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O estudo das crises capitalistas na tradição marxista
Remo Moreira Bastos (*)
O presente artigo pretende trazer a contribuição da tradição marxista ao estudo das crises no MCP (1), através de uma revisão acerca da literatura sobre o tema existente na mesma.
Observa-se que a determinação causal tem prevalecido como tônica dominante nos estudos sobre as crises capitalistas, desenvolvidos entre os intelectuais marxistas, desde o final do século XIX. Nesse sentido, alguns privilegiam uma causa determinante para a irrupção das crises, sendo por isso classificados de monocausais, outros sinalizam que as mesmas se devem a uma conjunção de causas conexas e interligadas, enquadrando-se assim entre os pluricausais.
Levando-se em conta as limitações de um trabalho dessa natureza, concentrar-se-á o escopo da revisão da literatura sobre as crises no seio da tradição marxista em quatro autores (dos quais, dois escrevendo juntos), a saber, os economistas Ernest Mandel, belga, Duncan Foley, estadunidense, e Pierre Salama e Jacques Valier, franceses. Busca-se, ao se optar por esses autores, contemplar uma gama maior de abordagens, bem como valer-se do caráter panorâmico da abordagem dos três últimos, os quais sintetizam, em seus textos aqui considerados, os principais aspectos que se pretende cobrir no presente tópico.
De Ernest Mandel, focaremos o capitulo XXV de sua obra A crise do capital – os fatos e sua interpretação marxista (MANDEL, 1990).
O economista belga inicia o capítulo lamentando as explicações monocausais, por parte da teoria marxista, das crises periódicas de superprodução no capitalismo, e apontando as duas grandes escolas que se confrontam nessa discussão: "[...] a que explica as crises pelo subconsumo das massas (a superprodução de bens de consumo) e a que as explica pela superacumulação (insuficiência de lucros para expandir os bens de capital)" (MANDEL, 1990, p. 209). Observa que "Tal discussão não é mais do que uma variante do velho debate entre os partidários de que as crises ocorrem pela «insuficiência da demanda global» e os de que elas ocorrem pela «desproporcionalidade»” (MANDEL, 1990, p. 209).
Para ele, ambas cometem o erro de separar arbitrariamente o que está organicamente conectado, no coração do MPC, a saber, as condições de exploração, que têm lugar na produção, das suas condições de realização, que ocorrem na esfera da circulação. Ilustra, com uma passagem do Livro Terceiro de O Capital, a ênfase que Marx dava à "necessidade de se ligarem os problemas resultantes da queda da taxa de lucro àqueles da realização da mais-valia para explicar o fenômeno das crises periódicas": "As condições de exploração imediata e as de sua realização não são idênticas. As primeiras apenas são limitadas pela força produtiva da sociedade; as outras, pela desproporcionalidade dos diferentes ramos da produção e pela capacidade de consumo da sociedade." (2) (MANDEL, 1990, p. 209).
Logo após chamar atenção para a natureza da mercadoria, de ser ao mesmo tempo fruto de trabalho privado e trabalho social, e de ter este reconhecido somente quando de sua efetiva venda, ou seja, sua troca por dinheiro, lembra que a produção da mais-valia, na esfera da produção, não gera automaticamente sua realização. Indica que aí, portanto, nesse desdobramento entre a mercadoria, já prenhe de mais-valia, e o dinheiro, sua forma realizada, surge a possibilidade primeira das crises de superprodução.
Na seqüência, ao se questionar sobre as causas das crises econômicas capitalistas, MANDEL (1990, p. 210) relaciona as quatro causas que têm predominado como principais, na tradição marxista, a saber: 1) a superacumulação de capitais, 2) o subconsumo das massas, 3) a anarquia na produção e a "desproporcionalidade entre os diferentes ramos da produção" e 4) a queda na taxa de lucro. Note-se como ele as entende, nessa obra.
A superacumulação de capitais: Apesar de considerá-la uma das possíveis causas, adverte que não se deve vinculá-la mecanicamente a salários elevados, os quais inibiriam o investimento capitalista e os lucros. Lembra que a superacumulação de capitais é sempre acompanhada de superprodução de mercadorias, as quais um nível baixo de salários não consegue absorver. Cita também que Marx zombou - em Teorias da Mais Valia - dos que admitiam a superprodução de capitais, mas negavam a superprodução de mercadorias (MANDEL, 1990, p. 210).
O subconsumo das massas: Na mesma linha da causa anterior, alerta para a versão vulgar que preconiza o aumento dos salários como sua solução, salientando que aos capitalistas não interessa a venda em si, ou seja, a venda pela venda, mas a venda apenas como um meio para obter o lucro suficiente (MANDEL, 1990, p. 210-211).
A anarquia na produção e a "desproporcionalidade entre os diferentes ramos da produção": Mandel leva em consideração essa causa da crise, mas desde que não se tente fornecer uma versão "harmonicista”, segunda a qual bastaria que "um cartel geral regulasse a produção de todos os setores, para que as crises desaparecessem". Não nos esqueçamos, adverte, de que no modo de produção capitalista, a desproporção entre a produção e o consumo dos "consumidores finais" é constitutiva do próprio sistema (MANDEL, 1990, p. 211).
A queda na taxa de lucro. Aqui também ele distingue uma análise mais acurada dessa causa de versões mais mecanicistas da mesma, que agem de forma causal linear do tipo: "queda na taxa de lucro/redução dos investimentos/redução do emprego/redução das rendas/crise de superprodução". Até porque geralmente ocorre um crescimento, e não uma redução de investimentos, às vésperas do crash, além de aumento e não redução de salários. Mandel salienta que "para compreender o encadeamento entre a queda da taxa de lucro, a crise de superprodução e o desencadeamento da crise, devemos distinguir os fenômenos de aparecimento da crise de seus detonadores [...]" (MANDEL, 1990, p. 211).
"A crise econômica capitalista é sempre uma crise de superprodução de mercadorias. [...] A superprodução significa que o capitalismo produziu tantas mercadorias que não havia poder de compra disponível para adquiri-las ao preço de produção, isto é, a um preço que fornecesse a seus proprietários o lucro médio esperado" (MANDEL, 1990, p. 211-212).
