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O Tratado transatlântico: cavalo de Tróia das grandes corporações à conquista da Europa
Não ao TTIP (*)
Trata-se de um tratado dito de livre-comércio entre os E.U.A. e a U.E. e que é conhecido por várias designações. Nos E.U.A. é conhecido por TAFTA (Transatlantic Free-Trade Agreement) e na Europa por TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership). Em Portugal será Parceria Transatlântica para o Comércio e o Investimento (PTCI). Os termos oscilam entre Parceria e Tratado e já há comentadores que o classificam como o mais abrangente do género em toda a história (se aprovado).
Contexto
Tendo o projecto europeu atingido um impasse quase total devido à desindustrialização acelerada, à quase estagnação económica, ao elevado desemprego, precariedade e austeridade, acentuou-se a desigualdade e o conflito entre um directório central todo-poderoso e as várias periferias em empobrecimento rápido. O projecto aproxima-se da desintegração, acentuada pelos numerosos escândalos financeiros a envolverem quase todos os principais bancos. Deixou de ser possível às elites aliciar os cidadãos para o seu aprofundamento, esgotados que estão os propalados paraísos iniciais do projecto.
Por outro lado, a economia norte-americana também patina em graves problemas semelhantes, tendo o desemprego real chegado aos 27%, mau grado os permanentes estímulos da Reserva Federal. Nesta situação complexa, os interesses corporativos precisavam elevar a fasquia a novos paradigmas de poder para prosseguirem as suas estratégias e continuarem a aumentar insaciavelmente os lucros, agora a uma escala global.
O Tratado Transatlântico corresponde exactamente a este paradigma, já que visa, não apenas o livre-comércio, mas sobretudo o alargamento e a salvaguarda dos lucros das grandes corporações, colocando-os fora do alcance de todas as instâncias de poder actuais, quer sejam estados, grupos de estados, ONU, tribunais internacionais ou quaisquer outras. Com o fito de agilizar o comércio entre os dois lados do Atlântico, o Tratado procura pulverizar todas as barreiras legais que o condicionam, sejam elas direitos dos consumidores, direitos laborais, normas de saúde pública, activos e empresas estatais, protecções ambientais, privacidade e liberdade na internet, políticas públicas relativas a medicamentos, mineração, infraestruturas, combustíveis, agricultura, etc.. Como as normas norte-americanas são muito mais permissivas, o Tratado visa harmonizar por baixo todas elas. Mas, além das disputas sobre normas tarifárias e não-tarifárias, o Tratado inclui um capítulo essencial designado por ISDS (Investor-to-State Dispute Settlement), já aplicado a outros tratados e que visa resolver os conflitos entre os investidores e os estados, sempre que os primeiros vejam ameaçados os seus lucros, presentes ou futuros, por decisões políticas dos governos. Um exemplo recente sucedeu no Egipto, quando o governo decretou o aumento do salário mínimo. A multinacional francesa Veolia protestou e foi recompensada com uma indemnização de muitos milhões, uma vez que essas disputas são dirimidas em tribunais especiais de cuja decisão não existe recurso nem instância superior a que recorrer.
É fácil concluir que, sendo as normas ambientais, de salvaguarda da saúde pública ou do trabalho destinadas a proteger os cidadãos e suas vidas, o seu desmantelamento produzirá as mais graves consequências. A proliferação de carnes com excesso de hormonas e antibióticos, os alimentos genéticamente modificados, o excesso de fertilizantes e pesticidas químicos e outros procedimentos lesivos por parte dos gigantes do agro-business, terão efeitos perniciosos na saúde pública, fazendo disparar as patologias, alergias e as mais diversas doenças. Os governos estarão totalmente manietados e impossibilitados de agir na defesa do bem comum. As grandes empresas farmo-químicas tencionam reforçar as patentes dos principais medicamentos de referência de modo a fazer disparar o seu preço e a restringir bastante o uso de genéricos. Neste panorama, os serviços estatais já não poderão suportar esses custos acrescidos.
Um outro campo de conflito respeita à liberdade e privacidade de circulação na internet, grandemente ameaçadas por grandes operadoras como a Amazon e outras.
Estes são apenas alguns dos aspectos em discussão nas negociações que decorrem no maior secretismo. Não se pode compreender nem aceitar que, sendo os propalados benefícios do Tratado tão generosos (segundo a imprensa de direita), tudo continue a ser negociado no segredo dos gabinetes, longe do olhar do público e dos políticos, sem qualquer resquício de transparência.
