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Por uma nova leitura do socialismo
Miguel Judas (*)
“Aqui está o último termo da desigualdade, e o ponto extremo que fecha o círculo e toca no ponto de onde partimos; é aqui que todos os particulares voltam a ser iguais, porque nada são, e os súbditos não tendo mais outra lei senão a vontade do senhor, nem o senhor outra regra senão as suas paixões, as noções do bem e os princípios da justiça desaparecem de ora em diante; é aqui que tudo conduz exclusivamente à lei do mais forte, e, por conseguinte, a um novo estado de natureza diferente daquele pelo qual começámos, sendo que um era o estado de natureza na sua pureza, e este último é o fruto de um excesso de corrupção. Há tão pouca diferença, aliás, entre esses dois estados, e o contrato de governo é de tal modo dissolvido pelo despotismo, que o déspota não é senhor senão durante o tempo em que é o mais forte; e, logo que o podem expulsar, não tem que reclamar contra a violência. A sublevação que acaba por estrangular ou destronar um sultão é um acto tão jurídico como aqueles pelos quais ele dispunha, na véspera, das vidas e dos bens dos súbditos. Só a força o mantinha, só a força o derruba; todas as coisas se passam assim, segundo a ordem natural; e, qualquer que possa ser o advento dessas curtas e frequentes revoluções, ninguém se pode queixar das injustiças de outrem, mas somente da sua própria imprudência ou da sua desgraça.” Jean-Jacques Rousseau, “Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens”
“É sabido que nós, os alemães, temos uma terrível e poderosa Grundlichkeit — um radicalismo profundo ou uma radical profundidade, como se queira chamar. Quando um de nós expõe algo que reputa ser uma nova doutrina, a primeira coisa que faz é elaborá-la sob a forma de um sistema universal. Tem que demonstrar que tanto os princípios básicos da lógica como as leis fundamentais do universo não existiram, desde toda a eternidade, senão com o propósito de conduzir, afinal, a essa teoria recém-descoberta, que vai coroar então tudo quanto existe.”
Friedrich Engels, 1892, Prefácio à edição inglesa de “Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico”
Propósito:
O presente texto, redigido embora com forte convicção, não pretende exprimir certezas nem, muito menos, Verdades.
O seu objectivo é, exclusivamente, suscitar um debate que é necessário fazer mas que, por razões diversas, tem sido evitado.
Quase todos os sectores políticos que, historicamente, têm procurado expressar os interesses dos povos, desde muitos humanistas liberais e religiosos aos sociais-democratas e aos comunistas, têm permanecido, nas últimas décadas, nas suas “zonas ideológicas de conforto”, isto é, agarrados aos conceitos que lhes serviram de guia durante as lutas do século XX, isto é, como náufragos agarrados a bóias de salvação.
A experiência do “socialismo real” afundou-se, do mesmo modo como, do “estado-social”, obra-prima de humanistas e sociais-democratas, já só se vêm o mastro e alguns destroços à tona de água. O porta-aviões do capitalismo financeiro e transnacional considerou-se invencível e tem procurado afundar todo o tipo de embarcações onde, apesar de tudo, o Humano persiste e resiste – como a Vida em períodos de “extinção em massa”...
Já é altura de passar da mera e imediata sobrevivência, do “salve-se quem puder”, para, com o que houver disponível, incluindo destroços e bóias, reconstituir novas e eficientes plataformas de acção e novas “armas”.
Estas, não poderão ser iguais, nem sequer uma mera versão melhorada das anteriores. A Vida nunca seguiu linhas de continuidade após grandes catástrofes; procurou sempre novos caminhos, viáveis, para prosseguir.
Esta é uma “metáfora naval” do que há para fazer.
Não deitar nada fora e analisar, com o que permanece (conceitos, energias, vontades de viver, recursos...), o que se pode fazer para dar luta, resistir, passar à contra-ofensiva e vencer. Para isso, só haverá que abandonar os preconceitos e os orgulhos e reconhecermo-nos, na nossa Igualdade de náufragos, como Irmãos Humanos.
Será que “a via” consiste em voltar a construir grandes e poderosos navios, substitutos dos anteriores “estado-social” ou “estatismo de inspiração soviética”? Será que é possível, que é viável amalgamar toda a diversidade de situações e meios em mega-projectos, em soluções standard, para um combate frontal e decisivo?
Ou será que uma táctica descentralizada mas convergente, com todo o tipo de embarcações já existentes, as quais cada povo sabe operar com destreza e criatividade, poderia ser mais efectiva, não só para vencer o velho mas também para construir o novo?
Este texto procura ser mais uma conversa entre irmãos, um momento e um lugar onde, em conjunto, reflictamos sobre O Que e Como Fazer.
1. Parar de recuar
Mais de vinte anos após o desmoronamento da URSS, as forças revolucionárias que exprimem a necessidade histórica de superação do Capitalismo, enquanto modo de produção e como formação social, económica, cultural e política, continuam os seus labores:
a) Teórico, com vista:
- à compreensão do que “falhou”, em termos de orientações e de práticas, nos processos revolucionários que caracterizaram o século XX;
- à compreensão do momento actual e das profundas alterações verificadas na estrutura e modo de funcionamento do Capitalismo às diversas escalas, global, continentais/regionais e nacionais, bem como nas estruturas e dinâmicas das diversas classes sociais;
- à formulação de perspectivas da luta revolucionária no presente século, igualmente às diversas escalas, bem como às formas de organização e aos métodos de luta.
b) Prático, com vista:
- à reunificação das forças revolucionárias nos mais diversos espaços de intervenção;
- a opor a mais tenaz e eficiente resistência às políticas devastadoras do capital sobre as sociedades e a Natureza;
- a impulsionar a mobilização e a luta das populações trabalhadoras por transformações no sentido do aprofundamento democrático das sociedades, da justiça e do desenvolvimento humano e social;
- a desencadear processos de transformação revolucionária que antecipem os traços de uma futura sociedade socialista global.
No entanto, tais labores não têm sido fáceis.
Em primeiro lugar, porque subsistem as mais variadas interpretações e concepções sobre o Socialismo e as vias para a sua concretização, a maior parte delas configurando “modelos” ou “esquemas” que, inspirando-se em perspectivas particulares do tema, as absolutizam ou pretendem tornar hegemónicas, impedindo ver o conjunto e o essencial: a história humana em pleno desenvolvimento, no sentido de uma Sociedade Humana Global baseada na realização da Democracia Radical e Integral e do Bem Viver humano, em Harmonia com a Natureza.
Essa situação no plano teórico, para além de reflectir a confusão própria das situações de recuo, é ainda amplificada pela intervenção – honesta ou intencionalmente diversionista - de numerosos teóricos (de diversas proveniências ou matizes ideológicos, designadamente de “esquerda”) e instituições (académicas, político-partidárias, etc.), que se limitam a justificar o actual estado das coisas e a apontar para a “rendição” ou para caminhos sem saída, tendendo a dificultar a execução das tarefas teóricas necessárias e, consequentemente, a unidade e convergência ideológica, programática e de acção. O exemplo mais recente desta indigência teórica tem sido o frenesim com que muitos socialistas/comunistas têm divulgado entre si o livro “O Capital no Século XXI”, de Thomas Piketty (“um Marx moderno”, segundo The Economist), na ansiosa expectativa de aí virem a encontrar, como barcos à deriva, qualquer instrumento que os ajude a retomar o controlo e prosseguir a viagem.
Em segundo lugar, porque, subitamente, após largas décadas de desenvolvimento dominadas pela “guerra de trincheiras” entre os dois sistemas, Capitalista e Socialista, que passava pelas fronteiras dos blocos político-ideológicos e dos Estados nacionais, se passou para um cenário global onde a luta de classes se desenvolve segundo uma tipologia de “guerra assimétrica”, tanto do tipo “guerrilha”, com as forças dispersas e desconectadas umas das outras e sem “bases de apoio” fortes nem seguras, como de “luta difusa” à volta de questões periféricas mas socialmente abrangentes de variados estratos populacionais atingidos pelas políticas do Capitalismo.
Ao mesmo tempo, em numerosos países e regiões foram praticamente dissolvidas as fronteiras e capacidades estritamente nacionais e estão a surgir em seu lugar, sob impulsos variados, mas ainda sempre sob a hegemonia global do capital financeiro e das transnacionais, cerca de uma dezena de conglomerados “regionais” de países em rápidos processos de integração económica, política e cultural, os quais revelam perigosas contradições de interesses entre si.
Mas não foram só nesses aspectos estruturais que se verificaram profundas alterações. O funcionamento da economia e das sociedades também mudaram: a distribuição e a organização das actividades produtivas e os fluxos de capitais e de mercadorias pelo globo geraram novos pólos de desenvolvimento das forças produtivas enquanto outros entraram em regressão e, ainda outros, foram marginalizados; as comunicações tornaram-se globais e imediatas; novos fenómenos, problemas e prioridades se apresentam perante os povos, assim como novos realinhamentos de forças...
As grandes concentrações operárias que, nos países centrais, acompanhavam a grande indústria do final do século XIX e a primeira metade do século XX, as quais serviam de alavanca a poderosos movimentos revolucionários, foram dissipadas, mantendo-se somente, nesses países, as unidades de elevada tecnologia e os “serviços”; a nova “classe operária” mundial foi surgir, em condições de exploração típicas do século XIX europeu, nos países da “periferia”, enquanto nos países centrais se acumula um proletariado heterogéneo e culturalmente fragmentado e manipulado pelo “consumismo”.
Simultaneamente com esses processos globais, típicos do Capitalismo, alguns deles já antecipados por Marx no Manifesto Comunista de 1848, verificou-se uma translação do Poder da aliança entre os órgãos políticos e o capital produtivo, transformador, da “economia real”, para uma plutocracia financeira mundial que submeteu e colocou ao seu serviço esses aliados tradicionais e que hoje acumula activos (físicos e intangíveis) e desenvolve uma economia meramente extractiva (de juros, dividendos e rendas), em tudo equivalente aos sistemas de dominação política “em cascata” e de “economia tributária”, típicos do período medieval-feudal.
Não constituindo embora uma novidade, o visível recrudescimento das práticas nazi-fascistas de controlo e repressão social nos E.U.A. e na Europa mostra bem que essa ideologia não surgiu como “reacção ao comunismo soviético”, não foi conjuntural ao Capitalismo, como se tem procurado fazer acreditar, mas sim intimamente ligada às necessidades da concentração monopolista e da expansão imperialista, numa fase em que a burguesia já há muito abandonou a ideologia do Liberalismo, com que se apresentou, na sua fase ascendente, anti-feudal, como “representante de toda a sociedade”. Nada menos apropriado, pois, do que denominar a actual política do grande capital como “neoliberal”...
Neste ambiente complexo no qual, aparentemente, “tudo mudou”, será que também ficou obsoleta a teoria sobre o carácter histórico do Capitalismo e a inevitabilidade da Revolução Socialista?
Não, afirmamos sem reservas. As sociedades humanas constituem sistemas complexos que habitam e transformam o planeta, com relações ecológicas entre si e com toda a biosfera, dotadas de estruturas internas e processos metabólicos, sujeitas às leis da evolução. A civilização Capitalista compreende um modo de organização interna, um tipo de metabolismo e uma forma de operar entre os seus componentes e sobre o meio muito específicos, encontrando-se actualmente em rota de colisão tanto com a extrema desigualdade social como com os equilíbrios planetários. Por muito sólido que possa parecer o seu sistema de Poder, caminha para a insustentabilidade, podendo, segundo muitos observadores, se não sofrer antes uma profunda remodelação/revolução por acção humana consciente, entrar numa tempestade perfeita de efeitos catastróficos (social, política, bélica, energética, alimentar e ambiental) entre as décadas de 2020-2040.
Há, pois, que, com a máxima urgência, configurar o sentido e impulsionar essa remodelação/revolução, imprescindível para toda a Humanidade, cabendo nisso um papel essencial aos revolucionários socialistas.
2. Bases Teóricas – Fundamentos
Para tal, haverá que voltar a Marx e Engels, aos originais e não aos seus “interpretadores”, e, a partir dessa plataforma, procurar analisar e compreender o mundo de hoje, a fase actual de desenvolvimento do Capitalismo. Essa actividade deveria começar, na minha opinião, pela leitura atenta e reflexiva do Manifesto Comunista, o qual mantém a maior actualidade, não só para a compreensão da fase actual de desenvolvimento do Capitalismo como para a acção prática. Haverá ainda que estudar as experiências históricas da luta de classes do proletariado e das massas populares e os trabalhos dos seus principais dirigentes, incluindo Lenine e a Revolução Russa, Fidel e o Che, bem como muitos outros, vitoriosos ou não nos seus empreendimentos revolucionários, mas tendo sempre o cuidado de esclarecer o que terá validade global à luz da “mensagem” primordial de Marx e o que será específico dos circunstancialismos concretos em que operaram.
Essa distinção entre o que é globalmente válido e o que é específico e conjuntural é tanto mais necessária quanto, por necessidades de divulgação/doutrinação junto das massas, alguns destes aspectos, parcelares, específicos ou conjunturais (ou mesmo a invenção de novas “leis”, como a da “construção do socialismo num só país”, ainda por cima atrasado...) começaram a ser codificados como “desenvolvimentos do marxismo”, como foi o caso, por exemplo, do “marxismo-leninismo” soviético, e, ainda hoje, de tantos “ismos” que proliferam no seio da confusão teórica típica das fases de recuo.
Marx e Engels e também Lenine, tendo sido, para além de teóricos brilhantes, homens de intervenção prática, tiveram, aliás, o cuidado de não “desenharem” qualquer “projecto” do que poderia ser uma futura sociedade socialista nem, tão pouco, de estabelecerem qualquer algoritmo preciso para a transição ao Socialismo.
Algumas curtas antecipações que deixaram a esse respeito, derivaram directamente da aplicação da teoria do materialismo histórico e com o propósito de fundamentar programas de acção prática de utilidade imediata.
Talvez o erro de antecipação por eles cometido tenha sido considerarem, pela observação directa do caso da Inglaterra, a “fábrica do mundo” do seu tempo, uma mais rápida polarização das sociedades entre uma pequena minoria burguesa e uma imensa maioria proletária e um mais extenso e rápido desenvolvimento da grande indústria, propiciadora de uma expansão da produção que satisfizesse todas as necessidades da sociedade “de modo que cada membro da sociedade seja posto em condições de desenvolver e exercitar com absoluta liberdade todas as suas energias e aptidões”.
Esse “erro” de Marx e de Engels, e também de Lenine e tantos outros, sobre a rápida possibilidade da superação do Capitalismo e edificação do Socialismo, só pode ser cometido por quem, “metendo as mãos na massa”, tem a ousadia de, reflectindo as condições objectivas e subjectivas em cada momento e lugar, “realizar a história” real e concreta dos povos e furar o manto ideológico com que a burguesia procura esconder a crescente irracionalidade do seu modo de produção. Ele nunca poderá ser cometido por aqueles que se limitam a acreditar que o Socialismo virá “automaticamente”, pelo simples funcionamento do capitalismo, com base em compromissos de classe e no “reformismo”, fora do âmbito das mais intensas lutas sociais.
Contudo, sem deixar de apontar a perspectiva e a possibilidade de avançar e “experimentar”, não se deverá invocar permanentemente cada crise como a “crise final” do Capitalismo, nem, tão pouco, qualquer irreversibilidade de qualquer processo transformador vitorioso. O caso mais notório é o da ex-U.R.S.S., cuja derrota permitiu à burguesia criar a ilusão em largas massas, tão grande quanto a ilusão que a precedeu, da “vitória definitiva”, de que o Socialismo não passaria de um sonho irrealizável, uma Utopia anti-natural, “uma imposição contrária à natureza dos Homens”.
A luta revolucionária pelo Socialismo constitui o ponto mais alto das lutas sociais que se travam diariamente e de modo diversificado entre o proletariado e outras camadas populares contra a dominação das classes opressoras e as suas sequelas. É uma luta universal, constante e prolongada. Não é uma “corrida de 100 metros” mas sim uma imensa e perseverante “maratona” colectiva, com pontos altos e baixos, com momentos de aceleração e de ânimo elevado, com outros de grandes dificuldades e quase desfalecimento, onde o importante não é ser o primeiro mas sim avançar, tão rápido quanto possível, em direcção à meta.
O que Marx e Engels nos deixaram como legado prospectivo fundamental foi que, sem prazo e sem modelos pré-estabelecidos, o Capitalismo esgotará o seu papel histórico de integração mundial da sociedade humana e de extraordinário desenvolvimento das forças produtivas, de modo a dar lugar, através da luta de classes contínua e da luta revolucionária aguda, a uma sociedade sem classes sociais, de cidadãos livres, iguais e responsáveis, uma sociedade caracterizada “pela utilização em comum de todos os instrumentos de produção e pela distribuição dos produtos com base num acordo comum, ou seja, pela chamada comunidade dos bens”.
Não bastará, porém, voltar a Marx, Engels e Lenine para compreender as forças que movem a história humana. Eles foram “homens do seu tempo”, sujeitos, eles próprios, ao contexto cultural existente, e só puderam dispor da bateria de conhecimentos científicos que então tinham disponíveis. Por isso, eles não constituem o “fim da história” no que respeita ao conhecimento e à experiência humana. Não escreveram “livros sagrados” nem as suas previsões foram “profecias”.
Questões só afloradas por esses pensadores relativas à natureza do Homem, à consciência, às suas culturas e aspirações à Felicidade, bem como às relações com a Natureza e ao desenvolvimento das instituições sociais, vieram a ser objecto de sucessivos estudos e reflexões, designadamente no âmbito dos estudos históricos (e pré-históricos), da biologia e dos processos cognitivos (o papel determinante da prática), da ecologia e dos sistemas complexos não lineares, que permitem, hoje, uma visão mais abrangente e profunda do desenvolvimento histórico do Homem e das Sociedades Humanas.
Os estudos de Marx e Engels revelaram, correctamente, a importância dos processos produtivos e das relações de produção na estruturação das sociedades e nas suas dinâmicas. Porém, essa perspectiva (economicista e técnico-científica) a que foram reduzidos esses estudos pela generalidade dos seus seguidores não é absoluta, não esgota a matéria, dado que se focaliza fundamentalmente no “acoplamento estrutural” (como diria Humberto Maturana) entre o “ser vivo – ser social” e o ambiente natural na perspectiva das trocas materiais/energéticas, e não na perspectiva do “acoplamento estrutural” gerador de cultura, harmonia social e satisfação espiritual.
Para se começar a compreender melhor a totalidade da questão do humano e do social, haverá que estudar, para além dos fundadores do materialismo dialéctico e histórico e das experiências passadas pela emancipação dos povos e o Socialismo, outras correntes do pensamento mundial, filosóficas e científicas, do ocidente e do oriente, do norte e do sul, antigas e modernas, que integram a tenaz luta da Vida contra a Morte, a luta do Desenvolvimento contra a Decadência, a luta da Felicidade contra o Sofrimento, a luta da Harmonia (Homeostase) contra o Caos.
Dificilmente haverá quem consiga, num esforço singular, extrair desse vasto universo de conhecimentos e experiências, de entre as “leis mais gerais do desenvolvimento do universo”, a Lei Geral do Desenvolvimento da Sociedade Humana, a “lei absoluta”, a “verdade pura”, o “clarão iluminador dos caminhos do futuro”. Sem desvalorizar os esforços integradores em busca da “maior verdade possível” em cada momento e circunstância, capaz de dar sentido e eficácia à acção colectiva, a “Verdade” (em cada momento e circunstância) é sempre democrática, isto é, corresponde muito mais à sincronização de uma miríade de pequenas “velas” de conhecimento e experiência portadas por muitos observadores, do que a um único foco luminoso.
As leituras de Karl Polanyi, Lewis Mumford, Perry Anderson, Fernand Braudel, Eric Hobsbawm, Immanuel Wallerstein, Jared Diamond, Mazoyer e Roudart (História das Agriculturas no Mundo) e outros no domínio da interpretação histórica, de Humberto Maturana, Francisco Varela, Lynn Margulis, e Robert Sapolsky, nos domínios da biologia (natureza e evolução da vida e do Homem, da mente e dos processos cognitivos, bem como da natureza do fenómeno social), de Edgar Morin nos domínios do fenómeno da vida, da antropossociologia e da complexidade, do filósofo István Mészáros, do sociólogo Zygmunt Bauman, por exemplo, a par de muitos outros, “marxistas” ou não, em vários domínios do conhecimento moderno, da física quântica à antropologia e à ecologia, são essenciais para esse esforço integrador e para a formulação de ideias mais claras sobre “onde estamos” e “para onde” seria desejável/necessário irmos.
Não bastará, por isso, “regressar a Marx”, como se os fracassos e as desorientações verificados após a derrota estratégica do “Socialismo Real” tivessem resultado simplesmente de desvios relativamente a uma qualquer “cartilha”, “marxista”, “leninista” ou qualquer outra, mas sim acrescentar a Marx toda uma vasta gama de conhecimentos e experiências entretanto adquiridos.
Cosmos, Vida e Sociedades Humanas
As modernas ciências biológicas e antropológicas vieram abrir caminhos de conhecimento insuspeitáveis no tempo dos principais pensadores do “socialismo científico”. Esta própria designação evidencia quanto eles próprios, no esforço de afirmar o conhecimento racional e científico contra os velhos mitos religiosos que haviam modelado as sociedades que até há pouco haviam predominado, assumiam, como não podia deixar de ser, no seu tempo, os mitos emergentes da Razão, da Ciência, da Técnica e do Progresso e o seu corolário, a “conquista e submissão da natureza pelo homem”.
Estes, os Mitos, como construções mentais explicativas do mundo e da vida e justificadoras da acção prática, sempre acompanharam o homo sapiens desde o seu surgimento e continuarão no futuro, em contínua substituição e sob designações variáveis, a acompanhá-lo. São um produto natural do cérebro humano.
Para além de uma extrema simplificação das teorias de Marx e Engels, reduzidas a um processo mecanicista, de substituição sucessiva de “classes dominantes”, de um “progresso” contínuo baseado na ciência e na técnica até à mais completa abastança de bens materiais para satisfação de todas as necessidades sociais, à redução das mais diversas culturas humanas, historicamente formadas, a uma redutora “cultura de classe”, à redução dos complexos fenómenos mentais e espirituais a uma simplificada e menosprezada designação de “subjectividade”, etc., todas elas tendentes à transformação da complexidade social a uma redutora megamáquina (no sentido mumfordiano), os revolucionários socialistas/comunistas vieram, globalmente, a adoptar referências ideológicas, modelos de organização e de relacionamento e rituais típicos das religiões organizadas, evidenciando bem quão fortes são os modelos culturais e as subjectividades ancestrais.
Neil deGrasse Tyson, astrofísico norte-americano, explica que os elementos mais abundantes no universo, se encontram, pela mesma ordem de abundância, no corpo humano (hidrogénio, oxigénio, carbono, nitrogénio...), concluindo que “não somos nós que estamos no cosmos mas o cosmos em nós”. De facto, muitas outras observações, desde os ciclos dos diversos vegetais e animais de que dependeu exclusivamente a vida humana até à industrialização (até os chimpanzés e muitos outros animais sabem gerir as “colheitas” ao longo do ano conforme a diversidade de vida nos respectivos territórios), o “relógio biológico” (dia e noite, estações do ano, etc.) até às várias extinções em massa já ocorridas na Terra, comprovam a total integração do fenómeno da Vida nos processos cósmico-planetários. Como seres vivos e como humanos, somos uma das formas de existência do cosmos, integrados nos seus processos complexos, em grande parte ainda desconhecidos.
Os nossos ancestrais identificaram essa íntima interdependência e unidade, entre o vivo e o cósmico, o que lhes deu uma extraordinária “vantagem comparativa” e lhes permitiu prosperar.
A criação mental da categoria de “deuses” ou “deus” correspondeu ao conceito desse “poder cósmico”, tanto nas suas regularidades como nas suas imprevisibilidades.
Esse poder cósmico (ou divino), devidamente apropriado, interpretado e mediado pelas classes dominantes durante milénios, “regulou”/”dirigiu”, com exclusividade, os processos de organização e comportamento social até ao final da Idade Média, quando irrompeu um seu substituto de origem humana, a Razão.
Esta, centrou no Homem, em cada homem individual, como único responsável por si próprio, e nas suas capacidades cerebrais, o “único poder regulador e criador”, separando-o da Natureza e atribuindo-lhe o desígnio de a “dominar e colocar ao seu serviço”, agora não através da superstição ou da “fé” mas sim através do conhecimento científico. Passámos a viver e a trabalhar em ambientes artificializados, a alimentar-nos com plantas e animais produzidos fora dos seus processos naturais. As nossas capacidades científicas e tecnológicas, o “domínio” que alcançámos “sobre as forças da Natureza” (incluindo a manipulação genética) dão-nos a ilusão de que, como humanos, “não temos limites” e que, também, um dia, saberemos manejar todas as “ferramentas de deus”. A nossa estrutura biológica, formada evolutivamente ao longo de alguns milhões de anos, parece estar a “aguentar com tudo”, salvo, ao que parece, com o stress e as suas múltiplas consequências... (ver Stress, Portrait of a Killer).
Sem Igualdade material entre os homens, o que resultou dessa “utopia liberal” foi a “lei do mais forte”, a liberdade para explorar e oprimir, camuflada por um manto de pseudo-igualdade formal, e a desresponsabilização dos “vencedores” pela sorte dos “perdedores”, considerados auto-responsáveis pelas suas “inaptidões competitivas”, falta de iniciativa empreendedora ou, simplesmente, “preguiça”.
Desaparecida a ordem estabelecida pelo “reino dos céus”, surgiu a ordem do “reino da selva”, não segundo um “contrato social” entre indivíduos livres e iguais, mas sim segundo o princípio de “todos contra todos”.
A Razão, enquanto deus pagão substituto, acompanhada pela sua descendência, Capital e Ciência, abriu à Humanidade caminhos de desenvolvimento antes vedados por imposições religiosas. O “triângulo virtuoso” formado pela Exploração Capitalista, a contínua Acumulação de Capital e a Ciência-Tecnologia, retro-alimentando-se mutuamente, unificou o mundo (como Marx previra), lançou-se na conquista do Espaço (para fins bélicos) e alienou os homens à condição de peças “especializadas”, descartáveis, de uma megamáquina de valorização do capital.
Porém, esta nova “trindade divina” (Razão, Capital e Ciência), por efeito do desenvolvimento do conhecimento nos mais diversos domínios, incluindo da Vida (biologia e conexas) e do Homem (antropologia, arqueologia e história...), começou a entrar em colapso. Em primeiro lugar, porque não existe a Razão “pura”, gerada numa hipotética zona do cérebro, capaz de processar dados e outra informação sem “ruídos” emocionais, segundo algoritmos “lógico-matemáticos” isentos de “perturbações”. Pelo contrário, concluiu-se que sem emoções não se constitui a Razão (capacidade para articular processos lógicos com base na linguagem) e que o cérebro opera como totalidade em si próprio e “com o corpo”, pelo que, em rigor, um “pensamento puramente racional” constituiria uma patologia. Assim, quando procuramos a Razão encontramos, como resultado, o homem na sua integralidade, histórica e evolutivamente constituído. Assim, por exemplo, os avanços que venham a ser verificados no âmbito da inteligência artificial (IA) quanto muito poderão chegar até à programação de uma máquina “menos burra” e nunca a uma “inteligente”...
As ciências biológicas também concluíram que, independentemente da melhor aplicação do método científico, qualquer investigação incorpora sempre o “ponto de vista do observador”. E também que, pelo isolamento físico do cérebro relativamente ao exterior, todo o conhecimento humano sobre a Realidade exterior, as ideias, os “conhecimentos científicos”, as teorias, ideologias, doutrinas, mitos, etc., são construídos “no interior” no cérebro, com base na estrutura neuronal de partida e na experiência vivida por cada um, isto é, o Conhecimento é sempre “construído” sobre uma base cultural adquirida e na perspectiva de cada indivíduo, “como uma livre criação da sua mente”.
“De facto, as explicações científicas não explicam um mundo independente, elas explicam a experiência do observador, e este é o mundo que ele ou ela vive”.
Humberto Maturana, “A Objectividade, Um Argumento para Obrigar”
Todos os organismos vivos, desde a mais elementar bactéria ancestral até ao Homem moderno, compreendem um complexo vivo de características autopoiéticas (auto-produzido e conservador da organização interna), o ser vivo propriamente dito, e o seu acoplamento estrutural com o meio (modo de vida), numa relação recursiva e congruente. As alterações no meio suscitam alterações no modo de vida (ou de operar), as quais, por sua vez, suscitam alterações adaptativas na estrutura do ser vivo. Alterações neste (mutações), por sua vez, tanto podem potenciar como comprometer a eficiência do modo de operar no meio considerado.
Por sua vez, como especifica Humberto Maturana, tudo o que acontece só acontece porque a biologia o permite; inversamente, nada acontece que não seja permitido pela biologia.
O interessante curso de Robert Sapolsky “Biologia do Comportamento Humano” na Universidade norte-americana de Stanford, que pode ser acompanhado no Youtube, evidencia como os comportamentos humanos, inatos e adquiridos na sociedade, se encontram “embutidos” na estrutura e na dinâmica biológica.
A biologia moderna evidencia a natureza simultaneamente individual (como ser vivo autónomo, autopoiético) e social (como modo de viver/operar) do Homem (e de muitos outros organismos), não sendo possível dissociar qualquer desses aspectos.
Esse processo de evolução verificou-se, fundamentalmente, como resultado de simbioses sucessivas de microrganismos que iam constituindo novos organismos enriquecidos com as características e aptidões dos que se associaram. Mas também, em alguns casos, como resultado de mutações vantajosas (num determinado contexto) e, em todos, do contínuo ajustamento entre o ser vivo e o meio, mediante contínuas alterações congruentes do seu modo de viver/operar nesse meio (o seu acoplamento estrutural).
Em “O Método” (demonstração do princípio da complexidade na compreensão dos processos cósmicos, vivos e sociais), Edgar Morin sugere um princípio de organização hologramática, segundo o qual o todo está inscrito em cada uma das partes que se inscrevem no todo.
Segundo este princípio, conjugado com as observações de Maturana e de Sapolsky quanto aos fundamentos biológicos de tudo o que acontece, os fenómenos sociais constituem manifestações “exteriores” dos processos biológicos “internos”.
Tal como as unidades bioquímicas básicas de “construção” dos seres vivos são as mesmas em toda a escala da Vida, das bactérias, às plantas, à mosca da fruta e ao homem, cuja “construção” segue processos comparáveis a um “lego”, também a comunicação, a linguagem (coordenações de coordenações de condutas e de emoções), a cooperação e a competição, a criatividade (estrutural e funcional) e a conformação “maquinal”, a aprendizagem e a cultura, se encontram contidas, segundo manifestações específicas, em todas as escalas da Vida.
“...Como foi transferida a criatividade dos micróbios para as plantas, os animais e as formas superiores de vida? Com que frequência foi adquirida esta criatividade por essas formas superiores de vida?”
Lynn Margulis, Adquirindo Genomas
“As prototaxis (tendência inata de uma classe de célula ou organismo a responder de modo específico a outra classe de organismo), estas tendências orgânicas, podem constituir as versões iniciais dessa classe de propósito que, no nosso caso, denominamos “escolha consciente”.
Idem
Os diversos tipos de relações entre seres vivos (relações ecológicas), desde o parasitismo à predação, da competição à cooperação e à simbiose, encontram-se igualmente às mais diversas escalas da Vida, sendo do mais alargado conhecimento os casos da simbiose das mitocrôndrias (processamento do oxigénio) nas células dos animais e dos cloroplastos (fotosíntese) nas células das plantas, aguardando confirmação científica a das espiroquetas (bactérias elementares com capacidade de movimento).
A bióloga Lynn Margulis, designadamente nos seus livros “Microcosmos”, “Planeta Simbiótico” e “Captando Genomas”, propõe-nos uma extraordinária viagem que vai desde as arqueobactérias de há cerca de 3.500 milhões de anos até à actual teoria de Gaia, segundo a qual o conjunto da Vida na Terra (com os seus 10 a 30 milhões de espécies) constitui um “Sistema que optimiza o meio ambiente para seu próprio uso”. Segundo Lynn Margulis:
“A formação e diversificação de uma espécie nova é a manifestação externa das acções das formas subvisíveis de vida: bactérias, protistas e fungos. (...) O comportamento dos microrganismos no seio das suas populações e nas suas interacções com outros determinou o curso da evolução da vida. O mundo vivo subvisível, no final, é o fundamento do comportamento, desenvolvimento, ecologia e evolução do mundo visível de que fazemos parte e com o qual co-evoluímos.”