Uma de suas principais preocupações é a de distinguir o detonador da causa da crise. Explica que aquele apenas precipita a crise, que já contém todos os seus determinantes em ação, esperando apenas o momento da efetiva deflagração. Nas palavras de Mandel, “Para que ele [o detonador] possa desencadeá-la [a crise], é necessário que coincida toda uma série de precondições que não decorrem em medida alguma da influência autônoma do detonador. [...] A função objetiva da crise é a de constituir o mecanismo através do qual se impõe a lei do valor, apesar da concorrência (ou através da ação dos monopólios!) capitalista.” (MANDEL, 1990, p. 212).
Observa o autor que no início de cada ciclo industrial, há racionalização, intensidade crescente do trabalho, progresso técnico acentuado, e a alta produtividade baixa o valor das mercadorias. O que os capitalistas tentarão, a todo custo, é manter os preços antigos dessas mercadorias, de antes da alta de produtividade, de forma a auferir super-lucros. Todavia, a superprodução gera a baixa dos preços, e impõe os novos valores das mercadorias que resultam do aumento de produtividade, provocando uma perda de lucros e uma excessiva desvalorização de capitais. (Corroborando com a explicação marxiana da lei da queda tendencial da taxa de lucro.)
Deixando claro que a crise é uma manifestação da queda da taxa de lucro, ao mesmo tempo em que revela a superprodução de mercadorias, Mandel tenta estabelecer um encadeamento causal mais preciso da crise:
“A partir de certo momento de retomada ou conjuntura de crescimento, há um aumento inevitável da composição orgânica do capital, em decorrência de um aumento técnico, que no regime capitalista, jamais é “neutro”, mas essencialmente poupador de trabalho [...] e da ampliação dos investimentos que se desenvolvem numa conjuntura favorável” (MANDEL, 1990, p. 213-214).
Essa é a fase de “lua-de-mel”, como a designa Mandel, com taxas de lucro e mais-valia elevadas, baixa relativa dos preços de matérias primas e de investimento crescente de capitais nos setores ou nos países de baixa composição orgânica de capital. Todavia, “a lógica dessa expansão mina as condições dessa lua-de-mel”, pois: 1). Quanto mais se acelera a expansão, mais diminui o exército industrial de reserva, dificultando o aumento da taxa de mais valia. 2). Quanto mais longo o período de expansão, mais difícil fica manter-se a baixa relativa dos preços das matérias primas, tendo em vista as condições de produção menos elásticas nesse setor. 3). Quanto mais longa e profunda a expansão, mais raros se tornam os países de composição orgânica de capital estruturalmente mais baixas do que nos setores essenciais dos países industrializados dirigentes.
Quando o conjunto dessas tendências se concretiza, potencializa a tendência da queda da taxa de lucros. O problema é que nem a produção nem os preços se adaptam automaticamente a essas condições deterioradas de valorização do capital, o que poderia “mitigar” o ciclo e evitar o crash.
A queda da taxa média de lucros significa simplesmente que, com relação ao conjunto do capital social, a mais valia total produzida não foi mais suficiente para produzir a antiga taxa média de lucros. Isso não quer dizer que as principais empresas industriais tenham diminuído, individualmente, suas taxas de lucro. Manifesta-se, inicialmente, da seguinte forma: uma fração do capital acumulado recentemente não pode mais ser investida produtivamente nas condições de rentabilidade normais esperadas, e é então desviada para atividades especulativas, permanecendo a fração de período de acumulação mais antigo investida ainda sob melhores condições de rentabilidade.
Contudo, a massa de investimentos não diminui imediatamente, pode até aumentar; e o emprego e a massa salarial também estão em níveis elevados. Todavia, os investimentos, o emprego e a produtividade não crescem mais em proporção suficiente para sustentar por si próprios a expansão, que prossegue “de forma artificial”, sem levar em consideração os fundamentos reais da economia.
Essa alteração da conjuntura, geralmente encoberta pelo prosseguimento do boom, coincide com dois fenômenos que minam mais ainda seus alicerces: Por um lado, a queda da taxa média de lucros desencadeia, prosseguindo a expansão e aprofundando-se a especulação, o recurso cada vez maior ao crédito, endividando assim as empresas mais ainda. Os encargos financeiros desses empréstimos reduzem drasticamente o lucro das empresas. Atente-se que essa expansão acelerada do credito é praticamente inevitável, visto que os bancos procurarão ao máximo evitar falências em cadeia, o que seria trágico para eles. Dessa forma, passa-se do boom ao superaquecimento, que esconde ainda mais, naquele momento, as forças que preparam o inexorável crash.
À medida que se desenvolve o superaquecimento, começam a aparecer manifestações de capacidade de produção excedente. Os dois fenômenos fundamentais da expansão em sua fase “lua-de-mel” – o aumento da composição orgânica do capital e o crescimento da mais valia relativa (aumento da taxa de mais-valia) – levam inexoravelmente ao crescimento da massa de mercadorias produzidas.
O autor afirma então que as contradições internas do MPC são tais que, durante a fase de expansão, "a alta de m/v não pode neutralizar a alta de C/v, em função da luta de classes” (MANDEL, 1990, p. 216), ou seja, o capitalista não conseguirá utilizar o aumento da exploração do trabalho para neutralizar a alta da composição orgânica do capital, por que encontrará resistência por parte da classe trabalhadora.
“Quanto mais capitais não aplicados, mais o crescimento da massa de mais-valia produzida se atrasa em relação à acumulação de capital; quanto mais a taxa de lucro baixa, mais cresce a defasagem entre a taxa de lucros esperada e a realizada para um numero crescente de empresas, e entre seus encargos financeiros e seus rendimentos reais” (1990, p. 216).
