os meios de produção são sempre os factores. Mas tanto uns como os outros, só o são em estado virtual enquanto estão separados. Para qualquer produção, é necessária a combinação dos factores (Verbindung). É o modo particular de operar as combinações que distingue as diferentes épocas económicas por que passou a estrutura social» (142).

 

A análise proposta por Marx nos Fundamentos conduz a um organologia, e, mais especificamente, a uma organologia dos saberes que é essencial para pensar as épocas económicas como a articulação destas combinações:

 

A natureza não constrói máquinas, nem locomotivas, nem caminhos-de-ferro, nem telégrafos eléctricos, nem ofícios de tecer automáticos, etc.. Tudo isto é produto da indústria humana, matéria natural transformada em instrumentos da vontade e da acção humana sobre a natureza. São instrumentos do cérebro humano, criados pela mão do homem, orgãos materializados do saber.

 

O desenvolvimento do capital fixo indica o grau em que a ciência social, em geral, o saber se tornou uma força produtiva imediata e, por consequência, até que ponto as condições do processo vital da sociedade foram submetidas ao controlo da inteligência geral e trazem a sua marca: até que ponto as forças produtivas socias não são apenas produzidas sob a forma de saber, mas como orgãos imediatos da praxis social do processo da vida real.

 

No entanto, não são apenas os saber-fazer que são destruídos pela gramatização industrial – ao serviço da qual os saberes teóricos são submetidos. Os saber-viver são também liquidados pelos processos de captação da atenção que configuram os padrões comportamentais (143).

 

É então o consumidor que é privado de todo o seu papel inventivo e já não transmite nenhum saber-viver aos seus descendentes, como tampouco os recebe dos seus ascendentes, posto que foi constrangido a abandoná-los para se entregar a um marketing concebido segundo os preceitos das ciências sociais e cognitivas: o neuro marketing é hoje o estado mais avançado desta escalada da proletarização.

 

Por outro lado, os saberes de origem teórica são igualmente proletarizados, isto é, separados da actividade teórica – e é este devir que é descrito pela “performatividade” analisada em A Condição Pós-Moderna. A destruição da dimensão teórica dos saberes formais consiste em transformar os formalismos em automatismos, desenhados para aumentar as suas performances analíticas, o que conduz à automatização do entendimento científico que, assim, se separa da razão e se transforma em racionalização, ou seja, causalidade material e formal, sem causalidade final.

 

Assim, o ensino de um saber tecnológico puramente processual, generaliza-se, hoje, inclusivamente nas faculdades de ciências, em detrimento de um conhecimento histórico e crítico das teorias que estiveram na origem dos formalismos. Os próprios instrumentos científicos tornam-se máquinas às quais os cientistas, cada vez mais tecnólogos e menos cientistas, devem adaptar-se, sem nenhum tempo para remontar aos axiomas e aos mecanismos que permitam a formulação de juízos analíticos (144).

 

No domínio económico, esta abolição da teoria conduziu até à proletarização do próprio Alan Greenspan (145).

 

 

Alternativas, reformas e revoluções

 

O dogma político da ditadura do proletariado postula que não existe nenhum além da proletarização. Dito de outro modo, este dogma afirma a priori que não há nada para além da liquidação dos saberes, a proletarização é inultrapassável e o trabalho não pode ser reinventado, numa nova relação ao pharmakon e à gramatização generalizada, que torna possível a generalização desta proletarização. Este é o ponto de vista que tem caracterizado o materialismo dialéctico quando pretende tornar operatório o conceito hegeliano de negatividade.

 

Este dogma constitui o verdadeiro problema do marxismo – o que virá a traduzir-se nas errâncias e reviravoltas de Lenine a propósito de Frederick Taylor (146) e tem feito passar para segundo plano a questão central do materialismo, a saber: a da materialidade dos saberes e o problema da sua gramatização pela mecanização instaurada pela revolução industrial, das determinações do entendimento (no sentido hegeliano e como faculdade da res cogitans) concretizando-se através de um processo de automatização pela escrita dos formalismos na matéria (atingindo-se o mais elevado grau de automatização quando esta matéria é a sílica) –, isto é, no espaço (res extensa).

 

A superação deste dogma só pode consistir na inversão da negatividade da toxidade do pharmakon numa positividade curativa, pela concepção de uma nova idade do trabalho, fundando um novo modelo industrial que constitua uma nova economia libidinal da idade industrial, isto é, um novo reino dos fins industriais.

 

No processo de proletarização, as determinações tecno-lógicas do entendimento e os formalismos que os consubstanciam são postos ao serviço da eficiência – que Lyotard designa como performance – e separadas do tempo da causalidade final (que é a temporalidade como razão da matéria, da forma e da eficiência) sem a qual não existe teoria, quer dizer, anamnese. Mas, após Freud, a causalidade final é o que se constitui como objecto do desejo, ou seja, como economia libidinal (num sentido muito diverso daquele em Lyotard a entende).

 

Marx (como mais tarde Althusser) comete um erro radical supondo que é pela tomada de consciência da sua situação proletarizada que o proletariado pode escapar da sua situação, e não pela elaboração de um tipo de saber que não é a “ciência marxista”, que Althusser procura, mas a invenção de um novo processo de individuação psíquica, colectiva e técnica, constituindo uma nova relação à técnica – o que está no horizonte da teorização de Simondon:

 

«Estas estruturas maquínicas que funcionam têm que ser sustentadas, no curso do seu funcionamento, e a maior perfeição (da máquina) coincide com a maior abertura, com a maior liberdade de funcionamento» (147).

 

Esta proposição enuncia um ponto fundamental de farmacologia particularmente esclarecedora para quem quer compreender como e porquê a retenção terciária maquínica escrita e lida no silício pelas máquinas de ler e escrever, são dispositivos e redes digitais contributivas, que abrem precisamente a possibilidade da desproletarização, não como uma idade pós-industrial (148), mas como uma nova idade industrial.

 

Mau grado a extrema clarividência dos seus Fundamentos, Marx não pensa a técnica como esta memória que sempre foi (como uma organologia do inconsciente) o que, hoje, se torna patente no estádio de gramatização digital, quando os hypomnémata industriais (chamados software, hardware, data, netware, web, metadata, etc.) se tornam o elemento economicamente primordial. Marx continua a pensar a técnica sob a categoria de meio para um sujeito colectivo, que é o proletariado, como classe e como consciência de classe - ao mesmo tempo que continua a identificar o proletariado com a classe operária que se tornou desclassificada, isto é, não operante deixando de abrir o mundo, mas precisamente proletarizada, a que o seu mundo foi fechado pela dissociação.

 

Ignorando que o “elemento” técnico é um suplemento que instaura uma “lógica do suplemento” através de toda uma história, e não como meio ao serviço de fins, Marx não pensa a tripla individuação psíquica, colectiva e técnica. Mesmo quando afirma que o regime de salariado conduz à proletarização, ele postula que a classe trabalhadora é portadora das contradições do capital e que está em condições de destruí-lo – o que é, sob todos de pontos de vista, um erro, que conduziu a generalidade dos marxistas ao que se chamou erradamente o obreirismo.

 

O proletariado não é, de modo algum, aquilo que pensam Lyotard, Althusser e o pensamento marxista, em geral: o proletariado é constituído, não pela classe operária, mas “pela exteriorização do saber em relação a quem sabe”. O grande alcance de A Condição Pós-Moderna, com tudo o que tem de criticável (a começar pelo próprio Lyotard, que declarou mais tarde, que este texto não era senão um escrito de circunstância) é o de ter tornado evidente que o destino do saber reside na sua exteriorização que é, ao mesmo tempo, a sua condição de possibilidade e a condição da possibilidade da sua ruína.

 

O problema reside em que, apesar de se referir ao texto dos Fundamentos para mostrar que Marx foi o primeiro a pensar e a prever este devir

 

- por um lado, Lyotard não vê que a proletarização é um destino comum tanto do trabalho manual como do trabalho intelectual (o que o próprio Marx não conceptualiza claramente embora tenha afirmado, desde logo, que a proletarização afectará “todas as camadas da população”),

 

- por outro lado, não vê que a proletarização é já o tema de Platão quanto à dimensão farmacológica da escrita – que se torna “telegráfica”, quando falta uma terapêutica como épimeleia praticada em vista de um acesso à anamnese.