Lynn Margulis, “As bactérias na origem das espécies: morte do paradigma neodarwinista”, Conferência proferida na Universidade de Valência
As células eucarióticas (com núcleo e ADN) constituem a base de todos os organismos complexos; é nelas que decorrem os processos autopoiéticos moleculares e os processos reprodutivos. As associações de seres vivos são muito antigas, tendo começado por conglomerados de bactérias nos quais os genes eram trocados livremente entre todos os indivíduos e continuado em colónias mais ou menos estruturadas (como na esponja, por exemplo), até autênticas “confederações” de células rigorosa/”maquinalmente” organizadas, com órgãos especializados e processos de auto-regulação, como na generalidade dos organismos que conhecemos, incluindo os humanos.
Assim, todas as formas de associação entre organismos multicelulares biologicamente idênticos e autónomos, como as colónias (baixo grau de integração) e as sociedades (bandos, tribos, nações..., no caso dos humanos, com mais elevados graus de integração, ou ainda das formigas/térmitas e das abelhas, integradas “maquinalmente”), não constituirão mais do que a manifestação/projecção no “exterior”, “no meio”, dos processos correspondentes no plano biológico, “interno”.
Os sistemas sociais humanos comportam, por essa razão, tanto a sua tendência para a reconstituição das “megamáquinas”, antigas e modernas, identificadas por Lewis Mumford (incluindo as cibernéticas exemplificadas no filme Matrix e pressagiadas pelo “big brother” informacional em processo de instalação), conducentes à “optimização” social segundo os modelos maquinais dos processos moleculares autopoiéticos e das colmeias e termiteiras, como a tendência “caótica”, criativa, revolucionária, constantemente reorganizadora, libertária e democrática, de elevada capacidade adaptativa, com que o processo da evolução dotou a espécie humana, permitindo-lhe recriar permanentemente o seu acoplamento estrutural com o meio/modo de operar. Daí que os sistemas sociais humanos flutuem sempre, instavelmente, entre o conservadorismo da “máquina homeostática” e o revolucionarismo adaptativo.
“Assim aparece a virtude suprema da eco-organização: não é a estabilidade, é a aptidão da reorganização para se reorganizar a si mesma de maneira nova sob o efeito de novas reorganizações. Dito de outro modo, a eco-organização é capaz de evoluir ante a irrupção perturbadora do novo, e esta aptidão evolutiva é o que permite à vida não só sobreviver, mas desenvolver-se, ou melhor, desenvolver-se para sobreviver.”
Edgar Morin, O Método II – A Vida da Vida
Estas projecções sociais do que ocorre no plano biológico, que conduziram, no passado, a partir dos finais do século XIX, à proliferação “mecanicista” de metáforas organicistas para a compreensão dos fenómenos sociais, parece decorrerem directamente da íntima e profunda conexão e interdependência fenoménica entre o “interior” biológico e o “exterior” social, na linha “hologramática” sugerida por Edgar Morin, de modo idêntico ao que ocorre, no presente, quanto ao entendimento, demasiado extensivo, das sociedades ou do Sistema Biológico Planetário (Gaia) como superorganismos.
Tal como aconteceu com a classificação e posterior reclassificação de Plutão, também, no futuro, a ciência terá ocasião de melhor definir os “limites” do biológico e do social, pelo que, de momento, nos absteremos de afirmar, “definitivamente”, se o corpo humano, p. ex., é uma “sociedade de células” e se Gaia é um superorganismo...
No entanto, o que a ciência tem como adquirido já constitui uma base segura para olhar para os fenómenos sociais a partir da sua materialidade cósmico-biológica.
Para cada ser vivo, o meio consiste em tudo o que é exterior ao seu limite (membrana, pele, carapaça), aquilo com que terá de interagir para manter as suas capacidades autopoiética e reprodutiva; a associação, fraca ou forte, constituiu um instrumento fundamental para viabilizar e potenciar essas capacidades, tanto mais quanto menos habilitado estaria para uma vida independente. A linhagem homo, entre muitas outras, só surgiu e prosperou no quadro de uma associação continuada e forte, grupal, social. O Homem é, por isso, um organismo eminentemente social.
A Cultura respeita ao modo de acoplamento estrutural do ser vivo com o meio e é, por isso, um atributo de todos esses seres, constituindo, a par da sua materialidade biológica, a outra componente essencial do organismo. Uma associação de organismos, derivando em conjunto e de forma congruente com o meio envolvente, produz uma Cultura comum.
A Cultura emerge como um atributo do próprio ser vivo, ao nível celular, do ADN, constituindo este um tipo de “biblioteca biológica” que não só enforma a sua estrutura, metabolismo e modo de vida, como proporciona ao ser vivo as soluções bioquímicas mais adequadas para permitir a continuidade do seu acoplamento estrutural congruente com o meio. Esse instrumento fundamental da cultura celular foi, ao longo do tempo, objecto de sucessivas transformações, tanto por aquisição ou perda de novos genes (simbioses, etc.), como em resultado da experiência (arrumação, activação e modos de utilização dos genes).
O sistema nervoso e o cérebro, constituíram, no processo evolutivo, o modo como as associações de células com alto nível de integração (“uniões”, federações” e “confederações”) organizaram entre si um dispositivo adequado às respostas colectivas (acoplamento estrutural colectivo) ao meio, um instrumento “federativo” de cultura, com características operacionais diferentes do ADN, de evolução mais rápida e maior flexibilidade de resposta às alterações do contexto. O sistema nervoso e o cérebro não constituem estruturas de “comando” ou direcção mas sim uma grande rede de comunicações e de processamento que, a par de outras vias bioquímicas, assegura a realização da grande democracia, radical e integral, da “sociedade celular”.
O cérebro humano testemunha, na sua constituição e funcionamento, a longa evolução biológica animal, dos répteis dos mamíferos ancestrais e dos primatas e, finalmente, a sua condição especificamente humana, pela linguagem, e, através desta, a consciência.
A linguagem, só possível de surgir em espaços de relações continuadas e de grande proximidade (no seio de grupos fortemente integrados), elevou dramaticamente a eficiência das coordenações de emoções e de acções e abriu espaços para a manipulação verbal de imagens mentais dinâmicas, de ideias e conceitos abstractos, não directamente afectos à realidade sensorialmente apreendida.
Pela confusão sistematicamente gerada entre o real e o imaginado (que perdura até ao presente com efeitos tanto benignos e potenciadores – criatividade, inovação, conhecimento...- como perversos – sacrifícios humanos, acumulação de riqueza e poder, guerras, opressão e exclusão, predação ambiental...), Edgar Morin sugere, com fundamento, que o sapiens sapiens se deva designar sapiens demens...
Este poder biológico-cerebral de gerar ideias, mitos, crenças e ideologias que submetem o próprio organismo criador e o colocam em “rota de colisão” consigo próprio, a espécie, a biosfera e todo o sistema planetário, sempre tem coabitado (e continuará a coabitar) com o impulso primordial da espécie para a reprodução continuada, sustentável, do acoplamento estrutural congruente com o meio através da integração social, a empatia e a aceitação do “outro”, a cooperação, a solidariedade e a busca incessante e humilde da melhor compreensão desse meio (social, planetário e cósmico).
Entre todos os resultados “virtuais” dessa dinâmica biológico-cerebral complexa, os quais se agrupam sob a designação genérica de mente, encontra-se a Consciência, a qual resulta de configurações neuronais dinâmicas e específicas, motivadas por emoções, e que permite ao ser humano observar-se a si próprio enquanto organismo (ser vivo + acoplamento estrutural), como objecto da sua própria observação. Assim, metaforicamente, a consciência constitui uma espécie de varanda a partir da qual o humano se observa (pela reflexão) integralmente, tanto quanto às suas necessidades como ser biológico como quanto ao seu acoplamento estrutural com o meio (social e natural), permitindo-lhe avaliar o sentido do seu posicionamento, atitudes e acções no sistema cósmico-planetário, na biosfera e na sociedade, validar os seus conhecimentos e experiências, e proceder, sempre que necessário, às respectivas reformulações, com vista a assegurar a sua viabilidade e continuidade futura, como ser vivo, ser social e espécie.
A Consciência, operacionalizada e sempre actualizada pela reflexão, é, por isso, a grande “reguladora/controladora” da característica demens dos humanos. A natureza, o processo da Vida, ao mesmo tempo que dotou o homo com as capacidades mentais de formular abstracções que (pela capacidade de amplo conhecimento do meio, planeamento e inovação) supriam as suas débeis capacidades físicas (mas que simultaneamente o poderiam levar ao auto-engano e à destruição) também criou o correspondente mecanismo de regulação/controlo.
Nesse sentido, a mente, designadamente a Consciência (acertada ou equivocada), possui um forte poder para determinar o sentido dos acontecimentos materiais e energéticos exteriores, quer do próprio organismo, dos grupos sociais onde opera e no meio natural cósmico-planetário.
Foi este poder da mente e da consciência que determinaram ao autor destas linhas (eventualmente equivocado) a decisão de as escrever e de as transmitir a outros, na esperança de que os seus genes e cultura, herdados com êxito dos seus antepassados, sejam continuados, com o mesmo êxito, por muitas gerações futuras.
Os homens e os grupos humanos, na sua deriva por um planeta dinâmico e variado em condições naturais, vieram a adoptar, a partir de uma mesma estrutura biológica, acoplamentos estruturais com o meio (Culturas) muito variados. Tal como acontece com inúmeros outros animais bem documentados, a tensão gerada pela procura da congruência entre organismo-meio, modelou não só as Culturas mas também “arrastou” a biologia dos humanos, dentro dos limites possíveis de variabilidade e ajustamento.
É este, sucintamente, o quadro geral, biológico, do fenómeno Homem e dos diferentes grupos humanos, sobre o qual haverá que entender os fenómenos sociais.
Tendo voltado a reeencontrar-se após dezenas de milhares de anos de deriva planetária independente, os diferentes grupos que haviam passado por um forte processo de diferenciação dos modelos de acoplamento estrutural com o meio (cultural) e por ligeiros processos de diferenciação de configurações funcionais biológicas (“raças”), passaram a comportar-se como “organismos diferentes”, tanto de modo cooperativo como de modo competitivo face aos recursos disponíveis, num processo tão conflituoso como convergente e associativo, tal como sempre ocorreu, em diversas escalas da vida, nos processos de tendência simbiótica.
“En mi opinión, nuestra cultura patriarcal centrada en la dominación y el sometimiento, en las jerarquías, en la desconfianza y el control, en la lucha y la competencia, es una cultura generadora de violencia porque vive en un espacio relacional inconsciente de negación del otro. Pienso que si queremos acabar con la violencia como modo de convivencia debemos atrevernos a mirar nuestra cultura patriarcal, y a cambiarla. No es la biología lo que nos atrapa en la violencia aunque nuestra biología nos permita vivir en ella; es nuestra cultura, es el espacio psíquico de nuestra cultura que da origen a la continua validación y justificación de la violencia en el que nuestros niños crecen haciéndose psíquicamente uno con él, lo que nos atrapa. Pero las trampas culturales se pueden romper, y es posible escapar de ellas mediante la reflexión que las disuelve si se hace. La reflexión sobre biología y violencia nos lleva a la reflexión sobre cultura y violencia. En el espacio psíquico de la violencia el niño aprende sin darse cuenta a negar al otro y a no mirarse a sí mismo en el apego a sus certidumbres. El otro no tiene presencia salvo en la oposición que se vive como una amenaza que desaparece sólo cuando éste se somete.”
Humberto Maturana, “Biología y Violencia”
As sociedades humanas só existem quando os seus componentes são sócios, isto é, quando participam na definição da estrutura e no funcionamento espacial e metabólico (anatomia e fisiologia) da associação, isto é, nas condições da democracia radical e integral.
As relações entre humanos baseadas na exigência, na dominação e no submetimento não constituem relações sociais. Estas, para o serem, terão de se basear nas condições que tornaram possível a nossa própria existência como humanos bio-sociais, isto é, na aceitação da legitimidade dos outros (amor) e na colaboração.
Por isso, apesar da partilha de numerosos elementos culturais entre muitos indivíduos de uma mesma “nação”, esta não constitui uma sociedade enquanto estiver fraccionada por classes sociais, por grupos que não colaboram voluntariamente, que não participam como iguais e que, independentemente das aparências de mútua tolerância, de facto se excluem.
As chamadas “sociedades humanas” actuais não passam, por isso, de simples comunidades de humanos, constituídas por populações internamente diferenciadas e quase sempre em oposição que partilham um território e momento de existência comum. Daí a coexistência, mais ou menos conflitiva, numa mesma nação da actualidade, de diferentes culturas ou “modos de entendimento e de viver”, a aristocrático-burguesa, a pequeno-burguesa, a camponesa, as das tribos urbanas, a proletária...
No entanto, se já foi longo e árduo o caminho trilhado, desde os reencontros de há alguns milhares de anos, no sentido da progressiva integração de todos os humanos numa única Sociedade Humana Global, muito mais caminho e contradições haverá a percorrer e a vencer até à sua concretização, por mais “globalizado” que pareça estar o mundo.
A actual resistência ao “unilateralismo” e a reivindicação do “multiculturalismo” não constituem mais do que elementos de uma etapa ainda primária desse processo de integração, na qual se procura “democratizar” o uso da violência à escala global e, por outro lado, reivindicar a legitimidade da existência de grupos culturalmente diferentes contra a exclusão (hoje massiva) e o genocídio (hoje selectivamente admitido e praticado).
Qual é a diferença entre a “excepcionalidade” norte-americana e a “raça superior” nazi, para além de esta se basear na “superioridade” genética e aquela na “superioridade” cultural (do seu modo de operar)? Em qualquer caso, consideram-se ambos organismos (ser vivo + modo de operar) como únicos e superiores! Na mesma linha dos “eleitos de Deus” ou “Povo de Deus”...
O modo como cada vez mais humanos, por todo o mundo, vão partilhando e incorporando elementos provenientes de culturas diferenciadas, muito equivalente ao modo como as bactérias procarióticas (sem núcleo) trocavam livremente genes entre si ou assimilavam simbiontes, consoante as necessidades, sugere que o futuro da Humanidade, passada a fase da afirmação impositiva e generalizada da cultura burguesa, reunirá, para uso comum, uma extraordinária “biblioteca social” (de “Alexandria”) reunindo todos os elementos relevantes de todas as culturas existentes e todos os elementos que, em desuso, possam ajudar à reconstituição do passado histórico ou que possam vir ainda a ser reincorporados activamente na Cultura, em fases futuras (ver, a este respeito, Jared Diamond, “O Mundo até Ontem”).
Assim como o ADN de qualquer organismo vivo (uni ou multicelular) constitui a “biblioteca biológica” que enforma a sua estrutura e metabolismo que permite um “modo de viver” viável, também a Cultura (“modo de viver” que se viabilizou em permanente deriva) constitui a “biblioteca social evolutiva” que enforma a estrutura, o metabolismo e modo de vida de cada sociedade humana em cada momento.
Estas, pois, são caracterizadas pelas respectivas Culturas, constituindo o processo da sua progressiva convergência para numa única Sociedade Humana Global um processo contínuo de competição, cooperação e simbiose culturais, equiparável ao que se verificou e continua a verificar ao longo da evolução da vida às mais variadas escalas.
Porém, o que ressalta de modo mais significativo do desenvolvimento das ciências biológicas e da antropologia, são:
a) A autonomia de cada ser vivo, compreendendo, naturalmente, os humanos, e, no que respeita a estes, a sua dupla, simultânea e não contraditória natureza individual e social, o que quer dizer, em palavras simples, que cada indivíduo humano, ao mesmo tempo que não se “dissolve” na sociedade, só pode existir, enquanto tal, nela incluído e nela participando.
b) Pelo isolamento físico do cérebro relativamente ao exterior, todo o conhecimento humano sobre a Realidade exterior, as ideias, os “conhecimentos científicos”, as teorias, ideologias, doutrinas, mitos, etc., são construídos “no interior” pelo cérebro, com base na estrutura neuronal de partida e na experiência vivida por cada um, isto é, o Conhecimento é sempre “construído” sobre uma base cultural adquirida e na perspectiva de cada indivíduo.
c) Não existe, portanto, um “socialismo científico” formulado de forma “definitiva”, simplista e mecânica, como a lei da gravidade tal como hoje é conhecida. Marx e Engels não tiveram “culpa” de, no seu tempo - como não poderia deixar de ser - serem as “ciências mecânicas” que predominavam. Tiveram, contudo, porque eram dialécticos, a clarividência de não instituírem nenhuma daquelas “leis mecanicistas” com que a generalidade dos revolucionários foram teoricamente massacrados pela maior parte dos “grandes líderes” ao longo do século XX.
d) Continua, no entanto, em lugar desse “socialismo científico”, a ter todo o cabimento uma (ou melhor, várias) ideia(s) de Socialismo, construídas com base nos mais avançados conhecimentos científicos, despindo a palavra “cientifico” da sua actual carga mitológica de “certeza” e do seu pavoroso distanciamento ético dos objectivos fundamentais da Humanidade.
e) Assim como as “certezas científicas” ruíram, nas ciências físicas, pelas descobertas ao nível sub-atómico e, mais tarde, no âmbito dos sistemas não lineares e do caos, também no âmbito das ciências da vida (biologia, ecologia, antropologia, e “ciências sociais” em geral) o pensamento científico deriva cada vez mais para a incorporação dos princípios da Complexidade (que amplia e reformula os conceitos de Materialismo e Dialéctica), como brilhantemente exposto por Edgar Morin em toda a sua obra, designadamente em “O Método”.
f) Assim, os conceitos base sobre Socialismo e sobre os processos reais, práticos, de transformação e desenvolvimento revolucionário dos sistemas sociais (alterações estruturais no acoplamento dos seres humanos com o meio, social e natural), não poderão deixar de reflectir as novas aquisições do Conhecimento, designadamente quanto à interacção recíproca entre as “Condições Objectivas e Subjectivas” e quanto às configurações gerais do que poderá vir a ser uma Sociedade Socialista.
g) Principalmente, a ideia do Socialismo deverá ser acompanhada, em todas as suas dimensões e circunstâncias, pela mais radical Democraticidade e por um irrepreensível conteúdo Ético, tanto relativamente ao universo humano (empatia, respeito humano, inclusão social, cooperação, ou, por outras palavras, Liberdade, Igualdade e Fraternidade, no seu sentido original, revolucionário), como relativamente a toda a biosfera e aos ciclos naturais planetários.
“Hemos querido reemplazar el amor por el conocimiento como guía en nuestro quehacer y en nuestras relaciones con otros seres humanos y con la naturaleza toda, y nos hemos equivocado. Amor y conocimiento no son alternativos, el amor es un fundamento mientras que el conocimiento es un instrumento. Más aún, el amor es el fundamento del vivir humano, no como una virtud sino que como la emoción que en lo general funda lo social, y en particular hizo y hace posible lo humano como tal en el linaje de primates bípedos a que pertenecemos y al negarlo en el intento de dar un fundamento racional a todas nuestras relaciones y acciones nos hemos deshumanizado volviéndonos ciegos a nosotros mismos y a los otros.”
Humberto Maturana, Prefacio à segunda edição de “De Máquinas y Seres Vivos – Autopoiesis, La Organización de lo Vivo”
3. Bases Teóricas – Questionamentos A Dinâmica da História Humana
“... É importante começarmos a desenhar uma baliza e iniciarmos diálogos fundados nas mesmas definições, com igual entendimento das palavras e dos conceitos. As palavras e os conceitos são vivos, escapam escorregadios como peixes entre as mãos do pensamento. E como peixes movem-se ao longo do rio da História. Há quem pense que pode pescar e congelar conceitos. Essa pessoa será quanto muito um coleccionador de ideias mortas.”
Mia Couto, “Pensatempos – Uma cidadania à procura da sua cidade”
Analisando as circunstâncias do seu tempo, num período em que a história humana não passava de uma enorme quantidade de registos e de lembranças com pouca utilidade para a gestão do presente e nenhuma para a perspectivação do futuro, Marx descobriu a importância da estratificação das sociedades em classes sociais e da luta de classes como pedras basilares para a compreensão dos fenómenos sociais e políticos na presença dos quais se encontrava.
Até então, a história, eternamente recontada, servia como uma espécie de teologia justificadora da legitimidade dos sistemas de Poder instituídos ou, quanto muito, na perspectiva de alguns indivíduos cultos e racionais, como inspiradora da arte de bem governar, como no “Príncipe” de Maquiavel, incidindo, fundamentalmente, sobre as qualidades pessoais (ou falta delas) dos indivíduos exercendo funções de direcção social.
Reflectindo as classes sociais o posicionamento dos indivíduos e dos diversos grupos sociais no sistema geral de produção e distribuição (no que veio a designar-se por economia) em resultado, portanto, da divisão social do trabalho, Marx estudou profundamente a economia do seu tempo e evidenciou que os acontecimentos políticos verificados na “superstrutura” da sociedade eram reflexo das dinâmicas produtivas e distributivas, tanto no sentido de potenciar como de refrear o desenvolvimento das forças produtivas sociais.
Analisando toda a história passada da humanidade com base nos dados disponíveis no seu tempo, Marx e Engels formularam a sua teoria do desenvolvimento social através da luta de classes e ofereceram uma leitura articulada e coerente da história humana assente, pela primeira vez, em fundamentos científicos.
Foi com base nesses fundamentos e na identificação da luta de classes como “motor” da História que Marx e Engels, quais “Newtons” da emergente ciência social, se atreveram a prever a trajectória futura da Sociedade Humana, o esgotamento das potencialidades do Capitalismo e a sua substituição pelo Socialismo com base na acção revolucionária do Proletariado.
Segundo a teoria de Marx, quando um determinado modo de produção (que inclui as forças produtivas e as relações de produção), esgota as suas capacidades de desenvolvimento das forças produtivas, as contradições entre os diversos grupos/classes sociais que participam em todo o processo produtivo (como produtores ou apropriadores e, portanto, com interesses antagónicos) agudizam-se, manifestam-se sob a forma de luta de classes, e entra-se num período de revolução social que estabelece um novo quadro das relações de produção e desbloqueia o processo de desenvolvimento das forças produtivas.
Contudo, os contributos de Marx e Engels, sendo fundamentais e essencialmente correctos, não explicam toda a gama de fenómenos sociais, económicos, culturais e políticos ocorridos no passado das sociedades humanas nem, muito menos, conseguem iluminar com rigorosa clareza os caminhos do futuro. A “Física” das sociedades humanas é muito mais complexa do que uma simples fórmula matemática a que alguns dos seus interpretadores reduziram o seu pensamento.
No sentido colocado por Marx, o desenvolvimento das forças produtivas parece adquirir um carácter teleonómico, parece constituir a finalidade do processo histórico de evolução social. Por sua vez, a luta de classes constituiria o “motor”, o instrumento através do qual esse processo seria impulsionado.
De onde decorre essa categoria de desenvolvimento das forças produtivas, que parece assumir uma relevância tão central?
Como explicar o processo de evolução social antes da estratificação social em classes e, no futuro, no quadro de uma sociedade sem classes?
Por isso, à luz dos Fundamentos teóricos referidos no número anterior, procuraremos, de seguida não só enquadrar as categorias de Marx como formular alguns Questionamentos.
Antes de mais, porém, importa extrair desses Fundamentos algumas conclusões:
Teleonomia – Finalidade
Jacques Monod, no seu livro O Acaso e a Necessidade, refere como finalidades da Vida a sua conservação e reprodução; Robert Sapolsky refere a orientação dos comportamentos humanos (dos seres vivos em geral) para a transmissão dos seus genes para as gerações futuras. Maturana e Varela, por outro lado, prescindem da teleonomia e apresentam a reprodução como uma consequência fenoménica de uma autopoiesis que se complicou e que vigorou no âmbito do processo de selecção.
“Nos sistemas vivos terrestres actualmente conhecidos, a autopoiesis e a reprodução estão directamente acopladas e, portanto, estes sistemas são auto-reprodutores. Com efeito, neles a reprodução é um momento da autopoiesis e o mesmo mecanismo que constitui uma constitui a outra.”
Humberto Maturana e Francisco Varela, “De Máquinas e Seres Vivos – Autopoiesis: a Organização do Vivo”
Podemos admitir que a Vida não tem qualquer finalidade/objectivo fora de si própria mas que, determinados tipos de seres vivos, resultantes de uma perturbação autopoiética acidental, adquiriram propriedades reprodutivas, que resultaram favorecidos pelo processo de selecção e, consequentemente, deram continuidade ao fenómeno da reprodução acoplado ao processo da auto-produção e conservação.
Se a reprodução não tivesse emergido e se não se tivesse “consolidado”, a autopoiesis, e consequentemente a Vida, teria de se recriar continuamente de modo autónomo e espontâneo.
Poderá, pois, admitir-se, no máximo, que a reprodução, enquanto fenómeno, tenha adquirido valor teleonómico, já que a “conservação” coincide com a própria autopoiesis, com a realização do vivo.
Por consequência, não constituindo o “desenvolvimento das forças produtivas” um desígnio da Vida, qual a razão da sua emergência no espaço social e qual a sua importância para a configuração de um futuro desejável?
A sua emergência decorre como projecção no “exterior”, no espaço social e no espaço natural cósmico-planetário, através do acoplamento estrutural com o meio, das características, “interiores”, constitutivas dos seres vivos, a autopoiesis e a reprodução.
A primeira dessas características, a autopoiesis, que se reproduz inteiramente no âmbito dos organismos multicelulares, projecta-se e condiciona as manifestações do vivo no meio natural e em sistemas de agregação de 3º grau, em sistemas sociais, através da conservação da autonomia, da identidade e da eficiência da “máquina bioquímica” ao nível celular, impulsando:
a) A tendência de todos os seres vivos para se auto-produzirem (autonomia e identidade) e conservarem a sua organização nos mais variados e dinâmicos contextos através do exercício do que hoje conhecemos como prudência, segurança, mobilidade geográfica, aprendizagem-conhecimento e criatividade-inovação;
b) As tendências “maquinais”, tanto no plano individual (automatismos, rotinas) como das mais diversas estruturas sociais (processos produtivos/empresas, estruturas militares e do Estado, partidos políticos, organizações associativas, etc.);
c) A tendência para a optimização (energética, não desperdício-máxima reciclagem de produtos, etc.) dos processos produtivos em qualquer patamar de desenvolvimento, isto é, os factores qualitativos/intensivos do desenvolvimento das forças produtivas, incluindo a divisão social do trabalho.
A segunda característica fundamental dos seres vivos, a reprodução, condiciona quase todos os restantes aspectos dos universos sociais dos animais, incluindo os humanos, manifestando-se:
a) Nas estratégias e na organização da sexualidade/afectividade (bandos familiares, clãs, tribos..., incluindo o acesso às mulheres/selecção dos homens para procriação);
b) Na organização e nas dinâmicas internas dos agrupamentos sociais, designadamente nos cuidados relativamente aos filhos, incluindo a transferência cultural inter-geracional (empatia, amor, cooperação, solidariedade...);
c) Na tendência acumulativa (de energias, de bens...) e na emergência do hereditarismo, com vista a assegurar as melhores condições de sucesso para as gerações futuras;
d) Nas tendências “territoriais” de controlo de recursos de sobrevivência disponíveis com vista a suportar a tendência para o contínuo crescimento das populações (nos factores quantitativos/extensivos do desenvolvimento das forças produtivas), incluindo a organização por unidades político-territoriais (das mais elementares aos impérios), etc.;
e) A emergência no âmbito da noosfera humana (o universo mental, das ideias, teorias, mitos, ideologias, crenças e conhecimentos) de um “ser” mitológico dotado de capacidades reprodutivas ampliadas, o Capital, inicialmente parceiro da Razão e da Ciência, mas que a eles se sobrepôs e os fez subordinar;
f) Na busca do conhecimento que permita a antecipação do futuro (previsão, planeamento...).
Essas duas características com valor teleonómico dos seres vivos, a autopoiesis e a reprodução, coexistem e interpenetram-se, de modo integral, no “interior” de cada ser vivo (no âmbito autopoiético molecular), e “projectam” a sua influência condicionante/quase determinante, igualmente interpenetrada e segundo formas “menos óbvias/modificadas”, no seu “exterior”, isto é, no âmbito do acoplamento estrutural com o meio, designadamente na organização e nas dinâmicas dos sistemas sociais.
Acoplamento Estrutural, Cultura e Modos de Produção
As formas (múltiplas e com imensas variantes) de acoplamento estrutural dos seres vivos com o meio (com os outros seres vivos, da mesma espécie ou não, e com o meio natural cósmico-planetário), incluindo as interpretações da realidade exterior e as decisões operacionais formuladas pelos respectivos cérebros (sapiens e demens, no caso dos humanos), dão corpo às suas mais diversas Culturas.
Nota: O conceito amplo de Cultura aqui referido, como um sistema de componentes mentais e comportamentais/de organização/de comunicação/de acção/”de fazer”, partilhados pelos indivíduos humanos em processo de deriva conjunta (membros de uma mesma formação social), os quais caracterizam o seu tipo específico de acoplamento estrutural com o meio, não deve ser confundido com o significado restrito e vulgar de “cultura”, como prática de produção ou consumo da ideologia burguesa, ou como momento fugaz de evasão a ela, de “resistência” e de revigoramento da autonomia e da espiritualidade humana.
Entre muitos outros aspectos da vida humana, essas Culturas especificam, no decurso da sua deriva congruente com o meio, os mecanismos (sistemas de relações de organização, meios de trabalho e procedimentos técnico-operativos) de selecção, obtenção, transporte, reserva, transformação e distribuição para consumo dos produtos da natureza necessários à satisfação das necessidades dos correspondentes seres vivos, no plano autopoiético e reprodutivo. No caso dos humanos modernos, algumas actividades conexas obtiveram alguma proeminência, como a investigação científica e a inovação tecnológica e de gestão...
No âmbito dos sistemas sociais humanos, Marx designou esses sistemas como modos de produção, considerando serem constituídos por forças produtivas e relações de produção.
Marx e Engels identificaram e caracterizaram diversos modos de produção: o comunismo primitivo, o modo de produção asiático, o esclavagista, o feudal e o capitalista.
Esses modos de produção, para além de não serem estritamente sequenciais, pois, numa mesma formação social humana coexistem vários durante longos períodos de tempo, também raramente se apresentam numa forma standard, antes revelando uma grande diversidade de variantes, dependentes do modo como esse modo de produção se articula, com coerência, no âmbito de cada Cultura particular.
Desde que os grupos sociais humanos começaram a reencontrar-se, após milhares de anos de dispersão pela superfície do planeta, durante os quais adquiriram algumas diferenciações biológicas de natureza adaptativa e significativas diferenciações culturais, as diferentes formações sociais foram incorporando crescentes quantidades de indivíduos e tornando-se cada vez menos homogéneas, biológica e culturalmente.
Ao mesmo tempo, no seio de cada uma dessas formações, diversificaram-se os modos de produção e, dentro destes, as tecnologias e processos produtivos, aumentando ainda mais a sua complexidade interna.
Muitos aspectos desta complexidade não foram objecto de estudo atento por Marx, que já muito conseguiu fazer ao estabelecer o “quadro geral” coerente da dinâmica social.
Competiria aos estudiosos seus seguidores aprofundar o zoom da sua análise e revelar, para cada caso concreto, as restantes variáveis de complexidade que influenciam os processos de transformação social. Porém, as circunstâncias realmente existentes, designadamente de forte acossamento da U.R.S.S. desde os seus primeiros momentos, conduziram, apesar da NEP (Nova Política Económica, baseada no reconhecimento e coexistência de vários modos de produção) e dos cuidados tidos quanto às diversidades étnicas, a uma extrema simplificação das análises e das “soluções”, tendo prevalecido um “modelo simplificado” baseado no potencial revolucionário das grandes “concentrações operárias” então existentes.
Confrontados com o idealismo filosófico prevalecente no seu tempo, Marx e Engels valorizaram correctamente a importância determinante das relações sociais de produção na formação dos universos mentais (a “superestrutura”) nas diversas formações (sistemas) sociais.
“A produção de ideias, de representações e da consciência está em primeiro lugar directa e intimamente ligada à actividade material e ao comércio material dos homens; é a linguagem da vida real. As representações, o pensamento, o comércio intelectual dos homens surge aqui como emanação directa do seu comportamento material. O mesmo acontece com a produção intelectual quando esta se apresenta na linguagem das leis, política, moral, religião, metafísica, etc., de um povo. São os homens que produzem as suas representações, as suas ideias, etc., mas os homens reais, actuantes e tais como foram condicionados por um determinado desenvolvimento das suas forças produtivas e do modo de relações que lhe corresponde, incluindo até as formas mais amplas que estas possam tomar. A consciência nunca pode ser mais do que o Ser consciente e o Ser dos homens é o seu processo da vida real. E se em toda a ideologia os homens e as suas relações nos surgem invertidos, tal como acontece numa câmara obscura isto é apenas o resultado do seu processo de vida histórico, do mesmo modo que a imagem invertida dos objectos que se forma na retina é uma consequência do seu processo de vida directamente físico. (...) “Isto significa que não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam e pensam nem daquilo que são nas palavras, no pensamento na imaginação e na representação de outrem para chegar aos homens em carne e osso; parte-se dos homens, da sua actividade real. É a partir do seu processo de vida real que se representa o desenvolvimento dos reflexos e das repercussões ideológicas deste processo vital. Mesmo as fantasmagorias correspondem, no cérebro humano, a sublimações necessariamente resultantes do processo da sua vida material que pode ser observado empiricamente e que repousa em bases materiais. Assim, a moral, a religião, a metafísica e qualquer outra ideologia, tal como as formas de consciência que lhes correspondem, perdem imediatamente toda a aparência de autonomia. Não têm história, não têm desenvolvimento; serão antes os homens que, desenvolvendo a sua produção material e as suas relações materiais, transformam, com esta realidade que lhes é própria, o seu pensamento e os produtos desse pensamento. Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência.”
