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Marxismo, questão nacional, América Latina A nova ofensiva militarista do imperialismo e a estratégia dos povos
Ronaldo Fonseca (*)
“Os sionistas já preparam o guetto dos palestinos, por enquanto em Philadelphia.” Rosa Luxemburgo, 1918
Marx no seu conhecido prefácio à ‘Contribuição à crítica da economia política’, tomando como referência os países centrais do capitalismo, objecto da sua análise, postulava (11 anos depois da derrota das insurreições de 1848) que “nenhuma formação social desaparece antes que, no seu seio, se tenham desenvolvido todas as forças produtivas que ela pode conter”. Marx, como sabemos, não viveu o suficiente para analisar o fenómeno do imperialismo nem a realidade por este engendrada no mundo periférico, já antes submetido ao colonialismo. Uma realidade que, em múltiplas dimensões, é muito diversa daquela dos países centrais, apesar de ambas estarem integradas (contraditoriamente) no sistema-mundo capitalista.
Lenine (e os diversos pensadores que continuaram e alargaram a perspectiva da sua obra ao longo do século XX, como Samir Amin, com a sua ‘Acumulação à escala mundial’) demonstrou que a partir do último quarto do século XlX, um certo grau de concentração de capitais gerando a formação de monopólios nos países centrais permitira ao sistema reunir as condições para o salto qualitativo de que necessitava, ou seja, passar ao estado imperialista. E dessa forma adiar no tempo e no espaço os efeitos das contradições antagónicas do capitalismo. Os mecanismos essenciais desta nova etapa expansionista consistiam na exportação de capitais para as vastas periferias coloniais, semi-coloniais ou formalmente independentes (numa época de declínio da rentabilidade dos anteriores processos espoliativos coloniais) e o posterior repatriamento dos sobrelucros. A exportação de capitais industriais (inicialmente, na área dos caminhos de ferro e dos têxteis) iria beneficiar da mão-de-obra barata, dos amplos recursos naturais disponíveis em grande parte nas periferias e do monopólio dos mercados locais, abrangendo um sector das populações.
A passagem a essa nova etapa expansionista tornara-se uma necessidade para as burguesias centrais, confrontadas a partir de um certo momento com a retracção dos campos de investimento rentável (segundo a lógica capitalista), com os limites dos seus mercados internos e regionais, e, consequentemente, com a tendência à estagnação do sistema. Era fundamental para as potências centrais abrir novos campos de investimento de capitais, praticamente sem concorrência num primeiro tempo, em regiões sob a sua influência ou controlo. Ao longo das décadas este processo geraria igualmente um sistema comercial baseado na troca desigual entre centros e periferias. A concentração monopolística nos países centrais (nomeadamente a Inglaterra, França, Holanda, Bélgica e posteriormente a Alemanha e os Estados Unidos) criou as condições materiais e humanas que viabilizaram a nova etapa expansionista. Uma expansão que, ao longo de um século, gerando confrontos e guerras inter-imperialistas pela disputa do controlo dessas regiões, passando por revoluções populares, crises e transformações tecnológicas, viria desembocar, a partir dos anos 80 do séc. XX na chamada globalização neo-liberal que não é outra coisa senão uma fuga para a frente do capitalismo (face ao adensar das suas contradições sistémicas) e uma nova etapa do imperialismo. Era a demonstração do carácter polarizante e não homogeneizante (tal como parecera aos primeiros pensadores inspirados em Marx, pensando em termos de Europa) do capitalismo.
No entanto, após uma certa euforia artificial criada pelos grandes "media" a propósito das "imensas virtudes" da “globalização”, o sistema como um todo entrou em estagnação prolongada. O enorme défice da balança comercial norte-americana, a situação periclitante do dólar como moeda de reserva e de meio de pagamento internacional (reflectindo o declínio parasitário da economia da maior potência do sistema), a debilidade das reservas energéticas das potências centrais do sistema, a contenção geoestratégica efectuada pelas potências re-emergentes (Rússia, China, Irão) conduziram a uma crise larvar e a um impasse para o qual o imperialismo busca como saída uma economia de guerra permanente voltada para capturar as reservas estratégicas do planeta e, obviamente, para aprofundar a exploração dos povos.
Em amplas regiões do mundo periférico (inclusive na periferia europeia) a intensificação da exploração e da pilhagem financeira provocadas pela globalização neoliberal, a tentativa de impor um capitalismo tributário e de confiscação, vai criando situações limite e gerando uma nova resistência, assimétrica e multifacetada, dos povos.
Regressando ainda (para concluir) à situação no início do século XX, devemos referir que as contradições inter-imperialistas pela repartição dos mercados e zonas de influência conduziriam à primeira guerra mundial, à mobilização militarista/chauvinista por parte da direita e dos partidos socialdemocratas, (com excepção das suas tendências de esquerda, dirigidas por Rosa Luxemburgo na Alemanha e Jean Jaurès em França, assassinados ambos, em 1919 aquela e este em 1914). Em 1917, em plena guerra mundial inter-imperialista se produziria a grande revolução russa, levantando enormes e justificadas expectativas entre os povos do mundo.
A realidade no mundo periférico
Nas periferias mundiais (e em particular na América Latina) este novo processo imperialista desencadeado inicialmente por capitais ingleses, iria aí criar, ao longo do tempo, sociedades dependentes e deformadas cujo "desenvolvimento" exógeno se assemelharia a um grande mosaico onde, ao lado de pólos industriais beneficiando de mão de obra barata, controlados pelo capital estrangeiro, permaneciam vastas regiões rurais e semi-rurais caracterizadas pelo subdesenvolvimento e extrema pobreza. Periodicamente, movidas pelo desespero, massas humanas de camponeses pobres e sem terra deslocavam-se para as cidades num êxodo rural em busca ilusória de melhores condições de vida, uma vez que a terra permanecia na posse dos grandes latifundiários que o capital inglês não iria hostilizar, ao contrário do que alguns pensavam. Após laborarem durante um certo tempo, principalmente na construção de edifícios e obras públicas, uma vez terminado aquele ciclo de trabalho, transformar-se-iam em massas de pobres e “excluídos” vivendo de expedientes em guetos nas periferias das cidades.
Através desse tipo de processos se foi configurando ao longo das décadas a realidade sócio-económica e política desses países. Em alguns deles como o Brasil, a Argentina e o México, sectores das burguesias nacionais tentaram modificar a situação num dado período histórico de maior margem de manobra internacional (anos 30 a 50) criando grandes empresas públicas destinadas a favorecer a reorganização da economia. Após algumas realizações assinaláveis (desenvolvimentismo) mas estruturalmente contraditórias, os governos nacionais-burgueses acabaram abatidos por golpes de Estado impulsionados pelo capital norte-americano, já então dominante. Progressivamente, os sectores nacionalistas das burguesias desestruturar-se-iam e acabariam por, na sua maioria, integrar-se no capital imperialista dominante, como burguesias intermediárias. Com a globalização neo-liberal imperialista, a partir dos anos 1980, a dependência financeira, a tentativa de desarticulação política/cultural das nações e a devastação social acentuaram-se, tendo o desemprego estrutural gerado imensas massas de deserdados a povoarem as megalópoles, autênticas selvas de cimento.
A expansão imperialista criou nas periferias um proletariado complexo e heterogéneo, bastante diferente dos tradicionais proletariados centrais. Isto se deve justamente ao facto de que a industrialização dependente se foi fazendo a partir dos impulsos dos capitais vindos dos países centrais, segundo seus interesses e não segundo um processo auto-centrado de desenvolvimento endógeno, ainda que capitalista. Daí o seu carácter não articulado a nível nacional, e a permanência de vastas regiões de subdesenvolvimento rural, semi-rural e urbano-periféricas. Mas as análises dos marxistas latinoamericanos da Teoria da dependência, demonstraram, desde os anos 1960 e 1970, que apesar da heterogeneidade da sua posição em relação à produção/circulação da mais valia no quadro periférico, tratava-se efectivamente de um proletariado que emerge no quadro do imperialismo. Mais ainda, demonstraram (nomeadamente Ruy Mauro Marini e André Gunder Frank) que na América Latina nunca houve feudalismo, mas sim formas feudalizantes em algumas regiões.
O imperialismo não produziu (nem poderia produzir) um desenvolvimento generalizado e homogéneo no chamado "terceiro mundo" (aproximando-o à realidade dos países centrais) justamente porque a expansão do sistema capitalista, a partir dos seus centros, tem, como referimos, um carácter polarizante e não homogeneizante. Não visa (nem poderia visar) o desenvolvimento voltado para as realidades nacionais mas a promoção de investimentos selectivos (sem tocar nas oligarquias nacionais reaccionárias) voltados para a produção de sobre-lucros para o exterior, desprovidos de uma perspectiva nacional e, por isso mesmo, tendencialmente desestruturantes das nações.
Naturalmente, este processo de desenvolvimento deformado iria também influenciar as características sociais, económicas e mentais dos proletariados periféricos. Ao lado de sectores em permanência reivindicativos e relativamente organizados (operariado das minas e de algumas regiões industriais mais concentradas), de sectores disponíveis para uma forte contestação social como as massas camponesas e populações marginalizadas urbanas (ou para a luta étnico-cultural entrelaçada às reivindicações económicas, como os povos indígenas dos Andes e minorias nacionais oprimidas), constatamos a existência de um sector de técnicos de algumas empresas estrangeiras, tecnologicamente mais avançadas, cuja tendência socio-política é para um certo elitismo e distanciamento das reivindicações populares, pela ilusão de que sua situação (pontualmente privilegiada) será duradoura.