Coexistem, assim, superabundância de capitais e escassez de lucros, determinando-se uma à outra. Na síntese de Mandel:
“Pode-se dizer assim, esquematicamente, que o «superinvestimento» provocou uma «superacumulação», que gerou por sua vez um «subinvestimento» e uma desvalorização massiva de capitais. Somente quando essa desvalorização se torna suficientemente ampla e quando o desemprego assim como as medidas de racionalização múltiplas “relançam” vigorosamente a taxa de exploração da classe operaria, é que a queda da taxa de lucros será estancada e que um novo ciclo de acumulação poderá deslanchar” (MANDEL, 1990, p. 216).
O economista critica os partidários da explicação monocausal da crise pelo “subconsumo” e os da “superacumulação”, os quais qualifica, num exemplo hipotético, como um sindicalista reformista neokeynesiano e um patrão neoliberal, o primeiro advogando um aumento de salários para vencer a crise, e o outro, ao contrario, a diminuição daquele, de forma a aumentar os lucros e o investimento. A crítica de Mandel centra-se no equívoco de ambos em supor uma série de ajustamentos mecânicos e generalizados produzindo-se sob certas condições bem precisas. Argumenta que a melhora dos salários não recupera imediatamente a economia, se não for acompanhada de uma elevação da taxa de lucros e de uma perspectiva generalizada de expansão do mercado; sem isso, não se investe.
Por outro lado, a elevação dos lucros e dos investimentos não leva à superação da crise, se não for acompanhada uma expansão da demanda global. Mas a coincidência da ocorrência concomitante desses fatores nem sempre é possível de ser produzida deliberadamente por medidas governamentais ou por um acordo privado, daí o caráter incontrolável do ciclo.
Ao final do capítulo, conclui que o que explica a dinâmica irracional do capitalismo, que, por exemplo, aumenta além do normal o investimento na conjuntura favorável, gerando capacidade excedente e superacumulação e reduz igualmente além do normal o investimento durante a crise, é que o que é racional do ponto de vista do sistema como um todo não o é do ponto de vista do capitalista individual e vice-versa.
Pode-se constatar, numa avaliação desse trecho da obra de Mandel (3), sua filiação à linha de estudiosos marxistas que amparam seus estudos das crises capitalistas em múltiplas causas, no caso do autor em questão, procurando sintetizá-las numa teoria que englobe as causas que incidem no fenômeno.
A seguir, será abordada a contribuição teórica do economista estadunidense Duncan K. Foley ao estudo das crises no MCP. Mais precisamente, analisar-se-á o nono capítulo de sua obra Understanding Capital - Marx´s Economic Theory (FOLEY, 1986).
Foley argumenta, no início do capítulo, que o ponto central na análise de Marx das crises capitalistas é que estas surgem inerentemente das contradições do modo capitalista de produção, ou seja, não são impostas por nenhum fator exógeno, mas se desenvolvem com a própria progressão daquele modo de produção. Salienta também o caráter purgativo dessas crises, as quais tendem a resolver os problemas que as criaram e a propiciar novamente as condições para acumulação renovada.
Após realçar que Marx não desenvolveu uma teoria explícita sobre as crises capitalistas, mas apenas as contemplou de forma tangencial, "como um parêntese em uma discussão sobre algum outro tema, e geralmente no curso da crítica a algum autor anterior" (FOLEY, 1986, p. 145), o economista estadunidense pontua que intelectuais marxistas que deram prosseguimento à teoria marxiana têm sistematizado uma variedade de teorias da crise no sentido estrito, cada uma enfatizando um ou outro aspecto da discussão não sistematizada de Marx. Nesse sentido, eles têm privilegiado, nessa empreitada, três grandes categorias para explicar e/ou apontar possíveis causas das crises: 1) Desproporcionalidade da acumulação de capital entre os departamentos I e II (4) / Anarquia da produção capitalista. 2) Subconsumo ou insuficiente demanda agregada, explicitando a contradição entre a necessidade de realização do capital mercadoria, já inflado da mais valia, e a incipiente capacidade de absorção daquela por parte da classe trabalhadora. 3) Lei da tendência de queda da taxa de lucro
Depois de abordar a crítica de Marx à Lei de Say, não sem antes descrevê-la em suas versões mais simples e mais refinadas (Foley, 1986, p. 146-7), o autor passa a descrever as três categorias acima elencadas.
Teorias da Desproporcionalidade
A análise marxiana das reproduções simples e ampliada aponta para a necessidade de uma economia capitalista alocar corretamente capital entre os dois departamentos da produção retro mencionados. Entretanto, ao mesmo tempo, Marx sustenta que a produção capitalista é caracterizada pela anarquia exatamente na área aqui tratada, isso é, a alocação do capital social. Por princípio, o capital é alocado inteiramente através de decisões descentralizadas dos capitalistas. Se dessas decisões resulta concentração de capital em um único departamento, as condições de equilíbrio para uma reprodução fluida serão violadas. O departamento super-expandido terá dificuldade em desovar sua produção, e sua taxa de lucro cairá em relação ao outro departamento.
Poderia a crise ser o método que o sistema utiliza para resolver essas contradições? Esse é o entendimento da economia política clássica, especialmente Adam Smith, em sua apologia ao sistema de mercado. Eventuais distorções na alocação de capital entre os dois departamentos seriam corrigidas pelos próprios mecanismos descentralizados de alocação, ou seja, pelo próprio mercado. Capitalistas se deslocariam do departamento com produção excessiva (e consequente menor taxa de lucro) para o departamento de menor produção, em busca de maior taxa de lucro. O desequilíbrio seria, assim, de acordo com a economia política clássica, corrigido exatamente pelas forças do mercado que originalmente o deram causa (FOLEY, 1986, p. 148).
Aqui reside o contraponto entre a teoria clássica e a teoria marxista da desproporcionalidade. Esta sustenta que a contração do departamento com excesso de produção não é contrabalanceada por uma expansão do departamento deficiente em investimentos. Portanto, a própria demanda agregada cai durante o processo de ajuste e uma crise de realização ocorre em ambos os departamentos. Na perspectiva dessa teoria, o investimento excessivo em um departamento desencadeia uma seqüência de eventos que levam a uma queda da demanda agregada e ocasiona uma crise geral no processo de realocação de capital do departamento com produção excessiva para o de investimento deficiente (FOLEY, 1986, p. 149).
