Porque a direita é perigosa

 

 

Jacques Généreux (*)

 

 

 

Para todos aqueles que fazem a história e que, tantas vezes, são desfeitos por ela, e a quem se chama “os militantes”.

 

 

1.

Prólogo

 

Cresci numa família de “direita” numa época em que a direita era Gaulista. No entanto, sempre votei à esquerda e aderi ao Partido Socialista com 24 anos. Mas, não deve ler-se aí o efeito de uma reacção contra a minha família. O meu compromisso à esquerda foi, pelo contrário, a consequência natural dos valores que alimentaram a minha infância: o sentido do serviço público, o amor e respeito pelo outro e o primado do interesse geral sobre o interesse pessoal. E, durante muito tempo, pude acreditar que este fundo comum de valores pudesse traduzir-se em escolhas políticas opostas.

 

De facto, não conheci o clima de guerra civil que caracterizou o conflito esquerda-direita antes da guerra. Convivi de perto com a cultura de uma direita que não desprezava o Estado, nem a protecção social e nem sequer denegria as aspirações dos seus adversários de esquerda a mais igualdade e mais justiça, objectivos que ela julgava apenas irrealistas ou desviadas pelo emprego de meios inadaptados ou perigosos para as liberdades.

 

A direita desconfiava das utopias socialistas enquanto a esquerda acreditava na transformação da sociedade pela acção política; a direita confiava mais no engenho de indivíduos com mérito do que nas deliberações e acções colectivas; a esquerda preferia a lei ao livre contrato, que deixa os fracos à mercê dos fortes; a ética social da direita privilegiava o sentido da responsabilidade e dos deveres individuais, a de esquerda colocava o acento nos direitos sociais dos indivíduos e sobre a responsabilidade da sociedade; a direita acreditava (moderadamente) nas virtudes da concorrência enquanto a esquerda confiava mais no planeamento e nas empresas públicas; etc., etc..

 

Se falo deste modo é porque penso que, hoje, estas diversas alternativas são obsoletas; naquele tempo, a classe politica, na sua imensa maioria, procurava um equilíbrio entre os princípios opostos que caracterizavam estas alternativas; não se tratava de escolher entre o princípio do mercado e o princípio da planificação, entre a responsabilidade individual e os direitos sociais, entre a lei e o contrato, entre a iniciativa privada e os bens públicos; tratava-se de conciliar estes princípios opostos. As divergências quanto à sua combinação possível eram profundas, mas desde que não se pretendesse impor o primado absoluto de um princípio sobre o outro a busca pacífica de um compromisso político era possível.

 

A direita já não é o que era

 

Após a Segunda Guerra mundial, a unidade republicana consolidada pela oposição ao fascismo e ao nazismo havia modificado a natureza do conflito esquerda-direita: já não se tratava de eliminar o adversário mas de viver com ele e constituir uma comunidade política pacificada pelo compromisso social e pelo progresso económico. Esta propensão pacificadora foi reforçada pela competição estratégica e ideológica entre o Ocidente e a URSS: era necessário persuadir a classe operária de que o capitalismo temperado pelo Estado Providência era, de longe, preferível ao modelo soviético.

 

Assim, até há relativamente pouco tempo, vivíamos numa sociedade cujos traços principais foram moldados, no pós-guerra, por um compromisso entre conservadores, liberais, democratas-cristãos, radicais, socialistas e comunistas… Numa palavra, um conjunto de forças divergentes mas, todavia, ligadas minimamente por um pacto social e republicano, pela preocupação de exorcizar o fantasma da guerra civil e da guerra propriamente dita, aquela que havia aniquilado a Europa. A geração dos meus avós e dos meus pais sabia que no dia em que já não se conseguisse ser uma sociedade, para além das divergências de interesses, de crenças e de convicções, no dia em que deixássemos de ser um povo solidário onde cada um tinha a garantia de ter lugar e a possibilidade de melhorar a sua sorte, então seriam o medo e o ódio que passariam a governar, para depois nos destruir.

 

Infelizmente, esta lição da história, hoje, parece esquecida. Desde há mais de trinta anos, o pacto social e republicano que nos deu a paz civil, começou a ser demolido pelos ataques sistemáticos de uma nova direita determinada em acabar com ele.

 

Aproveitando a alteração da relação de forças que ocorreu na charneira dos anos 1970-80, uma nova geração política, mostra-se decidida a eliminar todas as concessões progressistas que haviam sido consentidas pelo medo da guerra civil e do inimigo soviético. Inicialmente marginal, insidioso e dissimulado, este empreendimento destruidor é actualmente manifesto, reivindicado e dominante no seio da nova direita no poder; está hoje em vias de entrar na sua fase final, em que o mercado deve substituir-se ao serviço público, em que o seguro privado deve substituir-se à Segurança Social, em que o contrato deve primar sobre a Lei, em que o risco é um valor e a protecção uma fraqueza, onde a Europa da livre concorrência deve afastar a perspectiva da Europa política…

 

Imagino que a maior parte dos eleitores de direita não veja nesta orientação nada mais do que a continuação de uma lógica que não é a de hoje, adaptada ao contexto da mundialização da economia de mercado. Ao pensar assim, não medem a “ruptura” que foi actualmente reivindicada pela nova direita: ruptura do equilíbrio entre o princípio da concorrência e o princípio da cooperação solidária. Ora, o rompimento deste equilíbrio em favor do primeiro princípio equivale a transformar em profundidade o nosso modelo de civilização e a fazer inclinar a sociedade no sentido de uma “dissociedade” que põe os indivíduos uns contra os outros, favorece o recolhimento comunitário e o integralismo religioso, alimenta a violência incivil e se torna, ao fim e ao cabo, ingovernável, sem uma deriva autoritária do poder. Tudo isto, como já o demonstrei em La Disssocieté (1) constitui no fundo a essência do “perigo” de que se trata neste livro.

 

O eleitor de direita compreenderá o efeito que esta perspectiva produz num homem ou uma mulher de esquerda: exactamente o mesmo efeito que lhe provocaria uma nova esquerda cujo programa fosse o de erradicar o princípio de livre concorrência em favor de uma “hipersociedade” onde reinasse exclusivamente a cooperação colectiva organizada pelo Estado. Ele tomaria isso como uma declaração de guerra e pensaria que nada tem em comum com quem defenda tal orientação. Se evitámos a guerra civil, na segunda metade do século XX, foi porque os nossos avós conviram na procura de um equilíbrio entre o princípio de concorrência e o princípio e cooperação, entre o mercado e o Estado, entre a iniciativa privada e o serviço público. Este equilíbrio pôde variar segundo a evolução das relações de força e das prioridades sociais. Mas o próprio princípio deste equilíbrio não pode ser posto em questão sem despertar a violência que visa conter. Ora, é precisamente isto o que faz a direita actualmente. Ela está comprometida com uma ruptura com os compromissos fundamentais que permitiram a transformação da violência em debate político. Esta direita já não é apenas o adversário de uma esquerda animada por outra concepção das políticas públicas, ela é o inimigo da comunidade política que nos constitui como povo. Porque a nova direita pretende aproveitar-se da nova relação de forças engendrada pelo afundamento do inimigo soviético e pela mundialização do capitalismo liberal para impor a vitória total das suas ideias. Rompendo com a procura de um equilíbrio entre a concorrência e o princípio da solidariedade, entre a individuação e a sociação, ela arrasta-nos para uma enorme desordem social, que a história já mostrou conduzir ao regresso da ordem totalitária.

 

Sei que esta ameaça parecerá bastante abstracta ao leitor incrédulo que ainda não se apercebeu da mutação da direita. Mostrarei, por isso, que a direita mudou radicalmente de natureza, o que transforma completamente o que está em jogo no debate público e nas eleições.

 

Até aos anos 1990, o que estava em jogo era uma alternância entre orientações mais ou menos liberais das políticas económicas e sociais, dentro do quadro de um modelo social e republicano amplamente comum e de uma convergência na União Europeia. O quinquenato que ora termina (1a) mostra que a nova direita francesa está comprometida, como acontece em todo o mundo desenvolvido, num projecto de transformação radical do modelo de sociedade que se impôs desde o fim da última guerra.

 

A persistente ilusão sobre os objectivos da direita

 

Muitos autores e comentadores do debate público concebem ainda o que se joga nas eleições, em função da antiga grelha da leitura que hoje está inteiramente obsoleta. É assim que se põe em confronto uma direita mais preocupada com o realismo económico e com o desempenho das empresas e uma esquerda mais preocupada com a redistribuição e com os direitos sociais; uma direita sobrevalorizando a segurança e privilegiando a repressão da violência e uma esquerda mais preocupada com a prevenção e a educação; uma direita fiel à V República e uma esquerda aspirando a uma democracia mais parlamentar e mais participativa; uma direita visando uma Europa liberal face a uma esquerda em busca de uma Europa social. A alternativa em jogo na eleição oporia duas concepções diferentes da política económica, da ordem pública, da Europa e da democracia, em busca de finalidades no fundo conciliáveis.

 

Armado com esta grelha de leitura, o eleitor de direita supõe habitualmente que, qualquer que seja a generosidade das ideias da esquerda, a direita tem a vantagem de ser mais realista e portanto mais competente para garantir, pelo menos, a prosperidade económica e a ordem pública. Ora, tudo isto representa uma contra-verdade e um contra-senso absolutos. Uma contra-verdade porque os factos demonstram a impotência da direita europeia e francesa em matéria de economia e de segurança e a sua propensão para provocar o marasmo económico, o desemprego e o aumento da violência. Um contrasenso porque este modo de conceber o que se joga na eleição se equivoca totalmente quanto aos objectivos prosseguidos pela nova direita. Desde que não se suponha uma incompetência vertiginosa, é difícil de entender porque razão a direita europeia conduz sistematicamente políticas prejudiciais para a economia, o emprego e a segurança pública. Parece mais razoável admitir a hipótese de que estas políticas revelam até que ponto a direita se está positivamente borrifando para o crescimento, o emprego e a segurança: ela leva a cabo o seu projecto de transformação social enquanto detiver o poder, seja qual for o custo para a geração que sofre o parto doloroso de uma nova sociedade que se situa nos antípodas do modelo do pós-guerra.

 

Com que novo tipo de sociedade sonha a nova direita?

 

A direita já não visa uma democracia de mercado eficaz que supere as tensões sociais através da prosperidade geral. Ela visa a construção de uma dissociedade de indivíduos dedicados à guerra económica e privados de todo o poder de orientar colectivamente o seu destino, disciplinados pelo medo e pela pressão da sua “comunidade”, com a ajuda, caso se mostre necessária, de uma restrição crescente das liberdades públicas. Ela é liberal pela sua vontade de alargar a esfera do mercado livre à quase totalidade de todas as actividades. Ela é neo-conservadora pela sua propensão para sacrificar as liberdades em nome da ordem; ordem que efectivamente se torna um problema quase insolúvel num processo de competição sem freio entre indivíduos.

 

Nicolas Sarkozy não esconde, aliás, a sua admiração pela administração Bush, que é aquela que mais avançou na realização de um modelo ao mesmo tempo neo-liberal e neo-conservador. Este modelo é, na realidade, contrário aos interesses do maior número, inclusive os da imensa maioria dos eleitores de direita. Mostrarei, por isso, como e porquê o projecto ideológico e a prática política da nova direita destroem as perspectivas de progresso económico e social, maximizam a insegurança, ameaçam a paz civil e ridicularizam a democracia.

 

Um perigo da esquerda: a tentação centrista

 

Se a nova direita é perigosa, é também por uma razão mais insidiosa e mais temível: ela conduziu com tal êxito a batalha cultural, a batalha das ideias e dos valores, que hoje as elites sociais-democratas e socialistas aderem ao culto da responsabilidade por si próprio e do desempenho individual, aprovam a caça aos “desviados” ou aos parasitas que vivem das indemnizações de desemprego e explicam a necessidade de adaptar o nosso sistema fiscal e social à exigências impostas pela guerra económica mundial, etc.. Daqui resulta um enevoamento ainda maior da clivagem esquerda-direita, que transforma as eleições numa competição de personalidades e não já de projectos políticos o que, por toda a Europa, alimenta a abstenção e o voto nos extremos.