 

Apagando a questão central do saber e da sua perda, como factor principal da proletarização, Marx não vê que a contradição fundamental do capital é menos a da baixa tendencial da taxa de lucro – contra a qual a “destruição criadora” de Schumpeter vai encontrar uma resposta (provisória) – do que a baixa tendencial da energia libidinal, a saber: a destruição dos saberes sob todas as suas formas que é também a destruição dos sabores e, com eles, do desejo que os engendra ao sublimá-los. E não o vê porque tampouco vê que o fim do desejo induzido pela dialéctica hegeliana é o principal problema que ela suscita – antecipando assim o devir efectivo do mundo contemporâneo que - verdadeiro ardil da história - o anti-hegelianismo pós-estruturalista terá contribuído para instalar.

 

Com efeito, Lyotard partilha com o pós-estruturalismo, e com o marxismo em geral, este ponto de vista erróneo sobre o proletariado procedente de um erro sobre a questão do desejo, questão sobre a qual tem sido permanentemente menorizada a evolução do pensamento de Freud sobre a teoria das pulsões – evolução a propósito da qual Freud escreve, por exemplo, em 1920 que

 

«Os fins próximos para os quais tende a técnica psicanalítica são hoje totalmente diferentes dos do seu início» (149).

 

Deixando na sombra a nova questão que Freud, nesta época, reivindica como tal (150), o ponto de vista pós-estruturalista sobre o desejo confunde o que distingue e o que articula, o desejo e a pulsão.

 

A noção de proletariado deve ser pensada de modo diferente, relendo Platão, Hegel e Marx (mas também Adam Smith com Freud) precisamente porque o desejo e sua economia é aquilo que é destruído pelo capital, como é anunciado indirectamente pela Fenomenologia do Espírito. Perceber isso supõe, todavia, distinguir claramente desejo e pulsão, o que não é evidentemente o caso da “grande película efémera” através da qual Lyotard ambiciona pensar os afectos, no que ele pensa ser a economia libidinal do Capital: na Economia Libidinal (151) , aparecida um ano antes de Deriva a partir de Marx e Freud e dois anos depois do Anti-Édipo de Deluze e Guattari, onde desejo não é precisamente esta economia - a questão aí abordada não é a do desejo, mas a da pulsão (152). É certo que, em larga medida, o pensamento pós- estruturalista pretende romper com Marcuse, mas repete-o amplamente neste ponto (153).

 

Houve dois mal-entendidos que se instalaram duradouramente, no decurso do Século XX:

 

- o primeiro deles sobre o que é o proletariado,

 

- o outro sobre o que é o desejo.

 

Ambos mal-entendidos alimentam a maior das confusões com o que se passa com o trabalho (que é a modalidade principal da diferância – eis o que será necessário reter de Hegel, mas passando pela Ideologia Alemã, os Fundamentos e a Introdução à Psicanálise).

 

Por outro lado, estes dois mal-entendidos jamais cessaram de se reforçar mutuamente – impedindo pensar aquilo que constitui a especificidade histórica do século XX, a saber, o consumismo. E esta situação teórica largamente banal terá induzido todas as errâncias dos movimentos progressistas, oscilando entre reforma e revolução.

 

- a reforma é o que não propõe nenhuma alternativa: visa melhorar um sistema finito, cujas contradições, se supõe poderem ser geridas sem a alternativa que implica a sua finitude (154) - A viragem sistemista de Lyotard é, deste ponto de vista, um regresso ao reformismo.

 

- a revolução é o que afirma que um sistema finito atingiu, ou vai atingir, um limite, que torna necessário mudar de sistema. Um materialismo marxista estrito deveria afirmar que esta mudança de sistema se torna necessária quando o material do sistema atinge o seu limite – induzindo uma passagem ao limite no sentido de René Passet (155). Mas, uma vez que não compreende que a sua própria da exteriorização conduz à proletarização, Marx não chega a pensar esta materialidade hipermaterial que é o saber como capital fixo e não consegue criticar a tecnicidade do capitalismo como revolução farmacológica nem tampouco como revolução terapêutica: não conseguiu pensar o choque tecnológico, nem a sua transformação em individuação psicossocial e em estado de choque filosófico.

 

O século XXI que se inicia, instalou, no entanto, de facto, uma situação revolucionária, por duas razões:

 

- por um lado, uma mutação do material industrial, produzida por um mundo industrial doravante dominado a por uma indústria do suplemento que é a digitalização (pela indústria da retenção terciária digital, primeiramente como hardware e software e, depois, como dataware e metadataware (156) ); uma mutação industrial sistémica acelerando, ao mesmo tempo, a caducidade do sistema consumista fundado sobre instituições centralizadas e abrindo possibilidades inéditas de indeterminação no campo maquínico que constituem em si mesmas, novas possibilidades de individuação psíquica e colectiva;

 

- por outro lado, os “técnicos” das “máquinas de linguagem”, que Lyotard supunha inaptos a testemunhar do diferendo, comprometeram-se desde há trinta anos (pouco tempo depois da publicação de A Condição Pós-Moderna), primeiramente no MIT (157) e depois na Califórnia, particularmente em Berkeley, numa luta revolucionária que respeita, ao mesmo tempo, a produção e a partilha dos saberes, a nova organização industrial do trabalho e da propriedade intelectual que tem por finalidade constituir uma organização industrial fundada sobre a desproletarização.

 

A revolução não significa necessariamente barricadas e tomadas de poder: é o processo onde uma época ultrapassada dá lugar a uma outra. Uma revolução é uma modalidade excepcional daquilo a que Simondon chamou “saltos quânticos” na individuação, onde as próprias condições da individuação são transformadas. A questão é, então, de definir o que faz época.

 

 

A decadência do progressismo, a dupla ficção da classe “operária” e das classes “médias”, e a reconquista dos saberes

 

Há um processo revolucionário em curso. É simultaneamente tecnológico e económico. Ainda não é político: não conseguiu ainda produzir o segundo tempo do duplo redobramento epocal em que consiste sempre a socialização revolucionária de um choque tecnológico, como o que realizou a burguesia do século XIX, segundo Marx e Engels (158).

 

Isto acontece porque, não tendo compreendido o duplo mal-entendido do século XX (de que André Gorz havia entrevisto alguns dos seus aspectos) (159), os movimentos e partidos ditos “progressistas”, do século XX, sofreram na pele, de um modo impressionante, o duplo mal-entendido atrás assinalado – não aprendendo rigorosamente nada do que nos trás o século XXI, e esse é um outro aspecto da imbecilidade reinante.

 

Os movimentos e partidos progressistas mantiveram-se cegos a tudo o que se joga na nova cena revolucionária e incapazes de desempenhar o papel de laboratórios das perspectivas alternativas. Ao mesmo tempo que se separaram das classes “populares” e das classes “médias”, reforçando, deste modo, a extremização da direita dita de governo e facilitando a tomada do poder pela extrema-direita que se reivindica explicitamente como tal.

 

No decurso do século XX, os movimentos e partidos progressistas endereçaram, sistematicamente, às classes populares e às classes médias, discursos que não lhes diziam nada: apelavam às classes populares que sofriam na pele os efeitos mais deletérios da proletarização, sem que o sentido desta proletarização (como perda do saber) lhes fosse mostrado com um mínimo de clareza. Deste modo, o essencial das lutas visava a defesa do “poder de compra”, ou seja, a reforçar o consumismo que conduzia directamente à liquidação não só do saber-fazer no trabalho, como à liquidação do saber-viver fora dele.