As condições da transformação revolucionária nas periferias do sistema-mundo
O processo imperialista, actuando ao longo de mais de um século, criou no mundo periférico (especialmente na América Latina e na Ásia) uma situação em que um desenvolvimento real e endógeno (mesmo capitalista) não é possível, pois está capturado na teia imperialista e bloqueado pela própria natureza polarizante das relações capitalista/imperialistas. Aqui não cobra pois sentido uma certa perspectiva de Marx, no século XlX, tendo como referência os países centrais (alguns anos após a derrota das revoluções de 1848, como já referimos), segundo a qual apenas depois de desenvolvidas todas as forças produtivas que potencialmente conteriam no seu seio (o que se produziria com certa linearidade) seria possível a emergência de formações sociais qualitativamente superiores. O que implicava que as revoluções socialistas se produziriam “naturalmente”, em primeiro lugar, nos países centrais do capitalismo, pela própria pressão das contradições entre forças produtivas e relações de produção e seus efeitos sobre a confrontação de classes.
Nas vastas periferias podemos dizer que vivemos uma situação em que as condições objectivas da mudança estrutural estão reunidas, de uma forma geral, uma vez que sob o imperialismo, não haverá desenvolvimento (real e equilibrado), superior ao existente e a perspectiva no horizonte (se os povos o permitirem) é, ao contrário, a regressão e a "re-compradorização" das sociedades sob a pressão da crise estrutural do capitalismo globalizado. Com excepção da China que é um país-continente e que fez uma revolução nacional, mantendo importantes alavancas económico/financeiras nas mãos do Estado.
Isto significa que, estando latentes (e presentes) as condições objectivas (cujo grau de amadurecimento oscila obviamente de um país para outro), os processos em direcção à mudança estrutural emancipatória dependerão das condições políticas, do factor subjectivo, isto é, da organização (mais ou menos ampla) das massas populares heterogéneas, de factores de radicalização imprevistos, da emergência de direcções político/militares criativas e capazes de conduzir processos de contestação reivindicativa e de ruptura, segundo a análise (entrelaçada à prática das lutas sociais) dos contextos concretos.
A estratégia progressista e revolucionária nessas regiões deve tender, na nossa perspectiva, para a configuração de blocos de classes e fracções de classes, etnias e segmentos sociais subalternos, explorados, oprimidos ou discriminados, opostos (de diversas formas) ao status quo, isto é, ao bloco dominante oligárquico/imperialista. Este bloco popular e seus aliados será composto, na América Latina, pelo (relativamente reduzido) proletariado mineiro e de algumas indústrias mais concentradas, pelos camponeses pobres e trabalhadores rurais sem terra, pela massa de “excluídos” das periferias ("sobras" da globalização liberal, nova "plebe" urbana), por povos indígenas e minorias nacionais oprimidas, por amplos sectores da pequena burguesia assalariada constantemente laminada pelo sistema (intelectuais progressistas, jovens estudantes, funcionários, médios oficiais militares, etc.) e finalmente por pequenos empresários em crise, limitados ao mercado interno de consumo popular.
Na perspectiva da luta pelo poder, convém notar a importância dos sectores progressistas e patrióticos da “pequena classe média”, camada social que, podendo adquirir posições profissionais e culturais influentes (e até estratégicas, no caso dos militares) na sociedade, podem constituir-se em aliados preciosos. Isto pela referida consciência nacional/anti-imperialista que permanece latente em vários sectores da população.
Articular adequadamente este grande bloco progressista e anti-imperialista, evitando que as diferenças no seu seio se transformem em rupturas, respeitando estas diferenças e não exigindo um (impossível) homogeneismo, canalizando-o para objectivos emancipatórios, tendo-se em linha de conta a correlação de forças a cada fase da luta, eis aí a tarefa fundamental das lideranças político/revolucionárias, dos movimentos sociais, das organizações políticas da esquerda, das lideranças de povos originários. A sua amplitude e a sua diversidade organizacional não retiram a possibilidade de uma convergência política para objectivos fundamentais a este bloco popular que, num processo complexo, irá tendencialmente situar-se em desconexão do bloco oligárquico/imperialista através de uma linha demarcatória de rejeição das lógicas do capitalismo globalizado (e suas consequências regionais) que hoje assume o rosto do neo-liberalismo aplicado às zonas periféricas.
Oposto radicalmente ao bloco nacional/popular situa-se (lá onde não houve transformações) o “bloco no poder”, formado pelo grande capital financeiro e industrial associado ao imperialismo, pelos latifundiários, pelas transnacionais, pelos grandes exportadores e em última análise pelas instituições financeiras internacionais do imperialismo. A heterogeneidade e complexidade do bloco popular, as suas origens diversas bem como a diversidade relativa das estruturas mentais dos seus componentes, colocam a questão da impossibilidade de ele ser estruturado e dirigido por uma só organização oriunda de um dos sectores, a qual não estaria em medida de captar e acomodar toda a diversidade sócio-cultural. Esta tarefa necessita sim de uma aliança convergente de organizações políticas e movimentos representativos dos diversos sectores, portadores dos problemas próprios e das estruturas mentais específicas de cada um deles, capaz de estruturar a unidade na diversidade, à volta da questão nacional/social. Parece-nos também artificial, nas formações sociais periféricas, a ideia de estabelecer à priori qual o sector do bloco popular que terá a direcção do processo. Esta é uma questão cuja resposta só poderá emergir das próprias lutas emancipatórias concretas e frequentemente imprevisíveis nos seus contornos. Aqui faria certo sentido lembrar uma afirmação perspicaz de Lenine no seu texto (considerado polémico) sobre a insurreição irlandesa de 1916: “Quem espera pela revolução pura não a verá jamais”. Ou seja, os processos revolucionários reais são de uma grande complexidade e nunca obedecem a fórmulas esquemáticas.
No plano histórico/ideológico constitui uma característica importante dos processos nacional-populares-anti-imperialistas a referência a grandes figuras do passado que, na sua época, protagonizaram combates importantes contra as potências coloniais e neo-coloniais (como Bolívar, Martí, Zamora, San Martin, Abreu e Lima e tantos outros), personagens cujo exemplo e ideário patriótico ficou de certa forma sedimentado no subconsciente popular há várias gerações. Não existe qualquer contradição em resgatar o seu património político e humano numa nova época em que a luta pelo socialismo já está no horizonte, pois o seu exemplo e a sua mensagem podem ser actualizados dialecticamente. Na realidade, podemos constatar, a um certo nível, uma transversalidade histórica dos grandes valores progressistas da humanidade, encarnados por certas figuras, independentemente dos objectivos concretos susceptíveis de ser equacionados em cada época histórica objectivamente considerada.
O projecto alternativo
Nos países centrais dominantes do capitalismo, a esquerda marxista colocou quase sempre, ideologicamente, a questão da emancipação do proletariado em termos de uma passagem directa ao sistema socialista, após a ruptura. O que era, ideologicamente, compreensível, pois nesses países não existiu nem existe uma questão de dominação colonial e/ou imperialista (muito pelo contrário) e portanto não se coloca o problema da libertação nacional. Colocam-se porém outros problemas aos seus povos como o domínio da alienação ideológica burguesa e eurocêntrica, a aceitação do hegemonismo da visão ocidentalista do mundo, até em certos sectores das classes trabalhadoras. E, obviamente, os padrões de vida e consumo relativamente elevados (até os anos 1980/90) de amplos sectores das classes trabalhadoras desses países.
Nos países periféricos (onde vive mais de 2/3 do, complexo, proletariado mundial), com um largo historial de colonialismo, submetido há mais de um século à dominação multifacetada do imperialismo, a questão da passagem ao socialismo não pode ser colocada directamente, sem mediações. Na realidade, ela apenas pode emergir no horizonte através da mediação da revolução nacional-popular anti-imperialista. Ou seja, através de um processo de transição específico ligado às suas condições objectivas e subjectivas, às suas culturas. As próprias lutas de classe, nos mais diversos níveis, tendem a articular-se ideologicamente com a questão da libertação nacional.
Efectivamente, na maioria desses países, estão ainda, em geral, por cumprir-se as tarefas de libertação nacional do domínio económico/financeiro/político/mediático do imperialismo, as tarefas do desenvolvimento racional, centrado nos interesses gerais da nação. O processo de espoliação imperialista, o modelo de desenvolvimento exógeno e deformante que foi sendo implantado, teve também como efeito a desarticulação dos interesses nacionais, o surgimento de tensões internas tendo como pano de fundo a emergência progressiva (ao sabor dos interesses externos) de grandes desfasamentos regionais, a nível económico e cultural. No plano político, a presença constante e as imposições das instituições financeiras imperialistas, aliadas ao controle exercido sobre os grandes "media", apostados na imposição de modelos pseudoculturais exógenos, desprezando ou deturpando os valores endógenos, fazem emergir, como referimos, um sentimento de humilhação nacional, nomeadamente entre os sectores mais conscientes e preocupados com o declínio da nação. Entre estes há que referir o movimento dos trabalhadores, a intelectualidade, sectores militares e sectores camponeses.
Por isso mesmo, o processo de luta, organizado numa primeira fase à volta das questões nacionais e populares, pelas suas características abrangentes, é aquele que é capaz de agregar à sua volta uma adesão social progressista mais ampla e mais diversificada. A posição dos oficiais militares é particularmente contraditória pois são formados ideologicamente à volta do ideário do patriotismo e da defesa da nação (naturalmente, porque os governantes e as classes oligárquicas necessitam afirmar-se como “defensores do interesse nacional”) mas na prática eles vão constatando a submissão desses mesmos governos aos interesses imperialistas. Tal paradoxo aparente faz emergir constantemente um certo número de oficiais intermédios (nomeadamente aqueles oriundos de camadas médias e camponesas) em posições de crítica e descontentamento, por vezes velado, face à dominação imperialista e à postura servil das elites políticas nacionais. Na realidade, tal contradição ideológica no seio das instituições militares tem sido atenuada pelas classes dominante através dos privilégios e dos altos salários dos oficiais superiores, mas estes representam uma ínfima minoria na instituição, o que não impede que em certas circunstâncias específicas, instigados e financiados pelos E.U.A., tenham conseguido impor ditaduras oligárquicas sangrentas.