Foley lembra que uma queda na demanda agregada deve envolver uma alteração na taxa de rotação do capital-dinheiro em um ou ambos os departamentos. Outro aspecto da proporcionalidade na teoria da crise é a questão da distribuição de capital entre suas várias formas (capital-dinheiro, capital produtivo e capital-mercadoria). A reprodução fluida do sistema capitalista requer a correta alocação de capital não somente nos dois departamentos, mas também entre as formas de capital agregado. Se alguns capitalistas diminuem a taxa de rotação do capital dinheiro se recusando a fazer gastos de capital à taxa normal, eles reduzem a renda dos trabalhadores e sua própria demanda por meios de produção, reduzindo assim a demanda agregada. Como resultado, estoques de mercadorias acabadas crescem, e a taxa de rotação do capital comercial igualmente cai. Nessa situação, ambas as retenções de dinheiro (acúmulo, entesouramento) e estoques são desproporcionalmente grandes demais em relação ao capital produtivo.
Nessa versão da teoria da desproporcionalidade, a distorção inicial - a desproporção entre o capital social alocado nos departamentos I e II - é transformada em um distúrbio nas relações entre as várias formas de capital que perpassam todo o sistema. Os sintomas da crise capitalista então surgem – emergência de estoques invendáveis, reduções na produção e no emprego e uma cumulativa queda na demanda agregada (FOLEY, 1986, p. 149).
Teorias do Subconsumo
O autor inicia a seção observando que uma característica marcante da crise capitalista é a incapacidade de os produtores em geral venderem tudo o que podem produzir. Nos períodos de crise, a demanda agregada diminui em relação à oferta agregada, e isso constitui o aspecto fundamental da análise das crises capitalistas, no entendimento dos adeptos da teoria marxista do subconsumo. A ideia geral é que a economia capitalista não consegue gerar suficiente demanda para comprar de volta sua própria produção, ou como uma lei geral, ou especificamente nos períodos de crise.
A seguir, o economista observa que a versão mais simples dessas teorias sustenta que é logicamente impossível para a economia capitalista gerar demanda agregada suficiente. O argumento é que pelo fato de os trabalhadores receberem (em forma de salário) apenas uma fração do valor que eles criam, sua demanda de consumo será sempre apenas uma fração do valor produzido, deixando com isso um excesso de oferta no mercado. A fragilidade que Foley aponta nessa argumentação é que ela ignora que a mais-valia também se espraia para as rendas dos capitalistas e das empresas (gastos pessoais e familiares daquele, geralmente conspícuos, e gastos das empresas, aí incluídos os gastos de capital). Assim, a demanda agregada também inclui esses gastos, e não somente os gastos da classe trabalhadora. Ademais, se o baixo consumo / baixa capacidade de consumo fosse causa das crises, como explicar que no início delas geralmente os salários têm estado elevados, como salienta MARX (2003, p. 463):
“É mera tautologia dizer que as crises decorrem da carência de consumo solvente ou de consumidores capazes de pagar. [...]. Mas se, para dar a essa tautologia aparência de justificação mais profunda, se diz que a classe trabalhadora recebe parte demasiado pequena do próprio produto, e que o mal estar seria remediado logo que recebesse parte maior, com aumento dos salários – bastará então observar que as crises são sempre preparadas justamente por um período em que os salários geralmente sobem e a classe trabalhadora tem de maneira efetiva participação maior na fração do produto anual destinada a consumo. [...].”
Foley lembra que a soma das rendas de trabalhadores e capitalistas perfaz a soma do valor produzido, e que quando disponíveis suficientes fontes de financiamento, ou em estoques de capital-dinheiro ou em expansão do crédito, um sistema capitalista pode em principio gerar demanda agregada adequada à sua reprodução ampliada, evitando assim a elevação de estoques de mercadorias. A demonstração dessa possibilidade não significa que a demanda agregada de fato será sempre grande o suficiente. Para sustentar isso, salienta que seria necessário discernir as forças que determinam as decisões de consumo de trabalhadores e capitalistas; como tradicionalmente se entende, na teoria marxista, que os trabalhadores tendem a gastar rapidamente toda sua renda, o problema da demanda inadequada se concentra nas decisões dos capitalistas de gastar a mais-valia, ou na compra de meios de produção para expandir a produção através da acumulação ou no consumo (FOLEY, 1986, p. 150).
O autor pontua que essa discussão foi realizada por Rosa Luxemburgo, a qual argumentava que as economias capitalistas são estruturalmente incapazes de gerar demanda agregada suficiente para comprar de volta tudo que é produzido. Na ótica do autor, esse argumento de Rosa tem duas facetas.
Primeiro, ela faz uso da análise marxiana da reprodução ampliada para enfatizar o fato de que, na falta de nova produção de capital mercadoria e de novos empréstimos tomados pelas empresas, o vácuo no gasto criará uma lacuna entre oferta e demanda no rastro da reprodução ampliada, o que pode ser solucionado, segundo Foley, com a expansão do crédito ou com a produção de mercadoria dinheiro (ouro). Mas essa conclusão muda o foco de análise da demanda agregada da distribuição propriamente (isto é, da divisão do valor adicionado entre trabalhadores e capitalistas) para o funcionamento do sistema de crédito.
Em segundo lugar, Foley afirma que Rosa argumenta que mesmo quando os capitalistas têm renda para gastar e podem financiar seus gastos, não é razoável supor que eles investirão de forma suficiente na expansão de capital para manter a demanda agregada crescendo indefinidamente. Segundo ela, o propósito final da produção numa economia capitalista é prover meios de subsistência a serem consumidos pelos trabalhadores (5) (FOLEY, 1986, p. 151).
O investimento em capacidade produtiva pode ser justificado, no final, apenas como um meio de produzir bens de consumo. Mas o processo de acumulação constantemente eleva a taxa de mais-valia e reduz a base do consumo da qual os investimentos dependem. Como os trabalhadores recebem uma porção cada vez menor do valor excedente, seus gastos tornam-se cada vez menos importantes em relação à produção total. Rosa então se pergunta se os capitalistas continuariam a investir grandes somas de dinheiro para criar capacidade produtiva para satisfazer uma demanda final que se encolhe cada vez mais, e vaticina que mais cedo ou mais tarde emergirá a capacidade excedente e eles se negarão a acumular sua mais-valia (reinvesti-la). Desse modo, mesmo tendo renda para criar demanda suficiente, eles não a gastarão suficientemente rápido para criar a demanda necessária para comprar de volta o produto total (FOLEY, 1986, p. 151).