Não podemos esquecer que o TTIP se articula com outros tratados semelhantes como o Transpacífico que agrega uma dúzia de países da zona Ásia-Pacífico, o CEPA que inclui o Canadá e a U.E. e o TISA que inclui os E.U.A., a U.E. e uma vintena de países terceiros. Trata-se portanto de uma estratégia global, tendo como objectivo a constituição e legitimação de um novo paradigma de poder absoluto, ilimitado, sem rosto e sem centro que fará com que os valores da cidadania, da democracia, da soberania e da própria liberdade passem a fazer parte do passado.
Lembramos ainda que os estudos já publicados sobre os impactos do Tratado se baseiam em modelos matemático-económicos e em cenários de base bastante questionáveis, assumindo a maioria que os actuais níveis de desemprego se irão manter, que os orçamentos dos estados serão sempre equilibrados e que as medidas a aprovar só têm impactos positivos, minimizando ou até ignorando por completo os elevados custos dos ajustamentos pretendidos, sobretudo no curto prazo. Assim, é natural que os resultados surjam positivos para os PIB. Curiosamente, a imprensa não se refere ao facto de os alegados benefícios só ocorrerem plenamente após o longo período de transição (10 a 20 anos), claro indicador do seu caracter extremamente marginal. Do mesmo modo, nada se diz sobre a distribuição desses supostos benefícios que, a existir, se repartiriam de modo muito assimétrico, com vantagem evidente para as empresas e economias mais robustas e em claro detrimento de todas as outras.
Face a esta ameaça, os cidadãos de todos os países precisam unir-se numa luta comum contra esta verdadeira guerra comercial.
Origem
Em 2005: Fruto da tentativa falhada (devido á grande oposição dos países menos desenvolvidos) da U.E. e dos E.U.A. em criarem uma estratégia negocial de investimento internacional dentro do quadro jurídico da Organização Mundial de Comércio (OMC) e da OCDE, a U.E. e E.U.A. viraram-se para uma estratégia negocial através da celebração de acordos bilaterais diretamente com os Estados (os chamados “bilateral investment treaties” - BIT´s - que desde o seu surgimento em 1954 até ao momento, já ascendem a 3 mil). Foi então em 2006 publicado o documento “Europa Global”, em que se traçava o rumo da U.E. para prosseguir com acordos comerciais bilaterais e regionais.
Em 2009: Com o Tratado de Lisboa, a Comissão Europeia adquiriu competência para negociar acordos comerciais internacionais em nome dos Estados-Membros (artigo 207.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia - TFUE), dado que anteriormente, eram os Estados-Membros que negociavam a nível individual os seus acordos comerciais com outros países.
Em 2011: Os E.U.A. e U.E. criaram um grupo de Trabalho de Alto Nível sobre o crescimento e o emprego, liderada pelo representante comercial dos E.U.A., Ron Kirk, e o Comissário de Comércio da U.E., Karel De Gucht, para encontrar soluções para a crise económica.
Em 2013: A decisão de lançar a parceria supostamente implicava esperar pelo relatório final do grupo de trabalho, embora fosse óbvio que a recomendação seria a de um acordo de comércio livre. Esta parceria foi formalmente proposta no encontro dos G8 em Julho de 2013.
A PTCI vai muito além de acordos prévios, em termos de desregulação e no estabelecimento de direitos de empresas multinacionais, minimizando a capacidade dos governos em controlarem as grandes empresas.
Além da PTCI, a U.E. está no momento a negociar (China, Índia,…), a considerar negociar, ou já finalizou (Canadá), acordos de comércio livre com a maior parte dos países do mundo.
Definições, números e mitos
“Comércio internacional” e “acordos comerciais internacionais” são conceitos diferentes. O comércio ou a troca diferenciam-se dos acordos comerciais internacionais que prevêm um regime excecional ao regime de comércio internacional comum (o da OMC), concedendo direitos especiais e regimes mais favoráveis.
A Comissão Europeia estima que a PTCI impulsionará a economia da U.E. em 120 mil milhões de euros, a economia dos E.U.A. em 90 mil milhões de euros e no resto do mundo em 100 mil milhões de euros.
Todavia, este estudo baseia-se em variáveis irrealistas e não toma em consideração o cálculo do custo benefício entre os eventuais lucros face ao impacto com a harmonização da regulamentação (p. ex. danos ambientais, problemas de saúde, compensações por deslocalização e despedimento, etc.) e os eventuais processos de litígio dos investidores contra os Estados.