Trata-se de uma contradição, de um “elo fraco” no seio da ideologia dominante, para o qual não existe solução definitiva e que se agrava à medida da dependência, da estagnação económica, da “nova” predacção neoliberal e da profunda crise de valores do sistema. Gramsci, na sua concepção extremamente ampla e complexa dos intelectuais orgânicos, vinculados a uma das classes fundamentais da sociedade e exercendo importantes funções a seu serviço (elaboradores ideológicos, técnicos, organizadores, divulgadores, etc.) refere os oficiais médios do exército como uma camada intelectual exercendo funções organizativas e de defesa do aparelho de estado burguês no seu todo. Por outro lado, refere que, no seu movimento ascendente, as classes subalternas devem esforçar-se por captar e assimilar os intelectuais dissidentes das classes dominantes (em declínio e crise de valores) para que passem a desempenhar funções convergentes com o seu projecto e sua visão da sociedade.
A problemática da nação é pois uma questão latente nos países periféricos, em geral. A questão nacional é, de certa forma, a questão natural dos povos nacionalmente oprimidos e tem um conteúdo eminentemente progressista. Já Lenine no seu tempo demonstrara lucidamente, contrariando as visões esquemáticas, que o nacionalismo dos povos oprimidos tem uma dinâmica progressista e agregadora dos povos, enquanto o nacionalismo dos opressores é intrinsecamente reaccionário.
No entanto, a emancipação dos proletariados periféricos e seus aliados não se resolveria com uma revolução nacional-popular que deixasse intacto o sistema capitalista e se propusesse apenas o desenvolvimento de um capitalismo nacional. Tal não seria tão pouco possível, pois na actual fase do sistema mundial capitalista, as burguesias nacionais, na maioria dos seus sectores, estão ancoradas ao imperialismo, como classes intermediárias ou parasitárias, como "elites capatazes", sendo historicamente incapazes de desenvolver um “capitalismo nacional”. Quanto aos pequenos e médios empresários, enfraquecidos pela crise e pela ausência de créditos, não teriam obviamente dimensão económica e implantação política para lançar-se em tal empreendimento. Apenas um Estado popular, com participação protagónica dos povos trabalhadores e seus aliados, pode fazê-lo.
As revoluções nacional-populares têm pois que se ir desdobrando em projecto de transição socialista, as suas lideranças, aliadas ao proletariado, têm que articular dialecticamente, no espaço e no tempo (não como etapas rigidamente separadas), as tarefas da revolução nacional com as tarefas específicas da transição socialista, dentro dos ritmos possíveis e adequados à transformação da correlação de forças sócio/política a nível de cada país e a nível regional. Nesta perspectiva, a alavanca fundamental e insubstituível é o Estado. É absolutamente essencial reorganizar o Estado como instituição central reestruturadora da nação, recuperando empresas que foram privatizadas, conferindo-lhe funções socioeconómicas e culturais de carácter popular, dotando-o de coerência política, de meios para defender os interesses nacionais, resgatando assim o seu prestígio delapidado pela corrupção ao serviço de interesses espúrios. As tarefas da transformação nacional-popular consistiriam fundamentalmente na recuperação dos recursos naturais alienados, na realização de uma reforma agrária coerente, dando lugar a cooperativas democraticamente geridas pelos camponeses, em medidas de redistribuição de rendimentos e de elevação dos salários, em projectos de desenvolvimento auto-centrados, voltados para o mercado interno, na concessão de créditos aos pequenos e médios empresários, em medidas de democratização do acesso à saúde, à cultura e à educação.
Estes avanços da revolução nacional-popular deverão, numa segunda fase (cuja emergência dependerá da determinação e clarividência das lideranças, da participação popular e da correlação de forças face ao imperialismo) desembocar em medidas de transição socialista propriamente ditas. Isto é, a constituição da propriedade pública dos recursos naturais e dos meios de produção e de financiamento fundamentais, a planificação económica geral, a instituição de estruturas de controlo e de co-gestão dos trabalhadores nos mais diversos níveis da sociedade, em particular nas empresas nacionalizadas, bem como o início de medidas visando atenuar progressivamente a divisão social do trabalho. Ao lado do sector público, existirá um amplo sector cooperativo bem como um vasto sector privado, principalmente de pequenas e médias empresas voltadas essencialmente para o mercado interno, devendo cumprir a legislação do trabalho estabelecida pelo Estado.
Numa fase bem mais avançada, será necessário um sistema permanente de orientações macro-económicas no sentido de favorecer o declínio progressivo das relações baseadas em valores de troca e sua substituição por uma economia onde comecem a predominar os valores de uso. E de um comércio externo entre regiões que privilegiem as relações de complementaridade sobre as relações de competitividade. Uma antencipação exemplar desse projecto socialista pode já ser observado na ALBA, que referiremos mais à frente.
Quanto às tecnologias a utilizar para a construção socialista, é preciso notar duas ordens de factores: em primeiro lugar, um país dependente e subdesenvolvido que, em meio a todo o tipo de pressões e boicotes, logra a ruptura política com o sistema imperialista, é necessariamente um país fragilizado economicamente (apesar das suas potencialidades futuras), tendo a maioria da população em estado de pobreza e carências de toda ordem. A nova direcção política tem como tarefa inadiável colocar a economia em funcionamento e lançar projectos de desenvolvimento. Sabemos que, de um modo geral, as tecnologias industriais criadas pelo capitalismo não são completamente neutras, remetem implicitamente para uma certa organização técnica/social da produção. Mas a nova direcção política (perspectivando uma transição socialista) de um país subdesenvolvido não possui condições técnicas (nem disporia de tempo útil face às suas responsabilidades para com a massa populacional carenciada) para pesquisar novas tecnologias mais adaptadas ao seu projecto. Terá necessariamente que aproveitar o leque de tecnologias já existente, procurando seleccionar aquelas que melhor possam se adequar ao seu projecto sócio-económico. Mais ainda, e isto é fundamental, deverá, como referimos anteriormente, criar centros locais de formação técnica e estruturas de participação, controle e co-gestão dos trabalhadores nas empresas, de forma a contrabalançar a divisão funcional do trabalho necessária às industrias dispondo de um nível tecnológico relativamente avançado.
Aqui é preciso clarificar uma questão importante: esta articulação entre as tarefas da transformação nacional e da transformação socialista não se faria em duas etapas distintas e separadas dando lugar, numa hipotética primeira fase, ao poder político, cristalizado, de uma classe burguesa/nacional tal como referimos. Mas tão pouco seria desejável uma primeira etapa prolongada em que um certo "capitalismo de Estado" (inevitável, transitoriamente, nas fases iniciais) seria gerido unilateralmente por uma camada social de técnicos e especialistas sem a participação dos trabalhadores. Se assim fosse haveria a cristalização no poder económico de uma tecnocracia que impediria o controle e a co-gestão dos trabalhadores, limitaria ou aboliria o papel político/organizativo dos conselhos comunais e das comunas populares, dos conselhos de trabalhadores, bloqueando progressivamente, na prática, a transição ao socialismo.
Não haveria portanto duas etapas distintas, com diferentes classes ou sectores sociais no poder, mas duas fases dialecticamente articuladas, nas quais a participação no poder sócio-político e o controlo da gestão pelas classes trabalhadoras e seus aliados, nos mais diversos níveis, seria, progressivamente, estabelecido desde o princípio, impedindo uma cristalização tecno-burocrática e garantindo assim melhores possibilidades de transição da fase nacional-popular para a fase socialista. Simplesmente, o desenrolar de um tal processo só pode ser delineado em termos gerais, não sendo viável que seja equacionado segundo um esquema teórico perfeccionista, independentemente das condições das lutas de classe e da evolução da correlação de forças com o imperialismo.
Notas sobre a Venezuela bolivariana
A génese da Venezuela bolivariana vem demonstrar, mais uma vez, a importância da criatividade dialéctica e revolucionária na história e a inadequação de fórmulas esquemáticas e a-históricas (ainda que numa perspectiva de esquerda), desvinculadas, de facto, da realidade objectiva do continente. Nesse país (onde um levantamento popular contra medidas ultra-liberais em 1989, o “Caracazo”, fora brutalmente esmagado pela repressão), um conjunto de forças sociais progressistas apoiou a candidatura à presidência de um médio-oficial que tinha sido preso e afastado das forças armadas devido a uma anterior tentativa de rebelião militar contra o status quo de corrupção e submissão da nação aos ditames dos E.U.A.. A sua punição só não fora mais drástica devido ao descontentamento que grassava entre os oficiais intermédios das forças armadas onde o seu movimento teve eco e à crise de legitimidade política dos partidos da burguesia venezuelana.
Contra as expectativas gerais dos observadores, contra a campanha dos grandes "media", Hugo Chavez é eleito presidente da república em 1988 após cerca de 3 anos de campanhas populares pelo país, ao longo das quais foi se configurando um verdadeiro bloco histórico nacional/popular englobando vastíssimos sectores das classes exploradas e subalternas, movimentos estudantis e intelectuais progressistas, com suas organizações e sindicatos. No ano seguinte, ele convoca um referendum popular e faz aprovar por ampla maioria uma constituição progressista e patriótica para o país, anulando os bloqueios jurídicos conservadores, deixando abertas as portas para um sistema mais avançado.
Esta vaga de fundo vitoriosa mostra que em certas situações históricas objectivas, onde a pobreza e a miséria são massivas, onde a ausência de perspectivas mais elementares é uma realidade que afecta as maiorias populacionais gerando uma luta de classes multifacetada, onde a riqueza de uma oligarquia ligada ao imperialismo, a humilhação nacional e a corrupção do aparelho de Estado são patentes, onde existe uma certa consciência anti-imperialista latente, é possível (desde que exista um factor subjectivo tendencialmente unitário, determinado e mobilizador) atenuar a influência dos "media" burgueses e relativizar o peso da ideologia dominante, abrindo caminho para a mobilização das grandes massas populares. Tratou-se de um processo de radicalização de mais de uma década em que se combinaram dialecticamente, como referimos, as lutas não-institucionais e as lutas institucionais.