A teoria da crise calcada na lei da tendência de queda da taxa de lucro
O economista estadunidense argumenta que é tentador tentar fundamentar a teoria da crise na lei da tendência de queda da taxa de lucro. Nessa perspectiva, a crise estaria decididamente ligada aos mais fundamentais e históricos aspectos da produção capitalista - seu caráter técnico progressista e sua capacidade de mobilizar enormes forças produtivas.
Reconhece Foley que, num primeiro momento, essa via parece bem razoável; é plausível que uma queda na taxa média de lucro leve a uma exata queda no investimento na mesma proporção. Todavia, o autor pondera que a acumulação de capital é possível mesmo a uma baixa taxa de lucro, bastando para isso os capitalistas diminuírem na mesma proporção a acumulação de capital. Claro que não seria "o melhor dos cenários" para eles, mas isto pelo menos deixa claro que essa explicação para a crise capitalista (a explicação fundada na queda da taxa de lucro) teria que produzir um encadeamento lógico e sistemático que vinculasse a queda da taxa de lucro aos agudos e descontínuos momentos de ajuste na atividade econômica, o que ela efetivamente não consegue (não explica) (FOLEY, 1986, p. 153).
Mas caso se admitisse a existência desse mecanismo (embora Marx não o faça, pelo menos explicitamente) nas economias capitalistas, talvez envolvendo o sistema de crédito e finanças, ter-se-ia que enfrentar o problema de especificar quais fatores produzem a queda na taxa de lucro e assim constituem a causa primordial das crises. Aqui duas escolas se digladiam.
Os ricardianos sustentam que o aumento dos salários reais reduz a taxa de mais valia e por isso baixa a taxa de lucro. Alguns deles destacam a tendência de as margens de lucro caírem próximo ao pico do boom, e de os salários nominais se elevarem mais rapidamente do que os preços quando o emprego se torna elevado. Nessa visão, a fase de boom do ciclo de negócios chega ao fim porque a acumulação exaure o exército de reserva de mão-de-obra, e como resultado a competição por empregos se torna menos severa, e os salários aumentam, tendo como consequência um arrocho no lucro, queda nas taxas de mais-valia e de lucro, gerando a crise. Esta cria desemprego em massa, e dessa forma recria o exército de reserva de mão-de-obra, aumentando a competição por emprego e moderando os aumentos salariais. Depois de algum tempo, esses processos recuperam os níveis de mais-valia e de lucratividade, levando ao reinício do processo de acumulação (FOLEY, 1986, p. 153-4).
O autor chama a atenção de que Marx pode ter afirmado que as crises geralmente são precedidas por períodos de altos e crescentes salários, mas lembra também que em O Capital, ele sustenta que é um erro ver a elevação dos salários como causa das crises, pois "[...] pondo a coisa de forma matemática, a taxa de acumulação é a variável independente, não a dependente; a taxa de salários é que é a variável dependente." (MARX, 2011a, p. 723) (To put it mathematically: the rate of accumulation is the independent, not the dependent, variable; the rate of wages, the dependent, not the independent, variable.) (1867, p. 620) (6)
Já outras escolas, apesar de reconhecerem a exaustão do exército de reserva de mão-de-obra no pico das fases de boom econômico, enfatizam os aspectos mais clássicos da teoria marxiana, tais como a ideia que o próprio processo de acumulação muda tecnologicamente e tende a incrementar a composição orgânica do capital. Nessa perspectiva, a acumulação é vista como gradualmente alterando a base tecnológica da produção por incrementar o investimento de capital necessário para produzir. Marx descreve o processo nesses termos:
"Com a queda da taxa de lucro, aumenta o mínimo de capital que tem de estar nas mãos de cada capitalista para o emprego produtivo de trabalho; o mínimo exigido para se explorar o trabalho em geral e ainda para que o tempo de trabalho aplicado seja o necessário para a produção das mercadorias, não ultrapassando a média do tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-las" (MARX, 2008, p. 329).
Em algum ponto essa mudança cumulativa se torna incompatível com os planos de lucros que os capitalistas fizeram ao investir, levando a uma crise. A crise nessa perspectiva é purgativa, porque envolve destruição de capital antigo, o que eleva a produtividade do trabalho e permite que a acumulação seja retomada, apesar de que a uma menor taxa média de lucro (FOLEY, 1986, p. 154).
Tendências de longo prazo na acumulação de capital.
Logo no começo da seção, Foley observa que, segundo Marx, a acumulação de capital será acompanhada de dramáticos aumentos na escala de capitais individuais, e esses mecanismos são responsáveis por dois aumentos: Primeiro, cada capital tende a crescer pelo reinvestimento do seus próprios lucros, o que faz com que cada capital exitoso tenda a se tornar maior com o passar do tempo. Marx chama esse processo de concentração de capital. Segundo, Marx nota que grandes e exitosos capitais tendem a absorver capitais menores no curso da competição, notadamente no curso de falências, quebras, fusões e aquisições hostis, constituindo o processo de centralização de capital, que leva ao monopólio (FOLEY, 1986, p. 155).
Nesse ponto, ele chama atenção no sentido de que se apreenda o termo monopólio não no senso estrito, de somente um único vendedor no mercado, mas no sentido amplo de que poucas grandes empresas têm e usam o poder de mercado (estratégias mercadológicas e de precificação) como armas na competição do mercado.