 

Aí reside a razão essencial da defecção das classes populares que conduziu à derrota eleitoral de muitos socialistas e sociais-democratas. Ora, estes últimos, em vez de procurar reconquistar a sua base eleitoral tradicional, resignaram-se à defecção do seu eleitorado popular e acentuaram ainda mais a sua deriva centrista para captar votos à direita. Eis um círculo vicioso e perigoso, tanto para a democracia como para a esquerda europeia. A “pesca aos votos da direita” arrisca-se a baralhar cada vez mas o sentido das clivagens políticas; sobretudo quando se limita a macaquear as posições da direita para acariciar o pelo aos eleitores no sentido mais fácil. Para a esquerda, a melhor maneira de combater o perigo que representa a nova direita, consiste em reconquistar em primeiro lugar o seu próprio campo e redescobrir a pertinência dos seus próprios valores.

 

Dito isto, para sustentar uma política diferente, para além de uma só legislatura, é verdade que a esquerda deve também convencer duradouramente uma parte do eleitorado tradicional de direita. Mas não conseguirá fazê-lo “direitizando” o seu discurso, esbatendo a sua oposição e renunciando a reconquistar em primeiro lugar a confiança dos pequenos, dos desclassificados, dos estropiados pela competição selvagem. Ela pode e deve fazê-lo explicando até que ponto o projecto da nova direita é perigoso para a paz civil, para a segurança das pessoas, para a prosperidade da nossa economia, para o emprego, para a democracia, para a República. Trata-se, portanto, de abrir os olhos de todos aqueles que ainda acreditam que o voto à direita é o melhor meio de garantir o progresso económico, a ordem pública, a integração europeia ou a promoção das liberdades democráticas. A nova direita é incapaz cumprir promessas deste teor; ela promete-nos mais seguramente o marasmo económico, o aumento da insegurança e da violência, a desintegração da União Europeia no seio da guerra económica, a ascensão de um poder autoritário, irresponsável e ameaçador para a democracia e para as liberdades públicas. Estes são os perigos bem reais de que será questão neste livro.

 

 

2.

A direita contra a economia e o progresso social

 

A economia é seguramente o domínio em que a direita se atribui, com a maior desenvoltura, a certeza da sua absoluta superioridade em relação a uma esquerda arcaica. O fundamento desta bela convicção reside numa série de lugares comuns que podemos resumir assim:

 

“A esquerda quer sempre sustentar a procura de consumo, enquanto que é a oferta que deve ser estimulada; a esquerda quer sempre regulamentar, enquanto que o que é necessário é a flexibilidade; a esquerda quer redistribuir, enquanto o que é necessário é criar riqueza; ela assiste os pobres e os desempregados enquanto seria necessário incitá-los ao esforço e ao trabalho; face às mutações do mundo e da economia, a esquerda só pensa na protecção, enquanto só a exposição à livre concorrência nos obriga a ser competitivos; e para finalizar, a esquerda financia as suas políticas ineficazes à custa de maiores deficits públicos e de punções obrigatórias, quando seria necessário aliviar a carga dos impostos e custos sociais e desendividar o país. Numa palavra, a esquerda pode ter intenções generosas, mas continua petrificada por preconceitos ideológicos (velhas ladainhas keynesianas ou marxistas) que estão a mil léguas das realidades económicas e o seu intervencionismo tem por único efeito o desperdício dos dinheiros públicos e a penalização daqueles que criam a riqueza. A direita, pelo contrário, “não faz ideologia” ela é simplesmente realista e é isso que faz toda a diferença”.

 

A “diferença” é, com efeito, colossal entre o balanço da direita no poder e o da esquerda: o da primeira é lamentável.

 

A vertiginosa incompetência económica da direita

 

Os governos Raffarin-Sarkozy, e depois Villepin-Sarkozy tiveram, no entanto, tudo para ter êxito, uma vez que, para além do domínio perfeito de uma doutrina económica reputada superior, eles se defrontavam com um ambiente altamente favorável. A partir de 2004, o crescimento mundial está no seu nível mais elevado desde os anos 70. O crescimento da população é três vezes mais lento do que no começo dos anos 2000, o que contribui para uma descida natural do desemprego (50.000 novos activos por ano contra 150.000 no final dos anos 1990). Por outro lado, a direita regressa ao poder em 2002, com uma situação relativamente sã das finanças públicas: a esquerda havia respeitado as regras da União Europeia (pacto de estabilidade) reconduzindo o deficit público até à barra dos 3% do PIB (2,6 em 2001) e a dívida pública abaixo dos 60% do PIB; as contas do seguro de doença estão equilibradas.

 

Ora, neste contexto que não poderia ser mais favorável, a direita conseguiu o prodígio de acumular um crescimento fraco, uma subida dos deficits públicos, uma alta da dívida pública, um agravamento do desemprego, e uma descida massiva da criação de empregos… Ela havia anunciado uma condução mais eficaz da economia e uma gestão mais rigorosa das finanças públicas o que garantiria o seu êxito na luta contra o desemprego. Fiasco completo.

 

Entre 1997 e 2001, num contexto de crescimento mundial mais fraco e de forte crescimento da população activa, a esquerda havia reduzido em 900.000 o número de desempregados, reconduzindo a taxa de desemprego de mais de 10% para 8,8%. Curiosamente, durante a legislatura socialista, a despeito de (na verdade, graças a) todas as políticas económicas pretensamente prejudiciais ao dinamismo da economia, a França tinha um desempenho global superior ao da zona euro e criava mais de 1,7 milhões de empregos no sector privado. Em 2003, a direita, cega pelo seu preconceito contra as políticas socialistas – forçosamente más, em si mesmas, apesar da evidência do seu êxito – começou por desmantelar todas as medidas que sustentavam o emprego (emprego-jovem, 35 horas, enquadramento mais estrito dos planos sociais, criação de empregos públicos, etc.). São suprimidos dezenas de milhar de empregos públicos (na educação e na investigação designadamente!), é reduzido todos os anos o orçamento consagrado às políticas de emprego contando estimular o emprego apenas com o aligeiramento dos encargos das empresas e dos impostos sobre os altos rendimentos. No entanto, já lá vão vinte anos que, em nome do emprego, se empilham medidas de exoneração de encargos; qualquer ignorante completo em economia já deveria saber que estas medidas acabam sempre por beneficiar as margens das grandes empresas que as reinvestem em aplicações financeiras ou no seu desenvolvimento no estrangeiro. Toda a gente sabe também que o dinheiro público restituído aos 10% mais ricos não estimula a procura da “PME da esquina”: ou vai inchar a especulação financeira ou imobiliária ou estimular a procura de viaturas alemãs, de ecrãs de plasma ou outras inovações high-tech vindas de fora.

 

Numa palavra, face ao desemprego, a estratégia de Nicolas Sarkozy (ministro da Economia e das Finanças até 2005) consistiu em travar as políticas de emprego instituídas pela esquerda e substituí-las por… nada. Resultado lógico: a taxa de desemprego dispara de novo para cima de 10% em 2005. Até que em 2006, temendo o efeito eleitoral deste balanço, o governo Villepin reactiva a abominável receita de esquerda que constituíam as ajudas ao emprego (designadamente para ao jovens) o que, conjuntamente com ao aumento espectacular das radiações de ANPE (+30%) e o decréscimo natural da população que entra anualmente na vida activa, permitiu reconduzir a taxa de desemprego até ao nível em que os socialistas a haviam deixado em 2001. Cinco anos para nada! Temos, portanto, ou a demonstração cabal da inconsistência da estratégia neo-liberal face ao desemprego ou a verdadeira crispação ideológica de uma direita que recusa sistematicamente reconhecer um simples facto: as políticas de sustentação da procura e de ajuda directa ao emprego são mais eficazes do que as políticas de redistribuição em favor dos altos rendimentos e dos detentores do capital.

 

Pôde observar-se o mesmo erro grosseiro, seguido de uma inversão catastrófica no domínio da investigação. No início da legislatura, a direita, obcecada pelos cortes orçamentais necessários para financiar a baixas de impostos, desorganizou a investigação pondo brutalmente en causa os programas e os lugares. Signo suplementar de uma incompetência abissal e temível para o nosso país. Todos os economistas, incluindo os mais liberais, estão de acordo em considerar que o investimento público na investigação é uma alavanca de acção prioritária para enfrentar o desafio colocado pela maior concorrência dos novos países industriais. Trata-se de um domínio no qual um bom número de países da União europeia, entre ao quais a França, exibem um atraso considerável. Neste contexto, em 2003, o grande financeiro Sarkozy, em busca de mais uns dinheiros a distribuir aos contribuintes mais abastados, decide unilateralmente reduzir os orçamentos que já estavam a nível duas ou três vezes inferior ao que seria necessário à investigação francesa! Só a impressionante mobilização dos investigadores acabou por obrigar o Governo a rectificar o tiro. Mas era em todo caso demasiado tarde para os jovens investigadores que tiveram que ir para o estrangeiro para terminar a sua tese ou encontrar a sua primeira colocação, para as equipas que ficaram desmanteladas e para os programas que se atrasaram um bom par de anos. Fica-se estupefacto perante esta insolente apetência por dar cabo daquilo que funciona, de destruir aquilo que favorece o emprego, que é útil ao desenvolvimento económico do nosso país e necessário à sua competitividade.

 

A gestão calamitosa das finanças públicas

 

Esta política anti-social e anti-económica não tem sequer a desculpa liberal comum de constituir um sacrifício necessário para restaurar as contas públicas “degradadas pelo laxismo dos socialistas” e para respeitar os nossos compromissos perante a União Europeia. Também neste domínio a direita é lastimável. Sob o Governo Jospin, a baixa do desemprego não foi obtida à custa do mau uso dos dinheiros públicos legando um pesado fardo às gerações futuras. Muito pelo contrário, de 1999 a 2001, as contas públicas francesas exibem um excedente do “saldo primário” (antes dos pagamentos ligados à dívida) o que liberta recursos para desendividar o país. Eis a razão pela qual, sob o governo socialista, a dívida diminuiu e manteve-se sempre abaixo dos 60% do PIB autorizados pelo pacto de estabilidade, ao passo que, desde o regresso da direita ao poder, não deixou de aumentar no montante de 170 biliões de euros, de 2002 a 2005 (ou seja, 2.700 euros por cada francês).

 

O desperdício de dinheiro público é, portanto, uma doença da direita. A direita faz economias em todos os domínios em que seria necessário gastar mais (investigação, educação, políticas de emprego…) para dar presentes às famílias mais ricas e fazer inchar as margens financeiras das empresas que, em contrapartida, não desenvolvem nem o emprego, nem o investimento no país. Por isso, as economias realizadas não reduzem o deficit público; agravam-no pelo contrário, tanto mais que se traduzem por um recuo do emprego e da procura, o que amputa as receitas fiscais e pesa sobre as ajudas sociais. Então, para limitar o disparo da dívida sem pôr em causa as dádivas fiscais feitas aos ricos, é necessário aumentar outros adiantamentos obrigatórios. Eis a razão pela qual, a direita, que prometia aliviar o “fardo” do imposto, fez com que ele aumentasse, não para toda a gente… ou melhor para toda a gente, com excepção de uma minoria de privilegiados. Vede como a direita fracassa em todos os domínios ao mesmo tempo!