Não nos olvidemos porém de uma outra realidade histórica: as instituições burguesas nas vastas periferias, não possuem a mesma solidez político/institucional nem estão profundamente sedimentadas na consciência das populações como ocorre nos países centrais e pioneiros do capitalismo. O Estado na periferia não é historicamente uma instituição endógena, enraizada, mas uma instituição que surgiu artificialmente, através do colonialismo e sua extensão neocolonial e imperialista, isto é, como instrumento de opressão e discriminação das maiorias por interesses estrangeiros. Não possui no subconsciente colectivo a mesma legitimidade que adquiriu nos países centrais e o seu enraizamento é relativamente superficial. Esta é uma das razões estruturais que tornaram possível, e de certa forma natural, que a maioria da população elegesse na Venezuela, para presidente da república, um homem que tinha estado na prisão por tentativa de insurreição militar contra as instituições oficiais. Tal situação jamais ocorreria num país central do capitalismo.
A partir dessa vitória, sabemos o caminho efectuado pelo povo venezuelano e seus dirigentes, percorrendo a fase nacional-popular, enfrentando e derrotando um golpe de estado pró-imperialista em 2002, e lançando sobre a mesa, a partir de 2005, a perspectiva da transição ao socialismo, anunciada por Chavez já no fórum social de Porto Alegre daquele ano. Trata-se de um processo complexo e heterodoxo (como já o fora a revolução cubana), não obedecendo a cânones clássicos, nem exigindo uma (impossível) homogeneidade sócio/classista, mas cujos protagonistas fizeram prova, em geral, de grande criatividade progressista, unitária e revolucionária. Já dizia o marxista António Gramsci, criticando as concepções escolásticas, que "a realidade em movimento é rica de combinações as mais bizarras e que é o teórico revolucionário que deve encontrar nessa bizarria a prova da sua teoria, traduzir em linguagem teórica os elementos da vida da história” (e nela intervir criativamente). “Não é a realidade que deva apresentar-se segundo um esquema abstracto" (Passato e Presente).
Desde a fase da revolução nacional-popular até iniciar um processo complexo de transição para o socialismo, a direcção bolivariana foi lançando as bases da democracia popular participativa e protagónica que deverá constituir a base da implantação da nova sociedade em perspectiva, apesar das grandes dificuldades que encontrou e que ainda encontrará no seu caminho. A constituição bolivariana, no seu artigo 70, trata do planeamento democrático e da orçamentação participativa a todos os níveis da sociedade e refere a co-gestão, a auto-gestão e as cooperativas diversas como exemplos de formas de associação guiadas pelos valores da cooperação mútua e da solidariedade. Aí estão as sementes da economia solidária, do socialismo. Naturalmente que com um papel cada vez mais importante do Estado popular.
Hugo Chávez teve o imenso mérito histórico de resgatar para a humanidade o projecto do socialismo num momento em que este parecia remetido ao completo esquecimento da história, depois de importantes derrotas das causas emancipatórias do povos e em pleno contexto de triunfalismo arrogante da globalização capitalista/neoliberal e dos seus medíocres profetas do “fim da História”.
Os conselhos comunais são estruturas fundamentais na perspectiva da democracia popular. Estas instituições trabalham no sentido de diagnosticar, organizar e gerir as prioridades das comunidades, cujo número, segundo cálculos aproximativos, poderá já atingir 52 mil em todo os país. Recursos económicos municipais e estatais são constitucionalmente transferidos para as comunidades, geridos pelos seus concelhos. As grandes decisões são tomadas por uma assembleia geral dos órgãos comunitários. Os conselhos comunais elaboram uma base para a actividade sócio-produtiva baseada nas necessidades comunitárias e nos seus objectivos futuros, inseridos na revolução. A articulação orgânica de vários conselhos comunais de uma região mais ampla dá origem à configuração de comunas populares, grandes organizações de base, vocacionadas também para participar - e exercer formas de controle popular – no âmbito do poder político e económico nos mais diversos níveis. Criam-se assim os órgãos de base e as condições para o desenvolvimento dos sujeitos revolucionários que, coordenados a nível regional e nacional (convergindo com comissões de trabalhadores e sindicais nas empresas) estão destinados a ir moldando um novo elemento no processo de exercício do poder. Através desse processo complexo, se criarão as condições para que as classes trabalhadoras e seus aliados vão assumindo níveis cada vez mais elevados de participação protagónica. A participação e o protagonismo dos trabalhadores manuais e intelectuais nos mais diferentes níveis, no quadro de uma economia englobando os sectores público, cooperativo e privado, constitui uma das características do projecto em elaboração do socialismo do século XXl. Esse não é um modelo teórico todo concebido por especialistas e pronto a ser “aplicado” (visão mecânica e dualista do marxismo) mas um projecto que vai se construindo, se rectificando e se reelaborando na relação dialéctica e mutuamente fecundante entre teoria revolucionária e praxis transformadora. Não pretende de forma alguma negar globalmente a importância de experiências passadas, de tentativas de construção do socialismo fora do continente, mas compreendê-las no seu contexto, incorporar seus aspectos positivos mas rejeitar claramente os seus erros e deformações e sobretudo reelaborar criativamente o projecto socialista, nomeadamente nas novas condições históricas impostas pelo imperialismo nas periferias - onde se encontram, como referimos, cerca 2/3 das massas proletárias mundiais. Trata-se obviamente de um projecto em elaboração que se apoia na história real dos povos, que capta e incorpora o que há de transversal nas suas lutas libertadoras passadas (de Bolívar a Marti, de Mariátegui a Guevara, de Allende a Chávez, etc.), que inspira-se obviamente das vertentes teórico/metodológicas essenciais da concepção do mundo materialista/dialéctica e histórica, conjugando-as com os aspectos válidos de outros contributos progressistas como a teologia da libertação, o comunitarismo dos povos originários, etc., rejeitando, quer a adaptação ao sistema capitalista/imperialista quer as petrificações doutrinárias a-dialécticas que acabam por revelar-se estéreis, e a-históricas.
Por outro lado, na Venezuela, as forças armadas têm sido reestruturadas e depuradas dos oficiais ligados directa ou indirectamente ao golpe oligárquico (violência e contra-violência dentro do processo) e à submissão ao imperialismo norte-americano. Da mesma forma, elas têm recebido uma nova formação ideológica, patriótica e anti-imperialista e exercido funções práticas, vinculadas aos interesses populares, de forma a tornarem-se um instrumento coerente do processo revolucionário. Através da colaboração e apoio fundamental da Rússia, a Venezuela dispõe hoje de forças armadas poderosas e tecnologicamente avançadas, aptas a vigiar e defender o seu território, conjugando operações clássicas com a importante e fundamental intervenção de milícias populares.
A estrutura de suporte do poder revolucionário é formada pelos 9 partidos e movimentos sociais que formam o “Gran Pólo Patriótico”.
No geral, trata-se de um caminho ainda longo para percorrer, mas a vontade progressista e revolucionária está presente (não isenta de contradições obviamente, pois escrever a História é um processo complexo) desde a direcção revolucionária até as massas trabalhadoras do campo e da cidade. Um longo aprendizado, com avanços e recuos, tem ainda que ser percorrido pelo povo de um país que, após séculos de colonialismo, foi submetido à hemorragia de recursos materiais e humanos por cerca de 100 anos de imperialismo norte-americano e de tentativa de lavagem cerebral pelos “media” apátridas e vendidos à finança transnacional.
Finalmente, haveria que dizer que a Venezuela bolivariana encontrou uma resposta criativa para o dilema histórico: transição ao socialismo num só país ou aposta prioritária nos complexos processos transformadores regionais. A revolução bolivariana responde a isto conjugando os esforços para impulsionar a transição ao socialismo no seu país (onde já foi possível a ascensão ao poder político, e parcialmente económico e mediático, pelas forças de esquerda e anti-imperialistas), apoiando a integração sócio/económica regional, buscando a unidade possível entre projectos que tenham um mínimo denominador comum compatível num certo período histórico.
No plano económico, o petróleo e todos os recursos naturais do país foram nacionalizados ou funcionalmente recuperados, as empresas de extração/transformação têm comparticipação maioritária do Estado. Importantes empresas mistas foram construídas entre o estado venezuelano e a Rússia, a Bielorrússia, a China, o Irão, a Argentina e o Brasil. A mais importante empresa siderúrgica, a SIDOR foi nacionalizada com importante participação dos trabalhadores; os meios de transporte, comunicações e de fornecimento energético foram igualmente nacionalizados bem como empresas da indústria de cimento, de plásticos, de produção alimentícia. Além disso, um canal de televisão e inúmeras rádios comunitárias passaram ao sector público. Está em curso um processo de controlo pelo Estado do comércio externo que necessita ser completado; importantes desenvolvimentos estão igualmente em curso no campo de uma reforma agrária faseada. “Last but not least”, um dos mais importantes bancos do país, o Banco da Venezuela (antes pertencente ao grupo Santander) passou para as mãos do Estado.
Pensamos que a grande questão ainda não resolvida (e indispensável para travar a desestabilização financeira e viabilizar a transição ao socialismo), será a nacionalização completa da Banca, sob controlo dos órgãos técnicos dos trabalhadores, medida que ainda não foi possível ser tomada devido principalmente à sua complexidade no momento actual. Por outro lado é fundamental, no quadro das economias sul americanas em integração (Mercosur), que a Venezuela seja aí uma força estrategicamente presente, por um lado; por outro lado é também importante para o país, para que a sua economia fique menos exposta aos ataques financeiros do neoliberalismo imperialista e possa se defender melhor.