Karl Marx e Friedrich Engels – A Ideologia Alemã
Essa valorização, contudo, veio esbater a importância de muitos outros elementos culturais existentes em cada formação social específica, os quais reflectem aspectos da mundivivência vindos do passado histórico correspondentes a modos de produção material ainda subsistentes e em progressivo declínio, no âmbito das relações familiares, das crenças religiosas e tantas outras atitudes mentais/espirituais quanto às relações humanas, com a biosfera e o cosmos.
Assim, verificou-se pela prática, designadamente da U.R.S.S., que os modos de produção, constituindo embora partes importantes, estruturantes das Culturas, dos modelos de acoplamento estrutural com o meio, não as determinam de modo tão absoluto como foi suposto pelo “modelo simplificado” de transformação social que foi posto em prática, segundo o qual bastaria uniformizar os modos de produção pré-existentes num novo modo de produção socialista baseado na propriedade colectiva dos meios de produção e uniformizar a sociedade pela bitola proletária para que daí nascesse, espontânea e “automaticamente” o “homem novo”, racionalista e técnico-científico, “objectivo”, realista, “do futuro”, desprovido de mitos, religiões e outros elementos de espiritualidade próprios de um passado “selvagem e bárbaro”, dos tempos em que o Homem ainda não “dominava a Natureza”.
Consequentemente, nem este é o “figurino” do “homem novo”, nem a Revolução se pode limitar a uma “reengenharia” (mecanicista ou cibernética) dos modos de produção, muito menos “à martelada”.
O “Homem Novo” será o que tiver de ser, a partir do que façamos hoje, tanto podendo vir a ser, na melhor das hipóteses, um ser, individual e social, com um acoplamento estrutural congruente com o meio que lhe assegure a realização autopoiética e reprodutiva da Vida, como poderá vir a ser, no outro limite, um monte de cinzas resultante de um colapso civilizacional (de uma guerra nuclear pelo poder, por exemplo) ou de um processo natural (ou induzido pela soberba humana) de extinção em massa.
Poderemos imaginar que o “Homem Novo” não venha a ser tão “maquinal” que se transforme numa espécie de formiga nem tão “criativo” que se transforme numa tempestade demencial; que não venha a ser tão “emocional” que rejeite qualquer pensamento lógico nem tão racionalista que fique desprovido da Ética que nasce das emoções; que não venha a ser tão individualista que morra de solidão nem tão “socialista” que morra dissolvido numa qualquer “massa”; nem tão “territorial” que não consiga voar nem tão “cósmico-planetário” que não tenha onde pousar; nem tão “material” que cristalize nem tão “espiritual” que se desagregue.
Em todas as fases de desenvolvimento/evolução dos hominídeos (como de outras espécies) se depararam circunstâncias, de origem biológico-social ou decorrentes de alterações do meio natural, que puseram em risco a continuidade e homeostasia das suas características teleonómicas. Os grupos que não conseguiram resolver esses bloqueamentos extinguiram-se; os que “revolucionaram” os seus acoplamentos estruturais, sociais e naturais, prosseguiram em “deriva evolutiva congruente com o meio” e encontraram outros patamares de viabilidade ou de Bem-Viver.
A Revolução/Transformação social que hoje se torna necessária não se reduz, portanto, à mudança de modo de produção, devendo, para além disso, estimular, promover, facilitar a reeestruturação do acoplamento estrutural dos humanos (de cada um e colectivamente) com o meio, em todos os seus âmbitos e dimensões, de modo a ultrapassar as demasiadas incongruências que se acumularam, na relação de cada um consigo próprio, com os outros humanos, com a biosfera e com o sistema cósmico-planetário, as quais põem em risco a espécie humana tal como resultou de muitos milhares de séculos de evolução natural.
A Revolução deverá ser, por isso, uma Revolução Cultural, em todas as dimensões da Cultura, tendo como finalidade, como desígnio, o Bem-Viver, correspondendo este a um estado homeostático, pessoal e social, no qual as duas características teleonómicas dos seres vivos acima enunciadas, autopoiesis e reprodução, se realizam plena e estavelmente.
Sobre o “Desenvolvimento das Forças Produtivas”
A leitura marxista da história humana segundo o processo de desenvolvimento das forças produtivas, constitui uma brilhante aproximação a um quadro explicativo mais vasto e complexo, a partir das características teleonómicas da vida humana; este novo quadro explicativo, só possível de desenvolver colectivamente, a partir de muito conhecimento já adquirido mas desconectado entre si e das contribuições de muitos outros estudos, seria capaz de responder de modo mais completo à diversidade de fenómenos sociais.
Essa aproximação foi brilhante porque, para além de ter sido conseguida com a tão reduzida e rudimentar matéria-prima de Conhecimento disponível no seu tempo, ainda hoje, após cerca de 150 anos, se apresenta como a explicação da história mais coerente, quase como a única globalmente coerente. Quanto muito, terá, segundo os seus críticos, algumas falhas/lacunas...
Fundamento biológico
O fundamento biológico do desenvolvimento das forças produtivas reside tanto na eficiência maquinal da autopoiesis como na tendência natural de, através da reprodução, a população de qualquer espécie de seres vivos crescer exponencialmente, se para tal dispuser dos necessários recursos, como, aliás, tem ocorrido com a espécie humana nos últimos duzentos anos.
No conjunto da biosfera, costuma designar-se por instintos tanto as manifestações directas da autopoiesis e da reprodução nos comportamentos dos indivíduos (autopoiéticos e reprodutores) como as suas projecções nas suas agregações sociais. Por isso, as respectivas forças produtivas, incluindo as respectivas capacidades de aprendizagem, são institivas, isto é, modeladas directamente pelos factores teleonómicos da vida. Existem contudo numerosas espécies sociais nas quais, para além desses instintos, ocorrem processos cerebrais-mentais (induzidos pela própria socialização) que lhes permitem formas limitadas de desenvolvimento das respectivas “forças produtivas” (aumento da eficiência “produtiva” pela acção combinada de vários indivíduos na caça, utilização de ferramentas rudimentares por primatas e aves, práticas de agricultura por térmitas, técnicas de conservação de alimentos, utilização de bolhas de ar para cercar peixes por golfinhos, etc.).
Por essa razão, de um modo geral, a tendência de crescimento exponencial das populações só se encontra limitada pela disponibilidade de recursos de sobrevivência para as populações existentes e é compensada, quando não de forma catastrófica originada em eventos cósmico-planetários, por períodos de regressão populacional decorrentes do entre-fluir das diversas espécies na cadeia alimentar.
No caso dos humanos que, para além das características que partilham com todos os outros seres vivos, estão dotados de uma forte capacidade de desenvolvimento de forças produtivas (aptidões intelectuais que lhes permitem a aquisição de conhecimentos complexos e o desenvolvimento de instrumentação e processos tecnológicos eficientes), os limites para o crescimento populacional contínuo (ou exponencial) são fixados por uma equação que inclui:
- a disponibilidade de recursos naturais renováveis;
- as necessidades globais de consumo (população x consumo per capita);
- o nível de desenvolvimento das forças produtivas.
Naturalmente, tal equação genérica não tem qualquer utilidade enquanto os humanos não pensarem os seus problemas como de toda a espécie, à escala planetária, mas somente como do seu próprio grupo social. Por essa razão, cada formação social procura controlar o máximo de recursos (mesmo que residam nos “territórios alheios”), só considera as suas necessidades de consumo (sendo indiferentes a que outros não tenham o mínimo) e promove o máximo desenvolvimento das forças produtivas (em primeiro lugar para fins bélicos, de defesa ou de dominação).
Algumas definições essenciais
Para os menos iniciados, recorda-se o que se considera “forças produtivas” e “meios de produção”:
As forças produtivas reflectem a aptidão dos grupos humanos para obterem do meio natural todos os elementos necessários à conservação da autopoiesis e da reprodução dos seus elementos eincluem o próprio homem enquanto produtor, com todas as suas capacidades intelectuais e Cultura (científica, técnica, cívica e criativa) e os meios de produção.
Por sua vez, os meios de produção incluem os recursos naturais disponíveis/conhecidos, directos ou já transformados, a energia, a maquinaria e instrumentos de trabalho, as infraestruturas, instalações e equipamentos de todo o tipo (de transportes, de comunicações, logísticas, energéticas, edificações, etc.), as soluções e procedimentos organizacionais e de comunicação, as técnicas e procedimentos utilizados na produção, a informação e demais elementos (designadamente serviços comuns/públicos de variado tipo, centros de estudos, investigação e desenvolvimento, etc.) necessários à produção de bens materiais e dos serviços.
Convém ainda referir que o “desenvolvimento das forças produtivas” se pode verificar em duas dimensões:
- Quantitativa/Extensiva: traduz-se tanto no aumento do número de indivíduos incorporados no trabalho social como no aumento numérico e na elevação das características dos meios de produção, tais como o número de equipamentos e a sua potência, a quantidade de recursos naturais mobilizados, etc., em suma, nos factores que imediatamente poderão ser mobilizados para a satisfação das necessidades sociais, especialmente quando os factores qualitativos se encontram pouco desenvolvidos.
- Qualitativa/Intensiva: traduz-se no desenvolvimento das capacidades produtivas do Homem (adequada divisão social do trabalho; satisfação pessoal, segurança, conhecimento), no desenvolvimento científico e tecnológico, na melhoria constante dos métodos e critérios de organização e gestão social, na mobilização optimizada dos recursos naturais em função dos ciclos e dos processos naturais, na preservação do ambiente (urbano, rural e natural), etc., em suma, nos factores que, em cada época e circunstância, conduzem à optimização económica, humana e social das actividades produtivas para satisfação das necessidades humanas, num quadro de harmonia e sustentabilidade a longo prazo com as condições cósmico-planetárias e com toda a biosfera.
Estas definições reflectem o ponto de vista do autor, pelo que poderão ser diferentes de outras já publicadas e que são normalmente aceites.
Um conceito muito utilizado em associação com o desenvolvimento das forças produtivas é o do contínuo aumento da produtividade do trabalho.
Na perspectiva capitalista, o aumento da produtividade do trabalho é relevante pois faz baixar os custos unitários da produção e, consequentemente, aumentar as taxas de lucro.
Numa perspectiva socialista, a maximização da produtividade do trabalho social visa reduzir ao máximo a quantidade de trabalho social, directo e indirecto, necessário à produção de todos os bens e serviços para a plena satisfação das necessidades sociais e dos cidadãos individualmente considerados. Em consequência, o seu objectivo consiste em reduzir ao máximo a jornada de trabalho social obrigatória e proporcionar as melhores condições para que os indivíduos se dediquem à fruição de uma vida plena, em harmonia com a Natureza e com todos os outros, ao seu desenvolvimento cultural e social, à criação artística, à antecipação do futuro e à resolução de novos problemas e necessidades, pessoais e sociais, isto é, a uma preguiça pessoal e socialmente estimulante, enriquecedora.
Contudo, no parágrafo anterior ainda foi utilizada, de modo equívoco, a expressão jornada de trabalho social obrigatória como se o trabalho não tivesse constituído, durante a maior parte da história da humanidade, e não venha a constituir no futuro, uma actividade tão livre, tão “natural” e necessária, como comer, respirar, contemplar, sexuar, brincar, criar ideias, experimentar, etc., fazendo parte, simplesmente, do viver como humano, do humanizar.
“..., y en el silencio de mis horas de reposo, me pregunté por el sentido de la vida y el vivir. Mi respuesta fue entonces, y aún lo es, que la vida no tiene sentido fuera de sí misma, que el sentido de la vida de una mosca es el vivir como mosca, mosquear, sermosca, que el sentido de la vida de un perro es vivir como perro, vale decir, serperro en el perrear, y que el sentido de la vida de un ser humano es el vivir humano al serhumano en el humanizar. Y todo esto en el entendido de que el ser vivo es sólo el resultado de una dinámica no propositiva.”
Humberto Maturana, Prefácio à segunda edição de “De Máquinas y Seres Vivos – Autopoiesis, La Organización de lo Vivo”
Compreende-se hoje muito melhor do que no passado, face aos limites de utilização dos recursos naturais finitos, que não bastará elevar a produtividade do trabalho social, mas que é igualmente essencial aumentar a produtividade da utilização desses recursos naturais num quadro de sustentabilidade a longo prazo da biosfera no seu conjunto, incluindo a interacção fluida entre toda a diversidade biológica planetária.
Equívocos e distorções
A formulação marxista do desenvolvimento das forças produtivas que propicie níveis de produção que satisfaçam todas as necessidades da sociedade “de modo que cada membro da sociedade seja posto em condições de desenvolver e exercitar com absoluta liberdade todas as suas energias e aptidões”, não só esclarece o carácter instrumental do “desenvolvimento das forças produtivas” como esclarece a essência da ideia Socialista.
Formulada e difundida num caldo cultural apologético da ciência e da tecnologia, mecanicista/determinístico e radicalmente “anti-espiritualista”, a tese do desenvolvimento das forças produtivas induziu a interpretações equivocadas, com consequências negativas na acção das forças revolucionárias sociais, segundo uma perspectiva reducionista/produtivista/economicista que desprezou e tratou como “ruídos” outros aspectos essenciais da vida humana e do desenvolvimento social.
O primeiro equívoco consiste em considerar o desenvolvimento das forças produtivas como um desígnio do processo histórico, quando ele tem, unicamente, um valor instrumental:
- Em primeiro lugar, enquanto instrumento essencial para a satisfação das necessidades humanas directamente associadas à manutenção da autopoiesis e do processo reprodutivo;
- E, no quadro da divisão social do trabalho segundo funções de produção e de defesa/segurança/direcção política (e da subsequente estratificação social entre “classes dominantes/exploradoras” e “classes oprimidas e exploradas”), como instrumento e condição de acumulação ininterrupta de riqueza e Poder.
O primeiro desses domínios tem-se manifestado permanentemente, ao longo de toda a evolução dos hominídeos e, especialmente, durante toda a existência do homo sapiens.
Durante muitos milénios, com níveis populacionais muito baixos, bastava aos humanos deambular pela superfície do planeta para obterem directamente da natureza os recursos necessários à vida. Durante esse longo período, o “desenvolvimento das forças produtivas” verificou-se: ao nível do próprio homem, pela aquisição e transmissão de um conhecimento cada vez mais enciclopédico quanto aos ciclos cósmico-planetários, aos ciclos vitais de plantas e animais e às formas da sua utilização, no plano social, pela adopção de formas de organização adequadas às actividades a efectivar, e, ao nível da tecnologia, pelo progressivo melhoramento da eficiência dos instrumentos que usava, como acessórios e extensões do seu próprio corpo. Os humanos viviam então interpenetrados com o meio natural, tendo consciência desse facto.
Esse “conhecimento enciclopédico” acumulado sobre os ciclos vitais de plantas e animais, constituiu a base para o início da agricultura (já “inventada” por algumas bactérias desde há mais de 2.000 milhões e pelas térmitas desde há cerca de 150 milhões de anos) e da criação de animais, trazendo com ela novos modelos de organização social (estruturas e relações) e proporcionando as condições para um maior ritmo de crescimento populacional.
Tendo sido iniciado em algumas zonas específicas mais favoráveis, a agricultura e as correspondentes formas de organização social e factores culturais levaram alguns milhares de anos a difundir-se por todo o planeta. Apesar da sucessiva introdução de factores de maior eficiência/produtividade – selecção de sementes e animais, utilização da água, rotação de culturas, tracção animal, melhoria de ferramentas e processos, desenvolvimento das trocas/comércio, modelos de organização/gestão, etc. - o ciclo de desenvolvimento das forças produtivas que se seguiu foi predominantemente extensivo, tendendo à ocupação de todas as áreas favoráveis do planeta.
Como resultado, a população humana mundial cresceu de cerca de 1 milhão de indivíduos no ano 10.000 a.C. para cerca de 1 bilião em 1800 d.C..
O ciclo de desenvolvimento das forças produtivas (humanas e tecnológicas) que foi iniciado há pouco mais de 200 anos com a Revolução Industrial (sucessivamente mecânica e metalúrgica, eléctrica, química, electrónica, informática, cibernética, nuclear e biotecnológica) e a afirmação do modo burguês-capitalista de organização social, foi prosseguido sem considerar qualquer limitação de recursos naturais e, consequentemente, sem qualquer limitação dos consumos possíveis.
A energia desentranhada da Terra sob a forma de carvão, petróleo, gás natural e materiais “nucleares”, bem como a descoberta de todos os modos de a metamorfosear e inocular em todos os processos económico-produtivos (agricultura e criação de animais, mineração, transformação, conservação, transporte...) e sociais (mobilidade, superação da escuridão nocturna, produção e difusão de conhecimentos, ideias e mitos, para além de armamentos...) sem olhar a outras consequências senão as mais imediatas, de obtenção de lucro e de consumo, permitiu à espécie humana um êxito biótico extraordinário que nos levou de uma população total de cerca de 1 bilião de indivíduos para os actuais mais de 7 biliões.
O crescimento populacional durante a fase essencialmente agrícola (10.000 a.C. até 1800 d.C.), apesar de bastante moderado e com alguns períodos de estagnação e retrocesso, fez incrementar os encontros dos diversos grupos/formações sociais e as disputas pelo acesso ou defesa dos recursos de existência.
As necessidades de defesa, de gestão de alianças/conflitos, de administração de assuntos comuns (obras hidráulicas, mineração/metalurgia para ferramentas e armamento, trocas externas, acumulação de reservas alimentares/celeiros, conhecimentos/religião, regras/leis de aplicação geral...), a par com a possibilidade de produção de excedentes, determinaram/justificaram novos modelos de relações sociais (estruturas e modos de organização) baseados na divisão social do trabalho segundo classes complementares/antagónicas.
De um modo sintético/simplificado, a uma das classes caberia a função de produzir (classe trabalhadora/produtora) e a outra classe (dirigente/dominante) a função de centralizar a acumulação e assegurar as tarefas de interesse comum.
As classes sociais não nasceram, pois, como resultado de qualquer “pecado” ou distorção moral, mas sim como uma necessidade para viabilizar grupos humanos cada vez mais vastos e complexos vivendo em contextos de competição pelos recursos.
O mundo de hoje, aparentemente muito “civilizado”, “cosmopolita” e “globalizado”, continua a assentar na mesma lógica (mas com novas formas, hoje capitalistas) de estruturação e organização social, na qual cada formação social (mais amplas e complexas que no passado) procura viabilizar-se não só com base no labor próprio mas também à custa dos recursos de outras, consideradas “diferentes” ou “inferiores”.
Neste quadro de competição e dominação (no seio de cada formação e entre formações sociais), o rápido desenvolvimento das forças produtivas (designadamente para aplicações militares) tem constituído um importante factor de acumulação de riqueza e poder pelas classes dominantes, com cada vez maiores e prejudiciais consequências para a autopoiesis e reprodução das grandes massas populares.
Em consequência, o desenvolvimento das forças produtivas só terá relevância e validade humana se estiver vinculado às necessidades decorrentes do Bem-Viver humano e social, no quadro de níveis de consumo social ajustados às disponibilidades sustentáveis de recursos naturais renováveis, bem como às necessidades do equilíbrio e sustentabilidade de toda a biosfera e das condições cósmico-planetárias propícias à Vida.
Qualquer linha de desenvolvimento das forças produtivas que não se enquadre nas condições supra referidas tem um carácter destrutivo e anti-humano, devendo, logo que possível, ser eliminada, a começar pela investigação, desenvolvimento e produção de material bélico.
O segundo equívoco respeita à errada convicção de que com o desenvolvimento das forças produtivas centrado nos avanços científicos e tecnológicos (com o “progresso” tecnológico ou o Mito da Ciência e da Tecnologia) a vida da generalidade dos seres humanos irá ser melhor (o “progresso” social).
No seu texto “O Pior Erro na História da Humanidade”, Jared Diamond contesta, sob vários pontos de vista (alimentar, tempo livre, criação artística, surgimento da apropriação de excedentes por uma “elite” exercendo o Poder...), o progressivismo do advento da agricultura. Para além disso, ele evidencia como a função reprodutora “empurrou” os humanos nessa direcção:
“É quase inconcebível que os bosquímanos, que comem 75 ou mais plantas silvestres, possam morrer de fome da mesma maneira que centenas de milhares de fazendeiros irlandeses e as suas famílias morreram durante a escassez de batata na década de 1840. (...) “Deste modo, com o advento de agricultura a elite ficou em melhor situação, mas a maioria das pessoas ficou nas piores situações de existência. Em vez de se associar à linha partidária progressivista, de que escolhemos a agricultura porque ela é melhor para nós, deveríamos perguntar-nos como fomos aprisionados por ela, apesar das suas armadilhas. (...) “A agricultura poderia sustentar muito mais pessoas do que a caça, embora com uma qualidade mais pobre de vida. (As densidades populacionais de caçadores-coletores são raramente mais de uma pessoa por dez milhas quadradas, enquanto que entre os agricultores as densidades chegam a 100 vezes essa taxa.) Em parte, isto é devido ao facto de um campo estar completamente plantado com produtos comestíveis, permitindo alimentar muito mais bocas do que uma floresta com plantas comestíveis dispersas. Em parte, também, porque os nómadas têm que manter as suas proles espaçadas em intervalos de quatro anos, uma vez que uma mãe deve manter os seus filhos até que tenha idade suficiente para acompanhar os adultos. Como as mulheres agricultoras não têm tal fardo, elas podem, e frequentemente cuidam de uma nova criança a cada dois anos. Como as densidades das populações dos povos caçadores-coletores subiram lentamente no final das eras glaciares, os grupos tinham que escolher entre alimentar mais bocas assumindo os primeiros passos em direcção à agricultura, ou então encontrando caminhos para limitar o crescimento. Alguns desses grupos escolheram essa nova solução, pois foram incapazes de prever os perigos da agricultura, sendo seduzidos pela abundância passageira que eles aproveitaram até que o crescimento da população ultrapassou a produção de alimentos. Tais grupos miscigenaram-se, espalharam-se por outros territórios, ou até mesmo mataram os grupos que escolheram permanecer como caçadores-coletores, porque cem agricultores mal nutridos podem ainda vencer um caçador saudável. Não foram os caçadores-coletores que abandonaram o seu estilo de vida, mas aqueles que seriam sensatos o suficiente para não abandonar esse estilo de vida, seriam obrigados a abandonarem qualquer extensão de terra, excepto aquelas que os fazendeiros não desejassem.”
Jared Diamond, “O Pior Erro da História da Humanidade”
A partir da centralização em si/apropriação dos excedentes de produção por um grupo específico, detentor dos instrumentos de violência e de influência ideológica, foi iniciada a saga humana das sociedades estratificadas em classes sociais complementares/antagónicas, a qual se prolonga até aos nossos dias.
O desenvolvimento das forças produtivas, fonte de maior acumulação de riqueza e de Poder, quer em extensão territorial e populacional quer em intensidade/rapidez, tornou-se então um desígnio para as classes dominantes e exploradoras de todos os tempos, e só para elas. Se alguma “vantagem” foi proporcionada a alguns povos foi somente para parte dos povos “enquadrados” nas formações político-sociais mais poderosas, por necessidade de manutenção e reforço do Poder das suas próprias elites.
Friedrich Engels comenta como o advento da agricultura foi benéfica para aqueles que, considerados dos “outros”, deixaram de ser pura e simplesmente eliminados para se tornarem escravos, conservando assim a própria vida e gerando excedentes de produção para os respectivos senhores.
Este aspecto positivo foi, no entanto, largamente excedido, negativamente, pela deliberada e massiva caça de homens livres para os converter à escravidão, praticada/promovida por muitas “civilizações avançadas”, como em Roma, por exemplo, e muitos séculos mais tarde, pelos europeus em África.
De entre a vastidão da literatura descritiva dos tremendos custos humanos resultantes do processo de desarticulação das relações camponesas e de simultânea industrialização capitalista, valerá a pena destacar aqui “A Grande Transformação” de Karl Polanyi. Refere-se ainda, como apontamento, os casos, ocorridos no leste europeu, em que pouco tempo após a sua libertação da servidão, muitos servos terem preferido regressar à sua anterior condição, num processo similar ao que acontece hoje com os “desempregados”, cuja maior aspiração é regressarem a essa forma de servidão moderna.
Até a insuspeita Igreja Católica, preocupada em evitar uma explosão social revolucionária, foi impelida, no final do século XIX, a reconhecer a centralidade da “questão social” e a propor medidas para minorar alguns dos seus efeitos.
Não se pode esquecer que foi um capitalismo nascente, desde a sua fase “comercial” até à industrial, que reintroduziu a escravatura em larga escala, que promoveu a dizimação intencional de populações indígenas com o propósito de “limpar o terreno” para novas expansões, que conquistou, dominou e subjugou ao colonialismo quase todas as populações do planeta fora dos países centrais. Mesmo na, então revolucionária, América.
“A descoberta de jazidas de ouro e prata da América, o extermínio, a escravização e o sepultamento nas minas da população aborígene, o começo da conquista e o saqueio das Índias Orientais, a conversão do continente africano em coutada de caça de escravos negros: tais são os factos que assinalam os alvores da era de produção capitalista. Estes processos idílicos representam outros tantos factores fundamentais no movimento da acumulação primitiva.”
Karl Marx, O Capital.
Não se pense, porém, que o êxito populacional, consequente do rápido desenvolvimento das forças produtivas após 1750, se deveu essencialmente às “virtudes” ou à inteligência organizacional do capitalismo.
Marx e Engels já haviam prenunciado, a partir de meados do século XIX, o rápido esgotamento dessas “virtudes revolucionárias” do capitalismo e o seu carácter predador de capacidades humanas e de riquezas sociais, designadamente através das suas “irracionais crises cíclicas”, destruidoras tanto de forças produtivas (pessoas humanas, desempregadas e lançadas na miséria, e de meios de produção) como de mercadorias (produzidas e não vendidas), complementadas pelas ainda mais irracionais e contínuas guerras de agressão e expansão.
A emergência, no final do século XIX, de poderosos movimentos revolucionários de raiz proletária, anunciados pela Comuna de Paris e continuados pela Revolução de Outubro da Rússia, pela derrota nazi-fascista, a revolução Chinesa e a libertação nacional do vasto mundo colonial, a começar pela Índia, e as conquistas sociais dos trabalhadores nos países centrais, se não serviram para a libertação definitiva de um sistema socioeconómico predador que acentuava o seu carácter anti-humano, pelo menos tiveram, eles sim, a virtude de obrigar a libertar poderosas e vastas forças produtivas por todo o mundo e a assegurar um mínimo de respeito pela condição humana.
São assinaláveis as melhorias que o desenvolvimento das forças produtivas tecnológicas trouxe em diversos domínios da vida humana, da saúde ao acesso ao conhecimento, à “racionalização”/eficiência dos processos económico-produtivos e à satisfação de inúmeras necessidades materiais de muitos povos do mundo.
Esses êxitos permitiram ao racionalismo capitalista (e também ao racionalismo socialista) a criação de um novo Mito, da Ciência e Tecnologia, segundo o qual, por essa via, a Humanidade veria todos os seus problemas resolvidos.
Os dois volumes de Lewis Mumford sobre O Mito da Máquina (respectivamente Técnica e Evolução Humana e O Pentágono do Poder), assim como a sua obra A Cidade na História, constituem referências obrigatórias para uma compreensão mais abrangente da história humana e de como o desenvolvimento tecnológico se converteu num Mito, num engano que, cada vez mais, tem afastado os seres humanos da sua própria natureza evolutiva, num ilusório remédio para tanta incongruência acumulada nos seus acoplamentos estruturais.
“Não advogo soluções “tradicionalistas” mas aflige-me a facilidade das varinhas mágicas, soluções fantásticas a que se chega como se fosse por download. As descobertas técnicas e científicas são-nos apresentadas de forma messiânica nas páginas das revistas – o genoma é um novo Cristo que nos salva de todas as doenças. A clonagem é o passaporte para a eternidade.”
Mia Couto, Pensatempos – A mosca ou a aranha?
Na U.R.S.S., por exemplo, sendo embora necessário acelerar fortemente o desenvolvimento das forças produtivas por motivos de defesa e de satisfação das necessidades básicas da população, esse desenvolvimento deu-se no mesmo quadro mitológico da ciência e da técnica, tal como nos países capitalistas avançados. A consigna de Lenine quanto à definição sintética de Socialismo como sendo “o poder dos sovietes mais electrificação” e o posterior empenho nacional na “organização científica do trabalho” mostram bem como o Mito da Máquina de embrenhou na idiossincrasia do sistema, bem ilustrada no episódio n.º 1 do documentário Pandora’s Box de Adam Curtis, o qual poderá ser visto na internet. Ao mesmo tempo que despoletou empenhamentos massivos e heróicos, a “megamáquina” soviética, como todas as “megamáquinas”, ausentou partes fundamentais do humano e desmoronou-se.
Num livro de ficção científica da época soviética, A Nebulosa de Andrómeda, de Ivan Efrémov, cujo enredo decorre num futuro longínquo, a personagem Veda Kong referia, quanto ao passado (hoje) da Humanidade, na mesma linha “cientificista” e ao mesmo tempo que reconhecia as suas limitações quanto ao desenvolvimento das “novas relações humanas”:
“...os homens tinham compreendido por fim que todas as suas desgraças provinham de um regime social que se fora formando a partir dos tempos da barbárie, e que toda a força e o futuro da humanidade estavam no trabalho, nos esforços conjuntos de milhões de seres humanos libertos da opressão, na ciência e na reestruturação da vida em bases científicas.
“... Porém a transformação da economia exigia uma direcção muito complexa da produção e da distribuição, e era impossível sem antes formar em cada pessoa uma consciência social.
“... Não poucos erros se cometeram no caminho do desenvolvimento de novas relações humanas.
“... Nas suas fantásticas utopias sobre um futuro esplêndido, as pessoas sonhavam que o homem se libertaria gradualmente do trabalho. Os escritores vaticinavam que com um breve labor diário de duas ou três horas, dedicadas ao bem-estar comum, a humanidade asseguraria quanto lhe era necessário e que o tempo restante seria dedicado ao que lhe desse mais prazer. Estes anseios provinham da aversão ao trabalho penoso e forçado da Antiguidade.”
Contudo, ao mesmo tempo que as componentes materiais das forças produtivas (as “tecnologias”) se elevaram até se tornarem reverenciáveis, as componentes humanas degradaram-se, perderam qualidades e aptidões e tornaram-se dependentes, submissas e descartáveis.
Hoje, nos países “mais desenvolvidos”, tirando uma pequena minoria que opera com processos complexos, as grandes maiorias, formados/especializados em tarefas cada dia mais simples e acessórias às máquinas, dedicam-se em grande medida ao consumo, muitas vezes compulsivo.
Os processos educativos hoje existentes limitam-se a proporcionar os conhecimentos mínimos à mão-de-obra a ser explorada e a gerar modelos de conformação ideológica, de aceitação da ideologia burguesa, e de destruição das capacidades de um pensamento autónomo e criativo.
Os humanos trabalhadores, eles próprios transformados em mercadoria, num simples “input”, um “custo” a minimizar nas actividades produtivas, em grande parte foram esvaziados das suas capacidades pluripotentes através da transferência do conhecimento social expropriado, para “dentro” dos instrumentos tecnológicos ao serviço das classes dominantes.
A vida, as solidariedades e afectos socio-comunitários foram substituídos pela atomização social e crescentemente “mercadorizados”. A competição e o antagonismo tornaram-se o caldo da vida diária.
A tecnologia desaloja os postos de trabalho, cresce sem alternativas o “desemprego” e os indivíduos excluídos transformam-se num “fardo social”...
Ao mesmo tempo, o “modelo” de desenvolvimento baseado na tecnologia, no lucro e no consumo pelo consumo, no aumento do “PIB”, continua a esventrar o planeta, a aniquilar a sua riqueza biológica, a contaminar os ambientes e a provocar perigosos desequilíbrios nos ciclos naturais. A Natureza, assim “conquistada”, começa a ripostar...
O capitalismo-imperialismo teve, desde 1991, após a derrocada da U.R.S.S., todo o mundo e todos as condições, políticas, militares, económicas, informacionais, etc., para, se tal estivesse no seu ADN, resolver qualquer assunto de interesse mundial. Não só não resolveu nenhum como os agravou a todos, vivendo actualmente toda a humanidade suspensa sobre o dia de amanhã.