 

A fim de mascarar o desperdício do dinheiro público em proveito de interesses privados, o governo esforça-se por levar a efeito a maquilhagem de uma parte dos deficits que acumula. Assim graças à lei Raffarin sobre a descentralização, o Estado descarrega uma parte do seu deficit transferindo novas competências para as colectividades locais sem que transfira as receitas fiscais correspondentes. Daí resulta um aumento das taxas locais, o que permite ao governo ter o descaramento de dizer que os agentes locais são responsáveis pelo acréscimo das punções obrigatórias. O Tribunal de Contas não deixa de denunciar o artifício que consiste em reduzir o deficit contabilístico do Estado, não pagando as dívidas à Segurança Social. Por fim, para tentar conter a progressão da dívida, privatiza-se seja o que for e seja como for, com o único fim de aconchegar os cofres do Estado, dilapidando o património comum dos franceses. Por exemplo, o Governo privatizou as sociedades gestoras das auto-estradas no exacto momento em que elas se tornavam rentáveis, depois dos contribuintes terem financiado durante anos a fio a amortização dos investimentos públicos na infra-estrutura estradal. Tanto o interesse geral como a boa gestão suporia, pelo contrário, que o Estado tirasse partido da rentabilidade dos investimentos feitos no passado e usufruísse de um recurso perene para amortizar a sua dívida e/ou financiar bens públicos. Em vez disso, a direita prefere ceder o gozo destes benefícios a sociedades privadas.

 

Ao fim e ao cabo, é preciso que sejamos “realistas”, como nos dizem todos os dias; sejamo-lo verdadeiramente desenhando o balanço económico e social da direita: a direita é nula no que respeita ao emprego, nula no que se refere ao crescimento, nula na gestão das finanças públicas!

 

Não é uma surpresa para quem sabe um pouco de economia, dado que a retórica económica neo-liberal que inspira a direita é insensata e alinha fracasso atrás de fracasso, ao longo dos trinta anos que tenta impor-se no mundo.

 

A indigência teórica do neo-liberalismo

 

O neo-liberal é um crente. Põe toda a sua fé no mercado livre de todo o entrave, na livre concorrência, no livre cambismo, na flexibilidade, porque “o mercado livre e a livre concorrência satisfazem da melhor forma as necessidade da população e evitam o desperdício”, segundo crê. Acredita igualmente que o indivíduo é o único responsável por si mesmo, guiado pelo seu interesse próprio, que lhe ordena conseguir o melhor desempenho num universo concorrencial e repudia todo o ambiente cooperativo e solidário. Essa é a razão porque é necessário desregulamentar, liberalizar, flexibilizar, privatizar, alargar a todas as esferas da vida a magia do mercado e as “virtudes da concorrência”. Eis, pois, porque é necessário favorecer uma repartição inigualitária dos rendimentos e dos patrimónios: quanto maior for a vantagem dada aos ganhadores, mais forte será o incentivo à luta para o ser. É este o credo da religião liberal. Por isso, o liberal, conduz uma guerra santa contra os heréticos que defendem o papel do Estado, julgam que a cooperação é superior à competição, favorecem a redução das desigualdades e o imposto progressivo, etc.; numa palavra, todos aqueles que não acreditam nas “leis naturais da economia”, mantêm a ideia de que a política pode mudar o história e imaginam, inclusivamente, que os seres humanos gostam mais de fazer sociedade do que de fazer a guerra.

 

O neo-liberal ou é um crente bizarro ou um aldrabão da quinta casa, uma coisa ou outra. Crente bizarro porque, muitas vezes o neo-liberal é ateu, materialista, racionalista, e pensa sempre que a sua religião não é uma religião: está convencido de que se conforma com leis naturais bem estabelecidas pela ciência: não sabe que “crê”, crê que “sabe”. Mentiroso da quinta casa porque, na maior parte das vezes, o neo-liberal (nem sempre o mesmo, claro) sabe que o seu discurso não passa de uma teologia do mercado refutada pela ciência e que se destina apenas a satisfazer os interesses privados dos seus promotores. Trata-se de uma dificuldade a que regressarei mais adiante: é difícil decidir se o neo-liberal é um obscurantista cretino ou um génio maquiavélico da manipulação. Só uma coisa é certa: o seu discurso, quer acredite nele ou não, é um tecido de contra-sensos económicos, todos refutados pela ciência económica.

 

Três séculos de investigação económica obtiveram, em todo o caso, alguns resultados bem estabelecidos. Procedi ao seu recenseamento nas Les Vraies Lois de l’économie (2), de uma forma acessível a todo o cidadão honesto, para a sua edificação sobre o fundamento das “leis naturais” caras aos neo-liberais. Aí se mostra ocasionalmente que as leis da economia não são “naturais”, mas sociais e políticas, isto é, condicionadas pela história das convenções e das instituições que moldam as sociedades humanas; o mercado concorrencial completamente livre conduz ao desequilíbrio e ao desperdício dos recursos; um Estado eficaz e uma política industrial sensata são a melhor vantagem comparativa que uma nação pode ter nas trocas internacionais; as despesas públicas na educação, nas infra-estruturas, na investigação e na saúde constituem factores de crescimento a longo prazo; a persistência ou o agravamento das desigualdades são, pelo contrário, um travão ao desenvolvimento, etc., etc.. Numa palavra, ao longo do último século, contam-se por dezenas os teoremas da ciência económica mais padronizada e mais ortodoxa que estabelecem exactamente o contrário daquilo que os neo-liberais nos apresentam como evidências indiscutíveis.

 

Não há tempo para refazer aqui a demonstração do conjunto destes resultados (21 “verdadeiras leis” no total) e polemizar com os glosadores “mercadistas” que sabem tudo sobre tudo sem terem estudado um mínimo da ciência económica. Tampouco é necessário pormenorizar as inépcias teóricas em que assentam os discursos e as políticas da direita neo-liberal. Com efeito, após a vitória política dos neo-liberais, nas grandes democracias ocidentais (a partir do final dos anos 1970) estas inépcias foram postas em prática por todo o planeta. Desde então, após um quarto de século de mundialização do neo-liberalismo, a simples constatação avassaladora dos seus fracassos é suficiente para convencer que se impõe uma outra política (3).

 

Fracasso prático e geral do neo-liberalismo

 

Antes da catástrofe, o século XX já nos havia ensinado que nenhuma nação sai da pobreza graças ao livre-cambismo, à desregulamentação, à privatização, mas sempre graças a uma acção política que combina abertura e protecção, concorrência e regulamentação, empresa livre e sector público, iniciativa privada e planificação industrial estratégica, investimentos privados e rápido desenvolvimento dos bens públicos de base (educação, saúde, justiça, infra-estruturas). Apesar destas evidências, ao longo dos anos 1980 e 1990, o FMI e o Banco Mundial impuseram aos países pobres ou sobre-endividados uma estratégia de desenvolvimento fundada na abertura ao livre-câmbio e na atracção dos capitais privados. Atracção que naturalmente supunha a criação de um ambiente fiscal, social e regulamentar favorável a investimentos em busca da rentabilidade máxima: desregulamentação, privatização, rigor orçamental e monetário, livre circulação de capitais, flexibilidade do trabalho, etc., todos os artigos de fé neo-liberal constituíam naturalmente a panóplia de instrumentos do novo modelo de desenvolvimento (retomado dos famosos “planos de ajustamento estrutural”). Chegada a hora do balanço, o próprio Banco Mundial reconhece o fracasso desta estratégia e redescobre a evidência que acima referimos: o desenvolvimento pressupõe previamente a estabilidade política, um Estado sólido, uma administração eficaz. O investimento prioritário na produção dos bens públicos de base, etc.. E não é possível deixar de rir a bandeiras despregadas quando alguns citam, como contra exemplo, a China. Não há nada de menos liberal e mais estatal do que a descolagem da economia chinesa. É o Estado chinês que dita a sua lei aos capitais estrangeiros e não o inverso. O êxito da economia chinesa é, em primeiro lugar, o do Partido Comunista Chinês que, sem nada ceder do seu poder, pesca a seu gosto, nos mecanismos do capitalismo ocidental, os elementos que satisfazem a sua ambição de potência nacional.

 

É exactamente a mesma ambição de grande potência e o mesmo papel de primeiro plano do político que essencialmente explicam o desempenho da economia norte-americana. Desde há vinte anos que a direita liberal europeia nos apresenta os Estados Unidos como o modelo de flexibilidade e de livre concorrência que exibe insolentemente a sua superioridade sobre o “modelo social europeu”, asfixiado pelo Estado e a regulamentação. Mostrei em La Dissocieté aquilo que realmente se passa (4). A América tem conhecido vinte anos de mundialização aparentemente mais feliz do que a União Europeia, com duas vezes mais crescimento e duas vezes menos desemprego oficial (5). Este super-desempenho norte-americano é tudo menos a confirmação do culto neo-liberal da livre concorrência e do Estado mínimo. Para sustentar o seu crescimento e o seu emprego, os Estados Unidos utilizam de forma massiva os instrumentos de poder público cujo uso é proibido ou muito limitado pelos tratados da União Europeia (deficits públicos, ajudas públicas às empresas em dificuldades, mercados públicos reservados às PME norte-americanas, direitos alfandegários, controlo das OPA das sociedades estrangeiras, política monetária atenta ao crescimento e ao pleno emprego). A administração norte-americana maquilha as suas subvenções à aeronáutica privada financiando a aeronáutica militar que, contrariamente ao que se passa na Europa, é desenvolvida pelas mesmas empresas. A administração apoia assim em grande escala a investigação de novas tecnologias, seja directamente, seja indirectamente, pela via dos investimentos militares. Em resumo, se devêssemos imitar os Estados Unidos para recuperar o nosso atraso na União Europeia, seria preciso abolir o pacto de estabilidade, revogar o estatuto imbecil do Banco Central Europeu, reactivar o uso da tarifa exterior comum e a preferência comunitária, libertar as ajudas públicas às empresas, denunciar o tratado da O.M.C. e obter designadamente a derrogação de que gozam os Estados Unidos de reserva dos seus mercados públicos para as suas PME, substituir a concorrência fiscal entre os Estados da União pela total solidariedade financeira, pôr em prática uma política industrial estratégica de longo prazo… Numa palavra, seria necessária a vitória da esquerda radical em todos os países da União, desta esquerda que os ignaros e os manipuladores designam como “arcaica” porque preconiza a política industrial posta em prática pelos Estados Unidos que eles nos exortam a imitar!

 

O contra desempenho europeu é, pois, o fracasso flagrante do neo-liberalismo brutal da Comissão e dos governos europeus desde há vinte anos.

 

Outro fracasso flagrante: o da liberalização geral dos mercados financeiros que deveria garantir uma mobilização e um uso mais eficaz da poupança mundial. Hoje em dia, após a experimentação de um quarto de século, o FMI, o Banco Mundial e a maior parte dos especialistas da finança internacional já reconhecem que a liberalização sem regras das actividades financeiras e dos movimentos de capitais foi responsável por uma temível instabilidade que se manifesta nas crises financeiras internacionais que se sucedem. O dinheiro, livre como um pardal, em vez de ir, como que por milagre, para onde faria mais falta, foi orientado, como prevê a teoria económica, para onde se reproduz o mais depressa possível. Será que podemos seriamente ficar surpreendidos perante a insuficiência das infra-estruturas (acesso a água potável e à electricidade, vias de comunicação e meios de transporte) e de equipamentos colectivos (escolas, hospitais) que se verifica nos países pobres após vinte anos de abertura forçada aos capitais estrangeiros, que deveriam teoricamente fazê-los sair do subdesenvolvimento?

 

A lógica de desregulamentação e de privatização não faz devastações apenas nos países pobres ou em desenvolvimento. Enquanto entravava, nestes últimos, o crescimento dos bens públicos fundamentais de que tão cruelmente carecem, a mesma lógica conseguiu sabotar aqueles países da Europa ocidental que haviam sabido levá-los ao mais alto nível. Ainda estamos hoje à espera de ver a demonstração dos benefícios trazidos pela privatização e abertura à concorrência da energia, dos transportes colectivos, da distribuição da água, dos correios, das telecomunicações. Em contrapartida, não foi preciso muito tempo para que sofrêssemos algumas catástrofes: falência de operadores telefónicos em França e na Alemanha, desastres ferroviários na Grã-Bretanha, penúria de electricidade na Califórnia… Mas ninguém se perturba. Continuamos a avançar alegremente contra a parede no momento em que tudo indica que os bens colectivos devem escapar à lógica da rentabilidade, que se está totalmente borrifando para a segurança pública e o bem comum. Entretanto, pensa-se em confiar a gestão da energia nuclear francesa a interesses privados. Socorro! O último avatar desta loucura furiosa, menos aterrador mas igualmente significativo: a abertura ao mercado livre das informações telefónicas. O resultado é edificante. Anteriormente, dispúnhamos de um serviço simples, eficaz e barato (o 12); hoje, é mais caro e nem sequer se sabe que número se deve ligar. Bravo!