 

Do lado das classes ditas “médias”, funcionava a mesma lógica, a mesma liquidação do saber-viver que acrescia a liquidação dos saberes teóricos (aprendidos nas grandes escolas e nas universidades) tornados caducos pelo facto da proletarização dos processos de decisão e de concepção pelo entendimento automático (160), no momento em que a pauperização e a desqualificação as aproximam das classes populares, uma vez que a desclassificação do salariado é inelutavelmente induzida pela financiarização especulativa que iria tornar-se a partir dos anos 1970 a nova resposta à baixa tendencial da taxa de lucro, na época em que o capitalismo empresarial schumpeteriano encontrava os limites da nova situação pós-colonial.

 

Não percebendo nada deste devir, os partidos e movimentos progressistas, ou historicamente reputados como tal, não podiam evidentemente retirar nenhuma vantagem política da situação. Lutar contra a “desqualificação”, sob todas as suas formas, pondo em evidência a solidariedade das “classes médias” com os trabalhadores manuais e os “empregados”, deveria ter consistido em afirmar como finalidade principal uma reconstrução dos saberes. Em vez disso, a oposição entre os “colarinhos azuis” tornados “empregados” e os “colarinhos brancos”, tornado “quadros” (ou “bobos”) não poderia deixar de conduzir aos populismos de todas as cores.

 

Compreende-se, porém, que, até aos anos 1980, este discurso não fosse adoptado ou sequer concebido: a realidade material e tecnológica dos saberes exteriorizados no capitalismo, ainda não o permitia. Em contrapartida, é dificilmente compreensível que continue a ser o caso nos nossos dias: as especificidades da nova farmacologia digital – impostas pela evolução da gramatização em que consiste, não só o maquinismo industrial, mas também, actualmente, a omnipresença das tecnologias culturais cognitivas, típicas da “reprodutibilidade técnica do século XXI” – tornam esta perspectiva tão clara que ela começa já a desenvolver-se, face à ignorância dos partidos e movimentos que, por esta razão, já só podem designar-se “progressistas” entre aspas.

 

Esquecendo, por completo, que a extensão do salariado foi também a da proletarização, ignorando que esta procede essencialmente da exteriorização dos saberes pela gramatização que afecta, inclusivamente, as classes dirigentes provindas da financiarização (sobre este ponto, há que ler Paul Jorion) os movimentos e partidos “progressistas” aliaram-se ao consumismo, alimentando a ficção (uma vez que o operário não é o proletário) de uma “classe operária” cujo poder de compra tem que ser defendido, alimentando a completa dessolidarização entre as “classes populares” e as “classes médias”.

 

A transformação da “classe operária” em exército de reserva, isto é, uma força de trabalho desqualificada que, desde há muito, nada tem de operário, classe operária que foi também desclassificada, desde há muito, sob a pressão constante da ameaça do desemprego, constitui um eleitorado muito difícil de convencer porque, ao falar-lhe de poder de compra só lhe dirigem mensagens incompreensíveis porque incoerentes.

 

Não compreendendo o problema comum às “camadas papulares” e à “classe média” designadamente, o da sua perda de saber, as classes populares foram sistematicamente traídas em favor da classe média, considerada como um eleitorado mais seguro e mais compreensivo, ignorando assim que a classe média é tão fictícia e fantasmática como as “camadas populares” ou a “classe operária” e isto porque ela é tanto ou mais afectada pela proletarização, e mais ainda os seus filhos. Quer dizer, a classe média foi igualmente traída.

 

Presentemente, estas questões emergem como tais e devem conduzir ao abandono do discurso da defesa do poder de compra para passar ao objectivo do desenvolvimento do saber de compra, fundado sobre um novo saber produzir e um novo saber conceber e decidir, na época da gramatização digital e da economia contributiva que ela torna possível. A economia industrial contributiva deve basear-se em saberes partilhados, sobre processos de concepção (isto é, de individuação dos saberes) elaborados colectivamente e sobre processos de decisão criticados – coisas que as tecnologias da transindividuação que o netware generaliza, tornam hoje possíveis (161).

 

A alternativa só pode consistir na desproletarização tanto das classes médias em desqualificação, como das classes populares – o que a organização reticular dos saberes torna, hoje, possível.

 

 

Crenças e descrenças, crédito e descrédito

 

«Tive necessidade de, por uma vez na vida, desfazer-me de todas as opiniões que tinha recebido, até então, na minha crença, e recomeçar tudo de novo a partir de novos fundamentos» (162),

 

escreve René Descartes no princípio das suas Meditações sobre Filosofia Primeira. A crença designa aqui, aquilo em que se acredita: em que se faz crédito.

 

Trezentos anos mais tarde, Lyotard declara no início da A Condição Pós-Moderna:

 

«Temos por pós-moderna a incredulidade em relação às meta-narrativas» (163)

 

E em O Inumano, afirma que

 

«O capital funda-se no princípio de que a moeda não é senão o tempo posto em reserva e à disposição» (164).

 

Ora, este “tempo posto em reserva”, isto é, exteriorizado através de um suplemento, que Marx designa como o equivalente geral, não pode funcionar senão na medida em que tem onde se investir, isto é, re-temporalizar-se, ou seja, fazer-se crédito: reconstituindo crenças. A moeda é, com efeito, como elemento da gramatização e como protensão terciária, aquilo que permite transformar o tempo (tempo das protensões em que consiste essencialmente uma crença) em quantidades trocáveis e armazenáveis (165).

 

Um bilião de dólares no meio do deserto não pode ser investido, apenas gasto por um pouco de água ou de pão (166) por aquele que em situação de penúria absoluta, já não pode acreditar, isto é, projectar-se para além da sua própria situação e, nessa medida, ex-sistir, porque só quer garantir a sua subsistência imediata. O seu pretenso capital não tem nenhum valor, nenhuma capacidade de cristalizar créditos e fazer acreditar: num deserto, não há objectos de crédito neste sentido.

 

O sistema consumista tornou-se um deserto como este, onde já não se pode acreditar, dar crédito. O consumismo é a realidade do niilismo como destruição de todos os valores, onde o deserto cresce destruindo a economia libidinal, dando lugar ao capitalismo pulsional e ao populismo industrial, porque a partir da revolução conservadora, o consumismo tornou-se totalmente especulativo e destrói sistemicamente todo o crédito ao mesmo tempo que impõe o reino da imbecilidade e da loucura – consequências inevitáveis da “descerebração”.

 

Desde a crise de 2008 que se generalizou esta situação de descrédito planetário, o consumismo hiperfinanciarizado sentiu a necessidade imediata da sua autorreprodução através de uma luta encarniçada pela defesa da sua posição, mas tal luta irá conduzir ao seu naufrágio induzido pela lógica do desinvestimento que se instalou por toda a parte. O descrédito é gerado mecanicamente, fazendo circular “créditos” não sustentados por nenhuma crença, uma “moeda de macaco” que prepara a ruína do sistema – de que a falência dos Estados soberanos representa a segunda etapa, após a queda do Lehman Brothers nos E.U.A..

 

A incredulidade – ou a descrença – é a ruína de toda a economia. Será que uma crença pode constituir-se fora de toda a meta-narrativa, para retomar a terminologia de Lyotard? Seria necessário analisar com maior profundidade o que significa este meta e o que é uma narrativa. Não o farei aqui (mas é uma questão que está no horizonte da questão dos metadata (167) ). Para encerrar esta parte (168), afirmarei que a crise da dívida pública é o resultado da generalização da incredulidade e da descrença, generalizando uma perda de crédito que só pode favorecer a especulação de curto prazo – conduzindo-a ao abismo, juntamente com todos nós.

 

O problema da dívida pública foi engendrado por uma guerra económica mundial de uma destrutividade inaudita, que produziu mais ruínas do que as duas guerras mundiais reunidas. Desde a revolução conservadora levada a cabo por Margaret Thatcher e Ronald Reagan e prosseguida por Anthony Blair, Silvio Berlusconi e Nicolas Sarkozy, esta guerra extremamente destrutiva provocou verdadeiras devastações.