A imensa acumulação de riqueza e de poder numa pequena elite “internacional” não tem servido para avançar em direcção aos “Objectivos do Milénio”, à superação da pobreza extrema, ao desenvolvimento social e humano, à alteração da matriz energética baseada nos combustíveis fósseis, no combate ao desperdício de recursos, à preservação do ambiente natural e da biodiversidade.
Ao contrário, intensificou-se a disputa pelos recursos naturais sobrantes, designadamente pelas reservas de petróleo, gás natural e minerais estratégicos, aumentaram extraordinariamente as despesas militares e intensificaram-se as acções preparatórias, de carácter geo-estratégico, para confrontações militares em larga escala.
As guerras da Jugoslávia, do Iraque, do Afeganistão, da Líbia e da Síria, para começar, mais do que a destruição dos respectivos regimes políticos, levaram à destruição geral das respectivas bases materiais de vida e das relações sociais, mostrando bem como a “racionalidade” se transformou, sob o capitalismo, numa arma de destruição massiva humana e social.
O recuo global das forças libertadoras e humanistas e a retomada galopante dos traços mais devastadores do capitalismo, sobre o meio natural planetário e os seres humanos, vieram colocar na ordem do dia não só o regresso de uma miséria de massas como a eventualidade de um colapso civilizacional e populacional e um irreversível comprometimento ambiental.
O presente e o futuro do desenvolvimento das forças produtivas
Com a “crise financeira” que se arrasta desde 2008 e parece não ter solução, em grande parte do mundo chamado desenvolvido estancou e regrediu o desenvolvimento das forças produtivas.
Os Estados, todo o tecido de pequenas, médias e mesmo grandes empresas produtivas, bem como os cidadãos, estão endividados ao capital financeiro internacional o qual, acumulando activos de toda a natureza, se alimenta de dinheiro real a partir das transnacionais e da tributação, sob a forma de dividendos, juros e outros “direitos”, de todos os sectores produtivos e instituições a ele submetidas. O dinheiro que sai deste sistema destina-se unicamente a operações especulativas e à compra de activos reais para compensar os tremendos activos fictícios que mantêm nos balanços. Parece que os diversos grupos do capital financeiro internacional estão todos a ver quais deles “caem” primeiro, salvaguardando-se a si próprios e atacando os outros, - como é o caso da presente ofensiva do núcleo centrado nos EUA-Reino Unido (Wall Street/City) contra o núcleo europeu continental centrado na Alemanha, visando a derrocada do Euro e o avassalamento completo da UE.
O desemprego agrava-se a ritmos elevados e reduzem-se substancialmente as “prestações sociais”.
Não existe, portanto, qualquer foco de poder, político ou financeiro, em condições de desbloquear a situação de paragem e regressão.
A iniciativa económica e o desenvolvimento de forças produtivas (humanas e tecnológicas) estão a ocorrer exclusivamente nos países antes “atrasados”, cada vez mais polarizados à volta dos BRICS.
A moderna “Roma”, o sistema político-económico-financeiro centrado nos EUA, iniciou o seu declínio, tendendo a procurar salvar-se através da sua supremacia militar relativa e de conflitos bélicos de grande dimensão e consequências humanas.
Se a “solução” pela guerra for contida, a única, racional e humana solução será o crescente controlo democrático das riquezas concentradas no sistema financeiro internacional e a sua disponibilização para um modelo de desenvolvimento favorável aos interesses da Vida e dos povos.
O Mito da Ciência e da Tecnologia, apadrinhado pelos sistemas político-económico-sociais que perseguiam grandes ritmos de acumulação (com base no lucro ou em necessidades de defesa) irá definhar e dará lugar, esperamos, a orientações de desenvolvimento das forças produtivas mais centradas na qualidade e capacitação humana e social, nos sistemas de estruturação e organização dos processos económicos (segundo critérios de crescente cooperação) e na preservação dos recursos naturais e condições ambientais.
Pela primeira vez, no quadro de uma crescente cooperação internacional, de modo democrático, serão estabelecidos os parâmetros da equação referida no início deste capítulo, relativa aos limites populacionais humanos sobre a Terra vivendo com Dignidade e Felicidade (Bem-Viver – consumos materiais optimizados), em função dos recursos naturais renováveis e do nível de eficiência da sua utilização (grau de desenvolvimento das forças produtivas).
A sociedade utópico-socialista do futuro, assim seria desejável, saberá aproveitar as “conquistas” do conhecimento científico e tecnológico, colocando-as, como meros instrumentos subordinados, ao serviço da Humanidade, ao serviço das suas finalidades essenciais, a autopoiesis e a reprodução, e ao serviço de uma estável congruência com o meio.
Os humanos, integrais, e livres, voltarão a constituir a principal “força produtiva” numa sociedade onde a “produção” já não se desenvolverá num compartimento à parte das outras actividades humanas, num “quarto escuro”; onde a “produção” não será mais do que um modo de humanizar.
Sobre as Relações Sociais e as “Relações de Produção”
As “relações de produção” que, com as “forças produtivas” constituem, segundo Marx, um determinado “modo de produção”, representam o modelo organizacional (os papéis e as interacções) que fazem mover as forças produtivas (simplificadamente, homens e máquinas) no sentido de se obterem os produtos necessários (ou desnecessários) à Vida.
As relações de produção, nos sistemas sociais que configuram um 3.º grau de agregação dos sistemas autopoiéticos (sucessivamente, bactérias/células, organismos multicelulares e agregações sociais destes), correspondem à projecção externa da organização autopoiética dos elementos constituintes dos seres mais elementares (os seus complexos moleculares, organelos, núcleo, etc.) e dos elementos constituintes (sistemas e órgãos) dos multicelulares, eles próprios autopoiéticos.
Essa tendência de semelhança, que tem conduzido muitos estudiosos a imaginar metáforas organicistas para explicar os fenómenos sociais e a propor soluções “biológicas” para os problemas sociais, não passa disso mesmo, de uma projecção e não de uma replicação do tipo fractal.
Essa “replicação” do mesmo modelo em diferentes escalas é impossível porque as duas entidades, seres vivos e sistemas sociais, existem em domínios diferentes. A autopoiesis existe no domínio molecular de um sistema autónomo delimitado no espaço (membrana, pele, carapaça...), enquanto os sistemas sociais formam-se e existem no domínio dos acoplamentos estruturais dos indivíduos com o meio. Neste caso, dos acoplamentos estruturais com outros indivíduos com os quais deriva, cooperativamente, no meio natural.
Por isso, as relações de organização autopoiética, no “interior” do ser vivo, apesar de susceptível de aprendizagem, têm um carácter maquinal, enquanto as relações de acoplamento estrutural têm um carácter fluido, criativo, acidental, cultural.
Por isso, as modificações genéticas são tão demoradas e as modificações culturais tão rápidas. Por isso também, as tentativas de imposição de modelos maquinais nos sistemas sociais estarão todas votadas ao fracasso.
O acoplamento estrutural com o meio faz-se através de relações. O acoplamento com o meio social processa-se através de relações sociais.
Cada leitor destas linhas avalie por si próprio a fluidez das suas relações sociais, com quantas pessoas diferentes já se relacionou ao longo da vida, cônjuges, amigos e conhecidos, companheiros de trabalho, etc., em quantos sub-sistemas sociais já operou (associações, empresas, instituições...) e, nesse quadro, quantas identidades já teve e que tem hoje. Quantas vezes “se sentiu mal”, quantas vezes “se sentiu bem” e quais as razões porque “mudou”.
As relações sociais são isso mesmo, um contínuo fluir, e não um processo maquinal no qual cada um se “encaixa”, como uma peça articulada a outras.
Na vivência com os outros humanos procuramos assegurar as nossas próprias autopoiesis e reprodução.
Cada indivíduo procura manter esse processo (que é específico) de maneira homeostática, isto é, de modo continuado e dentro de certos limites de tolerância. Por essa razão procuramos manter as relações que o tornam possível e, também, nos desfazemos das relações que se tornam intoleráveis e procuramos outras que nos “estabilizem”.
Somos também capazes de aceitar, de modo sempre crítico/prudente, um funcionamento “maquinal” que nos proporcione “vantagens comparativas” de eficiência na realização das funções autopoiética e reprodutiva, estando sempre prontos para sair dele logo que nos sintamos “sufocados”.
O acoplamento estrutural dos seres vivos com o meio inclui o acoplamento com outros da mesma espécie, com outras espécies e com o universo cósmico-planetário. Cada indivíduo humano é dotado de um mix, variável ao longo da vida, com todos esses domínios. Pelo facto de o cérebro humano ser capaz de “criar mundos virtuais”, por vezes os indivíduos humanos têm dificuldade em “gostar”/de se tolerar a si próprios e, ou se auto-destroem, ou mudam de personalidade.
Pelas razões acima invocadas, as relações sociais nascem e permanecem, todas, auto-centradas, isto é, estruturam-se como uma rede de relações centrada em cada indivíduo, rede de que ele próprio, no seu processo de deriva, é o nó e co-gestor, podendo, a todo o momento, enquanto sujeito activo, conectar e desconectar elementos da rede e “administrar” a intensidade e âmbito das relações e, enquanto sujeito passivo, ser conectado e desconectado das redes auto-centradas de outros indivíduos (eles próprios também em deriva) e usufruir da intensidade e âmbitos com que os outros o acolhem nas suas próprias redes auto-centradas.
Cada indivíduo, portanto, gera uma rede de relações auto-centradas que configura uma (a sua) comunidade auto-centrada integrando elementos mais ou menos contíguos, havendo tantas quantos indivíduos houver.
Cada comunidade auto-centrada articula-se com as outras numa vasta rede entrecruzada, correspondendo a cada indivíduo fazer parte de tantas comunidades auto-centradas quantos os indivíduos que constituem a sua própria.
A envergadura e complexidade de cada comunidade auto-centrada varia de indivíduo para indivíduo, consoante as suas próprias necessidades e iniciativa. Num sentido mais amplo, as comunidades auto-centradas poderão incluir outros seres vivos, animais e plantas, paisagens e outros elementos cósmico-planetários, que desempenhem alguma função útil e necessária no âmbito do acoplamento estrutural de cada indivíduo.
“Há quem acredite que a ciência é um instrumento para governarmos o mundo. Mas eu preferia ver no conhecimento científico um meio para alcançarmos não domínios mas harmonias. Criarmos linguagens de partilha com os outros, incluindo os seres que acreditamos não terem linguagem. Entendermos e partilharmos a língua das árvores, os silenciosos códigos das pedras e dos astros.”
Mia Couto, Pensatempos – Uma palavra de conselho e um conselho sem palavras
Indivíduos que mantenham comunidades auto-centradas demasiado extensas normalmente passeiam pelas relações sem as aprofundar e sem delas tirar a intensidade e o proveito desejados. É o caso, por exemplo, de muitos cibernautas modernos que, apesar de estabelecerem contactos com milhares de “amigos”, vivem em profunda e caótica solidão.
Comunidades auto-centradas demasiado restritas conduzem ao definhamento social dos indivíduos e a uma vida de mera sobrevivência física e cultural, como é o caso mais frequente de muitos idosos nas sociedades ditas “avançadas”.
Nós, humanos, surgimos e evoluímos num quadro de relações que constituíam um todo integrado e coerente, onde essas relações não se encontravam compartimentadas umas das outras. Quando começámos a complicar, a organizarmo-nos em sistemas sociais coercivos e fragmentadores, quando nos começámos a relacionar no “quarto escuro” para produzir, no “cor de rosa” para a afectividade e a sexualidade, no “arco-iris” para sermos criativos, no “azul” para contemplar/interrogar o espaço cósmico-planetário, no “verde” para brincar, no branco para a questões comunitárias e políticas, etc. Adoptando em cada um deles, frequentemente, identidades contraditórias, passámos a viver, individual e colectivamente, em estado permanente de dissociação e esquizofrenia.
Por esta razão algumas pessoas consideram ser este, hoje, o problema mais grave da humanidade, bem mais grave do que a pobreza material, a qual, se não nos auto-destruirmos pelo primeiro, poderá ser facilmente resolvido a seguir.
Constata-se assim que o universo das relações sociais é, por natureza, extremamente plástico, fluido, quase caótico.
Porém, ele tem, nos seus fundamentos, finalidades, desígnios - a autopoiesis e a reprodução -, que constituem os atractores sob a influência dos quais emergem estruturas, “ordem” e eficiência nesse caos relacional.
Quando falamos de estruturas sociais, de “organizações sociais”, esquecemo-nos com frequência que elas não têm existência material, constituindo meros nós de articulação das relações sociais, nós dos acoplamentos estruturais (em deriva permanente) dos indivíduos, que nelas participam, com o meio social.
Uma família ou grupo familiar/aparentado, independentemente da sua extensão (clã, tribo...), por exemplo, constitui um universo de relações sociais estruturado através do qual os indivíduos realizam (socialmente e com maior eficiência/segurança) a sua Vida (autopoiética e reprodutiva), o mesmo acontecendo com todas as demais estruturas sociais que já existiram, que existem hoje e haverão de existir no futuro.
Essas estruturas (ou nós de relações sociais de grau mais elevado do que as comunidades auto-centradas) adoptam, com o tempo, em função das circunstâncias, formas de organização que estabelecem, em cada momento, como as relações nelas convergentes se processam (em princípio, para os fins consensuais/convenientes e do modo mais eficiente.)
Todos reconhecemos, por experiência própria, como muitas estruturas/instituições sociais têm uma existência muito mais duradoura do que os seus modelos de organização. Aliás, passa-se muito tempo, em cada estrutura social (famílias, empresas, Estado, associações...) em sucessivas reorganizações.
Pelo acima exposto, seria de supor que, no processo, sempre mais complexo, da criação de estruturas sociais em função das novas dificuldades que haveria que vencer, segundo uma deriva caracterizada pela tentativa, erro, aproximação e acerto, os humanos tivessem encontrado, “de baixo para cima”, as soluções estruturais que assegurassem os seus adequados/congruentes acoplamentos com o meio, de forma a cumprir as respectivas autopoiesis e reprodução.
Contudo, o que veio a prevalecer foi a imposição, por minorias dominantes, de relações sociais e de nós da sua articulação (instituições) que favoreciam a continuidade dessa dominância e desfavoreciam a realização homeostática da vida das grandes maiorias populares.
Emergiu assim, sobre todas as outras estruturas sociais que espontaneamente se haviam desenvolvido, o Estado como instrumento de dominação de classe e enquanto nó articulador, promotor e enformador, ao mais alto nível, das relações sociais em geral e das relações de produção em particular.
A questão que Marx quis responder com os seus estudos consistia, basicamente, em como tinham surgido e como tinham evoluído as estruturas sociais que, não só negavam a participação das imensas maiorias trabalhadoras, mas que as submetiam, as exploravam e lhes proporcionavam tanta dor e infelicidade, isto é, tanta desconexão com os princípios da Vida. E ainda, consequentemente, tendo encontrado uma resposta (a melhor resposta possível) para essa questão, qual seria o sentido do movimento evolutivo e que expectativas apresentar.
A hipótese que nos parece mais exacta é que, perante a tensão gerada pelo aumento populacional, culturas diferentes (de caçadores-recolectores e de proto-agricultores) se encontraram em oposição, defrontaram-se de forma duradoura até se terem simbiotizado numa nova estrutura social que permitia a continuidade das duas culturas: a autonomia e a cultura dos agricultores e a manutenção do “estilo de vida” dos caçadores-recolectores através da apropriação de uma parte variável dos excedentes da produção a troco de serviços de defesa e segurança.
Nota: Toda a história das simbioses bacterianas (com as mitocôndrias, cloroplastos, etc.), começou por ser uma história de oposição/luta até se obter uma interdependência mutuamente vantajosa e cooperativa.
As relações sociais, de carácter hegemonicamente cooperativo, que tinham prevalecido desde os primórdios da humanidade, passaram a integrar uma componente, crescente, de competição pelos recursos. Não foi, como já antes referido, um “pecado original”, mas sim uma necessidade histórica.
Muitas variedades terão surgido nesses “acordos de simbiotização”, conforme as circunstâncias e os lugares. É de supor, no entanto, que, com o reforço das tensões populacionais durante o processo de reencontro dos diversos grupos humanos antes dispersos, as funções de defesa dos recursos tivessem assumido uma importância crescente e conferido aos descendentes dos caçadores-recolectores maior capacidade de decisão nas estruturas de coordenação/direcção social.
Surgiu assim, com muitas variantes, um tipo-padrão de relações sociais baseado na separação/compartimentação de funções, de carácter hereditário, durante muito tempo complementares e mutuamente aceites, evoluindo, mais ou menos tarde, para relações de domínio e subordinação.
“Tais fenómenos de distribuição de competências encontram-se nas colectividades naturais de todas as épocas, como já ocorria na sociedade antiquíssima dos marks alemães e como ainda hoje se observa na Índia. Trazem consigo, como é lógico, uma certa amplitude de poderes e representam as origens do Estado. Pouco a pouco, as forças produtivas vão-se intensificando, a densidade cada vez maior de população cria interesses, ora comuns ora formados entre as distintas colectividades, de modo que, agrupando-se num todo superior, fazem nascer uma nova divisão do trabalho, criando os órgãos necessários para cuidar dos interesses harmónicos e para se defender contra os interesses hostis. Tais órgãos, que ocupam já, como representantes dos interesses comuns de todo o grupo, uma posição especial frente a cada colectividade particular, até mesmo inclusive inimiga, vão adquirindo dia a dia maior independência, devido, em parte, ao carácter hereditário das suas funções, carácter quase evidente num mundo em que tudo se desenvolve de um modo elementar e, em parte, à proporção em que se vão tornando indispensáveis pela multiplicação dos conflitos com outros grupos. Não é necessário que examinemos aqui o modo como esta independência da função social frente à sociedade se foi convertendo, com o correr dos tempos, numa verdadeira hegemonia sobre a própria sociedade, o modo como os primitivos servidores da sociedade, nos lugares onde as circunstâncias lhes foram propícias, se foram erigindo paulatinamente em senhores dela própria e, finalmente, o modo como, de acordo com o ambiente, esses mesmos senhores se instauraram, no Oriente como déspotas ou sátrapas, na Grécia como príncipes de linhagem, entre os celtas como chefes de clã, e assim por diante.”
Friedrich Engels, Anti-Dühring
Os modos de produção “asiático” e “feudal”, identificados por Marx e Engels, serão no fundo, na minha opinião, variantes de um mesmo “modo de produção” Tributário, no qual produtores relativamente livres e autónomos e enquadrados em unidades territoriais-geográficas, suportavam todos os custos do “estilo de vida” e do exercício das funções de um grupo que, em cada unidade territorial, exercia o Domínio dos principais nós de articulação das redes de relações sociais e sobre os recursos e não participava directamente na produção.
As relações sociais passaram assim a ser condicionadas, primeiro pelos termos dos “acordos de simbiose” e, depois, pelo exercício do Domínio por um grupo interessado em mantê-lo a alargá-lo.
As estruturas sociais (nós das redes de relações sociais) bem como a sua organização, passaram a reflectir, essencialmente, os interesses desses grupos dominantes e a influenciar/convencer os universos mentais (a ideologia) de uma parte da população sobre a “inevitabilidade” e a “legitimidade” desse Domínio.
As relações de produção encontravam-se directamente fixadas e dependentes dos Senhores dos Domínios territoriais-geográficos; todo o vasto conjunto das relações sociais, correlacionadas com a reprodução, as solidariedades ancestrais, a cosmovisão... ficaram enquadradas e dependentes de novas instituições, também criadas de cima para baixo, as Religiões.
Os modestos elementos que, há muitos anos, simbolizavam os nós de articulação das relações sociais (alguns adornos e rituais) foram sendo substituídos por símbolos e rituais cada vez mais esmagadores das consciências autónomas até que, as estruturas sociais foram “adquirindo” uma materialidade tão aparentemente indestrutível como as grandes catedrais, palácios, monumentos e obras de arte, grandes eventos ritualistas etc., fazendo crer que essas estruturas/instituições sociais seriam eternas.
Na realidade, até ao presente, elas mantêm-se no fundamental, por vezes com outros nomes e outras organizações, conforme se verá adiante.
Este ciclo de Dominação decorreu desde os “acordos de simbiose” ocorridos há alguns milhares de anos até às Revoluções Populares Liberais que destruíram o “Antigo Regime” (tanto que as monarquias gostavam e continuam ainda a gostar de caçadas e colectas!!...), libertando as relações sociais do controlo Dominial, eliminando os respectivos nós de articulação e substituindo-os por outros, mais conformes com as necessidades básicas da vida, decorrentes da manutenção da autopoiesis e da reprodução dos humanos. Foi uma época de Revolução Social, na qual se processou uma profunda alteração dos acoplamentos estruturais dos humanos (individual e colectivamente) com o meio, resolvendo algumas importantes incongruências antes acumuladas, em todos os âmbitos.
Segundo os “pais fundadores” do Liberalismo, a nova sociedade deveria ser constituída por homens livres e iguais, autónomos e responsáveis, onde cada um fosse senhor de si, rei, exercendo o Domínio sobre as suas circunstâncias. Essa sociedade, de sócios, seria isenta de qualquer forma de opressão e de conquistas.
De Locke:
“Aquele que, no estado de sociedade, tirasse a liberdade pertencente aos membros da sociedade ou comunidade, também se deve supor que pretendesse tirar-lhes tudo mais, devendo, assim, ser visto como em estado de guerra”.
“Embora a terra e as criaturas inferiores sejam comuns e pertençam em geral a todos os homens, cada qual, no entanto, tem um direito particular sobre a sua própria pessoa, sobre a qual nenhuma outra pode ter qualquer pretensão. O trabalho do corpo e a obra das mãos, podemo-lo dizer, são seu bem próprio. Tudo o que foi tirado do estado de natureza por sua fadiga e industria, lhe pertence...”
“Seja o que for que ele remova do estado em que a natureza o proveu e deixou, mistura-lhe o seu trabalho, acrescenta-lhe algo que lhe é próprio e assim o converte em sua propriedade”
acrescentando que a apropriação deveria ser compatível com a norma de deixar
“o suficiente e igualmente bom, em comum, para os outros”.
Sobre o direito de conquista:
“As conquistas estão tão afastadas de ser a origem e fundamento dos estados, como a demolição de uma casa está longe de ser a verdadeira causa da construção de outra no mesmo sítio”.
Do “Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens”, de Rousseau:
“O primeiro que, tendo cercado um terreno, se lembrou de dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas bastantes simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não teria poupado ao género humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: "Livrai-vos de escutar esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos, e a terra de ninguém!"
“No primeiro caso, o direito de conquista, não sendo um direito, não pode fundar nenhum outro, os conquistadores e os povos conquistados ficando sempre entre si em estado de guerra, a menos que a nação, restabelecida a sua liberdade, escolha voluntariamente o seu vencedor como chefe: até lá, algumas capitulações que tenham sido feitas, como só foram fundadas sobre a violência e, por conseguinte, são nulas por esse mesmo facto, não pode haver, nessa hipótese, nem verdadeira sociedade, nem corpo político, nem outra lei senão a do mais forte.”
A Propriedade (privada dos meios de produção), distinguindo-se da mera posse sujeita à vontade arbitrária dos antigos Senhores dos Domínios, surgia assim como um garante da autonomia e da liberdade de cada um, do domínio de cada um sobre a sua própria pessoa e as suas circunstâncias, como uma condição para que cada um assumisse a sua própria responsabilidade.
Contudo, porque a norma de “deixar o suficiente e igualmente bom, em comum, para os outros” não se efectivou, o que aconteceu foi só uma meia revolução nas relações sociais, incluindo nas de “produção”.
Ao mesmo tempo que, por uma porta, se devolvia a cada humano a sua autonomia e liberdade ancestral, a sua capacidade para, livremente, estabelecer a sua comunidade auto-centrada (antes sujeita a rigorosos controlos de carácter religioso – as religiões organizadas foram as grandes perdedoras dessas revoluções), pela outra porta voltava a impor-se o Domínio (“económico”) que assegurava a exploração do trabalho e a acumulação de riqueza e poder, agora denominado Propriedade, e, também, a Hereditariedade sob o nome de “direito de herança”.
É certo que houve alguma “democratização”/redistribuição quanto aos espaços sob controlo do novo Domínio (da Propriedade): em alguns países, alguma propriedade fundiária foi distribuída; noutros países manteve-se sob controlo das mesmas aristocracias, mas agora como Propriedade garantida pelo Direito, e outra parte, que já era antes ou que passou depois para o domínio público-comunal ficou disponível para ser comprada ou simplesmente roubada (com a protecção do Direito).
Mas essa “democratização”/redistribuição não ficou por aí, foi mais profunda, quando as actividades artesanais/manufactureiras, antes submetidas à “regulação das corporações”, passaram para o âmbito privado sem qualquer regulação, permitindo a mais intensa exploração de uma mão-de-obra destituída de qualquer propriedade e “livre” para se fazer contratar como assalariada.
Passou a haver então muitos mais Domínios, agora sob a forma Capitalista (a Propriedade privada dos meios de produção ou Capital), no âmbito dos quais de reproduziu a exploração arbitrária das massas trabalhadoras e o hereditarismo, tal como antes se verificava nos antigos Domínios territoriais aristocrático-feudais.
Essa “democratização”/redistribuição e libertação da propriedade dos meios de produção dos anteriores espartilhos medievais, teve, naturalmente, as suas consequências ao nível do Estado.
Ao mesmo tempo que as grandes massas populares que, com os seus corpos, haviam empurrado os processos revolucionários em cada país, reivindicavam uma igualdade substantiva relativamente aos meios de produção, designadamente da terra, assim como formas radicais de democracia que lhes assegurassem uma adequada participação na gestão dos respectivos Estados (os “niveladores” na Inglaterra e, na França, os Jacobinos e depois Babeuf, por exemplo), os sectores burgueses aferraram-se à defesa dos “direitos de propriedade” e a um conceito de democracia limitada aos “proprietários”, excluindo desse modo a participação da maioria do povo das decisões do Poder.
É certo que passou a falar-se de democracia, institucionalizada, agora “à séria”, na forma política mais radical de república ou, como compromisso, de monarquia constitucional, na qual só podiam participar os que fossem proprietários, tal como antes, mas por métodos não institucionalizados pelo “Direito”, se fazia de modo menos formal entre os membros das classes Dominantes no quadro de Cortes, Cúrias, Conselhos e outras estruturas de coordenação de interesses das monarquias. Porém, essa democracia, mesmo que muito limitada, ficou sempre interditada de entrar pelos portões da “empresa”, da oficina ou da fábrica.
As relações sociais em geral e, em particular, as “relações de produção” foram alteradas, na sua estrutura e na sua organização, mas para manter inalterada a essência classista do poder do Estado e a dominação económica, a exploração e a opressão social.
Também é verdade que as alterações verificadas nas relações sociais e, em particular, nas relações de produção, permitiram desprender poderosas forças produtivas, designadamente as de carácter tecnológico e, para poder acompanhar estas (e não com qualquer objectivo humano ou humanista), em certa medida, as forças produtivas humanas. Ao mesmo tempo que foi profundamente desvalorizada na sua condição humana (transformados em mera mercadoria), os trabalhadores foram valorizados enquanto e só enquanto trabalhadores (a literacia mínima e a “formação profissional”), equivalendo isso, por comparação, a ensinar um cavalo a fazer sozinho os regos direitos da lavra em vez de ser conduzido por uma pessoa.
É igualmente verdade que o desprendimento dessas forças produtivas no quadro das novas relações de produção permitiu à humanidade passar de cerca de 1 bilião de habitantes em 1800 para mais de 7 biliões em pouco mais de 200 anos. A função reprodutora parece ter sido amplamente beneficiada. Porém, o Capitalismo e as relações sociais que o caracterizam, pelos seus efeitos planetários catastróficos e pela extrema desigualdade entre os homens, parece terem conduzido a humanidade para próximo de um novo precipício populacional, agora num patamar mais elevado.
Contudo, desde as Revoluções Populares Liberais até aos nossos dias as relações sociais continuaram a evoluir, tanto acompanhando as próprias metamorfoses do Capitalismo como por influência da luta revolucionária dos povos pela Liberdade e a Igualdade.
As lutas revolucionárias dos povos da Europa no século XIX, incluindo as Revoluções de 1848-1850 e a Comuna de Paris e, já no século XX, a Revolução Soviética a as suas diversas réplicas por todo o mundo, através das lutas pela Democracia e os direitos sociais, pelas lutas de libertação nacional dos povos colonizados e de revoluções de inspiração socialista em vários países, mantiveram sempre acesa a resistência contra a exploração e a opressão e iluminaram caminhos para a superação das consequências nefastas do Capitalismo no conjunto das relações sociais, incluindo as de produção.
O fenómeno mais significativo que se verificou, até à última década do século XX, comum aos dois sistemas de forças que se defrontavam, o popular-revolucionário e o capitalista-burguês-imperialista, consistiu num extraordinário aumento da intervenção e influência do Estado em todos os domínios da vida social.
Tanto no “campo capitalista” como no “socialista” com no dos “países buscando o (em vias de) desenvolvimento”, os Estados concentraram competências e poderes de determinação das relações sociais que, antes, se encontravam dispersas por muitas outras estruturas sociais. Nuns casos, estimulando/impondo relações sociais de sentido libertador; noutros casos, de sentido inibidor, controlador e opressivo.
Esta circunstância deveu-se à necessidade de ambos os “blocos” em confronto promoverem, pela centralização, os factores de aceleração dos processos acumulativos (de Poder, económico-financeiro, tecnológico, militar, de propaganda, etc.) que melhor respondessem às necessidades da confrontação que, em diversos planos e níveis de intensidade, caracterizou o século XX.
Esse novo papel do Estado como nó central de articulação e transformação de todo o tipo de relações sociais, necessário por razões operacionais, teve impactos em ambos os grandes blocos em confronto:
a) No campo libertador, ao mesmo tempo que permitiu a centralização dos limitados recursos financeiros e tecnológicos imediatamente disponíveis e a sua rápida mobilização nas direcções prioritárias de acção (normalmente alimentação, saúde e educação popular, promoção da produção e das infraestruturas, defesa, etc.), o crescimento desse papel do Estado (estatismo) também inibiu a iniciativa e a participação social (morte lenta dos sovietes/conselhos populares...) e tendeu à uniformização social segundo padrões voluntaristas (“revolucionários/modernos”) que, em muitos casos, se procuravam incrustar forçadamente nos modelos pré-existentes de acoplamento estrutural (culturas) de diferentes grupos sociais.
“Combinando centralização económica (planeamento) e centralização política (autoritarismo), o modelo soviético criou condições para isso e, em alguns casos, recuperou com grande rapidez o atraso económico nas sociedades em que foi implantado. Não é pouca coisa. Alimentar, vestir, dar habitação, etc., a grandes massas humanas que nunca tinham tido acesso a estas condições não foi tarefa fácil. Naquele momento histórico, naquelas sociedades, dificilmente teria sido cumprida pelo capitalismo.” “Compreende-se agora que eu tenha dito acima que a tese de Dobb foi parcialmente confirmada pela História. Enfatizo o advérbio parcialmente. Pois nada disso resolveu o problema da transição ao socialismo. Na verdade, gerou uma grande confusão: a capacidade de recuperar atrasos do passado foi confundida com a construção da sociedade do futuro. O que assistimos no fim do século XX não foi o fim da possibilidade do socialismo, mas o esgotamento de um modelo de transição pensado na década de 1920 numa sociedade atrasada.” César Benjamim, “A necessária retomada do tema da transição”, 2006. Sublinhado do Autor.
b) No campo capitalista-burguês-imperialista, as tendências estatistas também se afirmaram, tanto no domínio da gestão concentrada de recursos e de problemas sistémicos, face à inoperatividade da “mão invisível” do mercado, como, no âmbito social, como meio de assegurar a estabilidade dos poderes dominantes face às pressões e reivindicações populares (New Deal, “Estado-Social”, Consumismo, Estado Desenvolvimentista, etc.).
Esse estatismo, foi apresentado às grandes massas humanas como a solução estrutural (o nó estratégico, táctico e operacional de articulação das relações sociais) a partir da qual, e assente em pressupostos racionais, todos os problemas e necessidades sociais obteriam satisfação, conduzindo ao esvaziamento gradual da utilidade das estruturas sociais de mais baixo nível de agregação, de carácter associativo, muitas delas geradas pelo método “de baixo para cima”, a partir das redes de comunidades auto-centradas.
Consequentemente, foi estimulada a sucessiva domesticação e rarefacção das redes sociais autónomas e cooperativas e, ao mesmo tempo, o desenvolvimento de uma atitude expectante, carente de iniciativa própria, relativamente ao desempenho dos Estados. O estatismo, constituiu assim, por motivações diversas, uma armadilha social a partir da qual aumentaria a eficiência do controlo social e se introduziam irrespiráveis tendências maquinais (ditas “racionais”) no funcionamento dos sistemas sociais.