Os dois blocos juntos representam 46% do PIB mundial, 33% do comércio mundial de bens e 42% do comércio mundial de serviços. O crescimento do poder económico da U.E. levou a um aumento dos conflitos comerciais entre os dois blocos, em 2% do comércio total. A área de livre comércio entre os dois representaria potencialmente o maior acordo de livre comércio regional na história.
O investimento dos E.U.A. na U.E. é 3 vezes maior do que o investimento dos E.U.A. em toda a Ásia. O investimento da U.E. nos E.U.A. é oito vezes maior do que o investimento da U.E. na Índia e China combinados. Os E.U.A. e a U.E. são os maiores parceiros comerciais da maioria dos outros países do mundo e respondem por um terço dos fluxos comerciais mundiais.
Dado o facto de as barreiras tarifárias (impostos alfandegários) entre a U.E. e E.U.A. serem baixos (menos de 3%), a Comissão reconhece que o objetivo da PTCI é a remoção as barreiras não-pautais (diferenças de legislação).
Mandato da Comissão Europeia e objetivos da PTCI
O escopo da PTCI é vasto, mas de acordo com o mandato da Comissão, “leakado” pela ONG europeia Seattle to Brussels, os pontos mais importantes são:
1. Eliminar, tanto quanto possível, todos os direitos aduaneiros entre a U.E. e os E.U.A. (imposto aduaneiro). O que já se verifica, exceto no sector agrícola.
2. Reduzir, ou mesmo eliminar, o que o jargão especializado refere a como as barreiras não pautais. Consistem nas normas que possam limitar o âmbito da competição económica. A natureza dessas normas pode ser: ética, democrática, legal, social, sanitária ou orientada para o meio ambiente, económica, técnica, etc..
3. Conceder às empresas privadas o direito de litígio contra as leis e regulamentos dos diferentes Estados, sempre que essas empresas julguem que estas leis e regulamentos representam obstáculos desnecessários ao comércio, acesso aos mercados públicos, investimentos e atividades prestadoras de serviços. Este litígio não terá lugar nos tribunais nacionais, mas através de estruturas de arbitragem privadas chamadas “mecanismos de resolução de litígios”.
4. Constituição de um Conselho de Cooperação para a Regulamentação com vista à harmonização da legislação entre U.E. e E.U.A..
Os pontos mais importantes em disputa são a política da U.E. para limitar as importações de alimentos geneticamente modificados, bem como a regulação mais flexível da U.E. no sector financeiro, ao contrário de leis nacionais mais rigorosas aplicáveis aos bancos norte-americanos.
Urgência e a criação de um padrão internacional
O processo de negociações é contínuo, sendo que em algumas reuniões participam equipas de negociação para temas específicos e algumas realizam-se por videoconferência. No entanto, estão planeadas rondas de negociações sobre temas específicos, que têm a duração de uma semana, decorrendo em Bruxelas e Washington, alternadamente. De acordo com o mandato “leakado” da Comissão Europeia a PTCI iria entrar em vigor no início de 2015. Todavia, dada a pressão da sociedade civil e o chumbo do mecanismo de "aprovação via-rápida" proposto por Obama no Congresso, já se julga que as negociações se arrastem até meados de 2016.
Estes acordos, destinam-se a estabelecer regras de comércio globais que eventualmente se tornarão nas normas-padrão para a Organização Mundial do Comércio (OMC), a serem aplicadas aos outros países membros, mas formuladas fora de uma estrutura que permita que os outros países resistam conjuntamente à agenda dominada por determinado modelo económico maioritário.
Carácter secreto das negociações
Tal como todos os acordos comerciais que a U.E. tem vindo a celebrar, as negociações e textos da PTCI são secretas até ao final das negociações.
O Parlamento Europeu, o Conselho Europeu, Parlamentos dos Estados Membros e os cidadãos europeus não têm qualquer acesso oficial ao conteúdo das negociações e textos da PTCI. Assim, como cidadãos da U.E., somos impossibilitados de saber os compromissos assumidos em nosso nome, assim como no das gerações futuras até as negociações estarem terminadas. Todavia, as empresas têm acesso privilegiado a esta informação assim como a possibilidade de influenciar os negociadores para obter o que lhes convém nestes acordos. Não há nenhuma razão justificável para o secretismo pois os negociadores de ambas as partes, tal como as empresas, sabem o que está na mesa de negociações. A informação é mantida secreta para o público, que poderia contestar os compromissos que estão a ser assumidos em seu nome.