O autor conclui enumerando alguns dos impactos da acumulação de capital sobre a vida da classe trabalhadora, sempre a partir de Marx, a saber:
O crescimento do capital e do emprego para uma parte da população será acompanhado de crescimento do exército industrial de reserva, pois o rápido ritmo de desenvolvimento tecnológico desemprega trabalhadores, aumentando o número de desempregados temporários, o exército flutuante de reserva. Com o mesmo processo ocorrendo na agricultura, surge o exército latente de reserva de mão-de-obra para a indústria urbana. Finalmente, mais e mais trabalhadores têm suas habilidades tornadas obsoletas e ficam desencorajados para a procura de emprego, compondo assim a categoria do exército de mão-de-obra estagnada.
A acumulação de capital empobrece a classe trabalhadora pelo dilaceramento do trabalho e pela fragmentação da humanidade do trabalhador.
O progresso da acumulação de capital depende da constante elevação da taxa de exploração de mão-de-obra, de tal forma que mesmo quando o padrão de vida da classe trabalhadora melhora, ela detém uma proporção cada vez menor do produto social. A distância entre as rendas do trabalhador e do capitalista aumenta cada vez mais, mesmo que os padrões de vida de ambos cresçam (FOLEY, 1986, p. 155-6).
Por último, observa que o pequeno número de imensas empresas, cada uma dispondo de massivos recursos econômicos e fazendo uso de publicidade, marketing, aquisições e manipulações financeiras, é um dos frutos da busca desenfreada de todas por vantagem competitiva, comportamento esse imperativamente tendente a instaurar o monopólio no mercado, exacerbando as contradições sociais inerentes à sociedade capitalista (FOLEY, 1986, p. 155-6).
O sexto capitulo de Una Introducción a la economia política, (SALAMA; VALIER, 1976), dos economistas franceses Pierre Salama e Jacques Valier, encerra a análise bibliográfica que ora se empreende.
O capítulo é iniciado com o destaque à instabilidade da dinâmica capitalista, a qual gera crises, a princípio circunscritas localmente, mas que a partir de 1848 assumem proporções globais, por conta do crescente grau de mundialização (ou internacionalização) da economia capitalista. Os autores salientam a alternância de ciclos de prosperidade e depressão (ou recessão), relacionando aquela ao ciclo de desenvolvimento da produção, em face de novos mercados atingidos por expansão geográfica ou do surgimento de novos setores de produção, e a última à queda na produção, nas exportações e nos investimentos, aumento do desemprego, etc., apontando-a como corolário da sobreacumulação (ou superprodução) do capital (SALAMA; VALIER, 1976, p. 140-1).
Observam Salama e Valier que, quanto mais se avança no século XX, mais aumenta o grau de transmissão dos efeitos das crises, não obstante os diferenciais de intensidade de país para país. Notam também que as mesmas manifestam-se, de forma geral, por uma interrupção no processo normal de produção, e por uma diminuição na quantidade de mão-de-obra e instrumentos de trabalho utilizados.
A seguir, fazem a distinção das crises pré-capitalistas e capitalistas. Nas sociedades pré-capitalistas, as crises se apresentavam ou como destruição dos próprios produtores, ou dos meios de produção, em consequência de catástrofes naturais ou sociais, o que provocava um descenso na produção. As crises pré-capitalistas eram, portanto, crises de subprodução de valores de uso, fenômeno de penúria que sobrevém em razão de um insuficiente desenvolvimento da produção, essencialmente agrícola (SALAMA; VALIER, 1976, p. 141).
Já nas crises capitalistas, ocorre algo totalmente diferente: o que constituía as causas nas crises pré-capitalistas (interrupção no processo normal de produção, por uma diminuição na quantidade de mão-de-obra e instrumentos de trabalho utilizados) são, nas crises capitalistas, consequências dessas. Por exemplo, nas primeiras, uma epidemia levava a uma diminuição da força de trabalho, levando à crise; já nas últimas, a crise é que leva a uma diminuição da força de trabalho.
De fato, a crise capitalista se apresenta como uma crise de superprodução de valores de troca; não se manifesta por uma insuficiência na produção, mas sim por uma insuficiência na demanda solvente por mercadorias. Passa a haver mercadorias em excesso, em relação à demanda. Todo ou parte do valor de troca criado (na produção) não pode ser realizado.
Salientam Salama e Valier que esse novo tipo de crise (crise de superprodução), resulta das próprias características da mercadoria, e do fato de que o capitalismo se caracteriza pela produção generalizada de valores de troca, ao passo que nas sociedades pré-capitalistas se produzia somente valores de uso, para satisfazer as necessidades da comunidade. Para que ocorram as crises, basta que os proprietários das mercadorias não encontrem clientes com dinheiro suficiente para comprá-las pelo seu valor, para realizar todo o valor de troca das mesmas (SALAMA; VALIER, 1976, p. 142). Pode-se dizer que é este desdobramento do valor, entre mercadoria e dinheiro, que cria a possibilidade das crises gerais de superprodução capitalistas.
A crise é a expressão do caráter particularmente contraditório que reveste a acumulação de capital. Contraditório porque os interesses dos capitalistas, individualmente, conflitam com os interesses de sua própria classe. Exemplificando: Se um capitalista vê diminuir sua taxa de lucro tende a, num primeiro momento, demitir trabalhadores e aumentar a intensidade de trabalho dos que ficam, esperando assim diminuir seus custos e aumentar suas margens de lucro. Individualmente, e teoricamente, é possível que atinja seus objetivos, mas quando todos os capitalistas fazem o mesmo, longe de se restabelecer a taxa de lucro, a crise se instaura. O desemprego produzido impede a realização das mercadorias produzidas; a forma dinheiro é insuficiente com relação à forma mercadoria, para que essa possa ver vendida ao seu valor (SALAMA; VALIER, 1976, p. 143) (grifos do autor).
Com isso, se interrompe o processo de reprodução ampliada do capital, em escala individual ou de toda a classe de capitalistas. Assim, conclui-se que o valor deve não só ser produzido sob a forma de mercadoria, mas também convertido em forma de dinheiro. Essa unidade da produção e da conversão deve ser afirmada, mas nem sempre tal imperativo efetivamente ocorre, daí a possibilidade de crises.