É no entanto, e para já, importantíssimo que a Venezuela se tenha desconectado do FMI e do Banco Mundial, e tenha lançado o projecto do Banco do Sul, de fomento produtivo. A aliança com os governos progressistas ou neodesenvolvimentistas da região que apostaram numa integração regional produtiva é uma aposta estratégica e realista do governo bolivariano. É necessário referir ainda que, após 14 anos de processo revolucionário bolivariano e chavista (num país onde a pobreza e a extrema pobreza atingiam mais de 60% da população), a Venezuela apresenta já os índices sociais, educacionais e culturais mais avançados do continente (à excepção de Cuba, no âmbito da saúde), sendo que no âmbito editorial está entre os melhores do mundo, nos planos quantitativo e sobretudo qualitativo. Aí se publica também Marx (e os marxistas latinoamericanos) e se fazem debates na televisão sobre a sua obra.
Referindo apenas um exemplo, a cooperação e o entendimento da Venezuela com os governos nacional/desenvolvimentistas do Brasil, no campo económico, da complementaridade comercial e da vigilância e defesa comum do importante território estratégico da Amazónia, não impede que as organizações políticas no poder na Venezuela mantenham relações de cooperação estreita com os movimentos sociais e forças de esquerda brasileiras que, criticamente, apontam os óbvios limites históricos do neodesenvolvimentismo nacional/burguês e buscam acumular forças (sem isolarem-se) para viabilizar um outro projecto social, sustentado nas classes e camadas trabalhadoras e seus aliados no campo cultural. Bastaria citar o apoio e colaboração da Venezuela com o MST brasileiro, principalmente a partir de 2003, aquando do fórum social de Porto Alegre, com a visita de Hugo Chávez a assentamentos cooperativos deste movimento social. Nesta ocasião foram estabelecidos acordos e protocolos de compra pela Venezuela de sementes e outros produtos elaborados nas cooperativas fundadas pelo movimento, após ocupação de terras não utilizadas produtivamente. Esta cooperação permanece viva e actuante sob o governo de esquerda, popular e chavista de Nicolas Maduro. Dirigentes e quadros do MST têm, por sua vez, participado na Venezuela no planeamento da reforma agrária nesse país. Naturalmente, tais situações, fruto do peso da questão nacional/regional e de uma alteração progressiva da correlação de forças geral face às antigas forças políticas do entreguismo oligárquico pró-imperialista (muitíssimo descredibilizadas), só são possíveis actualmente no contexto da América Latina.
Por outro lado, a direcção bolivariana procura tecer laços de colaboração estratégica com importantes países de outros continentes que sigam uma linha de independência, de defesa das suas riquezas e de contenção do imperialismo, no quadro do mundo multipolar que já emergiu e necessita consolidar-se. É o caso da cooperação estratégica, que já referimos, da Venezuela com a Rússia, a China, a Bielorrússia e o Irão, no domínio da defesa e de projectos económicos comuns. Trata-se obviamente de uma articulação mutuamente vantajosa, sendo evidente que Rússia, China e Irão têm interesse no fortalecimento multifacetado da Venezuela, no quadro da contenção ao imperialismo e da emergência de um mundo multipolar.
Efectivamente, no quadro do capitalismo/neoliberal globalizado em que vivemos, a formação de frentes político-económico-culturais anti-imperialistas (e/ou de contenção do imperialismo) é uma vertente indispensável para alterar a correlação de forças à escala geo-estratégica, criando melhores condições para a sustentabilidade e defesa de processos de emancipação de povos que adoptaram projectos de transição, complexa, ao socialismo. A luta das classes subalternas em cada país e a luta pela transição ao socialismo são absolutamente indissociáveis da luta anti-imperialista.
O carácter polarizante do capitalismo/imperialismo conduz a contradições objectivas e antagónicas com antigas potências oriundas das periferias que conseguiram re-emergir, estruturadas histórica e culturalmente à volta da defesa determinada dos patrimónios nacionais e geoestratégicos. Ainda que se trate de países capitalistas (um capitalismo onde os seus Estados não se diluem na “globalização”, antes mantêm um papel importante como indutores económicos, defensores das culturas nacionais, etc.), os povos, as classes trabalhadoras do mundo, não podem permanecer neutros, estáticos e indiferentes face às evoluções globais que estamos a assistir (com a ofensiva predatória do único imperialismo realmente existente, os E.U.A. e seus aliados) nem à questão fundamental de saber identificar as alianças possíveis e o inimigo estratégico.
Uma das perspectivas estratégica dos povos, nesse momento histórico decisivo, deve ser a contenção e o debilitamento multifacetado e progressivo do campo de acção, influência económica e intervenção político/militar do imperialismo anglo-americano-sionista, o que passa também pelo esforço para a consolidação complexa de um mundo multipolar, ao abrigo do qual vários processos revolucionários e de transição ao socialismo poderão efectuar a sua trajectória com melhores probabilidades.
No que respeita ainda à Venezuela bolivariana, podemos seguramente dizer que a extraordinária riqueza energética que jaz no seu subsolo, a fertilidade das suas terras e a criatividade revolucionária do seu povo consciente, são trunfos seguros que pavimentam a sua via em direcção à transição socialista. Na realidade, se a resistência ao imperialismo e à globalização neoliberal é uma tarefa de todos os povos (em diversas condições), pensamos que, face ao peso das grandes transnacionais e do capital financeiro globalizado (e apesar da sua crise sistémica prolongada), os projectos de transição ao socialismo estarão ao alcance de ser levados a cabo, neste momento histórico, principalmente em países e regiões próximas e semelhantes que disponham de suficiente extensão territorial e amplo mercado interno, terras férteis e riquezas significativas, domínio das tecnologias económico/produtivas e meios culturais/comunicacionais suficientes para implementar um desenvolvimento progressivamente em desconexão com os centros financeiros imperialistas, capacidade de erguer um aparelho de defesa nacional moderno, coeso e eficaz, dispondo de alianças estratégicas, tudo isto entrelaçado à capacidade de mobilização de amplos sectores da população para eventuais tarefas de vigilância, além da permanente mobilização política e ideológica numa perspectiva abrangente.
Na Bolívia e no Equador, processos nacional/populares, inspirados, em parte, do exemplo venezuelano, mas articulados nas realidades locais (em particular a questão da opressão e das tradições culturais dos povos indígenas andinos, maioritários nesses países) emergiram durante os anos seguintes, combinando levantamentos populares contra regimes neoliberais e pró-imperialistas com a exigência de eleições gerais transparentes. Tais lutas conduziram, através de trajectórias muito complexas, ao poder, lideranças populares que desencadearam processos de recuperação das riquezas nacionais e do papel do Estado na economia, encetando ao mesmo tempo uma caminhada visando preparar as condições para uma dinâmica de transição ao socialismo, que aí toma a designação de projecto de “socialismo comunitário”, pela influência das tradições dos povos quechuas e aymaras. É fundado o Estado Plurinacional da Bolívia, após a eleição do primeiro presidente índio da história americana na pessoa do dirigente do MAS, Evo Morales Ayma, de etnia aymará, dispondo de amplo consenso popular e multiétnico. São grandes avanços civilizacionais de povos dantes oprimidos e desprezados pelas “elites capatazes”. Numa outra ocasião voltaremos mais em detalhe a esses processos e suas realizações.
A possibilidade destas regiões atingirem efectivamente uma sociedade de características socialistas não está predederminada por nenhum guião teórico/organizativo infalível. Dependerá da capacidade de mobilização dos seus povos e da lucidez, criatividade e determinação das suas lideranças para construir realidades novas, resistindo às pressões imperialistas, articulando as alianças regionais conforme as linhas de demarcação possíveis e necessárias face ao imperialismo. Nessa fase histórica, a linha de demarcação fundamental que pode justificar alianças básicas entre países com projectos semelhantes ou relativamente diversos é aquela que separa o bloco daqueles que querem implementar uma integração económico/cultural latinoamericana daqueles que, recusando tal integração, pretendem estabelecer novas estruturas de dependência do imperialismo norte-americano que funcionem como autênticos coletes de força sobre as suas economias. Nessa perspectiva, há que referir a notável acção estratégica e anti-imperialista de Hugo Chávez quando, em 2005, conseguiu estabelecer uma aliança com os governos da Argentina, Brasil e Uruguai para derrotar o sinistro projecto imperialista da ALCA com que Bush pretendia manietar a América do Sul, repetindo o colete de forças anteriormente imposto ao México (NAFTA) e cujos resultados foram a devastação económico-social deste país, a miséria e a emigração massiva. Há que ressaltar ainda, no legado estratégico de Chávez, a criação (pela primeira vez na História) de estruturas políticas autenticamente representativas latinoamericanas e caribenhas, como a UNASUR e, posteriormente, a CELAC, das quais os E.U.A. estão excluídos. A nível do Mercosur, o presidente Nicolas Maduro acaba de propor a instituição do “Mercosur Obrero” que pretende estruturar, com direitos próprios, todas as empresas falidas dos países membros que foram recuperadas pelos seus operários, assumindo a forma de cooperativas.
Não poderíamos deixar de referir a histórica criação da ALBA (pela Venezuela chavista, Cuba, e a seguir, pela Bolívia de Evo Morales), organização económico/comercial (com moeda própria, o SUCRE), estruturada já agora entre 10 países latino americanos e caribenhos, na qual a competitividade é substituída pela complementaridade, e os valores de troca vão sendo progressivamente substituídos por valores de uso. (A título de exemplo, a Venezuela fornece petróleo a Cuba que por sua vez retribui com fornecimento de recursos médicos e para-médicos, materiais e humanos. Esta metodologia já existia, de forma não sistematizada, entre os dois países desde a vitória de Chavez). Naturalmente que a ALBA ainda terá que percorrer um longo caminho de consolidação e ampliação mas o seu significado e projecção socialista para o futuro é enorme.