Recentemente, a ONG Corporate European Observatory publicou um artigo sobre a falta de transparência nos dados divulgados pela Comissão Europeia, após o Comissário do Comércio, Karel De Gucht, ter comunicado através do jornal The Guardian, em resposta a outro artigo (1), que as negociações sobre esta parceria são completamente transparentes, e que a Europa beneficiará em muito com a PTCI.
Segundo a lista de participantes nas reuniões, atualizada até Setembro de 2013, verifica-se que uma grande parte destas reuniões são, de facto, com lobbies das diversas indústrias (automóvel, químicos, aeronáutica, cosmética, produtos alimentares, armamento, financeiras, etc.). Das 130 reuniões realizadas, 119 são com lobbies.
A mesma ONG veio através de um comunicado dirigir um apelo à Comissão Europeia, para que publique os nomes dos intervenientes das reuniões realizadas desde Setembro de 2013.
Harmonização legislativa
A harmonização de regulamentação significa harmonizar a regulamentação entre a U.E. e os E.U.A. no sentido do menor denominador comum, i.e. descendo para uma forma de regulamentação mais permissiva, abrangendo todas as áreas. Isto significará a degradação da regulamentação da saúde e da segurança, da alimentação, da proteção ambiental, dos padrões laborais, da privacidade e muito mais, incluindo a regulamentação dos serviços financeiros.
Sendo este acordo comercial parte da agenda internacional das empresas, a harmonização de regulamentos resultará numa tendência de maior permissividade dos mesmos face às situações que eles cumprem regular, livrando-se dos conflitos de regulamentação entre os dois blocos económicos (E.U. e E.U.A.).
No sentido de alcançar esse objetivo, está a ser discutida a criação de um Conselho de Cooperação para a Regulamentação.
Este Conselho, composto por membros não eleitos, será capaz de criar e substituir a legislação da U.E., dando assim forma, segundo palavras da Comissão dos assuntos do Comércio do Parlamento Europeu, a um “acordo vivo” continuando a regular para o futuro.
De acordo com os planos da Comissão para os assuntos do Comércio do Parlamento Europeu (cujo presidente é o Eurodeputado Vital Moreira), os “players” do comércio e investimento abrangidos pela PTCI, incluindo as empresas do país parceiro (E.U.A.), terão um papel relevante na preparação de toda a regulamentação futura.
Assim, de momento, o objetivo principal é a criação da estrutura da PTCI. Nem todas as medidas que são exigidas pelos intervenientes serão incluídas no texto do acordo. Elas serão depois discutidas e decididas pelo Conselho de Cooperação para a Regulamentação, por detrás de portas.
Controlo da opinião pública e o carácter antidemocrático
A Comissão de Comércio criou uma unidade especial para tentar controlar a opinião pública sobre a PTCI. No documento de estratégia da Comissão de representantes dos Estados-Membros, reconhece-se que o interesse público sobre este acordo é considerável, sendo assim necessária uma estratégia de divulgação do acordo ”radicalmente diferente” do habitual, devendo incidir sobre a análise dos aspetos positivos do acordo para cada Estado-Membro.
A estratégia consiste na divulgação pró-ativa dos benefícios por forma a evitar a condução da análise para aspetos menos positivos como, por exemplo, a degradação regulamentar e o mecanismo de resolução de conflitos entre o Estado e Investidor. O objetivo é também ”tranquilizar” os países terceiros, em particular a China, que já assumiu a sua posição de desconforto sobre a PTCI. Quando as negociações estiverem concluídas, o Parlamento Europeu só terá o direito de dizer sim ou não ao acordo, sem possibilidade de efetuar nele qualquer alteração. Caso o resultado da votação do Conselho seja afirmativo, a PTCI poderá entrar em vigor a título provisório, antes mesmo de os parlamentos dos Estados-Membros a ratificarem.
Resolução de conflitos Investidor / Estado
A PTCI incluirá também mecanismos para a resolução de conflitos entre Investidor e Estado, permitindo assim que as empresas transnacionais processem governos, fora dos seus tribunais nacionais, pela perda de lucros futuros resultantes de ações por parte do governo, como por exemplo, uma nova legislação nacional, votada de forma democrática.