Ao iniciar a terceira seção do capítulo, os autores chamam atenção para o caráter dual da crise, de recessão e estagnação devido à superacumulação de capitais e de mercadorias, e por outro lado de ser o mecanismo que restabelece as condições favoráveis para a recuperação da taxa de lucro e para a recuperação econômica. Aqui, Salama e Valier deixam claro sua filiação entre os marxistas que dão relevo à desproporção entre os dois grandes setores da produção para a compreensão das crises, esboçando um entendimento de que a crise é a expressão de uma desproporção entre os dois grandes setores da produção, o que produz bens de consumo e o que produz bens de produção, ou bens de capital, sendo a crise o reflexo da necessidade desse desenvolvimento desproporcional entre os dois setores, o qual explicam da seguinte forma.
A produção capitalista está em equilíbrio quando a produção de bens de produção suscita uma demanda de bens de consumo igual à demanda de bens de produção suscitada pela produção de bens de consumo. Em outras palavras: o mercado capitalista está em equilíbrio quando a oferta e a demanda recíprocas de mercadorias é igual entre os dois setores da produção capitalista.
A crise de superprodução significa, no entendimento dos dois economistas franceses, que essa condição de equilíbrio não é nem nunca pode ser respeitada, pois as decisões de produção cabem aos capitalistas individuais, o que gera a anarquia do sistema, o qual sempre se encontra numa dessas fases: pré-crise, crise ou pós-crise. A evolução da produção não pode ser senão caótica, jamais regular, e isso exatamente porque supõe a exploração dos trabalhadores e a impossibilidade de integrá-los inteira e definitivamente (SALAMA; VALIER, 1976, p. 148) (grifos do autor).
Compreendem os autores que para se captar o significado essencial das crises de superprodução, é necessário vincular seu desenvolvimento e suas consequências aos movimentos das taxas médias de lucro, e à relação entre essas e o capital variável. De fato, se pode afirmar, sustentam eles, que a crise se caracteriza por um forte e brusco descenso da taxa média de lucro, queda essa que se manifesta na realidade, periodicamente e tendencialmente, nas crises de superprodução, e que a crise cria condições favoráveis para um novo aumento da taxa média de lucro e para a recuperação econômica.
À medida que se desenrola a fase de prosperidade, emergem três fenômenos: 1) Aumento da composição orgânica do capital (c/v), suscitado pela criação de bens de capital mais modernos. 2) Queda na taxa de mais valia (m/v), devido aos aumentos salariais (crescimento econômico favorece às lutas dos trabalhadores por melhores condições) e à impossibilidade de aumentar a duração do tempo de trabalho além de certo limite. 3) À medida que aumenta a capacidade de produção, aumenta a oferta de mercadorias no mercado, e chega um momento em que a oferta supera a demanda. As mercadorias produzidas com menor produtividade mostram-se invendáveis, no mercado, por conterem tempo de trabalho social desperdiçado. Em certo momento, a diferença entre a oferta e a demanda força a queda dos preços, e as empresas que trabalham em condições desfavoráveis de produtividades são levadas a até fechar.
Como não há planificação global para se determinar o melhor momento para o aumento da produção, as decisões individuais de cada capitalista, que visam a apenas a maximização de seu lucro individual, conflitam com as leis gerais do sistema (SALAMA; VALIER, 1976, p. 149).
Os produtores que trabalham com baixa produtividade não conseguem realizar no mercado todo o valor de suas mercadorias (c + v + m), pois o tempo de trabalho efetivamente empregado para sua produção é superior ao tempo de trabalho socialmente necessário (produtividade média).
As crises permitem adequar periodicamente a quantidade de trabalho efetivamente empregado na produção à quantidade de trabalho socialmente necessário, representando uma sanção (penalizando) ao desperdício de tempo de trabalho. Por não ser planificada a produção capitalista, o ajuste entre produção e consumo só ocorre a posteriori, e não a priori. Quando a produção chega ao mercado, e o mercado não absorve esse valor, se descobre que houve desperdício de tempo de trabalho, e os produtores mais arcaicos são penalizados ou eliminados.
Esses três fenômenos (aumento de c/v, queda na taxa de mais valia (m/v) e aumenta a oferta de mercadorias, com consequente baixa dos preços) explicam que num determinado momento ocorra uma brusca e forte diminuição da taxa média de lucro.
Por outro lado, a crise cria condições favoráveis a um novo aumento da taxa média de lucro, levando assim à recuperação econômica. Ocorre: a) Uma diminuição de c/v, pois se põe para trabalhar as máquinas já existentes, mas se contrata nova mão-de-obra. b) Aumento da taxa de mais valia (m/v) devido à existência, ao final da depressão, de baixos salários reais, e às possibilidades de aumentar a jornada e a intensidade do trabalho. c) E, sobretudo, a crise, pela quebra e fechamento de empresas, significa uma descapitalização (uma destruição de uma massa de matérias-primas e de máquinas) e uma depreciação de capital, devido à queda do seu preço; uma diminuição no volume e no valor total do capital constante. Esses fenômenos acabam aportando uma solução provisória ao problema da sobreacumulação de capital, ao mesmo tempo que permitem uma nova elevação da taxa média de lucro.
Desta forma, é através da crise que se realiza a tendência decrescente da taxa média de lucro, mas as crises constituem, ao mesmo tempo, a reação do sistema contra esse decréscimo (SALAMA; VALIER, 1976, p. 150-1).
Causas da crise
Nesta seção, os autores reconhecem a dificuldade de se apontar com acuidade as causas da crise, e deixam claro que não trarão nada de novo à problemática. Chamam atenção para dois elementos que, conjuntamente, desempenham papel de relevo na irrupção de crises: a tendência a limitar o consumo das massas e a anarquia da produção (SALAMA; VALIER, 1976, p. 151).
Com relação ao primeiro, lembram que, a nível social, a classe capitalista se esforça para pagar os menores salários possíveis a seus trabalhadores, o que acaba por limitar o poder de compra destes. Sobressai, assim, a contradição entre uma tendência por parte dos capitalistas de lançar em circulação o mínimo possível de dinheiro, ao passo que a realização do valor/mais-valor produzido implica a necessidade de retirar cada vez mais dinheiro da circulação (SALAMA; VALIER, 1976, p. 151-2).