 

Por outro lado, ainda nos países ricos, a desregulação dos movimentos de capitais foi retirada das mãos dos empresários e remetida aos gestores e detentores dos capitais. Verifica-se hoje que isso é feito muitas vezes em detrimento das empresas, porque aquilo que convém ao desenvolvimento de uma empresa a longo prazo é incompatível com a necessidade de criar “valor imediato” para o accionista. A corrida em busca da rentabilidade financeira, do aumento das cotações bolsistas, é designadamente responsável pela explosão das fusões-aquisições, de que metade se salda por uma perda de valor para as empresas; desde a expansão das manipulações fraudulentas ou legais que conduziram às falências da Enron, da Arthur Anderson e outras; dos novos métodos de gestão (fluxogramas, flexibilidade, redução de efectivos) que fizeram do stress no trabalho a primeira doença profissional (que só por si custa vários pontos do PIB).

 

Fico por aqui, embora saiba que não enunciei nem metade das provas que desqualificam os preceitos económicos da nova direita. Haja piedade pelos leitores com alguma informação que conhecem tudo isto de cor. Também já estou um pouco cansado de repetir evidências mil vezes demonstradas por mim e por outros, sem que isso faça baixar de uma só decibel ou de uma vírgula o canto tonitruante dos editorialistas e dos cronistas que saturam o espaço onde se pensaria encontrar informação.

 

A indigência intelectual e a incompetência económica da nova direita francesa parecem singulares. Compreender-se-ia mais facilmente um alinhamento da direita francesa com o neo-liberalismo nos anos 1980, quando todas as direitas do mundo (de Pinochet a Thatcher, passando por Reagan) acreditavam no novo paradigma e não se conheciam ainda os resultados deletérios da sua aplicação. Mas, na realidade, ela atrasou a sua conversão, porque a excepção francesa obrigou-a a isso: havia ainda uns bons restos de republicanismo e de gaulismo. Mais tarde, os antigos barões envelheceram e uma nova geração tomou o poder. Actualmente a UMP (5a), alinhada com o seu presidente, digeriu os pequenos restos de bom senso republicano, uniu-se aos ultra-liberais, recuperou os antigos ajudantes de campo de Le Pen, e integrou os ex-militantes dos gropúsculos neo-fascistas dos anos 1970. Todo este belo ramalhete se converteu hoje ao neo-liberalismo e iniciou a sua aplicação prática desde há quatro anos, ou seja, um quarto de século depois da sua inauguração nos países anglo-saxónicos, precisamente no momento em que nenhum espírito sensato pode ignorar o seu balanço desastroso.

 

Mas será possível ser tão ignorante e inculto a este nível de responsabilidade? A priori, não acredito (embora possa estar equivocado). Então, o quê? Parece que há apenas duas soluções. Ou a direita acredita sinceramente que prossegue os objectivos económicos que proclama (prosperidade, emprego, competitividade, etc.) e então a sua incompetência ultrapassa o entendimento. Ou a direita não é mais estúpida do que a média e, então, a sua acção reflecte a prossecução de objectivos diversos daqueles que anuncia.

 

O verdadeiro projecto económico dos neo-liberais

 

É verdade que nunca estamos completamente ao abrigo da ignorância e da estupidez. Mas, como dizia o célebre economista Schumpeter (6), a ferocidade da luta pelo poder opera uma selecção entre responsáveis políticos que, em regra, nos põe ao abrigo do “idiota da aldeia”. No entanto, não deixa de ser razoável examinar outra hipótese: as políticas aplicadas reflectem um cálculo político cujo objectivo é, com mais segurança, a defesa de interesse privados, a começar pelos dos decisores. Em vez de tomar como sérias as proclamações dos responsáveis políticos, pode aprender-se mais sobre os seus verdadeiros objectivos, vendo quais são os efeitos reais das suas políticas. Dito de outro modo: interessemo-nos por aquilo que a direita verdadeiramente faz, mais do que pelas suas intenções proclamadas, e perguntemos a quem aproveita a sua política.

 

O que faz verdadeiramente a direita? Ela não desfaz o Estado, privatiza-o (7). Em toda a parte, a progressão do modelo neo-liberal e dos governos neo-liberais foi acompanhada por um aumento do peso das despesas púbicas e das punções obrigatórias. O domínio do neo-liberalismo será tudo que se queira menos um recuo do político ou a submissão da política à economia: é, muito simplesmente, a vitória de uma política particular que consiste em colocar o Estado ao serviço de interesses económicos privados.

 

A exacerbação da concorrência internacional (a famosa “mundialização”) é um fenómeno que é tão pouco novo como natural: ele reflecte a escolha política de um mundo e de um modo de gestão particular das relações económicas internacionais a partir do final dos anos 1970 (flutuação das taxas de câmbio, liberalização dos movimentos de capitais, livre-cambismo, etc.). Esta escolha política exerce uma pressão específica sobre os sistemas fiscais e sociais. Com efeito, a multiplicação das oportunidades de lucro sobre toda a superfície do planeta e a perfeita liberdade de circulação do capital oferece aos seus detentores um poder de chantagem que não está ao alcance de quem dispõe apenas da sua força de trabalho. A partir daqui, a concorrência entre os diferentes territórios para atrair os factores móveis (capital financeiro e capital humano dos trabalhadores mais altamente qualificados) envolve a baixa acentuada da pressão fiscal sobre estes factores e a sua transferência para os factores fixos. É este mecanismo de dumping social e fiscal que muda a natureza da competição internacional, que deixa de ser uma concorrência entre produtos para passar a ser uma competição entre sistemas sociais e fiscais forçados a favorecer sistematicamente os detentores do capital financeiro e o pessoal mais qualificado.

 

Como sublinhava atrás, contrariamente a uma ideia corrente, esta chantagem não se traduz num enfraquecimento do Estado nem por um recuo da protecção social. Isso representaria um mal menor em relação a uma realidade mais inquietante e mais chocante. A verdade é que o nível de envolvimento do Estado e de protecção social aumenta globalmente, mas apenas em favor dos mais abastados e ao preço de uma pressão fiscal acrescida sobre as famílias mais pobres. Verifica-se, hoje, uma redistribuição às avessas; os benefícios fiscais dados aos ricos, são, in fine, financiados pelos pobres e pelos menos ricos!

 

Esta reestruturação iníqua das receita públicas é acompanhada por uma reestruturação das despesas: quebra das ajudas sociais aos pobres e aos desempregados e aumento das ajudas às empresas, por exemplo. Há que distinguir dos tipos de neo-liberalismo, o norte-americano e o europeu, que não se diferenciam verdadeiramente quanto aos valores e às finalidades, mas porque se situam num contexto cultural, histórico e económico diverso e diferem radicalmente entre si pelo uso das políticas económicas.

 

O modelo norte-americano intervém numa sociedade onde o nível das despesas públicas é dos mais baixos (à volta de 35% do PIB); a saúde, a educação, os transportes, etc., são já amplamente sectores mercantis. A prioridade dos neo-liberais não é, portanto, a de fazer baixar o peso do Estado. É, principalmente, a de denegrir a imagem o Estado no espírito dos norte-americanos, já ganhos para a cultura da competição e do desempenho individual, temperada pela caridade compassiva e pelo conformismo comunitário.

 

Nesta sociedade cada vez mais inigualitária, violenta e deslaçada, o maior desafio é o de evitar a desordem social que suscitaria o regresso do desemprego em massa e a depressão económica. Assim, contrariamente ao que vemos na Europa, o Estado faz um uso constante e eficaz dos instrumentos do poder público com vista a sustentar a prosperidade económica geral e uma taxa de desemprego pouco elevada. O “sonho americano” de ascensão social por via do esforço e do mérito pessoal só pode exercer a sua função de regulação sob a condição de garantir o emprego a quase toda a gente. A política económica norte-americana é dominada por esta preocupação e por uma lógica complementar de potência nacional que alimenta o outro único factor de coesão: o patriotismo.

 

Na União Europeia, pelo contrário, os neo-liberais são confrontados com uma cultura geralmente menos individualista, mas apegada aos bens públicos, mais reticente em relação às desigualdades, em sociedades onde o peso do sector público oscila entre os 40% e os 50% do PIB. Neste contexto, o verdadeiro projecto dos neo-liberais é antes o de imitar o modelo norte-americano de uma dissociedade fundada cada vez mais sobre a competição dos indivíduos, e onde o essencial dos sectores que ainda são públicos poderá vir a constituir novos centros de lucros para os detentores do capital.

 

Mas para lá chegarem terão que atravessar um longo caminho de transição que começou a ser aberto nos anos 1980 e durante o qual a persistência do Estado-Providência tem funcionado como amortizador social dos desgastes do novo capitalismo, obcecado pela rentabilidade financeira. Ao mesmo tempo, a persistência organizada dos deficits públicos serve para ir persuadindo os cidadãos europeus de que estão a viver acima das suas possibilidades e de que o seu velho modelo social não é sustentável. Foi desde modo que se foi preparando os espíritos para a privatização, já em curso, da totalidade dos bens públicos.

 

Agora compreender-se-á mais facilmente porque razão os neo-liberais europeus renunciam, contrariamente aos seus homólogos norte-americanos, ao uso eficaz de todos os instrumentos de política económica e industrial de que poderiam lançar mão para sustentar o crescimento e o emprego. É que se o fizessem, isso poderia funcionar! Um crescimento mais robusto e uma taxa de desemprego mais baixa tornariam o nosso sector público sustentável. Uma política industrial e de investigação ambiciosa tornaria suportável a competição internacional sem compressão dos salários e sem agravamento das desigualdades. A superioridade do modelo social europeu, combinando prosperidade económica, forte solidariedade social, serviços públicos eficazes e redução das desigualdades ficaria demonstrada. Mas isso não é conveniente porque tornaria inútil e insensato o projecto de dissociedade inigualitária entregue à única lei do mercado.

 

Assim, o que tinha o aspecto de uma “vertiginosa incompetência económica” da direita em matéria de crescimento, de emprego e de gestão das finanças públicas será, porventura, o sinal de uma temível capacidade de preparação de um terreno favorável para uma ruptura neo-liberal que a nova direita europeia está hoje em vias de operar de cara descoberta e com o maior descaramento. O período de transição, de preparação dos espíritos (lavagem ao cérebro) está prestes a terminar e a nova direita está pronta e impaciente para ter a sua desforra, destruindo o compromisso social do pós-guerra. Entrámos já na fase de ruptura desse compromisso e o movimento está em vias de aceleração, como mostra a última legislatura e o novo projecto da direita francesa.

 

O novo “modelo social francês”: os pobres pagam aos ricos

 

A França ilustra hoje, sob uma forma caricatural, o processo de privatização do Estado e o desvio dos fundos públicos em benefício de interesses privados.

 

A despeito do seu permanente requisitório contra o peso das administrações e dos “encargos”, a direita nunca reduziu as contribuições obrigatórias. Elas representam hoje 44% do PIB contra 43,1% em 2002. Esta apresentação genérica mascara um importante desagravamento dos impostos que incidem sobre os rendimentos mais elevados e uma elevação compensatória da carga fiscal dos restantes contribuintes; elevação da CSG e da CRDS e das taxas locais (para compensar as transferências dos encargos do Estado para a colectividades locais). Os lares mais abastados beneficiaram, numa só legislatura, de mais de 10 biliões de euros de dádivas fiscais, graças essencialmente à reforma do imposto sobre o rendimento, cujas taxas baixaram, além de se tornarem menos progressivas. Mais de 60% destas reduções aproveitaram aos 10% mais ricos, sendo que 30% coube a não mais que 1% dos lares mais ricos. O que diz bem da justiça e da urgência de tal reforma!