Essa domesticação e rarefacção das estruturas sociais autónomas como nós de articulação das relações sociais vocacionadas para a coordenação, a cooperação e a resolução dos problemas e necessidades das comunidades pelos seus próprios meios e em todos os domínios (produtivas, solidariedade, artístico-culturais, desportivas, de tempos livres...), abriu um vazio por onde emergiram numerosos “ofertas privadas de serviços” e que abriu espaço para a mercadorização de inúmeras actividades humanas que, desde a “fundação da humanidade” deram corpo à sua existência como tal. A substituição das solidariedades, dos afectos e da cooperação inter-humanas e comunitárias por relações de “comércio de mercadorias”, mina os fundamentos das relações humanas e sociais, levando as relações de competição e de exploração às últimas fronteiras da alma humana.
A absorção pelos Estados subordinados ao metabolismo do Capital (com base em argumentos “confiáveis” de racionalidade e promoção da igualdade) de muitas funções e actividades de carácter eminentemente social, e a posterior privatização de muitas dessas actividades/serviços a partir dos Estados, tem vindo a constituir uma das maiores operações de “expropriação” feitas às comunidades e aos cidadãos.
Esta consequência social do estatismo irá ter enormes consequências num futuro breve, tanto pela facilidade com que o grande capital irá, na fase seguinte, controlar e dominar as comunidades sociais e as próprias relações familiares, como pela dificuldade, a partir de uma extrema atomização social (os seres humanos reduzidos a “unidades individuais de consumo”), fazer renascer e estruturar forças de oposição a essa dominação e para impulsionar os necessários processos de transformação/revolução social.
Perante a crescente fragilização interna da U.R.S.S. nas últimas décadas da sua existência e, depois, a sua derrocada, os poderes capitalistas-burgueses-imperialistas lançaram uma ofensiva em todas as frentes e à escala global com vista ao estabelecimento, sob a hegemonia do capital financeiro e das transnacionais e apoiado na chamada “excepcionalidade” norte-americana, de uma Nova Ordem Mundial caracterizada por:
No plano das relações políticas:
a) Privatização do poder político ao nível dos Estados-Nação mediante a corrupção, a “gestão de carreiras” no interior dos partidos políticos com acesso ao Poder e a reorganização dos sistemas eleitorais e processos de decisão de modo a assegurar a sua blindagem relativamente ao acesso popular ao Poder;
b) Esvaziamento das competências e poderes dos Estados nacionais mediante a sua transferência sucessiva para instâncias internacionais isentas de controlo democrático dos povos, reduzindo-os a meras agências subsidiárias de controlo social;
c) Submissão dos Estados através das dívidas financeiras;
d) Alianças militares e integração de serviços de informações e de segurança, para controlo dos Estados não afectos; Desestabilização destes e intervencionismo directo sempre que necessário; Privatização de serviços de segurança e militares;
e) Estabelecimento de um sistema de dependências e de dominação em cascata, semelhante aos modelos feudais, desde o plano mundial/global ao local, segundo um ordenamento fortemente hierárquico e maquinal.
No plano das relações económicas, “de produção”:
a) Domínio sobre os recursos naturais dos diversos países;
b) Subordinação dos sistemas de produção, transporte, distribuição e I&D (investigação e desenvolvimento) de âmbito nacional ao controlo e direcção do capital financeiro e das transnacionais, segundo o mesmo método neo-feudal de dependências em cascata;
c) Estabelecimento de uma vasta rede de plataformas territoriais de operações (off-shore), isentas de qualquer espécie de controlo, estatal, internacional ou democrático;
d) Privatização das empresas e serviços públicos, deixando sob controlo estatal/social as responsabilidades/actividades a partir das quais o grande capital possa externalizar custos (económico-financeiros, ambientais, sociais) e internalizar directamente proveitos/vantagens;
e) Aquisição (por compra favorecida ou roubo) de activos de toda a natureza dos Estados, das comunidades e de particulares acossados por dificuldades.
f) Prosseguimento, em extensão e profundidade, do processo de “mercadorização” de actividades/serviços normalmente realizadas directamente pelas comunidades humanas com base na solidariedade e entre-ajuda, na cooperação e na afectividade, visando introduzir a cultura de competição e de exploração em todos os interstícios sociais.
g) Estabelecimento de um sistema Tributário generalizado, baseado na extracção de recursos de todas as actividades humanas, com base em rendas, juros, dividendos e outros “direitos”, em correspondência com a nova estrutura política neo-feudal em formação.
No âmbito da formatação ideológica, da informação e da propaganda
Estruturação e organização dos mais variados sistemas de produção e difusão de produtos intelectuais (de informação pública (media), de produção e difusão científica e artística, de publicidade comercial, desporto, etc.) como uma grande máquina de condicionamento e formatação mental, como uma Nova Igreja, agora “dos Mercados” e subordinada ao Deus Capital-Dinheiro, que, tal como no passado medieval, legitime a cosmo-socio-visão das classes e grupos dominantes e conduza ao auto-convencimento dos indivíduos e à sua aceitação (auto-controlo social).
O produto dessa máquina não é mais do que a variante espiritual do milho transgénico da Monsanto.
Este Projecto Ideológico de Dominação Mundial, determinado pela necessidade de reprodução ampliada incessante do Capital, encontra-se em curso e poderá ser percebido pelo nosso quotidiano.
É necessário, com urgência, travá-lo e liquidá-lo, pois ele conduzirá a desequilíbrios que porão em causa a continuidade da evolução da espécie.
Uma criação mental humana, o Capital, transformou-se assim, através de sucessivas metamorfoses, de um instrumento conceptual que ajudou a organizar a produção social de modo mais eficiente, promovendo a iniciativa individual e a aceleração dos processos produtivos, num “ser” que, como um cancro, invade todo o âmbito das relações sociais, subordina e se alimenta do corpo e da alma de toda a Humanidade.
Para isso, é necessário que as actuais relações sociais (e não só “de produção”) de carácter plutocrático-burguês-imperialista-feudal, determinadas pelo metabolismo do Capital, tenham de ser radicalmente alteradas no sentido de salvaguardar a sobrevivência e o Bem Viver da Humanidade existente.
A relevância atribuída por Marx à profunda alteração das relações de produção poderá ser relida, hoje, como um passo decisivo para desmantelar o principal instrumento de poder das actuais classes dominantes, exploradoras e opressoras, o Domínio do Capital, e permitir retomar o processo de estruturação e organização de relações sociais “de baixo para cima”, consoante as necessidades humanas, a partir das redes de relações de mais baixo nível e do exercício da Democracia Radical e Integral.
Haverá, por isso, que terminar de vez com as relações sucessoras da antiga “aliança simbiótica dos agricultores com os caçadores-recolectores”, actualmente traduzida na dominação plutocrático-burguesa sobre os sistemas sociais.
Pensar que da alteração das relações de produção possa resultar, automaticamente, a superação das actuais incongruências dos acoplamentos estruturais dos humanos com o meio (social e natural) é um erro que importa não repetir.
Sobre a “Luta de Classes”
Como Marx refere, a estratificação social em classes resulta directamente da divisão social do trabalho.
Por sua vez, a divisão social do trabalho pode ser uma das formas pelas quais a autopoiesis, através da tendência para a optimização dos processos produtivos, se projecta no meio social, parecendo ficar, assim, “biologicamente” legitimada essa divisão do trabalho e, consequentemente, a estratificação social em classes.
Não é, porém, bem assim, como procuraremos mostrar mais adiante.
Houve um longo tempo, desde os primórdios, em que se verificava divisão do trabalho social (as actividades socialmente necessárias eram repartidas/divididas pelos membros das comunidades em função das respectivas aptidões ou de modo circunstancial, obtendo-se desse modo maior eficiência) e não a divisão social do trabalho, entendida esta como uma divisão da sociedade em grupos específicos relativamente estáveis/permanentes, com funções bem determinadas e “imutáveis”.
Do primeiro “modelo”, da divisão do trabalho social, resultavam (e poderão resultar no futuro) sistemas sociais integrados, como um todo orgânico, caracterizados por uma grande interdependência entre todos os seus elementos e por razoáveis níveis de satisfação individual e social, no quadro do estádio evolutivo então existente.
Do segundo “modelo”, surgido basicamente com a agricultura, os sistemas sociais fragmentaram-se, estratificaram-se em classes (e castas) que desempenhavam (e continuam hoje a desempenhar) funções sociais diferenciados, que adoptavam “modos de viver”/acoplamentos estruturais com o meio diferentes e, portanto, com Culturas também diferenciadas.
Como já antes referido, as formações sociais que se foram constituindo ao longo de séculos e milénios, cada vez mais vastas, resultantes da sucessiva “assimilação”, por simbiose, de grupos humanos adjacentes aos grupos com maior capacidade “atractora” (mais numerosos, com mais recursos, melhor organizados... com maior força cultural/gravitacional, mais potentes, em suma), foram tornando-se cada vez mais diferenciadas e complexas, multiculturais, com múltiplas identidades de pertença.
A agregação dessas formações sociais extremamente heterogéneas foi sendo feita, historicamente, em conjunto pelas classes dominantes e pelas religiões, através de diversos procedimentos, consoante as circunstâncias.
De entre eles referem-se: a eliminação e repressão dos afloramentos culturais pré-existentes e mais persistentes; razias generalizadas de medo, propiciadoras, nessa base, de identificações recíprocas e solidariedades entre “diferentes”; colonizações e deslocações internas, tendentes a “misturar” e suscitar relações entre elementos culturais diferentes; da imposição de hierarquias políticas e religiões oficiais, tendentes a homogeneizar atitudes e comportamentos sociais, económicos e mentais-espirituais; pelo estabelecimento de sistemas de leis/regras, de mecanismos de controlo social, de administração da justiça e de repressão.
A Inquisição, instituída pela Igreja Católica, pela perseguição e punição impiedosa de todas as manifestações de crenças e formas de espiritualidade ancestrais, constituiu um instrumento dessa “homogeneização” cultural.
Do mesmo modo, os “absolutismos” que se seguiram, criando uma forte centralização política, instituiu os Estados-Nação e combateu e eliminou muitos dos “regionalismos” e particularismos que subsistiam devido à anterior fragmentação do poder, de raiz feudal.
Os Estados burgueses modernos, surgidos das revoluções populares liberais, passando teoricamente por cima das múltiplas diferenciações culturais (de origem étnica, socioeconómica, religiosa, etc.) subsistentes nas respectivas formações sociais, declararam a igualdade de todos os indivíduos na condição de cidadãos, estabeleceram um conjunto de direitos humanos universais e o princípio da não discriminação.
Essas referências fundamentais correspondiam aos interesses da Vida humana, mantêm-se actuais e com valor de futuro.
Contudo, esse “começar de novo” proposto pelos teóricos do liberalismo, inspirado na longínqua recordação de um passado remoto que invocava o “direito natural”, não seriam mais do que, na expressão de Engels, desejos piedosos.
Dessa “tábua rasa” piedosa, logo emergiu, pela dinâmica do capitalismo em ascensão, a realidade bruta da profunda desigualdade socioeconómica entre os detentores dos meios de produção (a burguesia e, na generalidade dos países europeus, os restos das velhas aristocracias “aburguesadas”) e os que, de seu, só tinham a sua força de trabalho (o proletariado, designadamente industrial).
Foi fundamentalmente a partir da compreensão da relevância desta radical oposição de interesses nos acontecimentos políticos e sociais do seu tempo, que Marx e Engels, olhando para o passado histórico, caracterizaram a Luta de Classes como a expressão socialmente visível da oposição de interesses entre os grupos que ocupavam posições diferenciadas, como produtores directos ou como meros apropriadores, na sucessão histórica dos diversos modos de produção.
Sem dúvida que a “condição de classe”, o posicionamento de cada indivíduo no sistema de produção social (“infraestrutura”), que constitui, a seguir à infância amorosa proporcionada pela mãe e a família, o mais influente campo de experiência e aprendizagem social, determina em grande medida a sua cosmo-sócio visão do mundo (“superstrutura”), impelindo-o tanto a manter e defender a ordem social estabelecida como a rejeitá-la e a tentar revolucioná-la.
No entanto, a Cultura de cada indivíduo humano não incorpora só em si a “camada cultural” proveniente da vivência/experiência que lhe advém do seu papel no sistema de produção social, integrando muitas outras camadas que advêm das mais diversas identidades que foi assumindo ao longo da vida (do grupo étnico de origem, das vivências espirituais, das convivências humanas onde partilhou, etc.).
Por isso, não é assim tão automática a adopção da “cultura de classe” e muito menos automática a adesão a um projecto de transformação/revolução social no qual cada indivíduo não veja reflectida a plena aceitação de (quase) todos os componentes da sua Cultura, enquanto totalidade.
Constitui uma ilustração desta observação o apelo, correcto mas voluntarista, de Marx à união internacional dos proletários e a constante negação prática destes, até ao presente, quer através da sistemática dessolidarização dos proletários de um país relativamente às lutas dos de outros países, como através da mobilização massiva de proletários para a guerra contra outros povos. Mais de 160 anos depois do Manifesto Comunista, não existe qualquer Internacional Proletária digna desse nome e todo o movimento proletário se encontra actualmente num lamentável estado de fragmentação e debilidade.
Tal como já antes referido, a divisão da sociedade em classes (produtoras e gestoras de assuntos comuns), reflectindo novas necessidades de organização social decorrentes da adopção da agricultura e da intensificação das disputas pelos recursos entre grupos humanos diferenciados, constituiu uma solução simbiótica viável e satisfatória.
Da administração dos assuntos comuns à cleptocracia
A forma política típica do período antigo, desde o advento da agricultura até cerca de 3.000 a.C., era a das aldeias ou cidades-Estados - configuradas como um núcleo urbano principal e uma extensão variável de campos agrícolas circundantes - as quais abrigavam comunidades relativamente homogéneas e eram governadas de modo republicano, com maior ou menor concentração de poderes, favorecendo o surgimento de aristocracias dominantes.
Conhecem-se hoje numerosas aldeias ou cidades muito antigas, algumas de cerca de 7.000 anos a.C., como Çatalhüyük, no sul da Turquia, e Jericó, junto ao rio Jordão.
O crescimento numérico dos grupos populacionais, as alterações climáticas verificadas nesse período e o esgotamento de recursos essenciais nas zonas de fixação foram os elementos motores primordiais para os processos migratórios dos diversos grupos humanos pela superfície do planeta em direcção às zonas mais favoráveis. Conhecem-se sucessivas migrações de povos indo-europeus das estepes da Ásia Central para o Crescente Fértil e para a Europa Central e Ocidental.
Aproximadamente entre 3.000 a.C. e o início do 1.º milénio a.C. desenvolveram-se, nas regiões mais populadas (Crescente Fértil – da Pérsia, Mesopotâmia, Anatólia, Mediterrâneo Oriental ao Egipto -, Índia, China e América), diversas Culturas e Civilizações surgidas da conglomeração, dessas aldeias ou cidades-Estado, designadamente a Micénica (Grécia pré-homérica), a Minóica (centrada em Creta), a Sumério-Acadiana (Mesopotâmia), do vale do Jordão (Palestina), do vale do Nilo (Egipto) do Vale do Indo (Índia), do Rio Amarelo (China), os Maias (América).
O Egipto constitui um caso especial na medida em que a “unificação das nações” sob um poder político centralizado e estratificado se verificou logo a partir de 3.150 a.C., tendo o império atingido a sua maior extensão cerca do ano 1.070 a.C., desde a Núbia até ao Rio Eufrates, no norte da actual Síria.
Durante esse período, se bem que já houvesse escravatura, designadamente de cativos de guerra e sentenciados da justiça, o grosso da produção era realizada por indivíduos livres, pertencentes às respectivas comunidades, sendo a utilização dos escravos (a quem eram reconhecidos direitos civis) feita essencialmente em trabalhos domésticos e obras públicas e religiosas.
No período que lhe sucedeu, durante o 1.º milénio a.C. até ao final do Império Romano, duas regiões do mundo revelaram-se particularmente activas sob o ponto de vista político: a Bacia do Mediterrâneo até à Índia, e a China.
Na primeira, ao mesmo tempo que continuaram a verificar-se grandes migrações de povos em sua direcção, provindas das estepes da Ásia Central, vários impérios são sucessivamente constituídos no intuito de criar unidades político-territoriais cada vez mais extensas e, consequentemente, de gerar grandes pólos de acumulação. O impulso migratório anterior, ditado por necessidades de sobrevivência, foi sendo contaminado pelo impulso de conquista, visando a apropriação directa dos recursos de outros grupos populacionais.
Assim, a partir dos impérios Assírio, Medo, Caldeu, Neo-Babilónico, Lídio e Egípcio, vem a constituir-se o grande Império Persa que, em 490 a.C. estabelece uma unidade político-territorial que se estende do Rio Indo ao Mar Cáspio, à Trácia e ao Egipto, ao qual se sucede o Império Macedónico de Alexandre que lhe acrescenta a península grega e as suas dependências no Mediterrâneo.
A grande particularidade destas grandes unidades político-territoriais relativamente aos períodos anteriores consiste em que nelas os grupos dirigentes já não constituíam uma “emanação” das comunidades trabalhadoras camponesas e, portanto, sujeitas ao seu maior ou menor controlo, mas sim a “emanação” de uma comunidade conquistadora que iria dominar e administrar em seu proveito, através do saque inicial e de formas diversas de tributação, os grupos sociais trabalhadores que já estavam implantados no território conquistado.
Neste sentido, as classes dominantes muito mais do que representarem os “serviços partilhados comunitários”, transformaram-se em classes essencialmente cleptocratas, cuja motivação passou a ser exclusivamente a acumulação de riqueza e de poder, desligadas dos processos produtivos sociais e suportadas essencialmente pela sua capacidade coerciva.
Por isso os empreendimentos de conquista se desenrolavam sobre as zonas de maior produção de riqueza, fosse junto aos grandes rios onde as produtividades agrícolas eram substancialmente maiores, fosse nas zonas de produção de metais e outros materiais raros, bem como ao longo dos percursos que sustentavam os mais importantes trânsitos comerciais.
As condições para que esses empreendimentos de conquista se realizassem eram:
- A prévia acumulação de recursos militares adequados para vencer os opositores (conhecimentos, tecnologias-armamento e meios de transporte adequados, uma massa suficiente de combatentes treinados, informações políticas e tácticas e técnicas de comando);
- Que os “objectivos” a conquistar, pelas suas riquezas directamente saqueáveis ou potenciais (pela tributação das suas actividades económicas regulares), permitissem a rápida reposição do “investimento” efectuado e um maior e mais rápido processo de acumulação;
- Que esses objectivos, após conquistados, pudessem oferecer as necessárias condições estratégicas e tácticas de defesa e conservação, em termos territoriais, sociológicos e políticos.
Tal como nos “impérios” capitalistas da actualidade, a acumulação de recursos realizada por cada um desses impérios antigos (conhecimentos e informações, financeiros, tecnológicos, demográficos, etc.) não era aplicada fundamentalmente no desenvolvimento das forças produtivas, mas sim na “corrida aos armamentos”, no desenvolvimento das tecnologias de guerra, na apologia do Poder e nos sistemas de condicionamento ideológico-religioso das populações submetidas.
De qualquer modo, é de salientar que em todo o Crescente Fértil, do Egipto ao Vale do Indo, as grandes massas trabalhadoras, apesar de submetidas à cleptocracia, mantiveram sempre, globalmente, a sua condição de cidadania, sendo o fenómeno da escravatura marginal.
Esparta e Atenas
O mesmo não aconteceu nas cidades-Estado gregas ao saírem da sua organização social arcaica, de carácter tribal, ainda sujeitas a regimes de distribuição de terras relativamente igualitários, baseados em pequenas parcelas familiares. Aqui, em terrenos muito menos férteis e à falta de desenvolvimentos tecnológicos de carácter qualitativo, a forma adoptada para gerar uma acumulação significativa foi a utilização intensiva da escravidão.
Tal fenómeno vem a reproduzir-se mais tarde nos espaços ocidentais do Império Romano e, também, aquando da expansão do Império Chinês para sul e oeste, na dinastia Han, a partir do século II a.C., já fora da influência directa dos grandes rios.
Assim, em várias cidades-Estados, entre as quais Esparta e Atenas, as mais importantes, foram estabelecidos modelos socioeconómicos que, assegurando embora uma grande participação democrática das respectivas cidadanias, assentavam na exploração extensiva do trabalho escravo nas actividades agrícolas e artesanais.
Enquanto em Esparta tanto as terras como os escravos permaneciam propriedade colectiva, sendo distribuídos de forma muito igualitária pelos cidadãos segundo um modelo equivalente ao “planeamento central”, em Atenas tanto as terras como os escravos eram propriedade pessoal transmissível, gerando uma sociedade mais próxima do modelo “de mercado”.
Como resultado, em Esparta o modelo de “acumulação” ficou limitado à transição da riqueza gerada pelos escravos para a massa comunitária relativamente igualitária de cidadãos, enquanto em Atenas o modelo de acumulação possibilitava a concentração da riqueza numa “aristocracia de negócios”, o que possibilitou a posterior derrota de Esparta e a expansão de Atenas até às costas da Anatólia e à colonização de outros pontos do Mediterrâneo, incluindo a península itálica.
Por outro lado, circunscrevendo-se a cidadania a cada uma das cidades-Estados de origem, tal modelo dificultava a assimilação de outros grupos populacionais num mesmo bloco político-territorial, fragilizando, portanto, a sua capacidade integradora.
O modelo de “acumulação” e o modelo político, condicionando mais ou menos a intensidade da acumulação de riqueza e a capacidade integradora de novas unidades, condicionam de modo decisivo a capacidade expansiva de uma cultura-civilização-Estado.
Alexandre, o Grande
Caberá aqui igualmente reflectir brevemente sobre as condições que contribuíram para o extraordinário êxito dos empreendimentos de conquista de Alexandre.
Sem dúvida que todo o seu brilhantismo militar e qualidades de liderança, constituíram, como competia, um factor.
Porém, essas qualidades teriam servido de pouco se a Macedónia, país de bárbaros, segundo os gregos, não tivesse acrescentado ao seu próprio modelo de acumulação, monárquico e fortemente centralizado, a acumulação gerada nas próprias cidades-Estado gregas entretanto submetidas e incorporadas no reino e, através de sucessivas alianças com os povos que iam sendo conquistados, incluindo através do casamento, do próprio Alexandre e dos seus quadros, não tivesse assegurado os recursos necessários para a continuidade da campanha.
Essa estratégia de casamentos mistos e alianças com as aristocracias locais e o respeito e manutenção geral das condições de cidadania dos povos “conquistados” é que permitiu a continuidade das quatro grandes formações político territoriais em que o Império se dividiu após a sua morte, segundo o princípio de “mudar o mínimo do que está a funcionar bem”.
Assim, “o que ficou” de Alexandre, não foi a devastação e o saque característicos de outros “empreendimentos de conquista”, nem tão pouco uma alteração das estruturas tradicionais de cidadania e administração já implantadas, mas sim a sobreposição a estas de uma nova camada integradora macedónica, substituta da persa, e a difusão por toda uma vasta região – quase todo o mundo conhecido de então – das conquistas culturais gregas “acumuladas” ao abrigo da exploração escravista na própria Grécia, o Helenismo, incluindo uma maior dinâmica de urbanização.
Tornava-se evidente, pela primeira vez, o princípio de “um país e dois sistemas”, mantendo-se nas zonas de solos pobres o modelo escravista e nas zonas de solos ricos o modelo de exploração através de trabalhadores livres.
Cartago e Roma
Cartago, fundada no século IX a.C. por colonizadores fenícios, foi uma república marítima e comercial norte-africana que, no século III a.C., constituía um império com possessões na Sicília, Sardenha e Ibéria, controlando grande parte do Mediterrâneo.
Roma foi fundada no século VIII como resultado da fixação do povo latino, de origem indo-europeia, na região italiana do Lácio, organizado segundo uma monarquia. Após alguns séculos de luta pela hegemonia regional com os etruscos, fixados mais a norte, ambos os povos acabaram por ser integrados numa mesma unidade político-territorial. Em 509 a.C., a cidade-Estado de Roma e as suas províncias organizam-se segundo uma república aristocrática expansionista que conquista toda a península itálica, parte da Gália e da Ibéria, defrontando-se finalmente, entre 264 e 146 a.C., com a potência marítima e norte-africana de Cartago, terminando esta por ser arrasada e incorporada nos domínios de Roma (Guerras Púnicas).
Contrariamente à evolução das cidades-Estado gregas no sentido da democratização do Estado e da propriedade, em Roma o Senado republicano era dominado por um pequeno número de clãs patrícios, cujos membros eram designados por cooptação e vitalícios, os quais, desde cedo começaram a concentrar nas suas mãos as melhores terras, tanto pela apropriação directa das terras comunais como pela apropriação das terras do campesinato pobre e arruinado pelas dívidas e a constante mobilização para as guerras de conquista.
Apesar das intensas lutas de classes ocorridas entre os séculos IV e III a.C. no sentido de as massas de cidadãos plebeus conseguirem condicionar o poder político, o sistema político aristocrático instituído tinha capacidade para “assimilar” os sucessivos novos representantes das massas de cidadãos plebeus (tribunos e cônsules) e neutralizar reformas mais profundas que teriam de passar, necessariamente, por uma generalizada redistribuição de terras.
Com a constituição generalizada de latifúndios trabalhados por massas crescentes de escravos fornecidos pelas acções bélicas, foi desaparecendo a classe dos modestos agricultores livres e armados (assidui, ou “assentados na terra”) que haviam sido a espinha dorsal do sistema socioeconómico grego, tendo o grosso da população sido urbanizada e destituída de quaisquer meios de produção (os proletarii), cujo único serviço ao Estado era criar filhos (proles).
“Uma vez totalmente urbanizada, esta grande e desesperançada subclasse (dos proletarii) perdeu toda a vontade de retornar à condição de pequena proprietária e muitas vezes podia ser manipulada pelas “igrejinhas” aristocráticas contra projectos de reforma agrária apoiados pelos fazendeiros assidui. A sua posição estratégica na capital de um império em expansão finalmente obrigou a classe governante romana a conciliar os seus interesses materiais imediatos com a distribuição pública de cereais. Isto era, com efeito, um substituto barato para a distribuição de terras que nunca aconteceu: era preferível um proletariado passivo e consumidor a um campesinato recalcitrante produtor, para a oligarquia senatorial que controlava a República.”
Perry Anderson – “Passagens da Antiguidade ao Feudalismo”
(Nota do Autor: Este pequeno trecho não deixa de suscitar alguma comparação com o papel do “Estado-Social” moderno em países capitalistas centrais, “redistribuidor” de parte dos resultados da exploração de outros povos, e as políticas de consumismo dependente realizadas junto das grandes massas proletárias actuais.)
Com base na acumulação de riqueza e poder gerada pelo modelo económico escravista e a centralização do poder na aristocracia, e dispondo de uma grande massa de cidadãos ociosos, o Estado romano transformou-se num Estado militarista e conquistador, cujas campanhas militares lhe resolviam simultaneamente vários problemas: a mobilização para a guerra de muitos proletarii “excedentários”, a rápida dizimação da classe do assidui (permitindo acelerar a concentração da propriedade rural), a obtenção de grandes massas de novos escravos para abastecer os latifúndios com mão-de-obra e o fortalecimento das alianças internas através da incorporação de novos elementos em funções dirigentes e da redistribuição dos resultados dos saques praticados.
“O influxo de trabalho escravo era tão grande que, na fase final da República, não apenas a lavoura italiana estava inteiramente remodelada por ele, mas o comércio e a indústria também estavam intensamente invadidos: talvez uns 90% dos artesãos de Roma fossem de origem escrava. A natureza da gigantesca sublevação social que envolveu a expansão imperial romana e a força motora básica que a sustentou podem ser percebidas com a completa transformação demográfica forjada por ela. Brunt estima que no ano 225 a.C. houvesse cerca de 4.400.000 pessoas livres na Itália para uns 600.000 escravos; lá por 43 a.C. talvez já fossem 4.500.000 pessoas livres para 3.000.000 de habitantes escravos – realmente, houve um declínio claro no total da população livre, enquanto a população escrava quintuplicava. Nada semelhante havia sido visto antes no Mundo Antigo. Todo o potencial do modo de produção escravo foi revelado pela primeira vez por Roma, que o organizou e o levou a uma conclusão lógica que a Grécia jamais experimentara. O militarismo predatório da República Romana era a sua principal alavanca de acumulação económica. A guerra trazia terras, tributos e escravos; os escravos, os tributos e as terras forneciam o aparato de guerra.”
Perry Anderson – “Passagens da Antiguidade ao Feudalismo”
(Nota do Autor: Esta “máquina” socioeconómica e político-militar foi tentada recriar, muitos séculos mais tarde, pelo III Reich alemão.)
Tal como na Grécia, o modelo político da república romana, centrado nesta Cidade-Estado, tinha dificuldade em assimilar os grupos dominantes das zonas de expansão, os quais, especialmente na península itálica, durante séculos lutaram pelo reconhecimento da sua cidadania romana, isto é, pelo direito a participarem no sistema de direcção política da República Romana.
Este via-se assim submetido a tensões não só pelas reivindicações plebeias da cidade de Roma mas também pelas pretensões dos grupos dominantes das zonas submetidas, pelo que algo teria de aparecer de novo que ultrapassasse as limitações de uma situação “à grega ateniense”, de carácter fortemente autárcico, e favorecesse a capacidade de acumulação expansiva.
Esta solução começou a ser esboçada no tempo do primeiro triunvirato, no ano 60 a.C., e ficou concluída no ano 27 a.C. com a proclamação do 1.º Imperador, Octaviano Augusto. A partir daí, à influência do Senado Romano sobrepôs-se a criação de toda uma estrutura de governo e de administração imperial que integrava no seu seio os variados interesses de todas as províncias do Império, desde o Ocidente Ibérico, Gálico e Germânico, do norte de África ao Egipto, das províncias europeias da Itália à Grécia e das províncias Orientais.
Essa composição “plurinacional” do aparelho de governo e de administração imperial começou, aliás, por ser significativa na própria composição militar das legiões romanas, através da incorporação crescente de “não-romanos” nas suas fileiras e estruturas de direcção, facto que veio sempre a ampliar-se durante o período do Império, com consequências, inclusive, na origem territorial diferenciada de muitos Imperadores.
Este, atingiu a sua máxima extensão com Trajano, por volta de 117 d.C., correspondendo à sua máxima capacidade expansiva, limitada tanto pela capacidade de acumulação de riqueza como pelo sistema político.
“A unificação imperial que Alexandre sonhara outrora foi simbolicamente realizada na época de Adriano, o primeiro imperador a viajar por todo o seu imenso domínio de ponta a ponta em pessoa. O império foi consumado formalmente pelo decreto de Caracala de 212 d.C., que concedia a cidadania romana a quase todos os habitantes livres no Império.”
Perry Anderson – “Passagens da Antiguidade ao Feudalismo”
Terminado o período de conquistas, que proporcionavam a principal fonte de obtenção de escravos para a economia da parte ocidental do Império e não sendo possível obtê-los na massa das populações integradas no Império, dada a sua natureza “plurinacional” e multicultural, por um lado, e, por outro, à falta de decisivas inovações tecnológicas no modo de produção baseado no trabalho escravo, começou a verificar-se um estancamento da capacidade de acumulação a Ocidente e, consequentemente, uma progressiva incapacidade de fazer frente às pressões dos povos bárbaros, designadamente germânicos, em progressiva migração para oeste.
A posterior divisão do Império Romano, entre Ocidente e Oriente, correspondeu às duas realidades socioeconómicas que já haviam caracterizado o Império de Alexandre.
A fragilidade socioeconómica da sua parte Ocidental levou à sua posterior queda e desmembramento em múltiplas formações político-territoriais, face à sua invasão pelos povos bárbaros.
Voltando ao tema...
Vimos como o fenómeno da cleptocracia (parasitismo) se tornou preponderante enquanto característica geral das classes dirigentes/dominantes, em substituição do seu originário sentido de Responsabilidade perante os respectivos povos.
O facto de uma minoria de dirigentes (imperadores, reis, senhores...) terem continuado essa tradição de responsabilidade e de acção complementar (simbiótica) relativamente às respectivas massas trabalhadoras, dependeu essencialmente dos seus traços individuais de carácter e não de uma característica sistémica da sua classe. Foram a excepção e não a regra.
Esta digressão pela história antiga, eventualmente entendida como despropositada no âmbito deste capítulo, é útil enquanto ilustração de fenómenos actuais, designadamente de como a burguesia, enquanto classe dominante, começou por desempenhar um papel complementar-simbiótico com a massa geral dos povos para se transformar, na sua fase actual, financeira, numa classe totalmente parasitária, numa mera cleptocracia que merece/tem de ser derrubada e expropriada.