Esta contradição entre a tendência à expansão ilimitada da produção e a tendência à restrição relativa do consumo das grandes massas, representa, portanto, um papel fundamental na erupção de crises.
Claro que o poder de compra limitado da classe trabalhadora não representa o total do poder de compra num dado momento de uma economia; o poder de compra da burguesia (bens de consumo e de capital) também se inclui nesse agregado. A demanda efetiva desses últimos (bens de capital) pode significar uma fonte considerável de mercado, capaz de compensar, durante algum tempo, a insuficiente demanda de bens de consumo, mas essa situação não pode sanar permanentemente a falta de demanda de bens de consumo, até porque a produção de bens de capital se destina, por definição, às industrias que produzem bens de consumo, e se estes não possuem mercados, aqueles se mostram desnecessários (SALAMA; VALIER, 1976, p. 151-3).
No que se refere ao segundo elemento, a anarquia da produção, sustentam os autores que a mesma não deve ser considerada por si mesma como uma causa das crises, independentemente de todas as outras características do modo de produção capitalista, especialmente da contradição entre a tendência a aumentar a produção e a de limitar relativamente o poder de consumo das massas. Reconhecem, não obstante, que a existência de uma determinada proporção entre a capacidade de produção e o poder de compra existente para aquisição de bens de consumo é uma das condições de proporcionalidade necessária para evitar a ocorrência de crises e que a anarquia da produção atua conjuntamente com a tendência de baixo consumo das massas, na produção de crises.
Os autores encerram o capítulo observando que as crises de sobreprodução têm ocorrido durante toda a historia do capitalismo industrial, e têm sido cada vez mais graves. A crise de 1929 é um dos exemplos de descapitalização e depreciação de ativos mais brutais que o capitalismo conheceu. A partir da Segunda Guerra Mundial, as crises capitalistas passam a apresentar novas características: maior duração das fases de expansão, menor intensidade das crises e aumento permanente de preços, inclusive durante as fases de recessão. Concluem Salama e Valier que a explicação essencial dessa mudança reside nas intervenções do Estado burguês (SALAMA; VALIER, 1976, p. 148).
Do que se pode extrair da exposição dos quatro autores contemplados no presente trabalho, a crise significa, basicamente, para os últimos, a impossibilidade de manter o antigo nível de preços e de taxas de lucro, com um maior volume de capitais. Trata-se do conflito entre as condições de acumulação e exploração do capital, ou seja, a explicitação de todas as contradições inerentes ao capitalismo, que intervêm totalmente na explicitação das crises: a contradição entre o maior desenvolvimento da capacidade de produção e o desenvolvimento restrito da capacidade de consumo das massas, contradições originadas na anarquia da produção, que resulta da competição, do aumento da composição orgânica do capital e da queda da taxa média de lucro.
Para Mandel, que analisa as crises sempre de uma perspectiva pluricausal, aquelas, alem de constituírem o mecanismo através do qual se impõe a lei do valor, são manifestações da queda da taxa de lucro, ao mesmo tempo em que revelam a superprodução de mercadorias.
Já para Foley, as crises são decorrências inerentes às contradições do modo capitalista de produção, não sendo, portanto, impostas por nenhum fator exógeno a este, e propiciam, por seu caráter purgativo e saneador ao sistema, as condições para a retomada da acumulação de capital, em novas condições de produção e de mercado.
A par da valorosa contribuição desses quatro autores na elucidação das condições e dos fatores pertinentes às crises no modo de produção capitalista, cabe pontuar, até mesmo pela inquestionável complexidade da problemática, a necessidade da abrangência de aspectos fundamentais da nova etapa do capitalismo global, salientes a partir do ultimo quartel do século XX, notadamente a hegemonia da dimensão financeira / especulativa na dinâmica contemporânea da acumulação capitalista, potencial objeto de estudo de ulteriores trabalhos que se pretende desenvolver.
(*) Remo Moreira Bastos - remomoreira@gmail.com - é um servidor p úblico federal brasileiro (IBGE, Analista). Mestrando em Educação na Universidade Federal do Ceará (UFC), na linha de pesquisa marxista Trabalho e Educação; atua no grupo de estudo GTPPE - Grupo de Pesquisas em Trabalho, Práxis, Política e Educação (CNPQ). Especialista em Administração Pública pela Faculdade Gama Filho (FGF-RJ) e bacharel em Administração pela Faculdade Integrada do Ceará - Universidade Federal do Ceará – UFC.
________ NOTAS:
(1) Doravante, no presente trabalho, este acrônimo substituirá a expressão modo capitalista de produção.
(2) Marx, 2008, p. 322. Optou-se por referenciar a edição brasileira, e não a alemã, indicado por Mandel.
(3) O já referido capitulo XXV de sua obra A crise do capital – os fatos e sua interpretação marxista (v. nota 10).
(4) Marx classifica a produção total anual de valores de uso em dois grandes departamentos: o Departamento I, que produz meios de produção, e o Departamento II, que produz meios de subsistência.
(5) Não é o que Marx pensa; ele sempre deixa claro que o propósito final do capitalista, ao produzir, é o acúmulo de capital, através da realização da mais-valia, e não o consumo (nem dele nem do trabalhador). Para atingir esse objetivo, o consumo é apenas o meio (mero acessório, como salienta Foley).
(6) MARX, Karl. 1867. Capital: a critique of political economy. Vol. 1, The process of production of capital, ed. F. Engels. Reprint. New York: International Publishers, 1967.
Referências Bibliográficas
FOLEY, Duncan K. Understanding Capital - Marx´s Economic Theory. Harvard University Press: Massachusetts (USA), 1986.
MANDEL, Ernest. A Crise do Capital; os fatos e sua interpretação marxista. São Paulo: Ed. Ensaios, 1990. ______________. O capitalismo tardio. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
MARX, Karl. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011a. Livro 1, Vol. 1. __________. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Livro 2, Vol. 3. __________. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2008. Livro 3, Vol. 4.
SALAMA, Pierre; VALIER, Jacques. Una Introducción a la economia politica. Ediciones Era: Mexico, 1976.
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