O funcionamento destes mecanismos baseia-se num tribunal arbitral, composto por três árbitros. O Estado e a empresa escolhem um árbitro cada um e depois estes árbitros co-elegem um árbitro presidente. Este mecanismo existe desde 1966, sendo que o principal centro internacional de arbitragem comercial é o Centro Internacional para a Arbitragem de Disputas sobre Investimentos (CIADI ou ICSID) sediado no Banco Mundial.
A contestação contra este tipo de mecanismo tem vindo a aumentar (2) e vários países já o abandonaram, dado o facto de não ser garantida a imparcialidade dos árbitros. Estes, além de provirem normalmente de grandes escritórios internacionais de advogados e serem pagos principescamente, não obedecem a um código de ética, podendo estar a defender num caso um País e em outro caso serem advogados da parte contrária a esse mesmo País.
Dado este facto, o recurso por parte das empresas contra os países tem vindo a aumentar de forma considerável, sendo que o número de casos em que a empresa ganha o caso é manifestamente superior ao número de casos em que o país é “absolvido”. Os acordos onde este mecanismo já foi implementado demonstram que este leva, ou a grandes pagamentos por parte dos governos às empresas internacionais ou à dissuasão da atividade legislativa por parte dos Estados.
Por todo o mundo existem exemplos dos efeitos destes mecanismos, por exemplo, o Canadá desistiu de legislar de forma democrática por uma gasolina mais limpa, a Alemanha está a ser processada por querer acabar com o seu programa nuclear, tal como a Austrália pela legislação que obriga à aposição de avisos sobre os malefícios do tabaco nas embalagens de cigarros. Recentemente, face à forte e insistente contestação de algumas ONG´s, a Comissão Europeia abriu um período de três meses de consulta à sociedade civil sobre a inclusão dos mecanismos de resolução de litígios na PTCI. Dado o facto de ser algo recente, não é possível uma análise deste processo.
Consequências laborais: crónica de um desastre anunciado
O dumping social e desregulamentação são as primeiras consequências que se prevêm do que até agora se conhece da PTCI. Face a essas novas reduções nos direitos laborais, a resposta das forças políticas e sindicais deve ser clara e rotunda para conseguir a sensibilização da sociedade e a mobilização contra o Tratado.
A sétima rodada de negociações da PTCI teve lugar há dois meses e as informações que temos sobre o futuro Tratado ainda são escassas e profundamente tendenciosas. O seu impacto, indubitável, sobre os direitos das(os) trabalhadoras(es) de ambos os lados do Atlântico, mantém-se oculto e silencioso.
Em matéria de direitos laborais, o documento refere-se apenas à obrigação das partes de incluírem no acordo mecanismos para apoiar a promoção do trabalho decente e a implementação dos padrões fundamentais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sem grande concretização. Além deste documento, não é possível encontrar uma referência específica sobre os direitos laborais na informação que publica a U.E..
A desclassificação desta escassa informação veio seguida de uma ampla campanha de promoção e justificação do Tratado por parte das instituições europeias. Uma série de relatórios apontam vantagens e o crescimento económico a que levaria a assinatura do acordo com os Estados Unidos, indicando que a total abertura comercial geraria biliões de lucros em ambas as economias. Especificamente, afirma-se que 80% dos ganhos que implicaria o acordo resultarão da redução dos "custos" impostos pela "burocracia e regulamentações", assim como da liberalização do comércio em serviços e na contratação pública, evidenciando que o principal objetivo do acordo não é a redução de tarifas, mas a redução das normas que regulam direitos, entre outros, os laborais.
Esta campanha de propaganda está a ser questionada em diversas áreas científicas, que assinalam, por sua vez, outras perguntas para as quais os economistas defensores da PTCI não têm resposta: quem vai beneficiar desta geração de riquezas? Que grau de afectação no bem-estar da população terão as medidas relativas aos serviços públicos? Pode a PTCI causar uma redução dos direitos laborais?