 

Os lares mais abastados beneficiavam já de numerosos “nichos fiscais”. Podem, por exemplo, beneficiar de uma baixa de impostos sobre o rendimento compensando uma parte das despesas consagradas a investimentos imobiliários realizados nos DOM-TOM (7a), investimentos de poupança reforma, em cursos privados de apoio escolar, no domicílio dos empregados domésticos, etc.. A que acrescem muitas outra medidas fiscais de aligeiramento das imposições sobre o património e os rendimentos financeiros: mecanismo de alocação fixa para as aplicações financeiras, exoneração das doações em linha recta, etc.. A direita decidiu alargar um bom número destas vantagens: aligeiramento suplementar dos direitos de sucessão que aproveita apenas a 20% dos contribuintes; aligeiramento da fiscalidade sobre as mais-valias; aumento da redução do imposto pelo uso de pessoal doméstico (que aproveita apenas a algumas dezenas de milhares de contribuintes, sobre um universo de 28 milhões!); “escudo fiscal” que limita a 60% do rendimento global a soma de todos os impostos cobrados a um só contribuinte (8).

 

Estamos perante um sistema de redistribuição, no mínimo, bizarro e chocante. As vantagens fiscais em favor dos detentores de altos rendimentos acentuam os deficits públicos que acabam por ser parcialmente cobertos por outras imposições que vêm reduzir o poder de compra de todos os outros contribuintes, penalizando mais duramente os menos favorecidos. Os mais pobres financiam as larguezas do Estado em proveito dos mais ricos!

 

A quase totalidade das vantagens fiscais que estão aqui em questão não tem nenhuma justificação em termos de interesse geral. Se, nos anos 1960 e 1970, foi de alguma utilidade a promoção do desenvolvimento da Bolsa francesa através de incentivos às aplicações financeiras, isso já não tem qualquer necessidade e serve apenas para fazer pesar sobre fundos públicos a melhoria do património financeiro dos lares que menos precisam de tal ajuda. As vantagens fiscais sobre os alojamentos alimentam a especulação e só aproveitam a uma minoria que dispõe do capital e das garantias necessárias para financiar os seus investimentos especulativos; não exigem qualquer contrapartida em matéria de moderação das rendas e carecem de justificação social. E o que é que poderá justificar que o Estado pague metade das despesas dos cursos particulares dispensados por instituições privadas aos filhos das famílias mais favorecidas? Que o Estado subvencione as despesas de educação é em si perfeitamente legítimo e economicamente fundamentado. Mas nada justifica que subvencione prioritariamente a educação das crianças mais favorecidas e não o apoio escolar gratuito que deveria ser oferecido a todas as crianças nos estabelecimentos públicos de ensino. Pode colocar-se a mesma questão a propósito da parte crescente que o Estado chama a si no pagamento dos salários dos empregados domésticos e das amas das crianças que só as famílias mais abastadas têm realmente capacidade de empregar. Também aí, não é o princípio de ajuda que é contestável, mas a sua repartição. É útil e necessário favorecer o crescimento dos empregos e desenvolver a guarda de crianças de tenra idade das mães que pretendem trabalhar. Mas não há nenhuma razão para reservar o essencial dessa ajuda a algumas centenas de milhares de famílias que são as mais ricas do país.

 

Sei muito bem que, ao ler estas considerações, um bom número de actuais beneficiários insurgir-se-á porque não se consideram “ricos privilegiados” quando ganham “apenas” 4.000 a 8.000 euros por mês e são apenas proprietários de um apartamento de 80 metros quadrados no centro de Paris. Erram duplamente ao insurgirem-se. Em primeiro lugar, porque num país onde metade dos indivíduos tem um nível de vida mensal inferior a 1.400 euros, eles fazem parte dos mais ricos. Em seguida, o sistema de pagamento público de despesas privadas aproveita também a pessoas muito mais ricas e que não precisam minimamente dele. E, mais uma vez, não se trata de contestar o bom fundamento de uma ajuda fiscal ao emprego domiciliário, mas a desigualdade escandalosa que implica a ausência de apoio pelo menos equivalente em proveito dos lares menos favorecidos.

 

A direita, aliás, tem consciência do facto de que este escândalo da desigualdade pode vir a custar-lhe uma má surpresa nas eleições. Assim, no Outono de 2007, ela adoptou um projecto que tenta disfarçar a desigualdade sem a corrigir. Enquanto as famílias abastadas beneficiam, desde há anos, de um crédito de imposto igual a 50% dos salários pagos aos seus empregados domésticos (guarda de crianças, ajuda doméstica, apoio escolar…), o governo decidiu seis meses antes das eleições, e unicamente por uma preocupação de maior justiça, reembolsar 50% das despesas análogas das famílias que não pagam imposto sobre o rendimento.

 

Eis, pois, que embora tardiamente, a igualdade entre ricos e pobres foi restabelecida. Que cantiga! Sejamos realistas: a maior parte dos contribuintes contemplados tem um rendimento inferior a 1.400 euros mensais e sete milhões de trabalhadores têm um rendimento inferior a 750 euros por mês. Saber que o Estado generoso irá reembolsá-los em 150 euros por cada 300 euros que gastem com o pagamento aos seus empregados domésticos, é algo que lhe dará um grande consolo!

 

A verdadeira razão desta medida não é uma vontade real de apoiar a criação de empregos do domicílio, vindo em socorro das famílias de baixos rendimentos. É tão só a de, com muito poucos custos, alardear uma teórica igualdade de tratamento que disfarça um desvio escandaloso de fundos públicos para ajudar os ricos. O Ministério das Finanças, perfeitamente consciente de que as famílias pobres explorarão muito pouco esta generosidade, avalia o seu custo orçamental em 200 milhões. É esta a verba que tem que ser comparada com os perto do 2 biliões de euros de que beneficiam as famílias abastadas. É esta a igualdade de tratamento proclamada pela direita: 10 vezes mais para os ricos! Normal, claro, visto que são eles que criam as riquezas? Se isto vos provocou algumas náuseas, guardai a vossa capacidade de indignação para mais tarde porque o pior está para vir.

 

Com vista a aperfeiçoar o seu projecto de dissociedade desigual, terno para os poderosos, cruel para os fracos, a direita propõe-se aligeirar certos impostos até à exoneração integral. É já o caso do imposto sobre as sucessões que a UMP promete suprimir. Atingimos aqui um cúmulo de incoerência cínica entre os valores proclamados pela direita e as suas políticas efectivas. Com efeito, uma das palavras-chaves da campanha de Nicolas Sarkozy é o “mérito”. A cada um segundo o seu mérito, poderia bem ser o slogan de uma filosofia liberal que considera que o indivíduo é o único responsável pela sua sorte e defende a livre competição que salvaguarde a igualdade de oportunidades. É, aliás, em nome deste princípio que os liberais têm contestado a legitimidade da herança e o rigor moral conduziu muitos homens de negócios americanos a fazer doações das suas fortunas a instituições diversas e não aos seus herdeiros. A herança é um adquirido sem o menor mérito. Ela introduz uma desigualdade de oportunidades à nascença que é absolutamente contrária à filosofia liberal. Um liberal puro e duro deveria logicamente pronunciar-se por uma taxa de imposição sobre as sucessões de 100%. Quanto aos neo-liberais, preferem 0%.

 

Isto é um indício do abismo que separa o liberalismo do neo-liberalismo – tema a que regressarei mais adiante – e permite desvendar quais são os verdadeiros valores dos neo-liberais e quais os interesses que pretendem servir. O seu discurso sobre o mérito não é mais do que uma lição de moral culpabilizante para os pobres, os desempregados, os menos favorecidos pela natureza, os estropiados pela competição selvagem. Trata-se de dizer-lhe que eles são responsáveis pela sua sorte e que, se outros se saem com maior facilidade é sempre em razão dos seus méritos, dos seus esforços e do seu trabalho, não dos seus privilégios, das suas dotações iniciais em capital cultural, imobiliário ou financeiro. Trata-se assim de passar a mão pelo pêlo dos eleitores conservadores, empanturrados de privilégios, de oportunidades, de relações, de educação e fartos de saber que, de facto, o que têm é mérito. O que importa é que se torne moralmente contestável que os ricos paguem a saúde e a educação dos pobres e as indemnizações dos preguiçosos que ficam no desemprego em vez de procurarem trabalho… Já vos preveni atrás que é preferível não começar já a vomitar! Há que resistir. Ainda estamos só a metade do caminho.

 

Trabalhar mais para ganhar menos, ou a nova servidão

 

O primeiro instrumento do mérito é o esforço investido no trabalho. “Não trabalhamos o suficiente”, dizem aqueles que fazem trabalhar os outros por salários miseráveis e os despedem quando descobrem uma maneira de pagar ainda menos. Ora, dizem eles ainda, os socialistas, ao reduzir a duração do tempo de trabalho, teriam “desvalorizado o trabalho” e contrariado a aspiração dos assalariados a ganhar mais. A UMP pretende corrigir este erro funesto e propõe-nos “trabalhar mais para ganhar mais”.

 

Trata-se de um novo contrassenso, na longa lista de contrassensos económicos que são a especialidade da nova direita. As trinta e cinco horas não proíbem aos assalariados trabalhar mais, obrigam os empregadores a pagar mais, baixando a duração legal do dia de trabalho (e não a sua duração efectiva), ou seja, o limiar a partir do qual o trabalho é pago com uma majoração de horas suplementares. A direita já aniquilou este progresso social diminuindo a taxa de majoração das horas extraordinárias: agora, quando os assalariados trabalham mais é para ganhar menos! O slogan da direita é portanto, falacioso. Ele supõe, por outro lado, que os trabalhadores podem, a seu gosto, exigir fazer horas extraordinárias para arredondar o fim do mês.

 

Na realidade, são os empregadores que impõem horas suplementares quando isso é do seu interesse e, muitas vezes, sem as pagar! Certamente há milhões de trabalhadores que gostariam de trabalhar mais. Mas defrontam-se com a recusa dos empregadores que preferem impor-lhe um tempo parcial para os manter em estado de submissão. É o que se passa na grande distribuição, onde uma empregada pode ganhar 600 euros por mês ficando, de facto, à disposição do seu empregador desde as 8 da manhã até à 20 da noite, em turnos de duas ou três horas, entrecortados por pausas de acordo com o que convém ao patrão. Poderemos começar a acreditar na revalorização do trabalho no dia em que o governo abolir esta forma moderna de servidão e impuser o princípio do dia (ou meio dia) de trabalho contínuo.

 

No mesmo espírito de revalorização do trabalho, a direita suprimiu um dia feriado (a segunda-feira de Pentecostes) inaugurando assim um novo imposto em espécie sobre os trabalhadores. Começamos deste modo a trabalhar mais para ganhar… nada! É certo que o motivo invocado era a solidariedade com as pessoas idosas que tinham sido dizimadas pela canícula do Verão de 2003, porque, como é sabido, um país que, todos os anos, restitui aos patrões 20 biliões de cotizações patronais não consegue reunir os meios suficientes para pagar os climatizadores das casas de repouso dos idosos na reforma!

 

A reforma, justamente, falemos desse tema. A reforma Fillon concebeu como única solução para o problema do financiamento das reformas o prolongamento progressivo do período de cotizações até aos quarenta e dois anos. Tratava-se, antes de mais, de evitar o muito suportável aumento das cotizações que restabeleceria o equilíbrio do sistema de reformas, se fosse feito, por outro lado, o necessário para assegurar o pleno emprego das pessoas em idade de trabalhar. Na medida em que a precariedade do emprego privado impede a maioria dos assalariados de atingir os trinta e sete anos de cotizações, em média, o efeito real da reforma é o de constranger as pessoas a trabalhar mais tempo por uma reforma menor: A sua percentagem da reforma será necessariamente reduzida porque jamais atingirão o período de cotizações necessário para beneficiar da reforma por inteiro.