Mais ainda, a criação da rede de televisão latinoamericana,Telesur, fundada e apoiada economicamente pela Venezuela, Cuba, Equador, Bolívia e Argentina, constitui um instrumento de excepcional importância na difusão a larga escala de uma outra visão do mundo, progressista, popular e anti-imperialista, através dos seus noticiários, reportagens e entrevistas mas também pela sua programação cultural e relatos históricos das lutas dos povos e das classes trabalhadoras. A Telesur é o principal instrumento das forças progressistas, a nível mundial, para fornecer uma alternativa, de nível elevado, à medíocre, tendenciosa e maniqueísta cultura (e “informação”) pró- capitalista/imperialista dominante. A Telesur iniciará brevemente emissões em inglês. (A ela teremos, naturalmente, que acrescentar o importante trabalho das estações Russia Today e da iraniana Press TV, ambas em inglês.)
Será que todos esses avanços acima referidos poderiam ser subestimados, no mundo actual, a partir de uma perspectiva progressista e revolucionária?
A Venezuela bolivariana e chavista compreendeu que, na época da globalização neoliberal imperialista e seus enormes constrangimentos, a transição ao socialismo só poderá ser encetada se um país estiver inserido em redes de alianças multifacetadas, regionais e internacionais, englobando países com projectos semelhantes, ou diversos mas convergentes, em torno de linhas demarcatórias básicas face ao projecto de dominação global do imperialismo; o qual implica, como referimos, a imposição de um colete de forças neoliberal e dependente a todos os povos e países e a captura das suas principais reservas energéticas. Nessa perspectiva, a recente cimeira da CELAC em Cuba, o balanço feito dos seus resultados e as decisões que ali foram tomadas no campo do incremento da cooperação económica e dos investimentos mútuos, representam um significativo avanço na integração regional, apesar dos obstáculos que ainda subsistem. É sabido que entre os membros da CELAC existem países cujos governos tem uma orientação geral de direita. Mas só o facto de que tais governos tenham se visto obrigados a aceitar a exclusão dos Estados Unidos da constituição dessa organização mostra a força determinante dos governos anti-imperialistas e integracionistas no continente, ou seja, a alteração da correlação de forças, reflectindo os avanços das lutas e da consciência progressista dos povos latinoamericanos, em geral.
Conclusão
De certa forma, no que se refere ao rumo das lutas emancipatórias dos povos, iniciamos o novo século de maneira, até certo ponto, semelhante àquela com que havíamos iniciado o século XX. Ou seja, num mundo configurado e dominado pelo imperialismo central, é nas vastas regiões periféricas, nos “elos fracos” deste sistema-mundo, onde o enraizamento das instituições da "democracia burguesa" é relativamente superficial, onde a situação social das massas populares é frequentemente dramática e onde existe uma consciência nacional/anti-imperialista em amplos sectores da população, é aí que tendem a emergir formas de contestação radicalizadas, levando no bojo a potencialidade de rupturas sistémicas. Tal não se produz obviamente de forma constante e linear, mas passando por períodos prolongados onde a sensibilidade política das massas oscila entre a passividade e a radicalidade pontual. A questão fundamental reside na emergência do factor subjectivo/organizativo abrangente, impulsionado por lideranças adequadas a cada momento histórico. O desenvolvimento e generalização das lutas periféricas criará uma situação que obrigará os países imperialistas a intensificar, mais ainda, a espoliação das suas massas trabalhadoras internas. Isto irá gerar, através de processos longos e complexos, condições para a superação a prazo da ideologia burguesa eurocêntrica no seio mesmo de amplos sectores populares dos países centrais, abrindo caminhos de criatividade renovada para processos de luta anti-sistémicos. Não nos esqueçamos, porém, que nos países centrais existe um “caldo de cultura” latente, baseado na pseudo superioridade do Ocidente que, em períodos de crise e desespero, pode alimentar a reemergência das ideologias fascizantes.
A partir de fins da década de 80 (já em plena vaga thatcherista neoliberal, surgida como resposta do capitalismo à sua estagnação) e durante a década de 90 do século XX, as teorias do "fim da história" colhiam alguma verosimilhança nos espíritos mais impressionáveis. A globalização neo-liberal assemelhava-se a um rolo compressor triunfante e o potencial militar do imperialismo norte-americano parecia invencível e capaz de bloquear qualquer tentativa séria de resistência. No entanto, aqui e ali, foram emergindo focos de contestação que, no virar do século, se alargaram. A crise económico-financeira de 1997/98, que varreu os "quatro tigres asiáticos" (apresentados como exemplos de sucesso do seguidismo à outrance das receitas neo-liberais) começava já a toldar seriamente o horizonte. A crise financeira/sistémica iniciada nos países centrais em 2007/2008, demonstrou cabalmente a irracionalidade do sistema. Mas este, beneficiando de uma favorável correlação de forças político/económico/mediática (engendrada ao longo de décadas) vai conseguindo impor aos povos a sua pseudo-saída à crise através da intensificação do apartheid social e da exploração do trabalho, do empobrecimento e da confiscação dos direitos sociais adquiridos no espaço público, sob a chantagem de uma dívida, em grande parte ilegítima. Dívida ilegítima que é possível ser repudiada, como o demonstrou há 6 anos o governo popular do Equador.
A cada nova fase aguda da sua crise, o capitalismo tenta regressar “pontualmente” às suas formas de acumulação primitiva (como a expropriação dos baldios no fim da Idade Média), deixando amplas populações na miséria e obrigadas a aceitar condições de trabalho iníquas.
O novo século começou já sob o signo de resistências multifacetadas. A estagnação económica permanente do sistema (e a tentativa de superá-la através da regressão social), o desemprego massivo, a especulação financeira e seus efeitos devastadores, as contradições e resistências às agressões militares imperialistas, a emergência de um mundo multipolar, a situação já dificilmente sustentável do dólar e o enorme défice da balança comercial norte-americana são realidades incontornáveis cujos efeitos já se fazem sentir, contraditoriamente, dentro dos próprios países imperialistas.
Hoje encontramo-nos numa situação em que, como referimos, se vai esgotando progressivamente a anterior mensagem euforicamente optimista/manipuladora dos grandes "media" a propósito das "imensas oportunidades" criadas pela globalização neo-liberal (que eles procuram depois substituir pela mensagem do fatalismo dos “sacrifícios devidos ao recrudescimento da competição internacional” e do pagamento da dívida) e vai se instalando, ainda que confusamente (sem clareza maioritária), no seio de sectores populares e médios, mesmo nos países desenvolvidos, a ideia do fracasso da “globalização neoliberal” como paradigma capaz de trazer perspectivas favoráveis às suas vidas. Ao invés disso, o que transparece cada vez mais é a sensação de que esta “globalização” veio trazer muito mais constrangimentos e uma vida muito mais precária e insegura. Por outro lado, a sucessão de guerras de hegemonia e de pilhagem energética, desencadeadas com pretextos cada vez mais insustentáveis, pelo Estado norte-americano, veio colocar os povos diante da realidade de que vivemos num mundo muito mais perigoso do que aquele que existia durante a chamada "guerra fria".
Ao contrário do que previam os medíocres papagaios do Pentágono instalados nos "mass media" de diversos países, o imperialismo norte-americano e seus aliados estão a encontrar fortíssimas resistências na sua tentativa de superar as suas gravíssimas contradições económicas através do assalto às reservas energéticas do planeta, situadas, em grande parte, nas regiões do Médio Oriente, da Ásia Central e da América Latina. A tremenda resistência às tropas e hordas invasoras oposta por inúmeros povos (entre os quais avulta o povo iraniano, o povo sírio e o povo palestino), no Médio Oriente, mostra mais uma vez que, num mundo ainda dominado economicamente pelo imperialismo, toda resistência de cariz nacional-popular é, objectiva e tendencialmente, uma luta de classes dirigida contra as burguesias imperialistas e contribui para derrotar o seu projecto decisivo que é o de assenhorar-se de grande parte das reservas energéticas em petróleo, gás natural e biodiversidade do planeta, impondo por toda parte oligarquias vassalas.
Por mais que os grandes "media" insistam em propagar a visão do mundo do maniqueísmo occidentalista que procura sistematicamente diabolizar as líderanças dos países que resistem à vassalagem, que recuperam suas riquezas e suas culturas e procuram implementar uma vida mais digna e mais justa para os seus povos (maniqueísmo cujo objectivo é justificar novas escaladas militaristas), a realidade vai trazendo progressivamente à tona a tendência para o impasse político-militar, o desgaste moral e a colossal hemorragia económico/financeira a que conduziram a série de intervenções imperialistas dos últimos 15 anos. Embora tenham custado imensos sofrimentos aos povos.
É importante também referir, nessa perspectiva, como um contributo extremamente positivo às lutas dos povos, as denúncias e o desmascaramento eficaz dos sofismas, das agressões e dos crimes imperialistas, efectuados por figuras eticamente progressistas e dissidentes do mundo anglo-saxão como Julian Assange, Edward Snowden e o soldado Manning.
Na realidade, uma das questões de fundo reside no facto de que a colossal capacidade de destruição das forças armadas norte-americanas não implica, nem de perto nem de longe, capacidade de ocupação e de gestão dos territórios ambicionados para a pilhagem estratégica. Além disso, existe um limite intransponível para uma eventual tentativa de “solução final”: o imperialismo não dispõe do monopólio das armas nucleares nem das tecnologias com elas relacionadas.
A determinação nacional de uma potência re-emergente como a Rússia (onde os neo-liberais e pró-ocidentais sofreram um processo de tremendo descrédito iniciado com o choque psicológico/cultural produzido no povo russo pelo cínico e brutal bombardeamento da Servia pelos E.U.A., após a divisão da Jugoslávia por ele instigada), possuidora de um arsenal nuclear muito avançado tecnologicamente e rapidamente operacional, coloca o imperialismo diante de um limite que não pode transpor.