 

Um bilião de seres humanos sofre actualmente de fome: as migrações de populações que procuram trabalho e se deslocam do Sul para o Norte, a destruição de todos os restos de civismo no conjunto das zonas urbanas, a desertificação rural, o desespero económico das novas gerações, o crescimento do iletrismo, a regressão sanitária generalizada, a destruição dos aparelhos de produção pela especulação, a aniquilação da educação familiar, como da educação pública, etc.: esta situação é sistematicamente cultivada pela financiarização da economia que se lançou numa luta de morte, suicidária, contra todas as formas de colectividades humanas, em particular contra os poderes públicos, reduzidos a uma total impotência. Foi assim que foram arruinados a destruídos os Estados que outrora se chamavam soberanos.

 

É verdade que as cidades não são arrasadas, as fábricas não são bombardeadas, as terras agrícolas não são pejadas de minas nem esburacadas por obuses. Mas, aquilo a que Joseph Schumpeter chamou a “destruição criadora”, desde que, com a financiarização, se tornou exclusivamente especulativa, conduziu a um desinvestimento generalizado que impôs uma lógica de descartabilidade e de destruição de tal modo generalizada que a “mundialização” se tornou numa luta sem tréguas entre especuladores, contra todas as espécies de valores. Esta guerra é cega: aqueles que a conduzem não vêm sequer que estão em vias de destruir os objectos da sua especulação: em breve, deixarão de existir combatentes económicos. Aparecerão então os combatentes militares.

 

Perante os efeitos extremos desta guerra económica mundial, e face à iminência de uma guerra militar mundial, é imperativo propor uma alternativa a este cenário. Este imperativo impõe-se tanto às organizações políticas, como às universidades. Uma alternativa à guerra, é o que se chama paz. Essa é a razão pela qual a segunda parte deste livro é consagrado à necessidade que se impõe às universidades do mundo inteiro, de constituíram uma internação que elabore um tratado de paz económica entre as nações, fundado numa nova ideia de poder público (nacional e internacional).

 

Dir-se-á que o poder público se tornou impotente porque está endividado. Mas o problema da dívida pública, que não é um falso problema, não é a causa desta impotência. Uma dívida é engendrada por um crédito que tem uma taxa. Esta taxa está ligada a uma crença que faz o crédito: um crédito é concedido na medida do que se acredita sobre quem dele beneficia. Porque se tornou evidente que a economia é, hoje, uma guerra ilimitada de todos contra todos e porque todos sabem, a começar pelos especuladores, que a ruína generalizada está no fim do caminho, os especuladores especulam mais do que nunca – antes que já não exista nada para pilhar – designadamente baixando as notas de crédito (Grécia, Irlanda, Portugal, América do Norte, Espanha) e especulando “na baixa”, como se diz, utilizando a técnica dos Credit Defaults Swaps (169).

 

A financiarização do crédito engendrou o descrédito generalizado – e, na Europa, conduziu à liquidação de toda a soberania pública – o Tratado de Maastricht e, depois, o Tratado de Lisboa, submetendo o Banco Central Europeu e, portanto, a moeda europeia, exclusivamente - e como não acontece em parte alguma do mundo - à lei dos mercados financeiros que se tornaram puramente especulativos (170). Para contrariar esta lógica mortífera, não basta propor novos mecanismos de regulação. Eles são indispensáveis, mas incapazes de reconstituir o horizonte de crença sem o qual não pode existir crédito. A dívida pública só se tornou insuportável porque a “indústria financeira” repousa sobre a generalização do descrédito que engendra necessariamente o desinvestimento.

 

Existe este descrédito, uma total perda de confiança no futuro e uma perda de confiança ente os bancos, os actores económicos, os actores e instâncias políticas, gerações, e finalmente entre os próprios cidadãos e cada uma em relação a si mesmo, porque o modelo consumista que apareceu no início do século XX se tornou tóxico e destrutivo para o planeta no seu conjunto (o relatório Meadows (171) já o anunciava em 1972), quando a “destruição criadora” é submetida à financiarização e impõe a sua lógica como “mundialização”.

 

O consumismo torna-se, então, um transportador de viciações, doenças, mal-estar, esgotamento dos recursos naturais e de desequilíbrio ambiental, de desvio sistemático das leis e regras fiscais, de explosão do attention deficit disorder, de desestruturação dos modelos educativos, pilhagem e liquidação dos sistemas de produção pelos LBO (leveraged buyout), etc..

 

Deve evidentemente existir uma regulação da finança mundial. Mas, a verdadeira questão não é essa: é preciso investir massivamente no novo modelo industrial que emerge da retenção terciária digital e para tanto, instaurar políticas industriais públicas totalmente novas, e repensar todas as políticas (educativas, fiscais, familiares, e intergeracionais, socias, de saúde, de ordenamento dos territórios, etc.) em função deste imperativo pois só ele pode restituir confiança à humanidade inteira e evitar uma nova guerra mundial.

 

Este modelo que é o da economia da contribuição que se desenvolveu, na informática, com a programação livre, é extensível a praticamente todos os sectores de futuro, em particular, o da energia – cuja organização centralizada deve ser imperativamente abandonada, após o acidente nuclear de Fukushima. Mas, também pode proliferar no domínio da produção material – por exemplo, no desenvolvimento das «fab labs» (172) que conviria analisar em função das concepções desenvolvidas por Marx nos Fundamentos e a partir das quais estes Fundamentos poderiam ser reconstruídos.

 

Estas propostas, que serão desenvolvidas com maior pormenor numa nova obra a aparecer (173), são como que uma resposta às duas últimas páginas de A Condição Pós-Moderna, onde Lyotard se interroga de modo farmacológico sobre os efeitos da “informatização da sociedade” (o relatório publicado, sob este título, por Simon Nora e Alain Minc, tendo, com toda a evidência, impressionado o autor do Relatório sobre o Saber):

 

«A informatização das sociedades (…) pode vir a tornar-se o instrumento “sonhado” de controlo e regulação do sistema do mercado, alargado ao próprio saber (…). Ela comporta inevitavelmente o terror. Também pode servir os grupos de discussão sobre as meta-prescrições, fornecendo-lhe as informações que lhe faltam muitas vezes para decidir com conhecimento de causa» (174).

 

Aqui, Lyotard refere-se à perspectiva daquilo a que chama a paralogia que desenvolvera nas páginas anteriores e, deste ponto de vista, ele antecipa de modo surpreendente aquilo que virá a acontecer, a partir de 1992, com o estádio específico da gramatização digital que é a World Wide Web. É nesta perspectiva singularmente lúcida que, para concluir, preconiza uma verdadeira política das retenções terciárias digitais:

 

«A linha a seguir (…) é a de que o público tenha um acesso livre às memórias e aos bancos de dados» (175).

 

Vemos aqui que, em 1979, Lyotard ainda acredita profundamente naquilo de que, em 1986 (em O Inumano) duvidará com igual profundidade.

 

Talvez isso tenha acontecido porque a A Condição Pós-Moderna e a sua paralogia, lhe tenham fechado todo o acesso a Hegel e a Marx – aparecendo, na mesma veia, a posteriori, como uma verdadeira legitimação da deslegitimação, isto é, a destruição da soberania, da razão e da responsabilidade e a diluição sistémica, ausência de alternativa – onde as meta-prescrições dos grupos de discussão evocadas por Lyotard, não podem abrir nenhuma perspectiva de desproletarização, pois o proletariado jamais terá sido repensado fora do dogma marxista. Esta é a razão pela qual, dez anos mais tarde, a visão de Lyotard se torna céptica.

 

As propostas da A Condição Pós-Moderna parecem, então, fazer sistema com as que nas universidades de Berkeley, Columbia, Brown e Harvard (designadamente, mas há mil outras que as seguiram) serviram de caução académica à tergiversações da especulação industrial transformada em “indústria financeira” que generalizou aquilo que bem poderia chamar-se uma indústria suicidária (financeira ou não) submetida aos imperativos da guerra económica mundial (onde é possível, por exemplo, que um sismólogo que chamara a atenção para a periculosidade extrema da central de Fukushima seja afastado pelos acionistas que a exploravam).

 

As grandes narrativas terão dado lugar, durante este período, às pequenas narrativas do story telling e A Condição Pós-Moderna como narrativa do fim da narrativas e das fábulas (o que não pode ser senão uma vasta fábula) terá surgido como uma efabulação de uma narratividade baixa – não menor, mas ao serviço de uma baixeza e constituindo um elemento da imbecilidade sistémica.