 

A amplitude dos movimentos sociais que ocorreram ao longo da legislatura passada mostra que os assalariados não se deixam enganar quanto às consequências reais de todas estas reformas das reformas. Isso obriga logicamente a direita a fazer mais um esforço de imaginação e de manipulação para nos persuadir que quer revalorizar o trabalho e o poder de compra dos assalariados. No termo deste esforço, a direita assegura-nos hoje que os assalariados ganharão efectivamente mais trabalhando mais porque ela vai exonerar as horas extraordinárias das cotizações sociais. Aparentemente temos finalmente a promessa de uma elevação do salário líquido que consta da folha de pagamento. Mas, na verdade, a manipulação é ainda mais insidiosa porque se trata de uma adaptação à clarividência dos assalariados que são menos parvos do que parece.

 

Onde é que está o segredo da abelhinha? Muito simplesmente no facto de que as cotizações sociais fazem parte da remuneração do trabalho e que, ao suprimi-las está a amputar-se esta remuneração. Desculpem-me a recordação desta evidências mas é necessário porque os responsáveis políticos fingem ignorá-las. A remuneração do trabalho é o salário bruto: ele comporta uma remuneração directa e uma remuneração indirecta que consiste nos serviços de saúde, de seguro de desemprego e de reforma financiados pelas cotizações sociais. Portanto, quando se anuncia a supressão das cotizações sociais sobre as horas extraordinárias, não se diz quem vai pagar estas cotizações e como; o que realmente se anuncia é uma diminuição dos serviços de saúde, das indemnizações de desemprego e do montante das reformas. E é o que efectivamente acontece com as reformas da direita que corrigem o desequilíbrio das contas públicas unicamente reduzindo as indemnizações dos desempregados e o montante das reformas, aumentando ainda a parte das despesas de saúde que é suportada pelos pacientes.

 

Assim, na verdade, os assalariados que têm a sorte de fazer horas extraordinárias num patrão que as paga, terão realmente, no imediato, um pouco mais de dinheiro na sua conta. O que pode criar a ilusão de que obtiveram uma melhoria da sua situação. Mas, a seguir, irão gastar mais quando forem ao hospital ou ao médico, consumir menos para suportar um plano de saúde privado, e sofrer mais fortemente a falta de meios se ficar desempregado. E como muitos deles não disporão de meios para gastar mais com a preservação da sua saúde ou com a sua reforma, terão que contentar-se com uma saúde menos boa e com uma velhice mais difícil. À guisa de consolação, M. Sarkozy dir-lhes-á que eles conservam a “livre” escolha dos seus gastos e que isso é muito preferível a serem “obrigados” a cotizarem-se por um sistema social que lhes garanta uma melhor saúde e mais segurança financeira ao longo da sua vida.

 

A quem aproveita, portanto, e a quem serve verdadeiramente a exoneração das cotizações sobre as horas extraordinárias? Ela melhora os lucros das empresas e cava um pouco mais os deficits públicos que, de uma maneira ou de outra, terão que ser financiados pela maior parte dos assalariados, dado que é preciso continuar a baixar os impostos sobre o capital e sobre os altos rendimentos. Então, à custa da elevação dos impostos indirectos, dos impostos locais, das tarifas públicas, do novo dia de trabalho gratuito em nome da solidariedade com os idosos vitimados pelo calor (e com os ricos que pagam cada vez menos impostos) os assalariados acabarão por pagar também uma cotização disfarçada sobre as suas horas extraordinárias.

 

A direita ao serviço do capital

 

Vemos que os slogans da direita não resistem mais de um segundo a um exame aprofundado. A direita não revaloriza o trabalho, não recompensa o mérito. Reprime financeiramente os trabalhadores mais merecedores, aqueles que trabalham no duro sem progressão do seu poder de compra, que sobrevivem no dia a dia sem a segurança de um património, sem garantia de futuro, que assumem o essencial dos riscos económicos e são os primeiros e muitas vezes os únicos cujas vida são verdadeiramente arrasadas pelos choques económicos que afectam as empresas. Pelo contrário, a direita não reprime o regabofe do capital que concede aos seus gestores salários indecentes. Em nome do princípio meritocrático? Mas qual é o mérito que justifica que um PDG ganhe mil vezes o salário mínimo? Será que trabalha mil vezes mais do que quem ganha o salário mínimo? Não há quem seja capaz de defender tamanha incongruência! Será que o seu mérito consiste em assumir um risco mil vezes superior do que corre que ganha o salário mínimo? Mas nem sequer os gestores que ganham “apenas” vinte vezes o salário mínimo incorrem em qualquer risco; já são donos de um belo apartamento, de uma casa de campo, de uma carteira de valores mobiliários, de um plano de reforma dourada, ou de um pacote de stock-options, etc.. Sejamos sérios, sejamos “realistas”. No novo capitalismo, são os assalariados mais mal pagos que assumem todos os riscos económicos: são o seu mísero nível de vida, a sua saúde, as suas esperanças que servem de variáveis de ajustamento das áleas da conjuntura e da boa vontade dos accionistas. E este novo capitalismo leva a indecência até recompensar com dádivas douradas (pára-quedas dourados, reformas milionárias, stock-options, etc.) os gestores que conduzem as empresas à beira da falência.

 

Será que a direita é tão louca como este capitalismo ou está apenas cinicamente instalada no campo dos ricos e dos ganhadores? Deixo ao leitor a tarefa de levar a cabo o processo de intenções ou a psicanálise que entender. Seja como for, os factos estão aí: que seja o efeito de uma incompetência vertiginosa ou de uma vontade cínica, a direita só defende os interesses do capital; ela oferece o dinheiro público aos ricos retirando-o, sempre que necessário, aos menos ricos ou aos mais pobres; autoriza o capital a exigir do trabalhador horas extraordinárias mais mal pagas do que anteriormente; promove a transformação dos serviços públicos em novas fontes de lucro mercantil. A única coisa que a direita europeia não faz pelo capital, ao contrário da norte-americana, é assisti-lo com mais eficiência por meio de uma política macroeconómica e industrial que assegure um crescimento mais forte e um melhor posicionamento na competição internacional. Mas, como vimos, é apenas para mais bem a servir a longo prazo, no contexto específico do capitalismo europeu. Por enquanto, um crescimento anémico e uma taxa de desemprego elevada continuam a ser necessárias para exercer uma pressão financeira e psicológica favorável ao recuo dos bens públicos e à extensão da esfera mercantil.

 

Preservar o espantalho da pobreza

 

A persistência de um sub-emprego duradouro desempenha um papel crucial nesta fase de transição para o Estado mínimo e o mercado máximo. De um ponto de vista estritamente económico, o novo modo de produção pode muito bem dispensar uma parte bem considerável dos trabalhadores, em particular os menos qualificados. Se juntarmos ao desemprego todas as formas de sub-emprego dos indivíduos que estariam a trabalhar se os empregos disponíveis abundassem (pré-reforma, tempo parcial forçado, invalidez, estágios, etc.) o sub-emprego total atinge 20% da população activa francesa. Se as empresas podem, assim, dispensar um quinto dos trabalhadores, será que elas não poderão igualmente dispensar as compras que eles realizariam se não estivessem sub-empregados? Evidentemente que sim! Basta para isso que o poder de compra destas pessoas seja transferido para aquelas que continuam empregadas.

 

O crescimento económico global não é afectado se for dispensado um activo em cada cinco, sobretudo se o poder de compra assim esterilizado for redistribuído por trabalhadores de rendimento modestos que os gastam e sustentam a procura. Uma das razões do fraco crescimento em França e na Europa é devido justamente à distribuição cada vez mais inigualitária em favor dos altos rendimentos e em detrimento dos lares modestos. Com efeito, durante um longo período, a transferência dos parcos rendimentos dos pobres para os ricos alimentava sobretudo as carteiras de aplicações financeiras destes, mais do que a procura de consumo interno. Mas talvez que isto esteja em vias de mudar. Hoje, o valor do património das famílias abastadas já inchou de tal modo que elas são menos atraídas pela poupança ou novas aplicações e começam a gastar mais os seus rendimentos suplementares. De tal modo que a política inigualitária que anteriormente denunciámos pode um dia vir a revelar-se eficaz em termos de crescimento: um crescimento estimulado pelo sobreconsumo dos ricos e não afectado pelo subconsumo ou não consumo dos pobres.

 

Neste mundo ao qual estamos quase a chegar – no qual o trabalho e consumo dos pobres são perfeitamente inúteis ao sistema – os pobres continuam a manter uma função social essencial para a direita neo-liberal. Os pobres continuam a ser necessários para o bem-estar dos ricos, mesmo quando são demasiadamente pobres para lhes pagar as subvenções fiscais. Porque a pobreza faz medo à massa dos menos pobres (de que o sistema continua ter necessidade) e persuade esta massa a manter a espinha dobrada e pagar sem pestanejar as ditas subvenções. O medo de hoje é esse. Um em cada dois franceses declara ter medo de vir a ser um sem-abrigo! É absolutamente louco se considerarmos a probabilidade real de se encontrar na rua. Mas é uma angústia compreensível de metade da população que vive com um rendimento inferior a 1.400 euros e se pergunta como vai pagar um teto se ficar sem emprego. É um risco plausível para sete milhões de assalariados que ganham menos de 780 euros por mês.

 

O espectáculo dos pobres serve para alimentar este medo da exclusão e o ostracismo daqueles trabalhadores que se arrisquem a resistir à indignidade das suas condições de trabalho e à injustificável desigualdade da repartição da riqueza. Surge então a questão no momento em que nos dispomos a tratar da luta contra a insegurança: porque é que um poder que tem necessidade do medo para sustentar o seu modelo de vida quereria fazer recuar a insegurança? Não é a insegurança a sua mais fiel aliada?

 

 

3.

A direita contra a segurança e a paz civil

 

Nos anos 2000, a direita conseguiu levar a cabo um brilhante golpe de manipulação da opinião: fazer passar-se por uma campeã da segurança face a uma esquerda “laxista” e ancorar nos espíritos a ideia de que a segurança seria um dos seus valores distintivos. Foi um verdadeiro golpe de mestre porque, na realidade, nada fez no sentido de dar um pouco mais de serenidade, de protecção e de segurança, àqueles que mais precisavam dela. Longe de combatê-las, a direita alimenta e explora as três principais fontes do “sentimento de insegurança”: a insegurança social, a insegurança física e o sentimento de ter sido abandonado pelo políticos.

 

Desde há um quarto de século, vivemos num mundo cada vez mais ansiogénico. Tive a oportunidade de haver crescido, no curso do quarto de século anterior, numa sociedade onde cada um tinha um emprego e a certeza de melhorar a sua sorte graças ao trabalho, onde o progresso técnico prometia um domínio crescente da humanidade perante os caprichos da natureza, onde o Estado procurava proteger-nos contra as flutuações da economia e onde a União Europeia afastava o espectro da guerra. Ora, todas estas certezas esvaíram-se desde os anos 1980. A segurança económica e social deu lugar à insegurança e ao medo do futuro. A maior parte de nós já não se julga ao abrigo do desemprego e da pobreza e teme uma sorte ainda menos invejável para os seus filhos. O Estado já não nos promete a protecção contra a insegurança social; a maior parte das vezes até nos diz que ela é inelutável numa economia mundializada e que já não se trata de sermos protegidos mas de nos batermos. O progresso técnico e industrial revela-se como a fonte de novas ameaças para a saúde e para o ambiente (vacas loucas, Tchernobyl, mudança climáticas, etc.). A promessa de paz, brevemente confortada pelo afundamento da União Soviética, dissipou-se com o medo do terrorismo e do afrontamento entre comunidades religiosas.

 

A insegurança é um valor de direita!