Como também vimos, a dinâmica histórica do “passado agrícola” foi muito mais marcada pelas contradições de interesses entre os grupos dirigentes cleptocráticos que arregimentavam religiosa e militarmente os povos que submetiam do que pelas contradições/oposições de interesses de classe no seio de cada formação: “senhores e escravos” ou “senhores e servos”. Daí que o papel dessas classes exploradas e oprimidas tivesse sido muito pouco determinante/quase nulo no decurso da evolução desses sistemas sociais (a não ser como “carne para canhão”).
Para além das limitações já referidas, a teoria do desenvolvimento histórico através da luta de classes não é aplicável para o longuíssimo período anterior à divisão das formações sociais em classes com interesses divergentes, assim como não poderá explicar a continuação da história humana após a emergência, como será desejável, de sociedades sem classes.
De facto, se se reconhece a importância das lutas de classes no período de ascensão da burguesia enquanto classe e no período de formação do proletariado industrial (classe operária) enquanto classe específica e, somente, no quadro de cada unidade político-territorial que caracterizava o mundo de então (os Estados-Nação), ele já revelava limitações na explicação das relações internacionais, designadamente nas relações colonialistas e no quadro das relações internacionais.
O “motor” da luta de classes não funciona de modo simplista em função de uma classe “revolucionária” e outra “reaccionária”, sendo fortemente condicionado pelo grau de diferenciação e complexidade das formações sociais em cada momento e pelas respectivas dinâmicas económicas, sociais e culturais, em constante mutação.
Como explicar, pois, à luz da luta de classes, o processo interno da U.R.S.S., desde a extinção das classes antagónicas e à completa proletarização resultante da colectivização da agricultura, até à sua derrocada?
Por que razão a II Guerra Mundial se designou, na U.R.S.S., por Grande Guerra Pátria e não “grande guerra pelo socialismo/comunismo”? Não terá sido porque se reconheceu a importância dos traços culturais “remanescentes”, existentes sob a “camada cultural de classe”, de carácter religioso ou espiritual, étnico, etc., as quais poderiam ser mobilizadas através do apelo patriótico?
Essa derrocada da U.R.S.S. não terá resultado da subsistência, mesmo nos escalões mais elevados do P.C.U.S. e após mais de 60 anos, da cultura de apropriação típica das classes cleptocráticas anteriores, cultura essa que, para além de algumas justificações aparentemente legítimas, incentivou o controleirismo/burocratismo, o autoritarismo e a obediência, o “fecho democrático” e a corrupção?
Para além dos apelos a uma cultura de classe (proletária) recente, muitas vezes superficial e aparente, não são muito mais influentes as camadas culturais subjacentes, “invisíveis”, como num iceberg?
O caso da U.R.S.S., com a sua abolição (administrativa, formal, voluntarista) das classes sociais, em vez da sua natural extinção, não mostra que os processos culturais são muito profundos e demorados e que as pressas deixam “custos por pagar”?
A actual desorientação dos que se arrogam como “discípulos de Marx”, designadamente nos países ditos mais desenvolvidos, sobre a “classe revolucionária” e as políticas de alianças, constitui uma evidência da insuficiência dos modelos teóricos estabelecidos quanto aos mecanismos determinantes/condicionadores da evolução social.
Recordemos, sucintamente, como se chegou a esta situação:
No decurso dos processos de industrialização dos séculos XIX e XX, à medida que as grandes massas trabalhadoras excedentárias dos campos se deslocavam para as cidades, se proletarizavam e incorporavam na indústria em condições miseráveis, sofreram um rápido processo de aculturação através do qual, ao mesmo tempo que deixavam para segundo plano os seus traços culturais de origem (étnicos, regionais, de trabalho, etc.), encontravam novos traços de identificação entre si, enquanto operários, e em clara oposição à classe patronal, burguesa.
Foi a partir dessa consciência de classe, da identificação dos seus interesses e rejeições comuns, que foram perdendo toda a esperança nos partidos de tradição liberal, antes revolucionários, e desenvolveram os seus mecanismos próprios de acção: o movimento associativo e cooperativo como instrumentos de apoio à vida diária, e os seus partidos políticos, sociais-democratas, para a acção política.
Ao mesmo tempo que os movimentos sociais e políticos do operariado se consolidavam e reforçavam, polarizando à sua volta os interesses de outras camadas sociais em transição, também os grupos/classes dominantes se estruturavam consoante os seus interesses específicos, em diversos partidos burgueses e de raiz aristocrática.
Perante a “liquefacção” social decorrente dos recentes períodos de grandes transformações políticas e económicas, as diversas formações sociais estruturavam-se segundo os grandes blocos de interesses classistas.
Sem dúvida que durante cerca de 150 anos a classe operária, concentrada nas fábricas e nos seus bairros residenciais, pela sua coesão cultural, rápida capacidade de mobilização e propostas políticas abrangentes (designadamente junto do campesinato e de estratos urbanos empobrecidos), constituiu o núcleo central e motor das lutas sociais pela liberdade, a democracia e a justiça social, a nova “vanguarda popular”.
A divisão do movimento operário em comunistas e sociais-democratas (em “revolucionários e reformistas”) e as complexidades sociológicas crescentes das diversas formações sociais em função do aumento da complexidade dos processos económicos, por um lado, e, por outro, a margem de manobra do capitalismo para jogar com os “interesses nacionais” e outras diferenciações sociais à escala internacional, constituíram o indício dos limites da abordagem puramente classista na explicação e na activação dos processos de luta social e política.
Com o subsequente desenvolvimento e inovação tecnológica e o desmembramento das grandes corporações empresariais verticalizadas e as grandes concentrações operárias típicas da fase “fordista” do capitalismo, resultante da dispersão territorial e funcional das diversas operações produtivas, desde a concepção/projecto à fabricação de partes, da logística à administração, à assemblagem final ao controlo de qualidade e à comercialização, criou uma situação nova, muito mais complexa, que tornou obsoleta a velha visão da luta de classes e do papel da classe operária nos processos de transformação social.
Esses antigos núcleos culturais operários (de trabalho e residência), na qual a cultura proletária de reproduzia por proximidade e identificação mútua, foram dissipados, diluídos, não só pela dispersão dos locais de trabalho mas também pelos processos de urbanização residencial e pela difusão de variados “estilos de vida” que enfraqueceram os laços comunitários e promoveram a atomização social.
Ao mesmo tempo, com a nova estrutura e organização da produção à escala global, foram proletarizados inúmeros “quadros técnicos”, engenheiros, gestores e economistas, juristas, médicos, informáticos e investigadores nos mais diversos campos do conhecimento, sem o contributo dos quais não será possível assegurar a consistência e continuidade dos processos de concepção, produtivos, distributivos e de gestão de uma economia cada vez mais internacionalizada/mundializada e de muitos dos serviços essenciais à vida humana e social (saúde, educação...); a “velha classe operária”, dominantemente muito pouco letrada (ou analfabeta), transformou-se numa força de trabalho formada e qualificada que adoptou estilos de vida antes só acessíveis a estratos burgueses, restando só dela, em alguns países mais avançados, os “restos” que ainda têm alguma utilização residual em tarefas sem qualificação.
Por outro lado, designadamente nos países mais desenvolvidos, para além de uma grande massa trabalhadora com vínculos de emprego precários, de emprego intermitente e funções muito variáveis, avolumam-se crescentes quantidades de desempregados e de reformados com as mais diversificadas idades, experiências e qualificações, muitos dos quais permanecem excluídos dos processos produtivos e económicos e sem formas de representação eficientes.
Essa fragmentação e atomização social tornou os indivíduos muito mais dependentes dos meios de comunicação de massas que a grande burguesia se apressou a monopolizar. A informação oral e o panfleto deixaram de funcionar e as grandes massas foram colocadas na situação de espectadores de um grande circo informativo no qual as diversas “actuações”/assuntos se sucedem e onde não se consegue distinguir o real do fictício/inventado, a verdade da mentira.
Para além disso, a táctica do novo império burguês passa pela desarticulação de muitas dos mecanismos tradicionais de enquadramento e regulação social, desde unidades políticas vastas (tipo U.R.S.S. e outras que poderão seguir-se) a países específicos, de movimentos sindicais e associativos de massas, destruindo as suas capacidades agregadoras e lançando povos contra povos, sectores profissionais contra outros, intrigando entre gerações (novos e velhos) e religiões, etc., remetendo as pessoas para elementos básicos de identificação, de carácter étnico, nacional ou de cultura “tribal”. Os processos sociais, económicos, políticos e culturais aceleraram-se fortemente nas últimas décadas e adquiriram escala planetária. O planeta, hoje, assemelha-se a um caldeirão onde a Humanidade, com todos os seus elementos culturais “modernos”, “tradicionais” e “ancestrais”, se encontra em ebulição, cruzada por movimentos de convecção ascendentes, descendentes e laterais, com intensas e inesperadas trocas de influências. Está, sem dúvida, uma situação muito mais caótica, com os velhos “atractores” em processo de dissipação e outros, novos, a parecerem querer formar-se.
A situação é muito complexa e as teorias que serviram bem num determinado quadro, mais estável e previsível, terão de ser questionadas.
Segundo a linha geral de pensamento que tem vindo a ser exposta neste documento, teremos de enfocar a nova situação com base nos elementos fundamentais do fenómeno da Vida, nos elementos que se mantêm invariáveis desde a alvorada dos seres vivos (e da espécie humana) e se manterão invariáveis até à sua extinção: a autopoiesis, a reprodução, a autonomia, os acoplamentos estruturais com o meio e a sua deriva congruente.
O “motor” da história humana é, em suma, a sua busca/luta pelo Bem-Viver, cada um em harmonia consigo próprio, com os outros humanos, com toda a biosfera e com o ambiente cósmico-planetário.
Esta plataforma conceptual oferece a possibilidade de inventar novas plataformas políticas de convergência e de unidade de acção da esmagadora maioria dos humanos hoje existentes para derrotar as forças destrutivas e predadoras que ameaçam o futuro da Humanidade e para começar a inventar uma nova forma de viver sobre o planeta, novas formas de acoplamento estrutural.
Nas condições actuais do mundo, das sociedades e da organização dos sistemas económicos, que blocos de resistência e de transformação poderão ser gerados em substituição das antigas e irrecuperáveis concentrações (de trabalho e residenciais) operárias?
A esmagadora maioria dos indivíduos não possui meios de produção, limitando-se a possuir bens pessoais/familiares, como a sua casa, o seu automóvel ou o seu computador e um conjunto de bens consumíveis/perecíveis. Porventura alguns possuirão uns pequenos lotes de terra, algumas acções de empresas, algum dinheiro no banco e outros bens que poderão ter utilidade como “meios de produção”/capital. Porém, tudo isso é insignificante face às necessidades sociais.
Se bem que, para começar a resistir e a transformar, é necessário que cada um se possua a si próprio, uma acção individual ou familiar poderá limitar-se a manter uma boa consciência mas não produzirá efeitos sociais significativos.
Um “palco” possível e muito viável, como novos blocos de resistência e de transformação são as comunidades e os poderes locais, ao nível dos quais existe suficiente complexidade social, variedade de traços culturais e experiências profissionais e, muito importante, um volume de recursos comunitários e pessoais que, associados e em cooperação, poderão criar e conservar algo à volta do qual tudo mude, conforme a lei sistémica referida por Humberto Maturana.
A “luta de classes” directa, onde e sempre que tenha aplicação, constitui uma das frentes dessa luta universal, ao lado de todas as outras possíveis.
Selvagens, Bárbaros e Civilizados
O autor deste documento, apesar de nunca se ter sentido intimamente tranquilo, foi daqueles muitos que, face a tarefas mais urgentes, passou por alto ou até “acreditou” nas virtudes “civilizatórias” do Capitalismo tão bem expressas no seguinte trecho de Marx, do seu artigo de 1853 sobre A Dominação Britânica na Índia (Com sublinhados do Autor do presente texto):
“Decorridos tempos imemoriais, não existiam na Ásia senão três departamentos administrativos: o das Finanças, ou pilhagem do interior; o da Guerra, ou pilhagem do exterior; e, enfim, o departamento dos Trabalhos Públicos... “Ora, os Ingleses nas Índias Orientais aceitaram dos seus precedentes os departamentos das Finanças e da Guerra, mas eles negligenciaram inteiramente o dos Trabalhos Públicos. Daí a deterioração de uma agricultura incapaz de se desenvolver segundo o princípio britânico da livre concorrência, do “laissez faire, laissez aller”... “Ora, por mais triste que seja do ponto de vista dos sentimentos humanos ver essas miríades de organizações sociais patriarcais, inofensivas e laboriosas dissolverem-se, desagregarem-se nos seus elementos constitutivos e serem reduzidas à miséria, e os seus membros perderem ao mesmo tempo a sua antiga forma de civilização e os seus meios de subsistência tradicionais, não devemos esquecer que essas comunidades “villageoisies” idílicas, malgrado o seu aspecto inofensivo, foram sempre uma fundação sólida do despotismo oriental, que elas retêm a razão humana num quadro extremamente estreito, fazendo dela um instrumento dócil da superstição e a escrava de regras admitidas, esvaziando-a de toda a grandeza e de toda a força histórica. Não devemos esquecer os bárbaros que, apegados egoisticamente ao seu miserável lote de terra, observam com calma a ruína dos impérios, as crueldades sem nome, o massacre da população das grandes cidades, não lhes dedicando mais atenção do que aos fenómenos naturais, sendo eles mesmos vítimas de todo o agressor que se dignasse a notá-los. Não devemos esquecer que a vida vegetativa, estagnante, indigna, que esse género de existência passiva desencadeia, por outra parte e como contragolpe, forças de destruição cegas e selvagens, fazendo da morte um rito religioso no Hindustão. Não devemos esquecer que essas pequenas comunidades carregavam a marca infame das castas e da escravidão, que elas submetiam o homem a circunstâncias exteriores em lugar de fazê-lo rei das circunstâncias, que elas faziam de um estado social em desenvolvimento espontâneo uma fatalidade toda poderosa, origem de um culto grosseiro da natureza cujo carácter degradante se traduzia no facto de que o homem, mestre da natureza, caia de joelhos e adorava Hanumán, o macaco, e Sabbala, a vaca. “É verdade que a Inglaterra, ao provocar uma revolução social no Hindustão, era guiada pelos interesses mais abjectos e agia de uma maneira estúpida para atingir os seus objectivos. Mas a questão não é essa. Trata-se de saber se a humanidade pode cumprir o seu destino sem uma revolução fundamental na situação social da Ásia. Senão, quaisquer que fossem os crimes da Inglaterra, ela foi um instrumento da História ao provocar esta revolução.”
Tendo pertencido a uma geração que viveu o fascismo português e que efectivou uma longa guerra colonial em África, recordo a indignação que senti quando alguém comentava, com a maior normalidade, o facto de “matar a tiro, a longa distância, uma criança negra que transportava uma trouxa de roupa na cabeça, era o mesmo que, na caça, matar um cabrito”.
Para além das diferenças “civilizacionais” entre Marx e o “alguém” acima referido, um cientista social e outro boçal, um querendo que “o homem (indiano) se tornasse rei das suas circunstâncias” e o outro remetendo os negros à condição de “cabritos”, constata-se que ambos se colocam no plano dos “superiores” relativamente aos “inferiores”.
Infelizmente, Marx não teve tempo de conhecer o - preconceituoso e racista - antropólogo polaco Bronislaw Malinowsky depois do seu regresso das ilhas Trobriand, onde viveu, isolado pela I Guerra Mundial, durante 3 anos, com os indígenas “selvagens”. Teria tido certamente a oportunidade de partilhar com ele não só a admiração pela avançada civilização inglesa mas também a constatação de, entre tantos outros símbolos, rituais e procedimentos sociais, a coroa da rainha de Inglaterra em nada se diferenciar de qualquer enfeite de cabeça de um chefe tribal.
Teria talvez constatado que a “civilização inglesa” era, essencialmente, uma “civilização material” capaz de mudar profundamente a cenografia mas que “a peça” representada era a mesma ou pior. E se tivesse acompanhado os acontecimentos gerados pelo capitalismo durante os séculos XX e XXI, certamente constataria que o capitalismo criou uma “civilização espiritual” verdadeiramente “animalesca” (sem desprimor para os animais).
Como Malinovsky, também Marx estava prisioneiro de muitos preconceitos do seu tempo.
Por outro lado, sentia-me emocionalmente mais confortado quando lia “Sobre o Direito das Nações à Autodeterminação”, de Lenine, apesar dessa questão ser por ele tratada, exclusivamente, no quadro da leitura histórico-económica marxista, isto é, de como essa questão era relevante como táctica para o avanço histórico contra as relações de dominação nacional pré-capitalistas, para eventualmente se tornar contraproducente no quadro da unidade internacional do proletariado e da transição para o socialismo.
“En todo el mundo, la época del triunfo definitivo del capitalismo sobre el feudalismo estuvo ligada a movimientos nacionales. La base económica de estos movimientos estriba en que, para la victoria completa de la producción mercantil, es necesario que la burguesía conquiste el mercado interior, es necesario que territorios con población de un solo idioma adquieran cohesión estatal, quedando eliminados cuantos obstáculos se opongan al desarrollo de ese idioma y a su consolidación en la literatura. El idioma es el medio esencial de comunicación entre los hombres; la unidad de idioma y su libre desarrollo es una de las condiciones más importantes de una circulación mercantil realmente libre y, amplia, que responda al capitalismo moderno, de una agrupación libre y amplia de la población en todas las diversas clases; es, por último, la condición de una estrecha ligazón del mercado con todo propietario, grande o pequeño, con todo vendedor y comprador. (...) “¿Qué significa este requisito absoluto del marxismo aplicado a nuestro problema? “Ante todo significa que es necesario distinguir rigurosamente dos épocas del capitalismo, radicalmente distintas desde el punto de vista de los movimientos nacionales. Por una parte, es la época de la bancarrota del feudalismo y del absolutismo, la época en que se constituyen la sociedad y el Estado democrático-burgueses, en que los movimientos nacionales adquieren por vez primera el carácter de movimientos de masas, incorporando de uno u otro modo a todas las clases de la población a la política por medio de la prensa, de su participación en instituciones representativas, etc. Por otra parte, presenciamos una época en que los Estados capitalistas están completamente estructurados, con un régimen constitucional hace mucho tiempo establecido, con un antagonismo muy desarrollado entre el proletariado y la burguesía, una época que puede llamarse víspera del hundimiento del capitalismo. “Lo típico de la primera época es el despertar de los movimientos nacionales, el hecho de que se incorporen a ellos los campesinos, como el sector de la población más numeroso y más "difícil de mover", en relación con la lucha por la libertad política en general y por los derechos de la nacionalidad en particular. Para la segunda época, lo típico es la ausencia de movimientos democrático-burgueses de masas, cuando el capitalismo desarrollado, aproximando y amalgamando cada vez más las naciones, ya plenamente incorporadas al intercambio comercial, pone en primer plano el antagonismo entre el capital internacionalmente fundido y el movimiento obrero internacional.”
Lenine, “O Direito das Nações à Autodeterminação”
Sim, Marx e Lenine descobriram os aspectos maquinísticos da evolução histórica, uma sucessão de fases e etapas, uma espécie de “linha de montagem da civilização material”, sem terem percebido que a “civilização material” constitui um mero instrumento e não uma finalidade, que ela tanto poderá ajudar no processo de hominização do homem como no processo da sua degeneração e auto-destruição.
Essa “civilização material” representada no caso pela “civilização inglesa” (que nada tinha, nem tem, de mais avançado do que a dos “selvagens” trobriandeses quanto a relações sociais e à dimensão espiritual – “valores humanos”) tinha, segundo as palavras de Marx, apesar de “triste, do ponto de vista dos sentimentos humanos”, toda a legitimidade, em nome de “um destino a cumprir pela humanidade”, e mesmo que “guiada pelos interesses mais abjectos”, de “dissolver e fazer desagregar essas miríades de organizações sociais patriarcais, inofensivas e laboriosas” e “levarem à miséria os seus membros”, perdendo estes, “ao mesmo tempo, a sua antiga forma de civilização e os seus meios de subsistência tradicionais” (sublinhados pelo Autor na citação anterior de Marx).
Esta perspectiva de Marx, esta frieza maquinística de Marx, esta crença de Marx no Mito do progresso material que, como um comboio a todo o vapor (porque no seu tempo só ainda havia “a vapor”) conduzia a humanidade em direcção a “um destino a cumprir”, é o “calcanhar de Aquiles” de toda a sua teoria.
Foi essa perspectiva maquinística e determinística que contaminou, apesar da justeza geral do movimento, as ideias e as práticas do Socialismo durante o século XX, fazendo-o afastar-se/alhear-se dos factores culturais, psicológicos e espirituais que compõem a essência evolutiva humana.
Foi essa visão, dos que vão na locomotiva do comboio a “dar-lhe vapor” (a vanguarda, burguesa ou proletária), dos que vão nas carruagens (a massas “civilizadas” em direcção ao “destino”) e dos atrasados que ficaram pelo caminho (os bárbaros e selvagens), que o socialismo herdou dos anteriores sistemas sociais fragmentados entre “superiores” e “inferiores” e que não lhe permitiu “levantar voo”.
Tão pouco qualquer ideia de internacionalismo poderá medrar enquanto subsistir incorporada na cultura socialista esta concepção fragmentadora, enquanto houver algum sector, grupo, classe social, partido político ou país que se considere “mais civilizado” e que utilize o seu critério-padrão como instrumento de coacção dos diferentes; o internacionalismo só poderá ter terreno para crescer na base do reconhecimento das diferenças e na aceitação da legitimidade do outro, isto é, no Amor, como definido por Humberto Maturana, isto é, quando deixar de haver “bárbaros”, “selvagens” e “civilizados”, “melhores” e “piores”, “nós” e os “outros”.
Nenhum povo deixará de saber incorporar, por sua própria iniciativa, no momento e das formas mais adequadas, na sua própria cultura, transformando-a, todos os contributos culturais dos outros povos que se revelarem úteis/vantajosos para o seu Bem-Viver.
Este Bem-Viver humano depende muito mais do tipo de relações pessoais e sociais que se estabelecem e da satisfação das necessidades básicas (alimentação, abrigo, etc.) do que dos restantes acessórios materiais. Por isso nós, os da “civilização material”, nem sequer entendemos, porque desfocados da Vida, como povos ancestrais gozam de um Bem-Viver descomplicado, que nós próprios, escravos do consumo material e alienados da nossa própria natureza, somente poderemos aspirar.
Essa deformação originária, a aceitação de critérios de “piores” e “melhores”, entre “os nossos” e “os outros”, projectou-se de forma mais ampla no âmbito da biosfera e, mesmo, do cosmos, através do antropocentrismo, da sua soberba exploradora relativamente às outras formas de vida e ao próprio sistema cósmico-planetário.
Entre o “destino” marxista e o “destino” religioso, parece não haver diferença quanto à qualidade do “ópio”.
Relativamente a Marx e a todos os que nos precederam, só temos a vantagem de serem substancialmente mais amplos e precisos os conhecimentos biológicos e antropológicos hoje disponíveis.
Assim como a Terra não é o centro do universo nem sequer do nosso modesto sistema solar, também o homo sapiens (demens) é somente mais uma entre tantas formas de vida que fluem entre si na biosfera terrestre.
Como diz Niel deGrasse Tyson,
“na perspectiva dos cem biliões de bactérias que vivem num único centímetro do nosso intestino grosso, o propósito da vida humana é proporcionar-lhes um escuro, idílico e anaeróbico habitat de matéria fecal”
(ver no youtube, “Does the Universe Have a Purpose?")
Cada espécie viva hoje existente é o resultado de uma cadeia evolutiva ininterrupta que vem desde há cerca de 3.500 milhões de anos, marcada por sucessivas hecatombes e regenerações.
Somos todos, em conjunto, no nosso entre-fluir, as formas de vida que se mostraram viáveis e coerentes entre si na grande diversidade de situações cósmico-planetárias, climáticas, geológicas, etc., que têm ocorrido.
Umas espécies têm-se revelado muito resilientes às sucessivas alterações de circunstâncias e perduram, com maiores ou menores alterações na organização biológica e no modo de viver, há centenas de milhões de anos; outras, como os humanos, são “recém-nascidas” de ramos pré-existentes; outras ainda, estão, por razões naturais ou induzidas, em declínio e extinção.
Constituímos, em conjunto, um mix variável de espécies congruentes entre si e com o sistema cósmico-planetário, organizado numa rede de redes complexas em contínua renovação. A “morte de uma borboleta” num ponto da rede poderá, como acontece com o clima, provocar, por retroalimentação de efeitos, uma catástrofe noutras zonas da rede global.
99,9% das espécies que algum dia existiram sobre a Terra extinguiram-se. Nenhuma delas teve um papel especial, uma missão transcendente a desempenhar para além do próprio facto de “viver à sua maneira”.
Se alguma característica distingue as espécies e os indivíduos actualmente existentes de todos os outros é a sua própria existência. Nenhum é necessário para a continuidade da Vida (que engendrará outros protagonistas) e todos são imprescindíveis uns aos outros.
Como humanos, só somos “melhores” que as outras espécies na forma de humanizar, isto é, de viver como humanos; assim como qualquer das outras é “melhor” do que nós no seu modo específico e inimitável de viver.
A Consciência Socialista só poderá assentar nesta emoção de identidade e pertença, na vivência da Rede, e não em qualquer Mito hierárquico e fragmentador. Se o “destino a cumprir” for Viver, dentro e com a Rede, segundo o Bem-Viver humano, estarei de acordo com Marx.
4. Sobre o Conceito de Socialismo
Parece simples mas a palavra Socialismo tem as mais variadas interpretações e âmbitos operacionais. É uma emoção, uma ética e uma atitude pessoal para com os problemas sociais, uma ideia, uma teoria, um movimento social e político, um período de transição entre duas etapas do processo histórico, um modo de produção, uma cultura, um “modelo” de sociedade ou uma nova civilização em emergência?
Partindo de Marx e Engels:
“As novas forças produtivas transbordam já da forma burguesa em que são exploradas, e esse conflito entre as forças produtivas e o modo de produção não é precisamente nascido na cabeça do homem — algo assim como o conflito entre o pecado original do homem e a justiça divina — mas tem as suas raízes nos factos, na realidade objectiva, fora de nós, independentemente da vontade ou da actividade dos próprios homens que o provocaram. O socialismo moderno não é mais que o reflexo deste conflito material na consciência, a sua projecção ideal nas cabeças, a começar pelas da classe que sofre directamente as suas consequências: o proletariado.”
Friedrich Engels, “Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico”
Segundo este trecho, o socialismo não será mais do que uma ideologia, um conjunto de ideias resultantes da experiência vivida de cada um e da análise efectuada a partir da própria consciência sobre as disfuncionalidades que sente existirem entre a organização e metabolismo do meio social em que se insere e as suas necessidades vitais e humanas, como ser biológico e social. Esse conjunto de ideias, quando apoiado pelo melhor conhecimento científico sobre o desenvolvimento social pode adquirir a característica de uma teoria explicativa da realidade, da qual, consequentemente, resulta a adopção de linhas de conduta, individual e colectiva, tendentes à resolução das disfuncionalidades verificadas.
Daí que cada indivíduo, a partir da sua própria experiência (única) e consciência (também única), na qual se consideram as Necessidades e os Desejos mais díspares, formule conclusões próprias quanto à configuração organizacional e metabólica da sociedade onde se insere (comunidade, nação, humanidade), e adopte linhas de conduta específicas para obter os melhores níveis de congruência entre si (biológico e social) e o meio.
Daí que Marx e Engels, no Manifesto Comunista, tenham analisado os diversos “tipos” de literatura socialista activos na altura, resultantes da similitude das experiências e vivências sociais e humanas dentro de diferentes grupos/classes sociais, destacando a seguinte categorização:
1. Socialismo Reaccionário, compreendendo o socialismo feudal e o socialismo alemão ou o "verdadeiro" socialismo;
2. O socialismo conservador ou burguês;
3. O socialismo e o comunismo crítico-utópicos;
A esses tipos de socialismo, vieram a acrescentar o resultado das suas próprias investigações:
4. O socialismo científico.
Se se considerarem as múltiplas referências ao “socialismo francês”, isto é, ao socialismo prático, revolucionário, posto em acção directamente pelas massas populares, poderemos admitir que não só o socialismo tem as mais diversas configurações como sistema de ideias mas, também as mais diversas formas de manifestação prática.
Não iremos, no âmbito deste trabalho sintético, desenvolver suficientemente esta temática complexa. No entanto, considero que a ideia do Socialismo se confunde hoje com a ideia de uma Outra Civilização que alie as conquistas científicas e tecnológicas modernas com os fundamentos biológicos e culturais que permitiram a evolução dos hominídeos até à actualidade (designadamente a autonomia individual, a plena integração social, a empatia e a cooperação) e, ainda, que considere a Humanidade como um todo integrado na biosfera, como o seu elo mais responsável (porque dotada de consciência) e um factor de equilíbrio e sustentabilidade das condições cósmico-planetárias.
O Socialismo poderá pois, ser considerado como:
a) Um novo paradigma de acoplamento estrutural dos seres humanos com o meio, social e natural, um modo, diferente do actual, de viver/operar, que assegure a máxima Felicidade individual e social de todos os seres humanos e a congruência da população humana sobre a Terra com toda a biosfera e os processos cósmico-planetários; isto é, o Socialismo como uma nova Cultura Humana. Neste sentido, o Socialismo não corresponde a um projecto, a uma imagem do futuro idealizado, a uma Utopia “científica”, mas sim a um processo, a uma prática quotidiana, emocional e conductual, que tenda para a satisfação dessa Necessidade genérica, de cada humano e da espécie no seu conjunto.
b) Um conjunto de Ideias (doutrinas, teorias, ideologias, eventualmente de novos mitos) e de Práticas que estabeleçam uma base de convergência e cooperação entre os homens e um impulso consciente para uma acção transformadora colectiva no sentido da configuração de uma nova estrutura e de um novo metabolismo social que favoreça a viabilidade e as condições de prosperidade dos humanos e de toda a biosfera a longo prazo, com base na partilha em comum e na gestão cooperativa e óptima dos recursos planetários e extra-planetários.
c) Um “caminho” a ser percorrido pelos indivíduos e pelos sistemas sociais, em dinâmica interna e em interacção recíproca, segundo “percursos” e ritmos próprios de cada realidade e circunstância, no sentido supra indicado.
O Socialismo, enquanto processo para um novo paradigma de acoplamento estrutural dos humanos com o meio e como Ideia-Prática, promoverá uma verdadeira Sociedade Humana, na qual todos os humanos serão sócios, em pé de igualdade, na qual participarão em tudo o que tenha a ver com a estrutura e funcionamento geral da Sociedade; conduzirá, por isso, a uma sociedade sem classes ou qualquer diferenciação do estatuto de Cidadania, sem discriminações de qualquer espécie, onde todos “possam” ser culturalmente diferentes (em rigor, cada humano, por ter tido uma experiência de vida única, é culturalmente diferente, único!), no respeito pela legitimidade de todos os outros. Só no processo de implantação dessa Outra Civilização (que se poderia designar como Socialista) é que a Humanidade poderá vir a constituir-se como uma Sociedade Humana Global.
As transformações a levar a cabo serão de tal envergadura (domínios e profundidade, incluindo nas relações do homem com a sua própria mente) que a marca fundacional do “socialismo” até hoje, a supressão da propriedade privada dos meios de produção, aparecerá mais como uma das tantas direcções de trabalho, e não como um Mito, isto é, como A Medida a partir da qual, automaticamente, tudo o mais resultaria.
Poderíamos formular essa nova visão com base em alguns critérios básicos:
a) Reconhecimento da legitimidade da Vida, em todas as suas formas, e da especial responsabilidade dos humanos, enquanto seres dotados de consciência, na defesa e preservação da sua existência a muito longo prazo;
b) Reconhecimento do carácter único de cada ser humano, da sua individualidade e, simultaneamente, do seu carácter eminentemente social;
c) Supressão de qualquer desígnio especial, cósmico, mítico ou ideológico para o Homem e a Humanidade, para além da natural aspiração:
- ao Bem-Viver, isto é, de viver a vida em harmonia consigo próprio (segundo a sua Consciência, com o mínimo de demens destrutivos na mente), com todos os outros humanos (em paz, reconhecimento mútuo e confiança, cooperação), com toda a biosfera e com os processos naturais planetários - como extensão de si para um domínio mais amplo de relações de existência;
"a experiência mística - repito: a experiência na qual uma pessoa vive a si mesma como componente integral de um domínio mais amplo de relações de existência... depende da cultura onde ocorre, ou seja, da rede de conversações em que ela está imersa, e na qual vive a pessoa que tem essa experiência".