 

 

 

 

 

 

 

(*) Bernard Stiegler (n. 1952) é um escritor e académico francês, actualmente director do Departamento de Desenvolvimento Cultural do Centro Pompidou, depois de uma já larga carreira de direcção de institutos culturais públicos. Na sua juventude cumpriu uma pesada pena de prisão por assalto à mão armada. Iniciou-se na filosofia por correspondência, a partir da sua cela. Hoje é uma figura de proa dentro da tradição da pensée française. É autor de uma já vasta bibliografia, publicada a partir de meados dos anos 1990, com destaque para ‘La Technique et le Temps’ (3 vols., 1994-2001), ‘De la Misère Symbolique’ (2 vols., 2004) e ‘Mécréance et Discrédit’ (3 vols., 2004-2006). Pour une nouvelle critique de l'économie politique (2009) e Ce qui fait que la vie vaut la peine d'être vécue. De la pharmacologie (2010). É animador de um grupo de reflexão política intitulado Ars Industrialis. Publicamos já no n.º 15 de ‘O Comuneiro’ (setembro de 2012), a Introdução e o primeiro capítulo do seu penúltimo livro, ‘États de choc. Bêtise et savoir au XXIè siècle’, Fayard/Mille et une nuits, 2012; no n.º 19 (setembro de 2014) publicamos ainda o segundo e terceiro capítulos. Novamente com tradução de João Esteves da Silva publicamos agora os capítulos quarto, quinto e sexto desse mesmo livro. ‘O Comuneiro’ não partilha muitos dos pontos de vista expressos por este autor - nomeadamente a confiança depositada nas Universidades como agente de transformação social - mas tem apreço pelo seu trabalho crítico.

 

 

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NOTAS:

 

(1) Cf. Vocabulaire d’Ars Industrialis artigo “organologia geral”. A organologia procura descrever o devir dos orgãos fisiológicos, dos orgãos técnicos e das organizações sociais, como o desdobramento dos três processos de individuação psíquica, técnica a colectiva, na medida em que são inseparáveis.

 

(2) Cf. Berrnard Stiegler, Ce que fait que la vie vaut la peine d’être vécue. De la pharmacologie, Flammarion, Paris, 2010, capítulo VII, p. 177.

 

(3) Estas linhas foram escritas em 15 de Agosto de 2011.

 

(4) Jean-François Lyotard parafraseia assim, no seu livro Tombeau de l’intellectuel et autres papiers, Galilée, 1984, p. 11, as afirmações de Max Gallo.

 

(5) Ibidem. p. 12.

 

(6) Ibidem, p 27.

 

(7) Ibidem, p. 29.

 

(8) Ibidem, p. 29-30.

 

(9) Jean-François Lyotard, La Condition Postmoderne. Rapport sur le savoir, Éditions de Minuit, Paris, 1979, p.11-17.

 

(10) “Duas frases de regime heterogéneo não são traduzíveis uma na outra”. Jean-François Lyotard, Le Différend, Éditions de Minuit, Paris, 1983, p. 10.

 

(11) Quaisquer que sejam os privilégios que lhe confere esta singularidade que está ligada a uma história do suplemento e se cumpre como processo tecnológico de gramatização – Cf. Vocabulaire d’Ars Industrialis, artigo “Grammatisation”.

 

(12) Jean-François Lyotard precisa, a p. 24, nota 7, que “se quisermos tratar do saber na sociedade contemporânea mais desenvolvida”, o que é o objecto deste relatório encomendado a Lyotard pelo Presidente do Conselho das Universidades junto do governo do Quebeque, “é necessário optar entre dois modelos: a sociedade forma um todo funcional, a sociedade dividida em dois. Pode ilustrar-se o primeiro com o nome de Talcott Parsons (…) o outro pela corrente marxista”. Quanto ao debate entre Habermas e Luhmann, cf. La Condition postmoderne, op. cit., p. 24 e 76.

 

(13) Ibidem, p. 25.

 

(14) Ibidem, p. 27.

 

(15) No seu Tombeau de l’intellectuel, ob. cit., ele escreve “ficou provado que, após um grande século de história do movimento revolucionário (o sujeito da história, o proletariado) não apareceu”.

 

 

(16) Ele publicara Dérive à partir de Marx et Freud, 10/18, Paris, em 1973.

 

(17) Cf. La condition postmoderne, op. cit., p. 63.

 

(18) Sobre esta noção que Freud designa Durcharbeitung e sobre o seu emprego pode Lyotard, cf. Infra, “A anamnese como après-coup”.

 

(19) Cf. Le Différend, op. cit., p. 189 e seg..

 

(20) Lyotard esteve muito envolvido em diversos movimentos marxistas e criou o movimento anti-leninista, Conseil Ouvrier.

 

(21) Este é, para mim, o problema fundamental de que já falei em pormenor noutros locais e ao qual regressarei.

 

(22) La Condition postmoderne, op. cit. p. 14.

 

(23) Ibidem, p. 63.

 

(24) Ibidem, p. 66-67.

 

(25) Ibidem, p. 67.

 

(26) Ibidem. p. 68.

 

(27) Ibidem. p. 8.

 

(28) Em particular, as que procurei descrever no início de Ce qui fait que la vie vaut la peine d’être vécue, ob. cit..

 

(29) Cf. Jürgen Habermas, L’Espace publique: archéologie de la publicité comme dimension constitutive de la société bourgeoise, Payot, Paris, 1997.

 

(30) Procurei mostrá-lo em Bernard Stiegler, La Technique et le Temps I. La Faute d’Épiméthée, Galilée, Paris, 1994.,p. 24-27.

Cf. Vocabulaire d’Ars Industrialis, artigo “Milieu”. Esta destruição é o mais terrível efeito da guerra económica mundial porque destrói, por antecipação, as capacidades de invenção daqueles que a sofrem.

 

(31) O que Lyotard pressente no final da La Condition postmoderne, como paralogia; fazendo da linguagem o essencial da “pragmática dos saberes” em Le Différend, ele fica cativo desta ausência de questionamento dos limites económicos (tanto como economia da subsistência, como enquanto economia libidinal) do sistema em questão, isto é, a saber, da exploração, sob todas as suas formas, no contexto do capitalismo.

 

(32) É o tenta René Passet na L’Économique et le Vivant, Payot, Paris, 1979, o mesmo ano em que Lyotard publica La Condition postmoderne.

 

(33) Jean-François Lyotard, La Condition Postmoderne, op. cit., p.13.

 

(34) Ibidem, p. 30. Cf., também, «Logos et Tekhné, la télégraphie»: “Os Estados não são as instâncias de controlo do processo geral do novo traçado telegráfico (que resulta da informatização e das “novas tecnologias”). Eles são um elemento e apenas um elemento, de regulação deste processo que, em princípio, os excede largamente. Seria preciso aqui retomar a análise, que diria metafísica e ontológica, do capitalismo. Mas estas questões da aprendizagem e do seu controlo relevam já de uma outra memória que não é de traçado, mas de varrimento”.

 

(35) Tombeau de l’intellectuel, op. cit. p. 13.

 

(36) Ibidem, p. 14.

 

(37) Ibidem.

 

(38) Ibidem, p. 14.

 

(39) Na época em que Lyotard responde a Gallo, os serviços de Laurent Fabius lançam o calamitoso plano que se chamou “Informática para todos”. Teria sido, sem dúvida, fecundo que a comunidade científica e filosófica se tivesse mobilizado para propor uma iniciativa diferente desta que visava, acima de tudo, criar um mercado para o computador Thompson T07. Desprezando completamente o que sabemos hoje e que a Informatisation de la société dizia já em 1978: o digital é o último estádio da escrita em como tal, da farmacologia do espírito. Ele constitui uma nova coisa pública, na medida em que representa, como tecnologia da publicação, um espaço e um tempo públicos radicalmente novos.

 

(40) Cf. infra, Crenças e descrenças, crédito e descrédito.