Centrando-nos nesta última questão, cabe lembrar que a assinatura de um tratado de livre comércio multiplica os casos de prestações transfronteiriças de serviços e de mobilidade transnacional de negócios, colocando em contato de maneira habitual diferentes ordenamentos jurídicos laborais e diferentes níveis de proteção de direitos. Esta situação não acarretaria problemas se existissem duas circunstâncias: por um lado, o tratado incluir padrões comuns em relação aos direitos laborais (salário mínimo, jornada máxima, direitos coletivos, etc.); por outro lado, e mesmo sem se dar a primeira condição, o tratado incluir uma cláusula de intangibilidade ou não regressividade que obrigasse os Estados-Membros a manter os níveis laborais inalterados. Caso não se dê nenhuma das duas circunstâncias, a experiência diz-nos que, quando entram em contacto ordenamentos laborais díspares e se deixa à livre escolha do capital o lugar para sediar a empresa ou o local onde presta os serviços, produzem-se dois fenómenos já comuns no âmbito da União Europeia: o dumping social e a desregulamentação.
O dumping social é uma estratégia empresarial para baratear custos sociais transferindo a produção para o Estado com direitos laborais mais reduzidos (geralmente salariais). Também é possível que as empresas desloquem os seus trabalhadores para prestarem serviços no Estado com padrões laborais mais altos, mas mantendo as suas condições de trabalho de origem, situando-se assim numa melhor posição em termos de custos sociais que as empresas nacionais. Por outro lado, a desregulamentação é um fenómeno que ocorre quando, na situação de disparidade normativa antes descrita, os governos pretendem atrair empresas estrangeiras através da redução de direitos laborais (salários inferiores ou facilitação do despedimento).
Todos esses fenómenos fazem parte da realidade da U.E.. É verdade que para controlar, minimamente, o dumping social e se calarem as críticas respeitantes ao déficit social da U.E., se adotaram diversas medidas de escasso resultado. Entretanto, o fenómeno de desregulamentação converteu-se na estratégia das autoridades financeiras internacionais estabelecida atualmente através dos mecanismos de governação económica da União Europeia. O resultado é evidente e só é necessário observar o agravamento das disparidades em matéria laboral e social no âmbito da União Europeia, com a Grécia, Portugal e Irlanda à frente do desemprego, da precarização, da pobreza e da exclusão.
Face a isto, para avaliar o impacto da PTCI sobre os direitos laborais devem ser tidas em conta duas premissas: em primeiro lugar, que a integração económica no âmbito europeu teve consequências negativas para uma maioria das(os) trabalhadoras(es), especialmente no Sul, apesar dos Estados-Membros da U.E., pelo menos até às últimas adesões, ainda compartilharem tradições próximas em relação ao reconhecimento de direitos sociais e laborais; por outro lado, com o TTIP vão entrar em contacto dois sistemas basicamente opostos quanto ao reconhecimento e proteção de direitos laborais, como acontece com o norte-americano e europeu (pelo menos numa maioria dos Estados-Membros da U.E.). Um olhar pelo número de ratificações de convenções da OIT dá-nos uma ideia desta disparidade: Espanha ratificou 133, França 125, Alemanha 85 e Estados Unidos 14, entre as quais não aparecem as convenções relativas à liberdade sindical.
Perante esta situação, alguns propõem a via de forçar a inclusão no futuro Tratado de cláusulas de não regressividade, de reconhecimento de padrões laborais, de exceção das questões laborais do âmbito de atuação do sistema especial de resolução de controvérsias, etc.. No entanto, nenhuma destas cláusulas, no caso duvidoso de se integrarem, evitaria a futura corrida à redução dos direitos laborais. A experiência da U.E. assim o demonstrou. Não cabem remendos na PTCI, nem em matéria de trabalho, nem no meio ambiente, nem na saúde. A única possibilidade que temos para manter os nossos direitos é a oposição frontal e terminante dos povos da Europa para mostrar, como já foi feito em frente àquela falsa "Constituição Europeia", que todo o embuste tem um limite. A realização de campanhas, como a da ATTAC, contra o Tratado é agora uma prioridade para sensibilizar as maiorias sociais e alcançar uma mobilização sustentada para fazer face à antidemocrático e anti-social PTCI. Mais uma vez, a resposta deve vir das ruas e assumir-se como cavalo de batalha pelas forças políticas e sindicais que defendem os direitos das pessoas.
(*) A Plataforma Portuguesa para a Análise Crítica ao TTIP engloba-se da grande campanha internacional contra este sinistro tratado, Stop TTIP, Self-Organized Citizen’s Initiative Against TTIP and CETA.
______________ NOTAS:
(1) George Monbiot, The lies behind this transatlantic trade deal.
(2) V. Mary Louise Malig, Tailored for sharks: How rules are tailored and public interest surrendered to suit corporate interests in the WTO, FTAs and BITs trade and investment regime.
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