 

A acumulação de novos perigos origina uma enorme necessidade de protecção colectiva. Mas eis que esta necessidade explode no preciso momento em que a vitória política da direita neo-liberal no mundo ocidental leva ao poder uma ideologia que denigre a protecção colectiva e sobrevaloriza a luta individual pela sobrevivência. E essa é a primeira – e porventura a principal – fonte do sentimento de insegurança. No momento em que se espera do Estado um acréscimo de protecção, os discursos e as reformas neo-liberais demonstram que o novo objectivo da politica não é o de confortar a solidariedade colectiva que nos faz mais fortes, mas entregar-nos à competição solitária. “Não contem com o governo, não contem com a sociedade, contem apenas com vós próprios! Porque a política não pode mudar o mundo nem o curso da história, ela só pode incitar-vos a adaptar-vos”. Esta é a mensagem política essencial difundida pelo discurso neo-liberal. Mensagem paradoxal e ansiogénica que atribui a cada um de nós a responsabilidade de afrontar as evoluções perante as quais todos os poderes organizados seriam doravante incompetentes.

 

Esta revolução do discurso político é particularmente evidente em matéria económica e social. A nova direita não pára de explicar-nos que eram principalmente as antigas protecções, a rigidez dos “adquiridos sociais”, o custo da protecção social, os obstáculos à livre concorrência, etc., que constituíam a fonte de todos os nossos males. A direita não cessa de fustigar a esquerda pela sua vontade de proteger os indivíduos contra a competição, a mundialização, os despedimentos; ela elogia os amantes do risco, os “riscófilos” que inovam e “criam riqueza” e denuncia os “riscofóbicos”, os assistidos, “a mentalidade funcionária” (ligada à segurança do emprego), etc.. Para ela, nada é mais retrógrado e mais perverso do que a aspiração à segurança, à tranquilidade, à serenidade: esta aspiração é improdutiva, bloqueia as “adaptações necessárias”; é, pelo contrário, quando se expõe ao risco, à incerteza que o indivíduo dá o melhor de si mesmo, melhora o seu desempenho, e, no fim de contas, é mais capaz de fazer face aos perigos.

 

A direita cultiva a insegurança social

 

É esta a filosofia que inspira a reforma do código do trabalho com que a direita se comprometeu (9). Perante a precariedade do emprego, a direita entende, não reforçar a segurança, mas suprimir as protecções específicas de que beneficiam os assalariados em contrapartida da sua submissão à autoridade do empregador. Com o “contrato novo emprego” (CNE) alargou para dois anos o período experimental, dando assim aos empregadores a possibilidade de despedir os trabalhadores a todo o momento sem ter que justificar a sua decisão (e de substituí-los assinando novos CNE). Oficialmente, trata-se de criar empregos! Nenhum estudo económico sério confortou esta ideia bizarra de que suprimindo a obrigação de justificar e indemnizar um despedimento criar-se-ia massivamente empregos. Será realmente necessário recordar esta evidência: uma empresa não emprega alguém porque sabe que pode mandar as pessoas embora a curto prazo, mas porque precisa de mão-de-obra? O CNE, por si só, não cria nenhuma necessidade de mão-de-obra suplementar. Engendra, em contrapartida, uma formidável benesse para todas as empresas.

 

A este efeito de benesse acresce o efeito principalmente procurado pelo patronato e oferecido pela direita: o efeito de submissão absoluta do trabalhador. No quadro de um contrato de trabalho clássico, de duração indeterminada, um trabalhador fica submetido ao seu patrão apenas no sentido em que deve efectuar correctamente o trabalho que lhe é confiado. Só pode ser despedido em caso de falta grave ou de dificuldades económicas que afectem a empresa; não pode ser despedido porque não aprecia as graças do seu chefe de serviço ou porque recusa preparar-lhe o seu café, exprime as suas opiniões ou denuncia atentados às regras de segurança ou os gestos inconvenientes de um colega. “Graças” ao CNE o assalariado sabe que, a todo o momento, por uma simples alteração de humor do seu superior, por uma falha verbal ou por uma simples opinião, seja qual for, pode ficar sem emprego, despedido por um patrão que nem sequer tem a obrigação de lhe dizer porquê. O assalariado é assim colocado em condições de total submissão à boa vontade do empregador e é, doravante, dominado até à indignidade pelo simples medo de desagradar. O CNE tem ainda um outro efeito, de acordo com estratégia de transferir custos dos mais favorecidos para os menos favorecidos. Toda a relação de trabalho envolve um risco de decepção de expectativas, tanto para o empregado como para o empregador; alargando até ao absurdo o período experimental, o CNE suprime o risco do empregador e faz passar este risco integralmente para o empregado. O CNE oferece uma segurança máxima ao patrão pelo preço de uma insegurança acrescida para o empregado.

 

Também aqui poderá recolocar-se a dúvida: será que a nova direita acredita realmente nas virtudes morais e económicas da exposição ao risco ou submete os trabalhadores à insegurança económica com o único desígnio de conferir plenos poderes aos detentores do capital? É um debate que não me interessa particularmente porque não muda nada em relação às consequências e ao perigo desta política anti-social. Os factos estão aí, na sua teimosia. Maior precariedade e insegurança económica representam igualmente mais stress no trabalho, mais sofrimento psíquico e físico, menos produtividade e mais despesas de saúde. É, portanto, um custo colossal para a colectividade que não é compensado por um aumento do emprego, dado que a política de direita é incapaz de recuperar a taxa de emprego. O único “interesse” desta política é, pois, o de uma minoria de patrões comprometidos na guerra económica que querem dispor de uma força de trabalho que já não é constituída por um grupo de cidadãos protegidos por direitos, mas por guerreiros prontos a baterem-se pela sobrevivência.

 

Esta exploração da insegurança não é apenas iníqua, ela é, a longo prazo, economicamente estúpida e contra-produtiva. Tanto quer ganhar a guerra económica que se dedica a reunir os meios de a perder. No caso vertente, é um erro acreditar que um exército de mercenários maltratados e governados pelo medo pode ser mais forte do que um exército de cidadãos animados pela paixão de uma causa comum. Perante uma guerra económica, a empresa é mais bem servida por assalariados que se sentem protegidos (pelo seu patrão, pela sociedade) do que por trabalhadores em competição interna para escapar ao despedimento. Num caso, os empregados são incitados a defender colectivamente o bem comum que é a empresa; não hesitando em comunicar as suas críticas e observações sobre os produtos e sobre os métodos de produção pondo assim uma informação preciosa à disposição da direcção; no outro, os empregados não lutam pela empresa mas por si próprios, tolhidos pelo medo, não ousam transmitir nenhuma informação sobre problemas pelos quais ainda poderiam vir a ser responsabilizados; um elevado nível de stress é uma fonte permanente de erros, acidentes, doenças e absentismo.

 

Na realidade, uma empresa tem vantagem em ter trabalhadores mais bem protegidos e menos angustiados; acompanhando mais o percurso individual de cada trabalhador e protegendo-o contra as arbitrariedades e imprevistos económicos facilita-se a plena implicação de cada um na sua tarefa e a mobilidade dos trabalhadores quando é necessária.

 

Uma empresa é mais bem armada para a guerra económica protegendo os seus trabalhadores do que libertando os empregadores do respeito do código do trabalho. Essa é razão pela qual, nos inquéritos efectuados junto dos directores de recursos humanos, uma grande maioria deles revelou que não pensava recorrer aos CNE. Mas a direita no poder é indiferente às resistências dos trabalhadores, das reticências de alguns empregadores e à análise rigorosa do problema. Só parece compreender as exigências do MEDEF (9a), um lobby de grandes patrões que nem sequer é representativo dos empresários franceses. O MEDEF defende aquilo que julga ser o interesse imediato das grandes empresas. Ora, as grandes empresas realizam a maior parte do seu desenvolvimento e dos seus lucros fora de França: podem, por isso, estar-se completamente nas tintas para os efeitos perversos da precariedade do emprego sobre os assalariados franceses e sobre a economia francesa. Agravando a insegurança social, a direita francesa agrada apenas ao MEDEF – parceiro ingrato que achará sempre que o direito do trabalho é demasiado rígido (em relação ao código de trabalho chinês!) – mas não serve em nada o interesse da imensa maioria das empresas francesas que têm que operar no mercado de trabalho doméstico.

 

O encarniçamento da nova direita na sua operação de desmantelamento do código de trabalho é de tal ordem que a conduziu mesmo ao erro político mais crasso. Apesar da viva contestação suscitada pelo CNE, e o acolhimento mitigado que lhe foi dispensado pelos profissionais, apesar do fracasso memorável, dez anos antes, do projecto de lei sobre o CIP (10), e apesar da indignação geral que certamente suscitaria uma nova tentativa de redução dos direitos dos jovens que chegam ao mercado de trabalho, a direita tentou alargar a lógica do CNE aos contratos de primeiro emprego (CPE). Como era previsível, a resistência dos jovens, apoiados pelos seus pais e professores, obrigou finalmente o governo a renunciar a este projecto. Mas esta afronta assumida com grande risco de impopularidade, revelou bem a crispação ideológica da direita sobre o tema. Seja qual for o eventual custo político, a direita está determinada a impor uma nova concepção da relação de trabalho em que a insegurança no trabalho é uma bênção e não uma praga.

 

Uma lógica idêntica conduz à redução das indemnizações de desemprego para incitar os desempregados a intensificar a procura de emprego. Quanto maior for o medo do futuro que se apoderar dos trabalhadores, melhor será! Inclusivamente para eles, garante-nos a direita, porque a precariedade e o medo os preservam de acomodação à preguiça e à ociosidade. Na verdade, de acordo com as perspectivas do patronato, ao valorizar o risco, a incerteza, como aguilhões do desempenho e da competitividade, a direita quer impôr ao assalariado o modelo de comportamento do empresário. Com efeito, no ideal neo-liberal, a relação salarial deveria desaparecer. Cada um de nós deveria transformar-se numa empresa individual de serviços que negoceia livremente as suas prestações com os detentores do capital. Estes últimos, mantendo de facto os trabalhadores individuais num estado de dependência e de submissão absolutas, não teriam, por seu lado, nenhuma obrigação no que respeita à duração, à estabilidade ou às condições desta relação. A precariedade absoluta do trabalho é assim apresentada como o nec plus ultra do progresso. Acima de tudo, a precariedade é a vida, explica-nos M. Parisot: “A vida, a saúde, o amor são precários. Porque razão o trabalho não haveria de o ser (11). É a culminância da naturalização das leis da economia e da sociedade: a insegurança faz parte da natureza, logo, a sociedade deve ser insegura! QED.

 

O patronato ama o risco… suportado pelos outros

 

A religião natural dos neo-liberais condu-los, pois, a “raciocinar” como estas seitas que recusam os cuidados médicos e as vacinas dos seus filhos com pretexto de respeitar a ordem natural das coisas querida por Deus. Trata-se, pois, mesmo à vista desarmada, de uma forma de obscurantismo e não qualquer resultado de um conhecimento científico. Este último, na verdade, ensina-nos o contrário do que pretendem os neo-liberais em matéria de segurança económica e social. É verdade que a tomada de riscos pelos empresários que aceitem efectivamente assumi-los é um factor de inovação e dinamismo económico. Mas, na maior parte das vezes, os empresários só assumem riscos em situações de incerteza limitada, quando dispõem de informação sobre as consequências possíveis e podem efectuar um cálculo racional fundado sobre as probabilidades. Quando a incerteza é radical (não probabilizável) nenhum cálculo racional é possível e, então, os empresários abstêm-se ou desenvolvem todas espécies de meios para diminuir a incerteza. A teoria económica e a psicologia experimental demonstraram que, em situações de incerteza, as decisões económicas são irracionais, o que funda cientificamente a necessidade de tornar o futuro menos incerto. As leis, os contratos, as convenções, as instituições, como os seguros privados e a segurança social têm, na realidade, como função económica primária, criar um quadro que limite a incerteza quanto aos resultados e incite os actores a tomar riscos calculados. É realmente a segurança que permite tomar riscos inteligentes e produtivos! Essa é, aliás, uma das primeiras leis da natureza: é a confiança oferecida pela relação entre a mãe a criança que permite a esta aventurar-se na descoberta do seu ambiente exterior e dos outros. Uma criança privada desta segurança fundamental terá medo de tudo.