Nas duas últimas décadas, o imperialismo norte-americano julgou abertas as vias para o controlo do mundo como numa teia de ferro ao abrigo da qual se implantaria eternamente a globalização predadora do capitalismo.
Mas este projecto tem obstáculos decisivos à sua frente. O mundo é demasiado vasto e demasiado complexo para ser controlado e a consciência dos povos vai se iluminando, de forma naturalmente complexa, não linear e heterogénea. O património das lutas revolucionárias da humanidade (com seus avanços e recuos) mantém-se vivo. Novas lideranças vão se erguendo, fazendo o balanço das experiências passadas, abrindo novos caminhos apoiados na resistência e na criatividade das massas, segundo cada contexto histórico.
Os Estados Unidos apesar dos seus meios militares, financeiros e mediáticos, entraram estruturalmente em declínio, o qual será certamente tortuoso, complexo e eivado de grandes perigos para a humanidade. A ambição de desagregar o sistema de Estados-nação (preservando apenas o punhado de Estados imperialistas) vai se revelando uma meta impossível. Tão pouco é realizável o sonho imperialista de impor duravelmente oligarquias vassalas em todos os países e regiões do mundo pois a questão nacional se mantém viva e pode ser mobilizada por lideranças populares.
Ao contrário do império romano, que, no seu período de maturidade, desfrutando de vitalidade nos seus mecanismos económicos, podia oferecer a sectores dos povos conquistados uma certa melhoria dos seus padrões de vida e de segurança em troca da submissão (o que favoreceu a vontade de romanização em alguns povos), o imperialismo norte-americano, em fase de declínio estrutural e necessitando intensificar a espoliação, nada mais tem a oferecer aos povos que não seja a sua globalização do desemprego e da precariedade, da pobreza, da miséria, do intervencionismo e da humilhação nacional. Este é o verdadeiro e decisivo quadro de fundo estrutural que balizará o futuro da humanidade, numa encruzilhada histórica cujo desenlace final levará várias décadas.
15 de Fevereiro de 2014
P.S. Os acontecimentos mundiais seguintes a esta data justificam uma análise: na Ucrânia o imperialismo norte-americano e seus aliados da União Europeia, apoiando-se em partidos e sectores locais assumidamente nazi-fascistas (como o Svoboda e o Sector Direito), aliados à direita neoliberal, promoveram e desencadearam o golpe de estado contra o governo legitimamente eleito de Yanukovich. Este, embora muito ligado à corrupção, mantinha uma política externa realista, opondo-se a uma aliança do país com a NATO.
O que se seguiu, após a deposição do presidente, foi a repressão brutal (incluindo assassinatos contra figuras e sectores democráticos e progressistas, incluindo o Partido Comunista Ucraniano que foi, na prática, interditado), a anunciada interdição da língua e secundarização da cultura russas para as populações da região leste do país e a formação de esquadrões armados de ideologia neo-nazi, integrados no “ministério do interior”. Ao mesmo tempo, os novos dirigentes do golpe colocavam em causa a concessão negociada pelo Estado ucraniano da base de Sevastopol na Crimeia ao governo russo e anunciavam a sua entrada “futura” na NATO. Nos dias seguintes, vários responsáveis políticos dos E.U.A. e da Europa Ocidental deslocaram-se a Kiev para ungir os seus novos aliados e tomar posse do novo protectorado. Os “media” ocidentais, numa impressionante unanimidade, lançaram uma campanha generalizada de legitimação das “novas autoridades democráticas” (omitindo a sua componente abertamente nazi-fascista) e de demonização da Rússia. Convém lembrar que a Ucrânia se encontra a 8 mil km dos E.U.A., na fronteira russa. Imagine-se o que diriam os “media” ocidentais se a Rússia patrocinasse um agressivo golpe anti-americano no México ou no Canadá…
Sabemos o que se passou a seguir: o governo de V. Putin, diante da confiscação que se preparava da sua base no Mar Negro, interveio no processo, transformando a Crimeia (após referendo que contou com o apoio de mais de 97% da população local), em região da Rússia, como havia sido no passado. Seria bom ainda lembrar que os E.U.A. possuem, no mínimo, seiscentas bases militares no estrangeiro, ou seja, 90 vezes mais do que a Rússia… Percebe-se bem porque tais realidades são ocultadas pelos “mainstream media” aos povos do mundo. Só isto lançaria claridade sobre quem pretende de facto dominar o mundo militarmente…
Desenvolveu-se então uma vaga de movimentos populares autonomistas nas regiões de leste que foram, e estão sendo, brutalmente reprimidos por Kiev, em particular depois da tomada de posse do seu “novo presidente”, após pseudo-eleições. Os mortos contam-se já por milhares, havendo inclusive bombardeamentos das cidades do leste por aviões militares, com o apoio material da NATO e a presença de mercenários. Os refugiados desta tentativa de extermínio dos cidadãos ucranianos do leste já ultrapassam os 300 mil, na Rússia. E que pensar do facto de que, poucas horas depois do derrube do avião da Malasyan Airlines, o ministro do interior ucraniano, dirigente de um partido assumidamente neonazi, ter afirmado categoricamente (antes de qualquer investigação) que “foram os rebeldes pró-russos que o derrubaram” sendo logo seguido pelos “mainstream media” ocidentais? Duas semanas depois, quando foi se tornando óbvio que os militantes autonomistas não dispunham de um míssil capaz de atingir um avião a 10 km de altitude, esses “media” logo “emendaram” a mão, garantindo que “foi a Rússia que abateu o avião”! Será essa a seriedade jornalística que os povos merecem??
Não tendo conseguido o seu principal objectivo (a base naval russa na Crimeia), a NATO prepara-se para instalar-se no país. Por sua vez, o FMI já confirmou um empréstimo à Ucrânia através do qual irá impor, como consequência, a “austeridade” eterna ao povo ucraniano (do leste e do oeste…) e o saqueio do país através das grandes empresas ocidentais.
Pouco depois, iniciava-se na Venezuela bolivariana uma nova tentativa de golpe de estado prolongado, desta feita utilizando meios de sistemática violência, praticada por sectores médios vinculados à extrema direita nas grandes cidades, bem organizados e apoiados financeiramente pelos E.U.A., buscando a paralisação da vida pública e a desestabilização institucional. Foi praticado o assassinato selectivo de vários líderes de base dos movimentos populares, com a utilização de para-militares vindos da Colômbia. Uma enorme campanha mediática foi simultaneamente desencadeada contra a Venezuela bolivariana. Face a isto, cobra cada vez mais importância a existência de “médios” alternativos e progressistas, com amplo raio de alcance, como a Telesur.
Fracassados esses intentos, graças à firmeza e prestígio popular do governo revolucionário e ao alto nível de consciência e mobilização já atingidos pela maioria do povo venezuelano, uma nova intentona golpista é ensaiada através da organização do magnicídio, ou seja, do assassinato do presidente constitucional, Nicolas Maduro. Esta nova conspiração foi descoberta e sustida a tempo pelos serviços secretos de defesa do Estado, os quais revelaram, através de conversas telefónicas, imagens e correio electrónico captados, o carácter de extrema direita das personalidades conspiradoras, inclusive na utilização de linguagem fundamentalista própria do obscurantismo fascista. O apoio da UNASUR sul americana foi importantíssimo para a Venezuela.
Estes acontecimentos demonstram dois fenómenos interligados:
1) O imperialismo norte-americano em decadência multifacetada, atingida a etapa de crise estrutural e central do sistema que tenta manter e projectar artificialmente (o capitalismo na sua fase de putrefacção, ou seja, o neoliberalismo financeirizado), já não hesita em aliar-se ao fascismo puro e duro (desde que adopte o “modelo” financeiro neoliberal), continuando a servir-se da retórica cada vez mais cínica do “direito internacional” e a utilizar toda a classe de sofismas e epítetos diabolizantes para desqualificar os resistentes. Conta para isto, obviamente, com a manipulação e a obediência corrupta dos seus “media” colonizados. Entramos claramente na fase do “decadentismo militante” referida por Georg Lukács, adaptada agora à época da “globalização neoliberal”, mas conservando o odor nauseabundo do fascismo, anos 1930.
2) O imperialismo, chegado a esta fase de crise estrutural, não pode de forma alguma aceitar um mundo multipolar, sobretudo face à re-emergência de potências que, sendo capitalistas, conservam um forte papel multifacetado do Estado (indutor da economia, organizador da defesa nacional), defendem intrangisentemente os seus recursos naturais energéticos e não aceitam o neo-liberalismo entreguista, nem a dissolução das suas tradições e culturas nacionais. É o caso, principalmente, da Rússia, China e Irão. E mais ainda quando algumas dessas potências conseguem atingir um raio considerável de influência internacional e possuem forças armadas capazes de enfrentar as ameaças. O capitalismo imperialista, em crise estrutural profunda, necessita mais do que nunca manter uma potência única e poderosa que seja capaz de disciplinar a regressão civilizacional e o confisco dos espaços públicos “necessários” à sua sobrevivência, assegurar o assalto militar aos recursos energéticos planetários e a repressão/intimidação da resistência dos povos explorados e oprimidos.
Baseando-se nessa realidade, importantes pensadores marxistas contemporâneos como Samir Amin, Atílio Boron, Garcia Linera e tantos outros, grandes líderes revolucionários como Fidel Castro e Hugo Chavez, nos chamaram a atenção para a importância estratégica decisiva da emergência do mundo multipolar, no quadro da resistência multifacetada dos povos ao imperialismo em crise estrutural e para o papel das alianças dos processos progressistas e revolucionários com as potências emergentes, em contradição e contenção do imperialismo, mantendo, obviamente, a independência e especificidade dos seus projectos sócio-económicos e sócio-políticos. Trata-se de uma questão estratégica para os povos em luta, os quais, nas suas alianças, têm que também ter em conta os desfasamentos no tempo histórico, uma questão que, mutatis mutandis, já nos haviam assinalado os grandes revolucionários: o objectivo é agir no sentido de limitar e condicionar o inimigo fundamental, a cada fase específica do processo de luta, no quadro do desenvolvimento histórico.