Humberto Maturana “Amor e Jogo – Fundamentos Esquecidos do Humano, do Patriarcado à Democracia”
- à busca constante do Conhecimento (com vista a, com consciência e antecipação, conseguir manter o máximo de congruência entre o seu modo de operar/viver com o meio, natural e social).
d) Potenciação máxima de todas as capacidades individuais (autonomia, liberdade, responsabilidade, saber, saber fazer, cooperação e solidariedade) no quadro da mais completa compatibilização ética entre o individual e o social;
e) Eliminação de todo o tipo de parasitismo social e extinção de qualquer tipo de direito hereditário para além dos bens de utilização pessoal (meritocracia socialmente reconhecida);
f) Auto-organização social segundo redes livres, cooperativas, sem fronteiras e radicalmente democráticas (participação directa, prestação de contas, revogabilidade de mandatos representativos...), de configuração variável em função das necessidades; criação de novas bases institucionais com potencialidades de futuro; extinção progressiva dos conceitos de Estado e do Direito e sua substituição por relações baseadas na Ética;
g) Subordinação do desenvolvimento material ao desenvolvimento contínuo das relações humanas e sociais, da posse relativamente ao uso, do ter relativamente ao ser;
h) Socialização dos recursos naturais e dádivas da natureza e sua distribuição pela sociedade em função da optimização da produção e do consumo social, num quadro de sustentabilidade geral, dos recursos naturais, ambiental e da biosfera;
i) Desenvolvimento progressivo dos instrumentos de Participação Protagónica e de Democracia Integral em todos os domínios de actividade das sociedades que têm estado sujeitos a mecanismos de domínio hereditário e de classe (actividades económicas privadas e comunicação social de massas) ou “protegidas” da influência democrática dos povos por estatutos de pseudo-independência (forças armadas e de segurança, administração da justiça, “bancos centrais”, etc.);
j) Socialização mundial dos principais assuntos e problemas comuns e de interesse geral da Humanidade: Desarmamento e Paz, Segurança Cósmica, Conhecimento Livre e Investigação Crítica (Energias, Sistemas Espaciais, Comunicações Mundiais...), Demografia e Desenvolvimento, Gestão Global de Recursos Naturais Não Renováveis, Ambiente planetário, Preservação/Gestão Global de Patrimónios Culturais...
Esta ideia, que constitui o reflexo na inteligência, por um lado, “dos antagonismos de classe que imperam na moderna sociedade entre possuidores e despossuídos”, “da anarquia que reina na produção” e na profunda perversão das “democracias realmente existentes” e, por outro lado, da compreensão do carácter finito dos recursos planetários e do carácter fortemente predador do Capitalismo sobre o ambiente, servirá de impulso aglutinador e operativo dos cidadãos e dos povos para, de acordo com as suas especificidades culturais e circunstancialismos económicos, políticos e geográficos, se incorporem no movimento de transformação/revolução social, desde os níveis mais localizados até ao plano universal, para a superação da hegemonia capitalista e o estabelecimento de uma hegemonia de sentido Socialista.
Numa perspectiva mais restrita e utilizando alguns termos familiares da história passada, o Socialismo visa concretizar, agora a partir de uma base muito mais viável, decorrente do desenvolvimento técnico e científico e da “arte” da boa gestão dos recursos, as bandeiras das “velhas” revoluções populares liberais, a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade e ultrapassar as limitações da ideia anarquista.
5. “Ferramentas” de Acção Prática
A primeira reflexão que neste domínio deverá ser feita respeita ao facto de hoje, com muita frequência, se ouvir dizer que estas ou aquelas “ferramentas” de acção (formas de organização, estratégias, tácticas e métodos de luta, políticas de alianças, etc.) utilizadas no passado se encontrarem “ultrapassadas”, devendo, por isso, ser abandonadas e substituídas por outras, “mais actuais”.
Este tipo de raciocínio, característico de quem, para além de não ter memória histórica, se habituou, segundo a “moda”, a mudar de “gadget” tecnológico, não tem qualquer tipo de cabimento no âmbito dos processos de luta e de transformação social e política.
Assim, as classes dominantes e exploradoras, independentemente de como se designaram e dos mecanismos concretos através dos quais dominavam, oprimiam e exploravam os povos trabalhadores em cada momento e fase histórica, sempre se organizaram a agiram em função da utilização dos seguintes grandes tipos de Poder:
- Poder político-militar (compreendendo, a capacidade de decidir e de fazer cumprir as decisões através da força coerciva: poder militar, recolha e gestão de informações de segurança, poder policial e a chamada “administração da justiça” ou poder judicial);
- Poder Ideológico (compreendendo o controlo dos instrumentos de produção de Conhecimento e de Ideias, a produção de teorias e mitos justificativos da ordem social existente, assim como os instrumentos da sua difusão e “incorporação” cultural);
- Poder Económico (compreendendo a faculdade de proporcionar ou impedir o acesso aos meios de sobrevivência – física e social – nos limites e condições por si determinadas).
Esses poderes foram organizados e exercidos, durante todas as épocas até à actualidade, segundo as mais variadas combinações e métodos de acção, em função dos objectivos (de conservação ou extensão de Poder) e das circunstâncias, nunca tendo as classes dominantes abandonado em definitivo qualquer “ferramenta” de acção, por muito “desactualizada” que aparentemente possa parecer em cada momento.
Demorou milhares de anos de lutas, pontuais-locais ou mais amplas, de pressão difusa e constante ou explosivas, com avanços e recuos, para que os oprimidos e explorados conseguissem ir impondo limites a essa mesma opressão e exploração e conseguissem alguns espaços de intervenção e influência nos principais instrumentos de Poder acima referidos.
Esses milhares de anos de resistência e de combate foram coroados, nos últimos 350 anos, pelos extraordinários eventos das Revoluções Populares Liberais dos séculos XVII a XIX, pelas quais emergiram a Razão e a Democracia como fundamentos da ordem social, e pela Revolução Russa de 1917, através da qual, pela primeira vez, as grandes massas trabalhadoras acederam ao Poder, de modo consistente (simultaneamente político-militar, ideológico e económico), à escala de um país, inspirando, por todo o mundo, um vasto processo de lutas de libertação nacional e de transformação revolucionária de muitas sociedades.
Com a recuperação do primeiro ciclo revolucionário no quadro de um novo sistema de opressão e exploração (desde então “burguês”, capitalista), com o posterior fracasso da Revolução Russa e a consequente contra-ofensiva do grande capital internacional contra as conquistas políticas, económicas e sociais de todos os povos do mundo, criou-se uma situação nova e muito complexa para a qual as formas de organização, instrumentos e métodos de luta tradicionais - que resultaram efectivas em períodos antecedentes - não têm dado resposta adequada.
A observação deste facto não deve, porém, levar ao seu abandono, tanto mais que, sendo o mundo extraordinariamente variado e dinâmico em função dos lugares e das circunstâncias, eles mantêm efectividade em alguns casos e, noutros, poderão recuperá-la.
Opino, por isso, que em vez de “abandonar” as ferramentas de trabalho que serviram muito bem em muitos momentos e circunstâncias no passado, seja feito sobre elas um esforço de reflexão com vista tanto à sua adequação a cada contexto cultural, político e económico, como à criação de um vasto leque de ferramentas novas, ajustadas às necessidades de cada lugar, momento e circunstância da actualidade.
No mundo actual, onde a predominância dos potenciais militares e de segurança da grande burguesia internacional é avassaladora, onde os instrumentos económicos e financeiros que esta opera são determinantes para a estabilidade económica de qualquer país, a grande superioridade e os fulcros da actividade revolucionária socialista deverão ser:
1. A Democracia, exercida de modo contínuo, amplo e profundo, em todos os escalões da vida social, na direcção da Democracia Radical e Integral;
2. A Ética Socialista, assente no Respeito e Convergência com o diferente, na Cooperação, na Solidariedade, na Humildade, na Honestidade e na Verdade;
3. A permanente aquisição/difusão de Conhecimento, técnico-científico, humanístico e informativo, em aliança com uma prática constante e criativa.
Daqui decorrem duas consequências gerais:
a) A acção revolucionária deverá ser prosseguida por meios pacíficos e democráticos, a partir da disposição das grandes maiorias populares, reservando-se a utilização de qualquer forma de violência em situações de necessidade de auto-defesa popular face à opressão insuportável e à violência anti-democrática do grande capital;
b) Prevalência e favorecimento de formas organizacionais muito abertas e flexíveis, segundo redes de redes, de modo a suscitar a participação massiva dos cidadãos-sócios na acção transformadora das respectivas sociedades (política, social, económica, cultural e geográfico-ambiental), de acordo com as suas preferências e idiossincrasias.
6. A tomada do Poder e a Questão da Transição Quadro geral e histórico
A grande missão que está consignada aos revolucionários socialistas, é a da compreensão do carácter complexo e da diversidade de caminhos que poderão levar à superação do capitalismo.
Um grupo de questões, dela imediatamente decorrente, respeita à(s) estratégia(s), às tácticas, ao “modus operandi” e ao “equipamento” a utilizar nos diferentes contextos e momentos, designadamente quanto ao processo de tomada do poder e à chamada transição.
Se bem que Marx e Engels nos tenham deixado excelentes indicações nesses domínios, designadamente quanto à apreciação crítica dos processos revolucionários que acompanharam no seu tempo, como as Revoluções de 1848, a Comuna de Paris e o desenvolvimento da luta internacional dos trabalhadores, é nos trabalhos de Lenine sobre a Revolução Russa e de outros revolucionários directamente envolvidos na acção, passada e presente, que se devem extrair lições para o futuro, em função das novas condições actualmente existentes, tanto em termos globais como particulares.
Como se depreende dos escritos de Marx sobre as Revoluções europeias de 1848-1850 e sobre a Comuna de Paris, nessas revoluções como em todas as grandes lutas populares em todos os séculos anteriores, as massas populares punham-se em acção por impulso directo das suas condições concretas de vida, em sucessivos movimentos de rebeldia, destituídas tanto de objectivos estruturais claros quanto ao futuro como de organização eficiente, isto é, sem ideias nem organização próprias para além daquelas que, espontaneamente, surgiam.
Daí a sua fragilidade endémica face às classes dominantes em cada momento, sendo facilmente utilizadas como “carne para canhão” pelas diversas facções cujos interesses efectivamente se confrontavam e, posteriormente, fragmentadas e reprimidas, tendo que aceitar exclusivamente as “melhorias” que serviam os interesses desses grupos dominantes e não punham em causa o seu monopólio do Poder.
Tendo “decifrado”, através de uma análise profunda e rigorosa, o essencial dos processos históricos de desenvolvimento social, Marx dotou as massas populares oprimidas e exploradas com uma teoria do desenvolvimento histórico que não só ajudava à compreensão de cada situação concreta como apontava as vias da sua superação.
Os movimentos sociais e políticos representativos das grandes massas trabalhadoras puderam então, pela primeira vez na história, inspirados na teoria de Marx (marxismo), formular programas, adoptar critérios de organização e estratégias e tácticas de luta que lhes permitiriam ser sujeitos conscientes dos processos de luta subsequentes.
Em alguns países mais desenvolvidos, como a Inglaterra e a Alemanha, as lutas dos trabalhadores conduziram ao reconhecimento da sua participação política nos órgãos “representativos” do Estado e à obtenção de algumas conquistas sociais; nesses e em muitos outros países desenvolveu-se uma estratégia reformista sob a hegemonia burguesa, acreditando-se que seria possível uma transição pacífica e gradual ao Socialismo mediante o aumento da educação e da consciência das massas populares e a aceitação, pelas classes dominantes, da vontade popular democraticamente expressa. Esta via ficou conhecida como social-democrata.
Contudo, ao fim de mais de um século de experiência, apesar dos correspondentes partidos terem chegado ao poder durante largos períodos, a via reformista não conseguiu abalar minimamente os poderes económico e ideológico-mediático das classes dominantes nem, tão pouco, no âmbito do poder político-militar, o controlo burguês dos aparelhos militar, repressivo e de “administração da justiça”, blindados por um “Estado de Direito” vocacionado para a defesa e protecção da propriedade privada dos meios de produção e do direito de herança, isto é, da preservação contínua de uma “casta” dirigente, acumuladora e exploradora na esfera da economia (hereditarismo).
Como se constata, nesta segunda década do século XXI, a via reformista não adiantou um passo em direcção ao Socialismo, apesar de, durante algumas décadas ter assegurado alguma redistribuição dos benefícios às classes trabalhadoras dos países centrais mediante o chamado “Estado-Social”, à custa da subjugação e sobre-exploração colonialista ou neo-colonialista dos restantes países do mundo.
Por outro lado, em países onde era negado o direito de participação às organizações políticas dos trabalhadores, como na Rússia e em outros países, estas tiveram de se organizar segundo um “exército clandestino” orientado para a insurreição popular e para a conquista do poder. Nestas condições, que eram o exemplo vivo da impossibilidade de qualquer “conciliação de classes”, nasceu o partido de tipo novo, comunista, mais tarde chamado de leninista como referência ao seu criador teórico e prático.
Sem menosprezar contudo todas as formas de luta possíveis, dentro e fora das instituições estatais e sociais, como as lutas reivindicativas e sindicais e a participação parlamentar, os partidos leninistas entendiam que a transição ao Socialismo só poderia ser realizada através do domínio hegemónico do poder político pelo proletariado e, através dessa plataforma fundamental, conquistar o poder também nos domínios económico e ideológico-cultural. A conquista do Poder ficou assim, justamente, no centro da actividade política, devendo todas as formas de luta serem canalizadas para esse objectivo, essencial para o início do processo de transformação revolucionária da sociedade.
Os êxitos sociais, económicos e militares da U.R.S.S. nas primeiras décadas da sua existência, apesar das terríveis provas a que foi submetida, levou à codificação do seu “modelo” (hegemonia absoluta do partido comunista, esvaziamento da democracia dos conselhos – sovietes -, capitalismo de Estado, centralismo e burocratização, monopólio cultural e informativo, restrições religiosas...) como um standard a ser aplicado mecanicamente por todos os partidos comunistas e muitos movimentos de libertação nacional, independentemente dos variados contextos socio-culturais existentes no mundo. A adopção desse standard “certificado” seria, a essa luz, a garantia do êxito, pelo que não haveria mais para “inventar”; qualquer “inovação” ou alteração de perspectiva era vista com desconfiança, como um “desvio” ou uma “traição”...
Com o posterior fracasso e dissolução da U.R.S.S. desabou igualmente toda a teoria do “marxismo-leninismo” codificado à sua sombra como uma autêntica “bíblia sagrada”.
Independentemente de algumas dessas limitações terem tido temporariamente alguma justificação por razões imperiosas de defesa, elas vieram a constituir-se em “sistema” e conduziram, no final, ao colapso e ao desprestígio temporário da ideia Socialista.
Em consequência, uns, “heroicamente”, mantiveram-se como seitas da “religião perdida”, fazendo piruetas adaptativas para sobreviverem, designadamente através da rendição ao “parlamentarismo” e a uma grande dose de docilidade nas organizações sociais e políticas que dirigem ou influenciam; outros, entraram em depressão psíquica e, simplesmente, adaptaram-se camaleolicamente, às novas condições da hegemonia burguesa global; outros, felizmente, insistem no esforço de criatividade, intelectual e prática, para levar por diante, agora sem “livros sagrados”, a luta pelo Socialismo, pela libertação das grilhetas da opressão e da exploração.
Se esta fragmentada situação, aqui sintetizada, se verifica entre aqueles que já eram iniciados no estudo teórico e na prática da luta revolucionária pelo Socialismo, as grandes massas e, especialmente, as novas camadas jovens crescidas no pós-modernismo destruidor das “grandes narrativas” anteriores, encontram-se perante um tremendo vazio teórico inibidor da reflexão e da acção, tendente à sua modelação enquanto “robots” da megamáquina de reprodução/valorização do capital ou a um conformismo de mera sobrevivência.
Nos dias de hoje, haverá que lhes oferecer outras possibilidades de reflexão que não sejam o saudosismo das goradas experiências da ex-U.R.S.S., das “democracias populares” do leste europeu ou do ”maoísmo”, nem tão pouco as pastilhas apologéticas de uma “social-democracia” em queda livre (porque completamente desnecessária ao grande capital).
Porém, nem tudo são más notícias. A cidadania mundial de hoje encontra-se num estado geral de literacia e experiência de onde emerge:
- uma poderosa reivindicação de protagonismo, respeito, autonomia pessoal e ética social, que questiona tanto o conteúdo e as formas da “democracia real” existente como as práticas de “arregimentação”;
- uma poderosa consciência da interdependência recíproca
. entre todos os povos, que questiona o “ordem” internacional imperialista e a aculturação forçada;
. entre o mundo humano e a natureza (entendida tanto quanto aos processos planetários e cósmicos globais como quanto ao conjunto da biosfera), que questiona os limites da nossa sobrevivência a longo prazo.
Esta “nova” cidadania rejeita cada vez mais a ordem económica, política, social e cultural dominante; só que ainda não se apercebeu, ainda não incorporou, que o futuro civilizacional que proporcionará as condições da satisfação das suas profundas aspirações humanas corresponde à ideia do Socialismo acima formulada.
Uma Outra Civilização Emergente
Existem hoje no mundo, incluindo nos países avançados do “ocidente”, condições objectivas para a geração de um potente movimento de orientação socialista que traduza uma convergência teórica e prática dos inúmeros movimentos “alternativos”, muitos deles com perspectivas e interesses muito particulares, que se manifestam em cada país e no plano internacional.
Aos revolucionários socialistas caberá apoiar esses movimentos a caminhar para uma maior maturidade teórica e de acção, no sentido da sua expansão social, convergência e eficácia política, respeitando as respectivas identidades e autonomias.
Dado o actual sistema de poder mundial, centrado no capital financeiro internacional e nas transnacionais acolitados pelos principais Estados imperialistas e pelos media globais, o movimento socialista terá de, a par dos seus palcos meramente nacionais, ter uma dimensão internacional e global.
Contudo, a dimensão, profundidade e complexidade da tarefa a levar a cabo, a superação de uma civilização baseada na competição, na lei do mais forte, no ter sobre o ser, na redução dos seres humanos a simples robots e consumidores de uma megamáqina de valorização do capital, e na predação dos recursos planetários, excede largamente qualquer processo de transformação social que tenha acontecido antes, em qualquer período histórico.
A “Era da Colaboração e da Honestidade” que, segundo Humberto Maturana (Ver no YouTube “As Idades da Humanidade”) decorreu desde os alvores do homo sapiens até há cerca de 15.000 anos, a que se seguiu a actual “Era da Desconfiança e do Controlo”, poderá ser sucedida pela “Era da Honestidade e da Colaboração”, pela “Era da Democracia” (que neste texto designamos por Socialismo) se e só se, no presente, as relações humanas e sociais que lhe correspondem forem praticadas intencionalmente pelos indivíduos e pelas estruturas sociais, do mais elementar ao mais complexo nível de agregação, e se, verificando-se as suas vantagens, comecem a ser conservadas, isto é, se forem tomadas como preferências pelo maior numero de indivíduos.
Se bem que a questão da Tomada do Poder Político (em cada país, conglomerados de países e a nível global) continue a constituir um ponto central e iniludível, a partir do qual se multiplicarão as possibilidades de aceleração e aprofundamento do processo transformador, não se poderá estar à espera dessas condições para o iniciar.
A Nova Civilização, que resultará de um processo de transformação muito mais vasto, profundo e radical que o ciclo transformador das “Luzes” e das Revoluções Populares Liberais, não resultará de “decretos” de qualquer estrutura de poder; ela terá de se afirmar, como opção de vida, como um novo “modo de operar/viver”, a partir de cada cidadão, de cada comunidade, não a partir de “esquemas” pré-estabelecidos de organização e acção, mas sim a partir da experimentação, de um esforço intencional por novas soluções.
Alguns estudiosos afirmam, com fundamentos, que para sustentar uma população planetária de cerca de 7 biliões de humanos aos níveis de consumo das actuais chamadas “sociedades desenvolvidas”, seriam necessários três planetas Terra.
Alguns privilegiados, indivíduos, grupos sociais e Estados, pensam hoje que um qualquer “nível de equilíbrio” poderia ser alcançado pela liquidação massiva – pela guerra, a interdição do acesso aos recursos vitais, pela “solução final” através da indução de crises epidémicas - dos “excedentários”!...
Essa catástrofe, humana e humanitária, só poderá ser evitada através de uma “Grande Transformação” (parafraseando Karl Polanyi) que evite que nos matemos uns aos outros e que conduza a um novo patamar civilizacional onde “todos caibamos” e no qual, em condições de uma muito maior igualdade nos consumos de recursos per capita ao nível global, o “consumo” geral da humanidade, em condições de vida digna, de Bem-Viver, seja compatível com a capacidade produtiva sustentável do planeta, salvaguardando os recursos necessários para toda a biosfera.
Essa Grande Transformação constituirá um processo sistémico, complexo e demorado que só poderá ser levado a efeito se, de forma massiva, os humanos a quiserem, intencional e perseverantemente, prosseguir. Ela não poderá ser decretada/imposta por um centro de poder qualquer, seja ele “capitalista” ou “socialista”.
Essa Grande Transformação, por ser sistémica, terá de abranger, simultaneamente e de modo coerente, todos os âmbitos da vida, do psiquico-emocional e cultural ao social e político, ao económico-produtivo-distributivo e ao territorial-ambiental, que inclui o relacionamento humano com toda a biosfera e o sistema cósmico-planetário.
As Transformações coerentes a realizar em cada um desses domínios deverão ser prosseguidas de acordo com alguns Princípios Orientadores básicos, definidos democraticamente, como por exemplo, por sugestão do autor:
No plano psíquico-emocional:
- Prevalência da Honestidade, da Cooperação, do Amor (enquanto aceitação da legitimidade dos outros “diferentes”), Curiosidade/desejo de conhecer-saber e da Consciência crítica autónoma;
- Repúdio, Negação e Resistência à desonestidade, à manipulação, à exploração, à competição, à alienação e à obediência (enquanto negações de si próprio).
No plano Social e Político:
Desmontagem e extinção progressiva do Estado através da devolução das respectivas competências e atribuições, em todos os âmbitos, para a rede auto-organizada e auto-gerida de organizações sociais cobrindo todos os aspectos da vida da sociedade, mediante:
- Devolução a cada indivíduo de todas as capacidades que lhe permitam ser Autónomo e Responsável (meios de vida essenciais, acesso livre e irrestrito ao conhecimento, condições para exercitar livremente a própria vida no quadro da máxima inserção social) – desalienação e potenciação individual;
- Estruturação da sociedade segundo uma rede (de geometria variável) de associações/comunidades de todo o tipo e finalidade, cobrindo todos os âmbitos da vida social: sócio-territoriais, sócio-produtivas, educativas e de investigação, por motivos de interesse (de solidariedade, criativas, desportivas), sócio-ambientais, etc.;
- Devolução às organizações sociais autónomas e às respectivas estruturas de coordenação de rede (federações, congressos, etc.), do máximo de atribuições e competências de decisão que têm estado apropriadas, por razões de controlo e imposição, pelas estruturas estatais aos mais diversos níveis;
- Estruturação dos nós centrais de coordenação dos assuntos globais da sociedade em moldes radicalmente democráticos (planeamento democrático, relações internacionais, território, biosfera e ambiente...);
- Instituição dos princípios da Democracia Radical e Integral em todos os escalões de decisão social;
- Extensão do princípio da auto-determinação no interior dos actuais estados-nacionais e reunificação de povos com culturas comuns divididos por fronteiras “administrativas”; profunda reformulação das instituições internacionais no sentido do reforço da democracia mundial, da paz e da cooperação;
- Progressiva dissolução do Estado, da “política” e do “poder” nas redes sociais;
- Subordinação do ter ao ser, do “desenvolvimento material” ao “desenvolvimento humano e social”, isto é, à melhoria constante das relações sociais;
- Instituição da gratuitidade para todos os indivíduos das actividades relacionadas com a saúde e a educação, bem como uma capitação de quantidades vitais de uma vasta gama de produtos e serviços, tais como habitação, alimentação, artigos de higiene, telecomunicações, transportes, água, comunicação social, etc.;
- Paz e abolição de qualquer forma de violência, de manipulação e de exploração.
No plano económico-produtivo-distributivo
- Redução intensiva do consumo de bens materiais de toda a natureza e de recursos energéticos, mediante:
. a forte extensão das actividades de conservação, manutenção, reconversão;
. o estabelecimento de normas de produção que eliminem a “obsolescência programada” e prolonguem a vida útil;
. o aumento significativo das taxas de utilização dos activos existentes através da sua utilização partilhada;
. a educação social para o consumo (material e energético) óptimo e responsável; diferenciação entre necessidades e desejos/fantasias;
. a extensiva reciclagem e reutilização de materiais.
- O forte relançamento das actividades produtivas e de serviços de carácter social e comunitário sem motivação de lucro, a incorporação de todos os indivíduos disponíveis em actividades social e economicamente úteis e o alargamento das actividades de voluntariado social e a incorporação nesse sector económico de todos os meios de produção (terras, instalações e equipamentos) ao abandono ou sub-aproveitados;
- Desenvolvimento das produções locais, designadamente no domínio alimentar, limitando e optimizando o transporte massivo de mercadorias;
- Socialização dos meios de produção estratégicos nos domínios financeiro, dos recursos naturais (incluindo a terra), energético, telecomunicações, da informação pública, do transporte público, da segurança alimentar e da defesa e segurança;
- Progressiva socialização das unidades de produção privadas, na medida em que se desenvolvam as capacidades sociais, técnico-cientificas e de gestão óptima de recursos;
- Instituição de um novo conceito de “capital social”, fazendo participar na gestão de todas as unidades económicas com relevância representações das comunidades, dos trabalhadores e dos centros universitários e de investigação;
- Progressiva mudança da matriz energética para as energias renováveis e para a ampla descentralização das unidades de produção;
- Interdição da externalização de custos para o ambiente e as comunidades.
No plano cultural
Neste domínio, a tarefa central consiste na desalienação ou na reintegração de todos os elementos (sistema cósmico-planetário, biosfera, antroposfera, humanos e respectivos mundos mentais) que, tendo evoluído em conjunto, como totalidade complexa, se viram separados, divididos, fragmentados, em oposição recíproca, em antagonismos, ofensas e exclusões permanentes.
- Erradicação do antropocentrismo, como expressão da “superioridade”/domínio dos humanos sobre a biosfera e o ambiente cósmico-planetátio, do patriarcalismo, caracterizado pelo domínio dos homens sobre as mulheres e os filhos, do hierarquismo, caracterizado pelo domínio dos “superiores” sobre os “subordinados”, do patronato, caracterizado pelo domínio dos patrões sobre os assalariados, do elitismo, do racismo, do colonialismo, do nacionalismo, do individualismo, bem como todos os fenómenos de fragmentação social que subsistem na consciência de muitas pessoas como resultado da invasão ideológica das velhas classes dominantes, com reflexos na vida diária de toda a sociedade;
- Formação integral dos indivíduos, em todos os domínios, humana (conhecimento de si) e humanística (relativo à espécie), cívica, ambiental, científica, tecnológica, teórica e prática, ao longo de toda a vida, restituindo-lhes uma capacidade soberana, multivalente e multipotente; eliminação das diferenças e da compartimentação entre “estudante”, “trabalhador” e “reformado” (Ver “A Educação Proibida") ;
- Desamarração dos indivíduos a um único tipo de actividade/emprego, possibilitando a transferência voluntária por muitas actividades diferentes; eliminação das diferenças e da compartimentação entre “agricultor”, trabalhador da “indústria”, do “comércio”, dos “serviços sociais”, da “gestão”, “investigador”, “artista”, “desportista”, etc.;
- Eliminação das diferenças/compartimentações culturais entre “homens” e “mulheres”, “crianças”, “jovens”, “adultos” e “idosos”;
- Eliminar as diferenças/compartimentações entre os diversos modos de humanizar, especialmente devolvendo ao trabalho (actualmente alienado e gerador de desprazer) o carácter de uma actividade, entre outras, através das quais os humanos se realizam e experimentam a satisfação/prazer do “Bem-Viver”;
- Tornar possível que todos os humanos possam, por simples desejo, visitar, ao longo de toda a vida, cada um dos continentes (ou sub-continentes) por períodos que permitam conhecer e vivenciar as mais diversas culturas humanas;
- Eliminar o actual conceito de Emigrante/Imigrante e favorecer as transferências, de carácter continuado, de indivíduos entre regiões do globo terrestre e culturas diferenciadas, acelerando os processos de simbiose cultural entre todos os humanos;
- Reforma profunda de todas as instituições hoje “especializadas” como unidades produtivas, educacionais, de serviços públicos, ambientais, de solidariedade, desportivas, culturais, etc., de modo a que, sem perderem o respectivo foco principal, se convertam simultaneamente em “unidades de produção económica”, “centros de formação e promoção cultural”, “centros de serviço à comunidade” e “centros de protecção à natureza”;
- Desmercadorizar e “desclassificar” o Conhecimento, tornando-o, na totalidade, gratuito, de livre acesso público, sujeito ao debate e de actualização contínua;
- Elevar a Ética ao princípio regulador de todas as actividades e relações humanas, fazendo recuar o Direito e o Racionalismo humanamente cegos.
No plano territorial-ambiental
Ao longo dos últimos 200 anos, quando, pela dinâmica do lucro, a capacidade transformadora dos humanos sobre os territórios se tornou significativa e altamente destrutiva, foram acumuladas distorções com grande impacto nos ciclos planetários (erosão, contaminação, alterações climáticas, etc.), na biosfera (extinção e desequilíbrios entre espécies, desflorestações massivas, etc.) e nas comunidades humanas (desertificação humana e abandono de extensas áreas, acompanhadas por excessivas concentrações urbanas sem o mínimo de condições...).
A Terra é a casa comum da Humanidade e de toda a biosfera (não é um “bem comum”). Temos, por isso, de tratar bem dela. Tal como numa pequena família, assim a Grande Família Humana deverá partilhar e tratar dessa grande casa comum, sendo cada humano, cada comunidade e cada povo responsável pela parte onde mais habita. Sabemos hoje como algumas formações sociais se comportam: sujam, esventram, oprimem, ocupam espaços e roubam o que os outros têm de indispensável para viver com dignidade.
Este é o baixo nível civilizacional em que, colectivamente, nos encontramos, por muita conversa que haja sobre “globalização”, “cosmopolitismo”, “avanços científicos” e “racionalidade”. Naquilo que as “elites” chamam de “barracas”, há mais humanidade...
Esta é a questão central do tema territorial-ambiental, a questão de saber se somos “donos” ou se somos Responsáveis.
Numa sociedade futura, sem fronteiras de “propriedade”, a Terra - una e indivisível - e as suas dádivas, serão usufruídas em conjunto por todos os grupos humanos e por toda a biosfera natural, cabendo a cada assentamento humano não a “sua” terra mas sim a sua Responsabilidade.
A distribuição dos humanos sobre os territórios deverá ser de molde a que a colheita das suas dádivas seja optimizada em função das suas capacidades de sustentabilidade e de equilíbrio ecológico. Teremos de entre-fluir com as outras espécies e não “explorá-las”.
Estes (indicativos-utópicos) ou outros Princípios Orientadores que venham a ser democraticamente adoptados pelos povos, indiciam um “trabalho de Hércules” que irá levar muitas gerações a concretizar.
Neste sentido, essa Nova Civilização, onde todos os humanos caibam com dignidade e “bem-viver”, constitui uma Nova Cultura, radicalmente diferente, emergente de uma nova prática social, de uma nova maneira de produzir e prosperar, em harmonia com a Natureza.
Por que razão haverá a Humanidade de correr o risco de ter de passar pelo colapso (onde a sobrevivência seria aleatória) para, só depois, se começar a pensar nas soluções? Não existem já hoje, antes que tal eventualidade se possa verificar, capacidades para prevenir antecipadamente essa situação e começar, imediatamente, nas condições (apesar de limitadas) realmente existentes, a transformação necessária?
O Futuro (que efectivamente não existe e que, segundo Humberto Maturana, resultará do que fizermos no presente) começa a construir-se com as pessoas que hoje existem, com todas as limitações que possam ter. É na marcha, percorrendo caminho, que as plenas capacidades e qualidades humanas, que hoje estão abafadas sob a opressão e a manipulação burguesas, se revelarão e frutificarão.
A Nova Civilização, já está a nascer hoje, tanto por acção consciente e visível ao nível de países inteiros e de numerosas instituições, como de modo espontâneo e ainda quase imperceptível, ao nível individual e de numerosíssimos grupos comunitários “alternativos”, mais como uma rejeição ao actual “sistema” (abstenção eleitoral, desvinculação do “sistema”...) do que como um “projecto” comum.
Tal como a Civilização capitalista nasceu nos interstícios do feudalismo, nas comunidades urbanas dotadas de certa autonomia, como actividade “quase-alternativa” ou complementar, ganhando cada dia mais adesões e “espaços”, assim a Nova Civilização também emergirá de algo que já exista e que, pouco a pouco, até à aceleração, irá ganhando novos espaços, institucionais, sociais, geográficos...