 

(41) Reenvio aqui aos meus comentários em Bernard Stiegler, Prendre Soin. De la jeunesse et des générations, Flammarion, Paris, 2008, sobre o que está por detrás daquilo que Foucault designa por “tecnologia de poder” - ob. cit., p. 212-242.

 

(42) Jean-François Lyotard, L’Inhumain: Causeries sur le temps, Galilée, 1988, p. 57-67.

 

(43) Martin Heidegger, Langue de tradition et langue technique, Lebeer- Housmann, 1990.

 

(44) Cf. Bernard Stiegler, La Technique et le Temps II. La Désorientation, Galilée, Paris, 1996, p. 58.

 

(45) Jean-François Lyotard, L’Inhumain, ob. cit..

 

(46) Faria falta discutir aqui a sua análise das três sínteses kantianas da imaginação e o seu silêncio quanto à questão do esquematismo que está do cerne da análise de La Dialectique de la Raison de Adorno e Horkheimer.

 

(47) Ibidem, p. 67.

 

(48) Ibidem, p. 67.

 

(49) A questão platónica da anamnese foi o objecto do curso que consagrei ao Banquet de Platão no quadro da École de Philosophie d’Epineuil em particular o curso de 26 de fevereiro de 2011, que pode ser visto, em Phamakon.fr..

 

(50) Tentei igualmente uma interpretação no curso consagrado à Republique no quadro da mesma escola; cf, em particular, a sessão de 15 de outubro de 2011 em Phamakon.fr..

 

(51) Jean-François Lyotard, L’Inhumain, op. cit. p. 66.

 

(52) Ibidem, p. 65.

 

(53) Jacques Lacan. Séminaire VII, Étique de la psychanalyse.Le Seuil, 1986, p. 55-86.

 

(54) O que não é evidentemente o meu caso; mas é o que permite pensar a história da onto-teologia na sua relação à transcendência e, portanto, à história teológico-política do Ocidente e como horizonte comum dos monoteísmos de que é unidade, incluindo as suas fronteiras orientais.

 

(55) Cf. Donald Winnicott, Jeu et Realité, Gallimard, Paris, 2002, e meu comentário em Ce qui fait que la vie vaut la peine d’être vécue, op. cit., pp. 11-16.

 

(56) Jean-François Lyotard, L’inhumain, op. cit. p. 67.

 

(57) Devo assinalar que não me sinto particularmente destinatário destas palavras dado que este texto é uma espécie de resposta a uma nota que eu havia escrito, na época, para a organização de um colóquio no IRCAM em cooperação com Marcel Hénaff. Devo também acrescentar que este debate póstumo que tento abrir aqui com Lyotard, mas que já havia iniciado, enquanto ele ainda estava em vida (na minha tese, e depois, em La Technique et le Temps II. La Désorientation) é uma saudação e um sinal de reconhecimento. Que, decorridos mais de trinta anos, o diferendo se tenha tornado mais preciso e aprofundado é normal e tranquilizador. Que o pensamento de Lyotard tenha sido sempre acolhedor a este diferendo entre nós e que ele mesmo tenha procurado clarificá-lo do modo mais generoso que possa imaginar-se, é aquilo de que quero também dar testemunho aqui - num diferendo.

 

(58) Jean-François Lyotard, Le Tombeau de l’intellectuel op. cit. p. 4.

 

(59) Ibidem.

 

(60) Sobre a catástrofe e a solução, cf. Bernard Stiegler, De La Misère Symbolique 2. La catastrophe du sensible, Galilée, Paris, 2005.

 

(61) É o tema fundamental da La Technique et le Temps III. Le temps du cinéma et la question du mal-être, Galilée, Paris, 2001, p. 79-117, em particular.

 

(62) “Kant dizia: não só as sínteses apreensiva e reprodutiva, mas também, a síntese recognitiva (…) O que implica (…) a intervenção de uma meta-instância que inscreve sobre si-mesma e torna disponível o conjunto acção-reacção independentemente do lugar e do momento presente. É, portanto, já uma telegrafia. É um conceito de Kant…” Jean-François Lyotard, L’Inhumain op. cit. p. 62.

 

(63) Jacques Derrida, Psyché: inventions de l’autre, Galilée, Paris, 1998, p. 372.

 

(64) Jean-François Lyotard, Tombeau de intellectuel, op. cit., p. 26.

 

(65) Uma resposta como esta, em 2011, seria literalmente inconcebível. Ao escrever isto, não estou a emitir nenhum juízo sobre a resposta de Lyotard, mas julgo que é preciso interrogarmo-nos, tendo consciência de que o fazemos post factum, e da imensa questão que ela ainda suscita – não só à filosofia, mas também à vida política - saber até que ponto era responsável responder assim, por muito legítimos que pudessem ser os motivos e o conteúdo destas respostas. Medir o abismo da distância temporal, significa também lembrar que se podia e devia, nesse tempo, suspeitar do poder social-democrata de fazer bem pior do que aquilo que Althusser reprovava ao Partido Comunista Francês vinte anos antes em Pour Marx, lastimando as errâncias do “imediato após guerra”: “Vivemos a idade do entusiamo e da confiança (…) Passámos o melhor do nosso tempo a militar, quando deveríamos também defender o nosso direito e o nosso dever de conhecer (…). Por isso, viemos a conhecer a nossa “miséria francesa”, ausência tenaz e profunda de uma real cultura da história do movimento operário francês”, Louis Althusser, Pour Marx (1965), Maspero, Paris, 1996, p. 15.

 

(66) Sobre este tema, cf. Bernard Stiegler, Pour une nouvelle critique de l’économie politique, Galilée, Paris, 2009.

 

(67) Jacques Derrida, Du Droit à la philosophie, Galilée, Paris, 1990.Uma referência à análise deleuziana do «Je pense» viria aqui a propósito.

 

(68) Georg W. F. Hegel, La Phénoménologie de L’Esprit, Vol I, Aubier, 1991.

 

(69) Ibidem, p. 8. (sublinhado meu - BS).

 

(70) É o que procuro fazer nas lições que profiro da Escola d’Épineuil sobre Platão, onde tento distinguir o dialogismo de Sócrates – tema sobre o qual deverá ter-se em conta a exposição sobre o dialogismo de Bakhtine, apresentada por Axel Andersen na Academia de verão d’Épineuil (Cf. pharmakon.fr/éte 2011) – da dialéctica platónica, que prepara a ontologia das essências e os seus métodos de recorte dos entes.

 

(71) Sobre a transdução como relação dinâmica não dialéctica, cf. Vocabulaire d’Ars Industrialis, artigo “Transduction”.

 

(72) Cf. Kostas Axelos, Marx, penseur de la technique, UGE/Les Éditions de Minuit, Paris, 1961.

 

(73) Atravessando tal ou tal sujeito que pensa através esta ou aquela época da história que é esta fenomenologia.

 

(74) Regressarei sobre a leitura como processo de individuação, passando por Wolfgang Iser e Henry James em Mystagogies, De l’Art et de la literature, a aparecer.

 

(75) Neste processo, a interioridade não é primeira, ela é apenas a individuação da exterioridade em vista da sua re-exteriorização, isto é, da sua re-expropriação.

 

(76) Hegel, La Phénoménologie de l’esprit, op. cit., p. 5.

 

(77) Ibidem, p. 11.

 

(78) Ibidem, p. 12.

 

(79) Ibidem.

 

(80) Ibidem, p. 13.

 

(81) Ibidem.

 

(82) Como é legível e visível em Kant, Théorie et Pratique, Garnier. Flammarion, 1994, p. 46; cf. o meu comentário em Technique et le Temps III, Le Temps du cinéma et la question du mal-être, op. cit., p. 284 e seg..

 

(83) Hegel, La Phénoménologie de l’esprit, op. cit., p. 17.

 

(84) Ibidem, p. 21.

 

(85) É aquilo que em Mystagogies. De l’Art de la literature, a aparecer, chamo a passagem ao acto de leitura em enteléquia.

 

(86) Sobre a memória como meio associado, cf Gilbert Simondon, L’Individuation psychique et collective, Aubier, 1992, p. 164.