Junho de 2014
Notas sobre uma estratégia de alianças dos povos face à nova intensificação do intervencionismo imperialista
Ano de 2013: o imperialismo norte-americano movimenta os seus porta aviões e naves carregadas de mísseis cruzeiro para o Mediterrâneo. Tratava-se de destruir a Síria, uma vez que os seus mercenários e facções religiosas manipuladas (“rebeldes”) estavam na rota do fracasso. Como sabemos, o Irão e a Síria (apoiados pela Rússia) são os dois estados nacionalistas que impedem o imperialismo de concretizar o seu grande projecto estratégico (após devastar o Iraque e a Líbia) de “redesenhar o mapa do médio oriente”, deixando livre o campo para o assalto às fontes energéticas de toda a região, assistido pelos seus aliados saudita e sionista. Paradoxalmente (ou talvez não…), a Síria é o estado da região que melhor respeita a laicidade e a prática de diferentes religiões (muçulmanos, cristãos, druzos, etc.)…
Mas a Rússia, numa decisão estratégica, envia forças navais para a região e apoia militarmente a forte mobilização do exército iraniano em aliança com a Síria. Após duas semanas de hesitações o imperialismo norte-americano percebe que o preço a pagar pela agressão seria enorme (incluindo a perda do seu aliado saudita) sem que o resultado fosse aquele que almejava. O Irão, que seria o próximo a agredir após a Síria, sairia provavelmente reforçado desta aventura imperialista. Salvando a face com justificações diplomáticas, os E.U.A. são obrigados a recuar, desistindo, por enquanto, desta intervenção militar.
Essa derrota parcial levou os estrategas do imperialismo a perceber 3 realidades: 1) o Irão e a Síria seriam (e são) ossos duríssimos de roer e seus povos estavam mobilizados e preparados; 2) A Rússia estava claramente de volta à esfera internacional, disposta a defender os seus aliados e interesses, após anos de reorganização do seu exército e da modernização tecnológica do arsenal nuclear soviético, no seguimento da ruptura provocada da Jugoslávia e dos bombardeamentos selvagens sobre Sérvia pela NATO que constituíram, como dissemos, um auténtico choque nacional para o povo russo e determinaram a ascensão de V. Putin e dos nacionalistas ao poder e ao isolamento dos liberais ocidentalo-entreguistas na Rússia; 3) Os desenvolvimentos da revolução bolivariana na Venezuela e sua influência diversificada na região representavam um enorme perigo para os interesses imperialistas.
Ou seja, tendo já compreendido o plano inclinado em que historicamente começavam a situar-se (declínio industrial, enorme dívida, crise hegemónica do dólar, resistência dos povos, emergência de uma multipolaridade, etc.), os estrategas do imperialismo (que obviamente não pensam negociar pacificamente o seu declínio…) decidem jogar todas as suas cartas contra as forças que agora obstaculizam mais seriamente o seu plano de travagem do declínio e revitalização. E isto, na sua perspectiva, só se poderia realizar através de uma ofensiva militarista multifacetada (correndo os riscos que isto implica), contando com os trunfos mais importantes de que dispõem, ou seja, a sua força militar-tecnológica, o seu poderio mediático abrumador e a capacidade desestabilizadora (e corruptora) do sistema financeiro que controlam. Os seus aliados nos diversos países passariam a incluir, doravante, sem complexos, movimentos abertamente nazi-fascistas.
O golpe de estado de extrema-direita perpetrado na Ucrânia com ingerência decisiva da NATO, o seu carácter claramente revanchista, a agressão militar, com bonbardeamentos sobre populações civis de origem e idioma russo no leste do país, o crime nazi de Odessa, demonstraram que o imperialismo não perdeu tempo e decidiu jogar todas as suas cartas e, inclusive, colocar a humanidade em risco de extinção.
O genocídio do povo palestino pelo estado nazi-sionista de Israel, perpetrado à luz do dia, e diante das câmaras de televisão, com o apoio financeiro dos E.U.A. (e de sua demonização sofista dos resistentes à ocupação sionista), sob os silêncios cúmplices da “democracias” europeias que assistem impassíveis a este novo Gueto de Varsóvia, é bem o sinal da encruzilhada histórica em que entramos. E a prova evidente de que a chamada “civilização democrática ocidental” não passa de uma fraude histórica. Como bem visualizou Lukács, o fascismo é apenas a outra face da moeda…
Face a esta realidade, que tenta perpetuar a globalização neoliberal imperialista (em crise) através de um golpe militar geoestratégico, os povos, as classes exploradas e subalternas, as forças progressistas e revolucionárias dos diversos países e regiões já vão esboçando a sua estratégia de resistência e de alianças. Parece-nos óbvio que face à ofensiva global do imperialismo, os povos necessitam de uma estratégia multifacetada. Na actual correlação de forças, sob a globalização financeira, nenhum povo, nenhum país, se libertará isoladamente através de uma hipotética acção de esquerda que aplique, perfeitamente, a curto prazo, a totalidade de um programa socialista. Sob a pressão multifacetada da desestabilização/sabotagem financeira e das intervenções militares directas e indirectas do imperialismo, uma tal sociedade, passada a fase inicial, rapidamente se transformaria num socialismo de grande pobreza, isolado, tendo que exercer pressão sobre sectores do próprio povo, acabando por ceder a um eventual golpe contra-revolucionário engendrado pelo desespero e/ou intervenção externa. E, como a história o provou, a “revolução mundial” não se faz por decreto, independentemente das relações de força, muito menos simultaneamente ou por contágio. O processo multifacetado de emancipação dos povos tem que passar por uma estratégia convergente das forças anti-imperialistas. Mas é também óbvio que, face à crise global do capitalismo e à contra-ofensiva imperialista, aqueles governos efectivamente de esquerda já instalados (e seus povos organizados) devem procurar dinamizar os seu processos de transição ao socialismo, coordenando-os entre si, ao mesmo tempo que devem buscar intensificar a unidade estratégica e o diálogo progressivo e construtivo entre povos e países que (apesar dos desfasamentos existentes), se empenham numa integração económico/comercial, produtiva e socialmente inclusiva, a nível regional, como é o caso de parte significativa da América Latina.
Pensamos que, face ao rolo compressor imperialista, as alianças multifacetadas entre forças progressistas, num sentido lato, têm hoje que se estruturar tendencialmente à volta de duas linhas de unidade estratégicas. A primeira delas é a linha (ou o denominador comum) da aliança dos povos em luta, dos governos com projectos (e medidas) de esquerda, com as importantes nações que seguem orientações político-militares de contenção/debilitamento do imperialismo norte-americano, na perspectiva de um mundo multipolar; esta aliança deve abranger, no plano geral, outras nações que simplesmente buscam fortalecer as funções do Estado na indução do desenvolvimento, na defesa nacional, que recusam a diluição do seu estado (como pretende o imperialismo), que fomentam as culturas nacionais e procuram formas de integração económica regional.
Esta será a primeira linha de alianças estratégicas que separam (apesar das heterogeneidades e contradições) o movimento geral das forças contrárias ao imperialismo e à regressão histórica, daquelas nações que seguem atreladas ao comboio do imperialismo, por vassalagem, por colaboracionismo, pelo interesse de suas elites intermediárias ou, simplesmente, por arrastamento. Esta aliança impõe-se, obviamente, pela própria complexidade multifacetada da história humana em movimento.
A segunda linha, mais elevada, de unidade é aquela que torna viáveis e necessárias as alianças entre povos e nações que lograram instalar governos efectivamente de esquerda, com projectos de transição ao socialismo e que já tomaram ou que vão tomando medidas politico/económicas e sociais no sentido de atingir esse objectivo. Um objectivo que, como referimos, não poderá ser totalmente atingido isoladamente, por um só povo, mas que terá que procurar ter em linha de conta, nos seus ritmos, os avanços de outros povos, de preferência regionais, com objectivos semelhantes. Essa segunda linha de alianças (cujo melhor exemplo é a ALBA, o mais importante projecto de acumulação de forças socialistas, no terreno), é naturalmente mais elevada e avançada do que a primeira mas, em termos histórico/estratégicos, não há (nem deve, artificialmente, haver), contradições antagónicas entre uma e outra.
Das lutas progressistas e revolucionárias de povos, da articulação dialéctica entre alianças anti-imperialistas multifacetadas e alianças de processos já estabelecidos de transição socialista, entre nações e povos em luta, dependerá o futuro da humanidade, chegada a esta encruzilhada histórica decisiva, cujos caminhos antagónicos serão, mais do que nunca, socialismo ou barbárie.
Agosto de 2014
(*) Ronaldo Fonseca é um ensaísta marxista de origem brasileira (Minas Gerais), residente em Portugal desde 1975. É licenciado em Ciências Sociais pela Universidade de Praga, tem o mestrado em Sociologia na Universidade de Paris-Nanterre e o doutoramento de 3º ciclo em "Economia e Sociedade" na Universidade de Paris-VIII (Vincennes). Foi professor na área de História e Ciências Sociais na Universidade do Minho até à contra-reforma educativa dos anos 1980. É autor de várias obras, entre as quais, 'A Questão do Estado na Revolução Portuguesa' (Livros Horizonte, 1983) e 'Marxismo e Globalização' (Campo das Letras, 2002). Foi co-fundador e redator do periódico Nortada, dosdemocratas minhotos, fundador da edição portuguesa de Le Monde Diplomatique, sendo atualmente editor da revista eletrónica ‘O Comuneiro’. Militante, desde a juventude, de movimentos estudantis, operários e populares em diversos países, é ativista do Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Brasil.
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