A emergência do Capitalismo obedeceu ao que Humberto Maturana designa como lei sistémica da mudança e da conservação:
“Cada vez que num conjunto de elementos começam a conservar-se certas relações abre-se espaço para que tudo mude em torno das relações que se conservam.”
Do mesmo modo, a Nova Civilização só emergirá se se desenvolverem relações humanas e sociais diferentes das actuais, as quais, por corresponderem melhor às necessidades dos seres humanos, sejam por estes conservadas e replicadas.
Não se espere, portanto, pela “tomada do poder” para “começar”/avançar com o processo de transformação dos actuais sistemas sociais, das actuais “sociedades”. Haverá pois que, nos países sob a hegemonia capitalista, em todo o momento e circunstância, continuar a afirmar um novo tipo de relações sociais, um novo modo de viver, a experimentar soluções, a fazer confluir essas novas relações em novas estruturas de coordenação social, numa nova institucionalidade social, porque a conquista do Poder será uma decorrência natural, democrática, preferencialmente pacífica, da adesão das grandes massas populares à perspectiva e à prática desse novo paradigma social.
Sobre o conceito da “Transição”
Em consequência, haverá que reflectir sucintamente sobre o conceito de “transição ao Socialismo” tal como vulgarmente tem vindo a ser entendido, designadamente pelos comunistas formados segundo o “marxismo-leninismo”, isto é, como uma fase do desenvolvimento social caracterizada pela tomada e a consolidação do poder pelo proletariado (ou por aqueles que actuam em sua representação - a vanguarda revolucionária); a mesma linha interpretativa veio ainda a considerar o próprio “socialismo” como a fase de transição do capitalismo para o comunismo, caracterizada pela coexistência temporária de diversas formas de propriedade e de “classes não-antagónicas” e pelo princípio “de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo o seu trabalho”. No “comunismo”, por sua vez, haveria uma única forma de propriedade (“de todo o povo”), extinguir-se-iam definitivamente as classes sociais e, dado o extraordinário desenvolvimento das forças produtivas, vigoraria o princípio “de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades”.
Este “etapismo”, escolástico, mecanicista e idealista, reduziu o processo de transformação social a uma espécie de “linha de montagem taylorista” ou então, “queimando etapas”, à “marretada”. O propósito de Krushchev, anunciado no final dos anos 1950, de a U.R.S.S. “alcançar o comunismo” a curto prazo (anos 60 ou 70), mostra bem a inconsistência cultural e política da direcção do país na altura, continuada, após a sua queda (por “subjectivismo”), pelos guardiões da cartilha “marxista-leninista”, até à simples desistência e rendição, no princípio da década de 1990.
O cosmos, o planeta, a biosfera e os sistemas sociais (e cada um de nós) estão, sempre, em transição, independentemente da nossa vontade, de um estado/configuração para outro estado/configuração. Nos sistemas sociais, como em outros, o novo, o que revela qualidades novas não aparece do nada, num único instante, vai nascendo dentro do velho e, num dado momento, pode emergir e tornar-se hegemónico. Mas também pode, num momento seguinte, voltar a perder essa hegemonia se não ganhar força, isto é, se não continuar a possuir capacidade de atracção de novos elementos e se, pelo contrário, perder capacidade de atracção e perder elementos de apoio, se se dissipar. Por isso, todos os processos sociais (políticos, etc.) são reversíveis nas suas características dominantes/hegemónicas, nunca voltando, contudo, exactamente para as mesmas qualidades que possuíam antes. Este fenómeno acontece continuamente, tanto no quadro do Capitalismo como dos países de orientação socialista.
Por estas razões, o “caminho” do Socialismo não se desenvolverá por “etapas”, cada uma delas caracterizadas por determinados requisitos, dentro de uma única “estrada”, mas sim por uma infinidade de percursos variáveis, escolhidos livremente por cada sistema social (povo), com diferentes graus de dificuldade, só se conseguindo distinguir, em cada momento, as variações dos ritmos com que são percorridos por cada formação social.
Esses ritmos são determinados pela magnitude do “Poder Socialista” (capacidade para decidir e fazer, e não capacidade de decidir e fazer-se obedecer, como nos sistemas sociais opressores) que os portadores da ideia e da conduta socialista tiverem em cada momento. Esse Poder, como força material de realização, pode ser fraco, porque disperso por poucos indivíduos ou pequenos grupos desconectados, ou mais forte, consoante a maior amplitude de indivíduos activos e o seu grau de agregação/coordenação/organização.
Assim, enquanto o “Poder Socialista” não conseguir tornar-se hegemónico ao nível dos órgãos do Poder Político do sistema social, restar-lhe-á a tarefa de promover a “Transformação Lenta”, em todos os domínios possíveis, a partir das pessoas, dos grupos e das comunidades, levando-a tão longe quanto possível, inclusive na formulação de uma “nova institucionalidade”, garante de mais e melhor democracia e da maior eficiência social nas actividades políticas, sociais, económicas, culturais, ambientais, etc..
Porém, há momentos em que, pelo facto de algum desequilíbrio geral de forças a favor da mudança de sentido socialista, o processo de transformação se pode acelerar rapidamente e conduzir a alterações estruturais nos instrumentos de governo do sistema social: no seu sistema político, no sistema económico-produtivo-distributivo, no sistema de produção cultural-comunicacional, nos sistemas de suporte social, etc., criando novas bases e melhores condições para o prosseguimento do processo transformador. Esses momentos de aceleração da transformação e de alterações estruturais, poderão designar-se por “Sobressaltos Transformadores”.
A Revolução, corresponde a todo o processo de impulsionar a emergência da Consciência e da Acção, no interior de cada sistema social e nos seus contextos, no sentido de percorrer os “caminhos” do Socialismo, tanto nos seus percursos de Transformação Lenta como nos de Sobressalto Transformador.
Para os objectivos aqui propostos, sugere-se que a Revolução (que já se iniciou por todo o mundo, com mais ou menos visibilidade) seja impulsionada de modo consciente, com um grande espírito de convergência, humildade e unidade, com muita paciência e de modo eficiente, até se tornar, nas mais diversas escalas, politicamente hegemónica (ao nível da simples manifestação de vontades para a mudança, ou seja, a parte mais fácil); que se torne socialmente hegemónica, isto é, que a maioria da cidadania se incorpore, na prática, cada um a seu modo, nas actividades da mudança, ganhando novos espaços políticos (saneamento moral e aprofundamento da democracia); que o espaço vivencial e comunicacional da nova cultura se torne hegemónico, isto é, que o amor (reconhecimento da legitimidade dos outros) a cooperação e a solidariedade se tornem hegemónicos no âmbito das relações sociais; que a produção social cooperativa se apresente como mais vantajosa para a sociedade (sob diversos pontos de vista, incluindo a eficiência na utilização dos recursos) do que a competitiva capitalista; etc..
A “transição” poderia, pois, ser melhor caracterizada por uma formulação equivalente a: Transformar para Tomar o Poder; Tomar o Poder para Acelerar a Transformação.
As “Vanguardas” e o movimento revolucionário socialista
O conceito e as práticas de “vanguarda” tiveram, historicamente, e continuam hoje a ter validade operacional em certas circunstâncias, sempre que não estejam asseguradas as condições democráticas mínimas para o exercício da participação política ou em situações de auto-defesa popular.
Condenar simplesmente o “vanguardismo” seria desrespeitar e atraiçoar o esforço abnegado e heróico de todos aqueles que, nas mais difíceis condições, deram tudo de si próprios para que o mundo se tivesse alterado tão profundamente, para melhor, nestes últimos 150 anos. Além disso, fomentaria uma ilusão quanto à natureza do grande capital e das classes dominantes, as quais estão sempre prontas para os maiores atropelos humanos logo que a resistência popular enfraqueça.
Simultaneamente, porém, o “vanguardismo” encerra grandes perigos. No quadro de uma cultura hegemónica de fragmentação e apropriação, as “vanguardas” tendem a exceder os limites da sua validade operacional para se transformarem em grupos especiais de “excepcionalistas” (como a elite norte-americana de hoje), superiores aos demais e detentores de verdades absolutas.
Ser de “vanguarda” não resulta de qualquer estatuto administrativo (ser membro de um partido, p.ex.) nem da apreciação que cada um faça de si próprio. De “vanguarda” são unicamente todos aqueles que praticam a ética, a humildade, o desapego a qualquer espécie de privilégio e que interpretam qualquer cargo social ou político como uma Responsabilidade; são todos aqueles que amam a vida, os outros humanos, a biosfera e o cosmos de que fazem parte, merecendo o reconhecimento e o respeito das comunidades e dos povos.
Por essa razão, um movimento transformador/revolucionário, deverá reflectir, na sua ética e nos seus modelos estruturais e funcionais, os traços morais e as tendências estruturais e funcionais da nova sociedade que se propõe impulsionar. Assim como de um “partido leninista”, só poderá resultar uma sociedade organizada e a funcionar à sua imagem e semelhança, também de partidos do tipo “federação de interesses especiais” e “circo eleitoral”, só poderão resultar sociedades de exploração, manipulação, usurpação da “representação” e falsa democracia.
Consequentemente, o movimento revolucionário socialista deverá adoptar métodos e critérios organizacionais e funcionais o mais aproximados possível do futuro tendencial e desejável para a sociedade, isto é, ser profundamente democrático e inclusivo, constituído, preferencialmente com base em redes de redes de estruturas autónomas e cooperativas, ligadas pelo cimento da ética. Esse movimento deverá ser o resultado da convergência consciente de todas as iniciativas socialistas e “alternativas” já existentes e que venham a constituir-se.
Além do mais, a envergadura da transformação a levar a efeito é de tal magnitude que só poderá ser realizada pela participação massiva dos povos, não estando ao alcance de qualquer “vanguarda” minoritária.
Alianças e Linhas de Acção
Esse movimento deverá estabelecer a mais ampla aliança com todos os sectores sociais e governos nacionais que, em diversos patamares, estejam dispostos a opor-se à dominação do grande capital internacional, especialmente do seu núcleo hoje mais agressivo, o anglo-norteamericano, no sentido da conformação de um mundo multipolar que reduza os perigos de confrontações bélicas catastróficas e que active uma agenda positiva nos principais assuntos internacionais, designadamente os relacionados com a paz mundial, a reforma democrática das instituições internacionais, a regulação financeira, a alimentação, a energia, as alterações climáticas, a manipulação informativa, o acesso livre ao conhecimento, a ajuda ao desenvolvimento e a superação da pobreza extrema.
De um modo muito geral, poder-se-á dizer que a principal linha de fractura mundial é, hoje, entre os (movimentos sociais e políticos, governos e outras instituições, meios de comunicação, entidades económicas, culturais, de educação, de investigação, religiosas, etc.) que são meros instrumentos do “governo mundial privado” do capital financeiro internacional e das transnacionais, e todos os que, sob diferentes perspectivas, defendem a hegemonia da política (independentemente de ser mais ou menos democrática) sobre a “economia”. A afirmação da preponderância da política sobre a economia à escala mundial constituiria um passo relevante na inversão, a favor dos povos da Terra, das actuais tendências anti-democráticas em grande parte do mundo. Uma aliança mundial nesse sentido e, também, no sentido da democratização, aos níveis macro e micro, consoante as especificidades de cada caso, poderia constituir uma ante-câmara para as transformações necessárias à escala global.
Agendas coordenadas ao nível de agrupamentos-uniões de países e aos níveis nacionais deverão ser implementadas tendo em vista o condicionamento do poder do grande capital, a democratização das respectivas instituições e a potenciação de instrumentos participativos, dos cidadãos e suas organizações autónomas.
A conquista de fortes posições ao nível dos poderes locais, em todos os países, pelo movimento revolucionário socialista e seus aliados, e o estabelecimento a esse nível de plataformas de transformação social a partir da base (democracia participativa e comunal, instrumentos financeiros e produção económica autónoma, obstrução local dos mecanismos predatórios e anti-sociais de valorização do grande capital, desenvolvimento de meios comunitários de comunicação, e de acesso ao conhecimento, etc.) e de condicionamento democrático e popular das instituições nacionais burguesas, constituiria um passo significativo no processo articulado de tomada democrática do poder ao nível de cada país.
Esses “poderes locais revolucionários” deverão converter-se em exemplos, em “laboratórios” daquilo que poderão vir a ser novas formas e métodos de “auto-governo social”, de democracia radical e integral, de novas relações sociais, de experimentação económica e de gestão de recursos “virada para as pessoas”, de uma Nova Institucionalidade (designadamente através da constituição de novas estruturas participativas e de coordenação da acção social do tipo Congressos do Poder Popular, locais, regionais e nacionais, socio-territoriais e temáticos/por domínio de actividade) que permita a transição progressiva do Poder das “velhas estruturas representativas” directamente para a Sociedade Auto-organizada.
Podendo embora ser pontuada por situações e momentos de forte intensidade revolucionária ao nível de países ou grupos de países, a luta revolucionária pelo Socialismo à escala global deverá ser caracterizada pelo gradualismo, por uma pressão constante e cada vez mais eficaz sobre os mecanismos de poder mundial do capital financeiro e das transnacionais, procurando sempre ganhar novas adesões, incluindo de sectores que têm estado associados ao grande capital internacional, no sentido de “cercar e neutralizar” os núcleos mais reaccionários e agressivos e permitir uma transição, firme e pacífica na direcção do Socialismo à escala planetária.
A Questão da Propriedade Privada dos Meios de Produção
Chegados a este ponto do presente texto, os leitores iniciados não deixariam de se perguntar se o autor destas linhas, apesar das referências feitas à Democracia Radical e Integral e a um futuro da Humanidade sem classes ou outras formas de fragmentação social, não estaria a iludir a questão essencial da Igualdade e do “Socialismo”, a saber, a questão da propriedade dos meios de produção.
É, de facto, uma questão da maior relevância, pelo que a procuraremos abordar sucintamente de seguida.
Em primeiro lugar, convém referir que a Propriedade (privada dos meios de produção), juridicamente estabelecida/garantida, constitui uma conquista progressista das revoluções populares liberais relativamente à situação anteriormente prevalecente, onde a posse e o usufruto da terra e dos meios de trabalho estavam condicionados à discricionariedade dos senhores que exerciam o domínio sobre territórios e suas gentes ou sobre determinadas actividades.
Segundo os doutrinadores liberais dos séculos XVII e XVIII, os homens, para serem livres deveriam ser autónomos, não sujeitos a qualquer tipo de dependência que pudesse limitar as suas decisões responsáveis. A propriedade (privada de meios de produção) era o garante dessa autonomia, devendo ser a bastante para as suas necessidades e de modo a restar o necessário para todos os outros. É claro que as coisas não se passaram desse modo e que o capitalismo concentrou a propriedade em poucas mãos e submeteu as grandes massas à dependência e a formas novas de opressão.
Porém, Marx e Engels concluíram que não poderia ter sido de outro modo, que a história se desenrola por critérios de “desenvolvimento das forças produtivas” e não segundo desejos piedosos, e que
“para o primeiro período de desenvolvimento da grande indústria não era possível nenhuma outra forma de propriedade para além da propriedade privada, não era possível nenhuma ordem social para além da baseada nesta propriedade. Enquanto não se possa conseguir una quantidade de produtos que não só chegue para todos, mas que permita gerar um certo excedente para aumentar o capital social e continuar a fomentar as forças produtivas, devem existir necessariamente uma classe dominante que disponha das forças produtivas da sociedade e uma classe pobre e oprimida”.
Sobre se seria possível suprimir de um golpe a propriedade privada, concluíram que:
“Não será possível, do mesmo modo que não se pode aumentar de golpe as forças produtivas existentes na medida necessária para criar una economia colectiva. Por isso, a revolução do proletariado, que se avizinha segundo todos os indícios, só poderá transformar paulatinamente a sociedade actual, e acabará com a propriedade privada unicamente quando tenha criado a necessária quantidade de meios de produção.”
Sobre se seria possível fazer a revolução e suprimir a propriedade privada pela via pacífica:
“Seria de desejar que fosse assim, e os comunistas, como é lógico, seriam os últimos a opor-se a tal. Os comunistas sabem muito bem que todas as conspirações, para além de inúteis, são inclusivamente prejudiciais. Estão perfeitamente ao corrente de que não se podem fazer as revoluções premeditada e arbitrariamente e que estas foram sempre e em todos os lugares uma consequência necessária de circunstâncias que não dependiam em absoluto da vontade e da direcção de uns ou outros partidos ou classes inteiras.”
Esta questão poderá ser melhor compreendida com base nos seguintes aspectos:
a) Enquanto, há um século atrás, predominavam as “economias nacionais” e as tecnologias (essencialmente mecânicas) eram directamente apreensíveis e manejáveis por trabalhadores relativamente comuns, teria sido possível (e foi-o, de facto, na Rússia atrasada de então) tentar marchar para o Socialismo “num só país” dotado de enormes recursos naturais (com poucas dependências), com base na mobilização directa dos trabalhadores, da “classe operária”. Mesmo assim, nesse caso e durante muito tempo, foi necessário contar com inúmeros especialistas estrangeiros, incluindo norte-americanos, e com os quadros técnicos “herdados” do período czarista...
Na actualidade, quando a produção e a distribuição se encontram, no fundamental, “internacionalizadas/mundializadas” e quando as tecnologias e as funções de integração dos processos estão dependentes de quadros técnicos e de gestão altamente qualificados espalhados pelo globo, não só não é mais possível qualquer tendência “autárquica”, como prescindir do concurso voluntário e empenhado desses quadros altamente formados (cientistas, engenheiros, gestores...) para manter a estabilidade dos processos económicos e, no fim de contas, manter estável a vida diária dos povos.
b) As grandes massas estão, no fundamental, imersas numa cultura de apropriação e competição consumista que, num quadro de apropriação colectiva (directamente pela sociedade ou por via estatal) dos meios de produção, tornam recorrentes as tendências tanto para a elevação do “nível material de vida” para além das necessidades do “Bem-Viver” (baseado no ser e não no ter) como para descurar as necessidades de acumulação para o reinvestimento ou investimentos em novas direcções.
Infelizmente, a auto-disciplina laboral, a contínua optimização do consumo de recursos nos processos económicos (máxima “redução de custos”) e a contínua inovação, perseguidas com vigor pelo capital com interesse de lucro, não constituem “bens” imediatamente disponíveis ao nível das grandes massas, nem mesmo junto de muitos revolucionários.
A análise crítica dos processos de “transição para o Socialismo” levados a cabo no século passado evidencia que, nas condições culturais prevalecentes, só um tipo de forte autoridade estatal e limitações à “participação protagónica das massas” (novas versões da “autoridade patronal”, dirigismo partidário...) poderiam assegurar esses requisitos para o aumento das “forças produtivas”.
Em todos os países relativamente atrasados quanto ao desenvolvimento dos meios de produção (ciência e tecnologia) e quanto à formação profissional das populações, por um lado, e, por outro, que tenham acentuados deficits sociais, é praticamente impossível arrancar para o desenvolvimento sem um ciclo de acumulação intensa (a par da melhoria gradual das condições de vida e a eliminação da pobreza extrema) sob uma direcção forte (centralizada, honesta e menos democrática que o desejável) dos processos produtivos e distributivos. A intensidade da acumulação para o investimento e para satisfazer as necessidades sociais fundamentais, poderá ser aliviada se houver disponíveis alguns recursos especiais que possam ser imediatamente valorizados, como certos recursos naturais ou, no limite, poder contar com grandes ajudas solidárias e com a integração em agrupamentos de países progressistas com economias complementares. Essas necessidades de acumulação rápida poderão incitar a uma mais rápida supressão da propriedade privada e à instauração de regimes de “capitalismo de Estado”, com as consequências conhecidas.
O caso da U.R.S.S. e outros países que encetaram um caminho para o Socialismo política e militarmente acossados e em condições de relativo atraso, foram exemplos dessas dificuldades. Acrescidas ainda, no caso ímpar da U.R.S.S., pelas necessidades inerentes à quase total reconstrução de grande parte do país e, também, dos países do leste europeu, na sequência da II Guerra Mundial, da necessidades de verter tremendos recursos na corrida aos armamentos para fazer frente à chantagem nuclear “ocidental” e aos vastos apoios solidários que prestou às lutas de libertação nacional e ao desenvolvimento dos países libertados.
O “Socialismo”, como aqui defendemos, será uma Nova Civilização, uma Nova Cultura, que emergirá e se tornará hegemónica gradualmente, ao longo de muitas dezenas (ou centenas...) de anos, através de extraordinárias “dores de parto”, por dentro e sobre a Velha Civilização e a Velha Cultura, a partir do presente “realmente existente”, e não a partir de intenções piedosas...
Por isso, a supressão da propriedade privada, a implantação da Democracia Radical e Integral na esfera da produção social, terá de progredir a par da transformação cultural, segundo um processo gradual que assegure tudo aquilo que de positivo o Capitalismo alcançou e legou à Humanidade, designadamente na esfera da “eficiência económica” das unidades de produção (já que como “sistema global” se revela, cada vez mais, como um fracasso).
A supressão da propriedade privada dos meios de produção (e a implantação simultânea de adequados sistemas de controlo social e prestação de contas) deverá ser realizada, logo que possível, em alguns sectores de actividade “estruturantes” para a vida de toda a sociedade. Em outros sectores, ela deverá ser extinta, com o necessário gradualismo, através de, por exemplo:
a) Em primeiro lugar, pela instituição, junto dos “direitos da propriedade” hoje tão ferozmente defendidos, dos “deveres sociais e ambientais da propriedade”, incluindo a adopção de adequadas formas controlo/participação dos trabalhadores e das comunidades, fixação social/estatal de margens de lucro privado (incentivadoras ou desincentivadoras, segundo os casos), a restrição à “externalização de custos”, etc.;
b) Em segundo lugar, pela inclusão de novos sectores de actividade no domínio social e a instituição (hoje já existente com finalidades perversas) da figura da concessão dessas actividades a entidades comunitárias e privadas (actividades financeiras, produção alimentar e energética, etc.), conforme a realidade de cada situação (país e momento);
c) O forte estímulo e apoio a todas as iniciativas e actividades económicas de carácter social-comunitário, concebidas tanto como um sector concorrente (económica e socialmente) com o sector privado, como um “grande laboratório” de experiências e de formação das massas populares na gestão económica e na prática de uma nova cultura e uma nova ética;
d) A adopção de um novo conceito de “capital social” com a inclusão dos trabalhadores associados, as comunidades e as estruturas estatais e de investigação nos sistemas de direcção/administração empresarial;
e) Etc., caminhando gradualmente para a extinção da propriedade privada à medida que as soluções variadas de propriedade social se forem mostrando (social e economicamente) mais vantajosas.
A supressão “antecipada” da propriedade privada poderá ser realizada, em certas circunstâncias, exclusivamente por razões de defesa da revolução, como um instrumento político de defesa contra eventuais conspirações do capital para desorganizar a economia e exercer a chantagem sobre as massas populares, não devendo haver ilusões quanto à sua “vantagem económica” a curto ou longo prazos.
Fundamentalmente, a supressão/extinção da propriedade privada dos meios de produção deverá, sempre que possível, ser inserida num processo profundamente democrático e participativo, responsável, de toda a sociedade, incluindo os próprios “proprietários”, com relevo para todos aqueles que assumem a sua função de direcção económica com responsabilidade humana, social e ambiental.
A Questão do Mercado e do Planeamento Central
O “Mercado”, enquanto o processo de troca dos excedentes da produção de cada ser humano ou dos grupos sociais onde se integrem, sempre existiu e continuará a existir.
Esse Mercado, como criação humana favorecedora da satisfação das Necessidades Humanas, pessoais e sociais, transfigurou-se, sob o Capitalismo, para se transformar num fenómeno-em-si, no princípio constitutivo da própria sociedade, à margem do qual esta não poderia existir. O mercado capitalista, isto é, as relações de troca com objectivo de lucro, expandiu-se ao ponto de, em numerosos países, ter invadido domínios de actividade humana que sempre estiveram no âmbito das comunidades organizadas e da entre-ajuda espontânea entre indivíduos, ou até no âmbito da vida privada e íntima, substituindo as relações de cooperação, de solidariedade e de afecto por relações de carácter comercial.
A esta concepção ideológico-religiosa, que procura esconder, sob esse princípio do Mercado, a inevitabilidade fundamental da ordem capitalista, baseada na especialização e na concorrência/competição, veio a opor-se outra concepção ideológico-religiosa que nega e tenta abolir esse fenómeno, atribuindo-lhe a categoria de fonte primordial de todos os males sociais. Nada mais do que a velha e primária oposição entre Deus e o Diabo!
Em oposição ao Mercado surgiu então o “Planeamento Central”, emergido da barriga do deus-Razão, trazendo com ele, hereditariamente, tanto as vantagens como as limitações deste próprio. Supostamente fundado na cooperação e na “gestão científica”, corresponderia ao “paraíso” social.
É uma evidência: uma “economia de mercado” e, ainda mais, uma “sociedade de mercado”, não conduzem à livre iniciativa, nem à livre concorrência nem à auto-regulação. Constituem, antes, uma ditadura desumana de uma plutocracia que decide as “necessidades” humanas, principalmente as fictícias, que destrói qualquer tipo de “livre iniciativa” e de “livre concorrência”, que transforma a democracia numa mera coreografia de saltimbancos, que atomiza e manipula os cidadãos e instala uma ordem social baseada em “todos contra todos”. Um sistema social assim, transformado numa “megamáquina de valorização do capital”, descola-se dos fundamentos humanos e encaminha-se para um colapso de grandes proporções.
Do mesmo modo, o planeamento central acompanhado de limitações à democracia, transforma o respectivo sistema social numa “megamáquina” de produção, sem factores de criatividade e plasticidade, inibidor da iniciativa e da responsabilidade individual, num sistema social “rígido/congelado”, de “arregimentação social”, sem capacidade de adaptação evolutiva, tendendo para a dissipação e a morte.
Os dois conceitos, porém, considerados nas suas versões benignas, não só não se opõem como são complementares e interdependentes.
Um sistema social com amplas capacidades evolutivas, capaz de manter uma congruência fluida, um acoplamento estrutural com o meio sem rupturas, deverá ser altamente flexível, plástico, capaz de proceder às necessárias reconfigurações em conformidade com as dinâmicas desse meio.
A mais radical e integral democracia e a organização social em redes cooperativas de geometria variável, por um lado, e a maior liberdade de iniciativa responsável dos indivíduos seus integrantes no quadro de um amplo e criativo espaço de trocas (que se poderá chamar Mercado), por outro, constituem os dois factores essenciais geradores dessa plasticidade e capacidade adaptativa.
Complementarmente, tem todo o sentido que o debate democrático e as correspondentes decisões/opções colectivas, em todos os âmbitos, incorporem, a par da emocionalidade geradora da Ética de integração, o máximo de elementos racionais proporcionados pelo Conhecimento, numa perspectiva de sucesso social, económico, territorial/ambiental e cultural.
O Planeamento e a economia de recursos não constituem qualquer novidade pseudo-moderna pois, tal como a racionalidade, como atributos da mente, acompanham os humanos desde a sua origem.
Aliás, o sistema social capitalista não fez mais do que herdar esses atributos (autonomia e iniciativa individual, gestão óptima de recursos, capacidade de pensamento lógico, curiosidade e conhecimento, previsão e planeamento, etc.) decorrentes da própria biologia humana, separando os âmbitos da sua operatividade: liberdade de iniciativa e “anarquia da produção” à escala geral e, no seio das unidades económicas, rígido planeamento central, arregimentação/opressão/exploração social e humana. Daí a sua essencial característica bipolar, a qual, nas condições da concentração monopolista e da supremacia do capital financeiro e das transnacionais, tende a ser resolvida pela imposição, à escala geral, de métodos de direcção social semelhantes aos da direcção empresarial, isto é, por um governo plutocrático e anti-democrático.
Um sistema social avançado, que se poderia considerar “Socialista”, deverá, pois, ser caracterizado por uma gestão/regulação social que conjugue, em todos os âmbitos e domínios, do melhor modo possível, em função das circunstâncias, os factores de plasticidade (Democracia, criatividade, liberdade/responsabilidade de iniciativa e redes organizacionais flexíveis) com os factores de eficiência racional (planeamento, economia de recursos e conhecimento).
Simultaneamente, esse sistema social avançado promoverá ao máximo a “desmercadorização” das relações humanas e sociais, através da transferência/devolução para os domínios da cooperação, da solidariedade e do afecto entre os indivíduos, do máximo de actividades sociais, reduzindo as “relações de mercado” aos sectores e actividades que se justifiquem. Essa transferência deverá ser efectivada conservando a melhor eficiência económica (na utilização de recursos) e aumentando substancialmente as eficiências humana, social, cultural e ambiental.
7. Fontes de inspiração
O fenómeno mais recente e extraordinário de uma luta libertadora de grande alcance levada a cabo sob a bandeira do Socialismo, a Revolução Bolivariana Socialista da Venezuela, por não se encaixar nos esquemas mentais tradicionais dos séculos XIX e XX que exigiam a formulação de um modelo teórico completo e prévio, desenvolvida aparentemente segundo a metodologia da “navegação à vista” e apoiada por fortíssimos factores de ordem espiritual (emoções, religiosidade, determinação da vontade, ética, etc.), sendo embora a mais incompreendida por quase todos os sectores da análise política (da “direita” à “esquerda” tradicionais), cunhada como “caudilhista”, “indigenista”, e tantos mais “ista”’s, é aquela onde se encontram mais coerentemente integrados todos os elementos de uma visão sistémica, complexa e abrangente do Homem, da Sociedade e do Mundo.
A Revolução Bolivariana Socialista Venezuelana, sem negar todos os contributos, por vezes contraditórios entre si, do pensamento racionalista e socialista característicos do final do século XIX e do século XX, foi buscar as suas raízes inspiradoras não a “esquemas mentais” pré-estabelecidos, mas sim à Vida concreta e real dos povos, isto é, às exactas condições materiais e culturais em que se encontravam, fazendo emergir os seus valores ancestrais profundos de Amor e Bem Viver. “Ou inventamos ou erramos”, foi a sua divisa de sucesso, a única que parece ter sucesso, neste século XXI.
Na Revolução Bolivariana Socialista da Venezuela parece terem-se ultrapassado algumas das famigeradas dicotomias que se colaram às experiências de inspiração socialista anteriores, tais como entre o Socialismo e a Democracia mais irrestrita, entre o individual e o colectivo, a liberdade e a eficiência, o planeamento e a livre iniciativa, o Estado, o Partido e as massas, o combate e a alegria, a tradição e a modernidade, a espiritualidade e a ciência, o trabalho e a felicidade, o patriotismo e o internacionalismo, etc., etc..
Fundamentalmente, a Revolução Venezuelana tem constituído um processo Participativo e Protagónico, no qual, através do aprofundamento e radicalização das práticas democráticas, os seres humanos ultrapassaram a condição de objectos da política, da economia e de uma cultura de opressão para se tornarem sujeitos directos, a partir das suas circunstâncias, da construção das suas vidas, individuais e colectiva.
Contou um dia Hugo Chávez que, tendo perguntado a Fidel Castro “qual fora o seu maior erro no decurso da revolução cubana”, este lhe teria respondido: “Acreditar que alguém sabia como se construía o Socialismo”.
É dentro desse espírito simultaneamente solidário e reflexivo que deverão ser estudados tanto os desenvolvimentos posteriores das revoluções socialistas que sobreviveram à derrocada da U.R.S.S., designadamente na China, Vietname e Cuba, como de outras revoluções apontando ao Socialismo, como a “Cidadã” no Equador, a do “Bem-Viver” na Bolívia, a “Sandinista” na Nicarágua, bem como inúmeros outros processos profundamente democráticos e populares em curso em vários países de diversos continentes.
A instituição do grupo de países BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e as recentes decisões e orientações tomadas na cimeira de Fortaleza (Brasil), evidenciam que existem no mundo condições para que povos, culturas, regimes políticos e orientações económicas de base tão diversos, poderem convergir no sentido dos interesses fundamentais da Humanidade e que podem gerar, em comum, com muita paciência e determinação, uma Outra Civilização, profundamente Humana, a que aqui, neste texto, talvez por “conservadorismo” conceptual, denominámos Socialista.
“Deixe-me dizer-lhe, com o risco de parecer ridículo, que o revolucionário verdadeiro está guiado por grandes sentimentos de amor.”
Ernesto Che Guevara, “O Homem e o Socialismo em Cuba”
(*) Miguel Judas é um militar de Abril, tendo integrado, como jovem oficial da Armada, a Assembleia Geral do Movimento das Forças Armadas (MFA). É atualmente membro da Associação 25 de Abril. Desenvolve intensa atividade de ensaísmo político e participou recentemente, com reflexões originais, em diversas iniciativas da sociedade civil, como o Movimento de Intervenção e Cidadania e o Forum de Cidadania pelo Estado Social. Para os que achem que valerá a pena manter conversação com o autor sobre as ideias aqui expostas, o seu endereço eletrónico é: judas.miguel.socialismo@gmail.com .
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