 

(87) Marcel Proust, À la recherche du temps perdu. Le Temps retrouvé.

 

(88) Hegel, La Phénoménologie de l’esprit, op. cit., p. 55.

 

(89) Catherine Malabou, de que releio aqui a releitura de Hegel que é o Avenir de Hegel, extrai a consequência de que “o leitor é, do mesmo golpe, projectado para a frente, requerido para dar forma. E conduzido (…) a formular novas proposições (…). O retorno do conceito a si mesmo não é nada, se não preside à sua própria enunciação, ao novo tempo do seu dizer, à gramaticalidade do seu aparecer (…). Uma vez que não extraiu este outro entendimento da sua leitura (…) é necessário que ele próprio a tenha produzido” (Catherine Malabou, Avenir de Hegel., Vrin, 1996, p. 260). Malabou tira esta consequência, mas julgo que não extrai todas as consequências, a saber, em particular, que se as obras filosóficas são essencialmente lidas, isto é, relidas, ou seja, repetíveis, e escrita é o elemento do entendimento que a determina como suplemento, ela é a suplementariedade elementar, que é também a do trabalho do conceito que é a fenomenologia do espírito. Ora, a escrita não é tematizada por Hegel: para ele, a escrita é simplesmente um estádio da vida do espírito em marcha para o saber absoluto. Avenir de Hegel, de há muito, passa por Marx, e não para aí. Não para como nunca para o futuro de uma obra filosófica – que convoca sempre os seus leitores, como mostra muito bem Catherine Malabou “a formular novas proposições“ – para com nenhum dos seus leitores.

Quanto à proposição de Catherine Malabou, ela consiste em fazer da plasticidade o conceito cardinal de Hegel. Mas esta plasticidade só é possível sob a condição de passar pela sua exteriorização esterilizante, ou seja, solidificante e fixada, por este fixador que é a escrita sem a qual não haveria leitura que é um momento específico da técnica tornada processo de gramatização. Esta farmacologia do fluído e do sólido é também o que condiciona a plasticidade, o cérebro noético, que é igualmente um dos centros de interesse de Malabou. Uma plasticidade hegeliana ou pós-hegeliana é constituída (e destituída) pelo seu “momento inorgânico”, como diz Hegel.

 

(90) Cf. Hegel, La Phénoménologie de l’esprit, op. cit. p. 280. Formam um aglomerado daquilo a que eu chamei retenções secundárias psíquicas e retenções secundárias colectivas estereotípicas em Mécréance et Discrédit, op. cit., p 152.

 

(91) Hegel, La Phénoménologie de l’esprit, op. cit., p. 26.

 

(92) Ibidem, p. 30.

 

(93) Quer dizer, entre Fichte e Schelling.

 

(94) Hegel, La Phénoménologie de l’esprit, op. cit. p. 30.

 

(95) Ibidem, p. 45.

 

(96) Ibidem, p. 46.

 

(97) Sobre esta questão. Cf. Technique et le Temps, III, op. cit. p. 82-123, 209 e seg..

 

(98) Hegel, La Raison dans l’Histoire, p. 25.

 

(99) Jean- Pierre Vernant, Mythe et Pensée chez les Grecs. Études de psychologie historique, F. Maspero, 1963.

 

(100) É certo que Derrida terá posto em evidência o ponto de vista logocêntrico que faz com que Hegel escreva que “a escrita alfabética é em-si e para-si a mais inteligente”. Mas este ponto de vista só é logocêntrico porque a escrita está destinada a dissolver a sua acidentalidade técnica num saber absoluto do logos de que ela terá sido um simples momento acidental. Que este logocentrismo implique um etnocentrismo é também o que mostra Derrida. Mas há também que considerar aquilo que na referência à escrita como condição do destino histórico mundial do Ocidente, vem também contradizer este logocentrismo.

 

(101) Leroi-Gourhan. L’Homme et la Matière (1943, 1971) Albin Michel, 1992.

 

(102) Hegel, La Phénoménologie de l’esprit, op. cit., p. 8.

 

(103) Em particular, em Ce qui fait que la vie vaut la peine d’être vécue, op. cit., pp. 155-205.

 

(104) Sobre esta questão, cf. Vincent Bontemps, Philippe Petit e Bernard Stiegler, Économie de l’hipermatériel et psychopouvoir, Mille et une nuits, 2008, e Vocabulaire d’Ars Industrialis, artigo «Hipermatière».

 

(105) Hegel, La Phénoménologie de l’esprit, op. cit., p. 83.

 

(106) Kant, Q’ est-ce que les Lumières. Op. cit., p. 12.

 

(107) Catherine Malabou, L’Avenir de Hegel, op. cit., pp. 239-240.

 

(108) Desenvolvi este ponto em Ce qui fait que la vie vaut la peine d’être vécue, op. cit., pp. 11-17.

 

(109) La Technique et le Temps procura tirar as consequências deste factum primordial.

 

(110) Desenvolvi este ponto em “Une insensible incertitude”: Cahiers de Fontenay e em La Technique et le Temps II, La Désorientation, op. cit., p. 50-79.

 

(111) Retomo aqui o que desenvolvi em Ce qui fait que a vie vaut la peine d’être vécue, op. cit. p. 130-137. Sobre estas questões, cf. também o Vocabulaire d’ Ars Industrialis, artigo «Attention».

 

(112) Seria mais fácil de dizer cerca de vinte anos mais tarde quando Lyotard, amigo de Silviane Agasinski, se torna também amigo de Lionel Jospin.

 

(113) Hegel, La Phénoménologie de l’esprit, op. cit., p. 165.

 

(114) Hegel, La Phénoménologie de l’esprit, op. cit. p 165-166.

 

(115) Karl Marx e Friedrich Engels, Manifeste du parti communiste, op. cit. p 83.

 

(116) Jean-François Lyotard, Le postmoderne expliqué aux enfants, Galilée, 1986.

 

(117) Cf. Pour une nouvelle critique de l’économie politique, op. cit.

 

(118) Cf. o Prefácio de Louis Althusser e Étienne Balibar, Lire le Capital (1965), PUF, “Quadrige”, 2008.

 

(119) Cf. La condition postmoderne, op. cit., nota 17.

 

(120) Conviria confrontar aqui as análises de Lyotard com as de Pierre Legendre.

 

(121) Comentei estas questões em Ce qui fait que la vie vaut la peine d’être vécue.

 

(122) Gregory Bateson, Vers une écologie de l’esprit, tome 1, Le Seuil. 1977, p. 225.

 

(123) Sobre estes tema, cf. Vocabulaire d‘Ars Industrialis, artigo, “Milieu” e "Réenchanter le monde", op. cit, p. 50.

 

(124) Karl Marx, L’Idéologie allemande, Éditions sociales, 1970, p. 25.

 

(125) Ibidem.

 

(126) Karl Marx, Fondements de la critique de l’économie politique, Anthropos, 1968, p. 221.

 

(127) Ibidem.

 

(128) Gilbert Simondon, Du mode d’existence des objects techniques, op. cit., p 15.

 

(129) Karl Marx, Fondements de la critique mode l’économie politique, op. cit., p. 212.

 

(130) Ibidem.

 

(131) Ibidem.

 

(132) Gilbert Simondon, Du mode d’existence des objects techniques, op. cit., p. 12. É a matéria que funciona (Cf. La technique et le temps I) e este funcionamento da matéria inorgânica organizada conduz à hipermatéria. Cf. Économie de l’hipermatériel et psycopouvoir, op. cit., p. 21.

 

(133) Karl Marx, Fondements de la critique d’économie politique, op. cit. p 214.

 

(134) Ibidem.

 

(135) No sentido indicado anteriormente.

 

(136) Ibidem.

 

(137) Karl Marx. Le Capital, Livres II e III, Gallimard, col. “Folio”, 1963, p. 1562. Comentei esta teoria e sua crítica em Ce qui fait que la vie vaut la peine d´être vécue, op. cit., p. 157.

 

(138) Karl Marx, Fondements de la critique de l’économie politique, op. cit., p. 220.

 

(139) Louis Althusser, Pour Marx, op. cit., p. 14.

 

(140) Devo lembrar que devo este conceito a Sylvain Auroux alargando-o a todas as esferas do dicretizável, ou seja, para além do domínio linguístico, num sentido que já não é o de Auroux.

 

(141) Em 1990, por ocasião de uma década de Cerisy-la-Salle, dedicada a Jacques Derrida, que foi depois publicada sob o título Le Passage des frontières, Étienne Balibar disse-me, depois de uma conferência onde me havia referido, como faço muitas vezes, a Leroi-Gourhan, que, para ele, e para o grupo que Althusser animava, a verdadeira antropologia estrutural era a de L’Homme et La Matière. Milieu et Technique e Le Geste et la Parole.

 

(142) Citado por Étienne Balibar em «Sur les concepts Fondamentaux du matérialisme historique», em Louis Althusser, Étienne Balibar, Pierre Macherey e Jacques Rancière, Lire le Capital II, François Maspero, 1965, p. 9.

 

(143) Karl Marx, Fondements de la critique de l’économie politique, op. cit., p. 9.

 

(144) Sobre a diferença entre estes dois tipos de juízos, cf. Kant, Critique de la Raison pure, op. cit., p. 37.

 

(145) Sobre este ponto, cf. Pour en finir avec la mécréance, op. cit. p. 50.

 

(146) Sobre este tema, cf. Robert Linhart, Lénine et les Paysans. Taylor. Le Seuil, col. «Combats», 1976, p. 84-116.

 

(147) Gilbert Simondon, Du mode d’existence des objects techniques, op. cit., p. 12.

 

(148) Lyotard afirma, como ponto de partida do seu Relatório sobre o Saber que a pós-modernidade é o que caracteriza as “sociedades contemporâneas” que se teriam tornado “pós-industriais”. Cf. La Condition Postmoderne, op. cit., p. 11.

 

(149) Sigmund Freud, em “Au delà du principe du plaisir”, Essais de psychanalyse, Payot et Rivages, 2001, p. 63.

 

(150) Esta questão será o tema principal da La Technique et le Temps. La guerre des esprits, a aparecer.

 

(151) Jean- François Lyotard, Économie Libidinal, Minuit, 1974.

 

(152) A questão do desejo é sempre suscitada pela questão da pulsão, se esta for correctamente colocada: a pulsão é a transformação da dinâmica que, no reino animal, se chama o instinto, mas não é o instinto, precisamente porque os seus fins podem ser desviados, tanto como perversão polimórfica como sublimação. A regressão pulsional do desejo é, então, o modo privativo da líbido, como desligação pulsional, enquanto o desejo consiste, pelo contrário, na socialização das pulsões.

 

(153) Em Mécréance et Discrédit 3. L’esprit perdu du capitalisme, procurei mostrar como e porquê, Marcuse opera nestas mesmas contradições.

 

(154) É interessante ler, sob este ponto de vista, as observações de Aquilino Morelle num artigo publicado no Le Monde de 8 de Setembro de 2011 sob o título “La démondialisation inquiète les partisans d’un liberalisme aux abois. Ce sont les socialistes qui ont imposé le dogme de la societé de marché». Parece-me que a questão não deve ser colocada em termos de desmundialização mas sim de re-mundialização e de uma territorialização do “fazer mundo” e “toda a gente”. Sob esta reserva, estou amplamente de acordo com a análise de Morelle que apresenta a social-democracia como esta gestão das contradições pensadas a priori como sem alternativa possível.

 

(155) René Passet, L’économique et le vivant, op. cit..

 

(156) Sobre estas questões, cf., em particular, Christian Fauré “Dataware et infrastrutures do cloud computing” em Pour finir avec la mécroissance e o Vocabulaire d’Ars Industrialis, artigo, «Métadonnées».

 

(157) Richard Stallman desenvolveu no MIT as suas ideia sobre a “programação livre” no decurso dos anos 1970, desenvolvendo, mais tarde, em 1983, o sistema de exploração GNU.

 

(158) “A burguesia desempenhou, na história, um papel altamente revolucionário”, Marx e Engels, Manifeste du Parti Communiste, Garnier-Flammarion, p. 76.

 

(159) Devo a André Gorz a descoberta do papel desempenhado por Edward Bernays na evolução do capitalismo consumista americano. Gorz foi também o primeiro a compreender a importância da “programação livre” e a suscitar, de modo diferente, a questão do trabalho na sua relação ao saber. Esqueceu, no entanto, a questão material e perdeu-se nos becos sem saída da economia “imaterial”. Regressarei sobre estas suas análises em Veux-tu devenir mon ami?, a aparecer.

 

(160) Sobre a proletarização dos processos de decisão, cf. Ce que fait que la vie vaut la peine d´être vécue, op. cit. p. 67-93.

 

(161) O Institut de recherche et d’innovation (IRI) dedica-se essencialmente à concepção destas tecnologias. Estas questões constituem o tema central do grupo de trabalho “Tecnologias relacionais” que Christian Fauré anima no seio da associação Ars Industrialis.

 

(162) René Descartes. Méditations sur la philosophie première, in Œuvres Philosophiques, vol 2. Garnier, 1963-1973.

 

(163) Jean-François Lyotard, La Condition postmoderne, op. cit., p. 7.

 

(164) Jean-François Lyotard, L’Inhumain, op. cit., p. 77-78.

 

(165) Sobre este ponto, cf. Pour une nouvelle critique de l’économie politique, op. cit., p. 92.

 

(166) “A fome voraz tritura aqui dente contra dente”, escreve Nietzsche num fragmento do Ainsi parlait Zarathoustra, (in Oeuvres Complètes, op. cit., p. 330, nota 1).

 

(167) Sobre este tema, cf. Pour en finir avec la mécroissance, capítulo 3, «Pharmacologie des métadonnées», op. cit., p. 87.

 

(168) Sustentarei na segunda parte deste livro, que há que instalar uma economia da contribuição fundada sobre a constituição de uma internação onde as universidades de todo o mundo tomem em conjunto (e em rede) as suas responsabilidades, e um novo contrato inter-generacional combinando os ambientes tecnológicos das diferentes gerações, o que é a condição da investigação contributiva contemporânea.

 

(169) Cf. Paul Jorion, Le Capitalisme à l’agonie, Fayard, 2011, p. 80.

 

(170) Sob este aspecto, os universitários europeus terão sido particularmente cegos ou distraídos. A maior parte deles, jamais cessou de louvar os méritos da Europa unida, sem nunca prestar a menor atenção aos traços característicos da sua economia política, que, do ponto de vista monetário, terá sido a mais liberal do planeta. Particularmente sobre esta questão, a ingenuidade e por vezes a burrice, para não dizer a estupidez ou a imbecilidade dos debates que decorreram, em França, à roda do que estava em jogo no Tratado de Maastricht, que são absolutamente siderantes, procedem dos efeitos dos choques sucessivos sob a pressão dos quais a Europa se “construiu” – enquanto a máquina ideológica que explora estes efeitos opera a todos os níveis da sociedade, tanto pelos meios de comunicação de massa, como pelos think tanks, gabinetes de peritos, lobis, etc..

 

(171) Donellla Meadows, Dennis Meadows, Jurgen Randers e Williams Beherens, The Limits of Growth, relatório comentado pelo Clube de Roma em 1970 e tornado público em 1972 (Cf. edição francesa Halte à la croissance, Fayard, 1973).

 

(172) A noção de «fab lab» (contração do inglês fabrication laboratory) designa «todo o tipo de oficina equipado com máquinas-utensílios comandadas por computador e pelas novas tecnologias da informação (…) podendo fabricar rapidamente e a pedido, toda a casta de bens de natureza variada. Isso inclui produtos que podem ser fabricados em grande escala (eventualmente peças únicas). Estas cooperativas do futuro, agrupam informáticos, designers e artistas de diferentes domínios» (Notícia fab lab da Wikipédia, agosto 2011).

 

(173) Pour une économie de la contribution, a aparecer.

 

(174) Jean-François Lyotard, La Condition postmoderne, op. cit., p. 107.

 

(175) Ibidem.