 

A retórica neo-liberal que faz da insegurança social um dado natural estimulador da energia criadora é, portanto, absurda e antinatural. Os neo-liberais têm a pretensão de transmitir a todos os trabalhadores um virtuoso gosto pelo risco, mergulhando-os na mais radical insegurança. Ora é perfeitamente sabido que intensificando a incerteza sobre o futuro não se transmite o gosto do risco mas, simplesmente, a angústia e o stress que consomem a energia.

 

Se o discurso neo-liberal é insensato, aqueles que o defendem não o são forçosamente. Os dirigentes do MEDEF sabem bem do interesse que há na redução da incerteza e é isso precisamente o que procuram. Num universo em que a livre competição internacional tornou tudo mais incerto, eles esforçam-se por reduzir a sua própria incerteza, transferindo os riscos para os assalariados em tudo o que podem, enquanto os lucros que, em princípio, remuneram a assunção dos risco, não são evidentemente redistribuídos aos trabalhadores. Neste novo capitalismo há todas as razões para ser “riscófilo”: como não adorar os riscos suportados por trabalhadores que não estão em condições de exigir a sua parte nos benefícios? Encontramos aqui a mesma lógica de redistribuição que prevalece em matéria de rendimentos: dos mais pobres para os mais abastados; é assim que são distribuídos os riscos económicos.

 

Como se vê, no domínio económico e social, é evidente que a segurança de cada um de nós, não é um valor de direita. Pelo contrário, para dissuadir os indivíduos de reivindicarem mais segurança, favorece-se a segurança de alguns privilegiados. Em contrapartida, poder-se-ia ser levado a pensar que a segurança física das pessoas perante a delinquência e a criminalidade, constitui uma prioridade distintiva da direita. Nos discursos é assim: a direita tanto nos exorta a batermo-nos nos mercados livres em lugar de nos proteger, como nos garante toda a protecção contra os bandidos e a desordem pública. A realidade, infelizmente, é completamente diferente.

 

A direita não combate a insegurança física, sustenta-a

 

A nova direita francesa detém o recorde absoluto de activismo legislativo em matéria de luta contra a delinquência: dez leis penais em quatro anos e meio (12), indo todas no mesmo sentido, o de uma repressão mais severa. A que se juntou uma gesticulação policial inédita que permitiu ilustrar, em imagens do jornal das 20 horas, que o discurso musculado do ministro do interior se traduzia em actos. Tudo isto para nada, ou quase nada! Exceptuado um êxito real em matéria de segurança rodoviária, o desencadeamento de uma lógica puramente repressiva só contribuiu para acrescentar a uma insegurança sempre crescente um pouco mais de violência, de derramamentos de sangue e atentados aos direitos humanos.

 

A despeito de todos os testemunhos fornecidos por todos os profissionais envolvidos (polícias, educadores, psiquiatras, magistrados, advogados, assistentes sociais) e pelos organismos de estudos especializados, Nicolas Sarkozy persiste em felicitar-se pelo recuo da delinquência. Para tanto basta insistir no único algarismo que não quer dizer nada: o número total de actos delituosos.

 

Segundo se pretenda manipular a opinião ou informar, pode insistir-se no recuo global (8,2% de infracções a menos entre 2002 e 2005) ou examinar a evolução da delinquência por tipo de infracção. Quando se procede a este exame mais rigoroso, o verdadeiro balanço da insegurança continua a ser preocupante.

 

Os roubos de automóveis, as degradações e destruições de bens privados (para além dos incêndios), os assaltos a residências, os homicídios, o uso de cheques falsos ou roubados recuam fortemente. Podemos certamente felicitar-nos mas o governo não tem muito que ver com isso: o mesmo fenómeno verifica-se por toda a Europa e reflecte muitas vezes evoluções independentes das políticas públicas (desenvolvimento dos equipamento anti-roubo, aumento das franquias pela companhias de seguros, declínio do uso do cheque em favor da cartas bancárias, etc.).

 

E sobretudo a verdadeira insegurança mantém-se porque o conjunto das outras infracções está em forte alta, particularmente as violências contra as pessoas:

- incêndios de bens privados + 26,2%

- roubo de particulares em lugares públicos + 18,7%

- agressões e ferimentos voluntários + 18,7%

- violências familiares + 12%

 

No total, entre 2002 e 2006, o número de crimes e delitos contra as pessoas aumentou, pelo menos 24% (13). Os inquéritos de “vitimação” do INSEE indicam que a percentagem de pessoas que declara ter sido vítima de agressões ou actos violentos estava, em 2004, ao mesmo nível de 2001 (6,7%). Em contrapartida, esta percentagem aumentou consideravelmente para as classes populares, que se supunha serem as maiores beneficiárias da nova política (no caso de operários a percentagem passa de 6,8% para 7,5%). Este balanço e suficientemente lastimável para que seja necessário invocar as diversas manipulações que permitem às forças da ordem “arranjar” as estatísticas ao nível do registo (ou não registo) das queixas.

 

É certo que este balanço inquietante não pode ser imputado apenas à política securitária da direita. A ascensão da violência, do incivismo e da delinquência juvenil é um fenómeno que alastra desde há uma trintena de anos seja qual for a orientação política dos governos. As suas causas são múltiplas: mutações da família, urbanização, gettoização, pobreza, desemprego, alastramento de uma cultura individualista e consumista, etc.. Mas o balanço objectivo da política securitária mostra que a acumulação inédita de medidas repressivas não combate minimamente a insegurança.

 

A impotência radical da lógica repressiva

 

A lógica da repressão acima de tudo repousa sobre uma hipótese heróica: o delinquente seria um ser racional que procede ao cálculo do seu maior interesse e que, exactamente como um empresário, compara a rentabilidade esperada do seu acto delituoso com o seu eventual custo. Neste caso, mecanicamente, aumentando o custo dos delitos, pelo agravamento das penas, a delinquência regrediria.

 

É verdade que este tipo de raciocínio pode, por vezes, ser pertinente para certas espécies de delitos: assim, o banditismo tradicional, o crime organizado ou as infracções ao código da estrada podem recuar quando a repressão é mais eficaz. Sublinhe-se que, nestes casos, é mais a probabilidade de ser apanhado do que a gravidade da pena que é dissuasiva. Além disso, quando uma forma particular de criminalidade é mais bem reprimida, ela tende a deslocar-se para outra actividades mais dificilmente controláveis. Conclusão: A racionalidade do delinquente recomenda-lhe menos a honestidade do que uma escolha mais bem feita dos seus delitos!

 

Com a criação de um delito de “engate passivo”, transformando as prostitutas de vítimas em cúmplices do crime de proxenetismo, é evidente que a direita não fez regredir este crime. Também aqui, a racionalidade implicou a adaptação à nova legislação. Aconteceu apenas a deslocação para outros locais da prostituição mais visível e mais incómoda e as prostitutas tornaram-se mais vulneráveis. A direita irracional prestou um bom serviço aos proxenetas e agravou a exploração das mulheres pelas redes mafiosas.

 

Fica de fora a multiplicidade de actos violentos para os quais nenhuma forma de racionalidade é susceptível de intervir. O marido alcoólico que espanca a mulher não pega na máquina de calcular antes de atacar; o pedófilo não raciocina muito antes de passar ao acto; os violadores não têm o hábito de consultar o código penal antes de cometer a violação. Isto não implica que não seja necessário reprimir estes crimes, mas apenas que a repressão não contribui em nada para diminuir o número de ocorrências. O acompanhamento psicológico e social sistemático das crianças vítimas de maus-tratos e de violências sexuais é o único meio de limitar a proporção daqueles que se tornarão adultos violentos e perversos. Esta lógica preventiva aplica-se também aos adultos que passaram ao acto: a única acção que valha a pena é a que tende a tratá-los e a favorecer a sua integração social; a repressão não evita de forma alguma a recidiva.

 

Aliás, enquanto a prisão continuar a ser a sua principal modalidade, o aumento da repressão da delinquência só contribui para o seu agravamento a prazo. Digamo-lo com crueza: a prisão é hoje um lugar de vingança social, e não um lugar de reeducação e de reinserção. E isto acontece em violação da nossa Constituição, que reconhece os direitos do homem como princípios superiores, que os poderes e as leis da República devem respeitar. Em termos jurídicos, o delinquente metido na prisão é apenas privado da liberdade mas, a maior parte das vezes, ele é igualmente privado da dignidade, da saúde e da sua integridade física; é mergulhado num universo ainda mais violento do que aquele de onde provém e não se vislumbra como isso favorece a aprendizagem de novos comportamentos! A prisão não protege a sociedade. Por um lado, como se viu, a prisão não tem um efeito dissuasivo: o aumento da taxa de encarceramento é acompanhado de um agravamento rápido da insegurança das pessoas e representa uma indicação do fracasso de lógica puramente repressiva. Depois, porque a prisão tem muita vezes o efeito de preparar os delinquentes para reincidência e os pequenos delinquentes para a grande delinquência.

 

Não é de um aumento de guardas prisionais que a nossa época carece, mas antes de meios para desenvolver penas de substituição (trabalho de interesse geral), preparação e acompanhamento, de reinserção social (formação, psicoterapia, serviço de emprego, empresas de reinserção, etc.).

 

Violência dos jovens e violência da sociedade

 

A impotência da repressão e da prisão perante a violência é ainda mais flagrante no caso dos jovens primo-delinquentes. Essa foi precisamente a razão pela qual o general De Gaulle rompeu com a política securitária herdada do século XIX, política que tratava os menores como adultos e usava exclusivamente a repressão. Foi então confiada à justiça a função de protecção da juventude e dada a prioridade às medidas educativas. Ora, actualmente, a nova direita resolveu regressar à lógica do século XIX. Ela explora a inquietação suscitada pelos motins dos subúrbios para difundir a ideia mentirosa segundo a qual o tratamento específico dos menores pela justiça provou a sua impotência e que face à violência cada vez mais precoce dos menores é preciso tratá-los tão severamente como os adultos e de acordo com a mesma lógica repressiva. Assim, a última lei de segurança (adoptada no Outono de 2006), espantosamente denominada “lei de prevenção da delinquência”, prevê para os menores o agravamento das sanções e a aproximação dos procedimentos aos que são aplicáveis aos maiores, sem que se encare qualquer novo meio de prevenção. Para M. Sarkozy, não há aqui nenhuma contradição, visto que, diz ele, “a sanção é a primeira das prevenções”.

 

Não seria possível um melhor resumo da lógica imbecil e perigosa que inspira esta política. Certamente que a sanção é necessária, inclusivamente para os menores. Mas, por princípio, a sanção só intervém porque a prevenção fracassou. Acreditar que a perspectiva da sanção é suficiente para fazer recuar a violência reflecte de novo a ilusão de que o delito resulta de um cálculo racional. Isso já é duvidoso para um grande número de delitos cometidos pelos adultos, e é-o, ainda mais, para as crianças e adolescentes que deitam fogo a automóveis, apedrejam polícias, insultam os professores e se digladiam nos pátios de recreio, etc.. Os profissionais da infância não deixam de repetir que esta violência releva de um comportamento impulsivo emocional e exibe precisamente uma deficiência de controlo de si, ligada a um falhanço do processo de educação e de socialização da criança. Daí M. Sarkozy deduz a ideia de que a delinquência é uma doença mental que seria preciso despistar desde a mais pequena infância, para tratar os criminosos em potência em estabelecimentos especializados. Ora, na verdade, mesmo os raros casos onde pode verdadeiramente falar-se de uma patologia precoce do comportamento, a resposta correcta não consiste em isolar as crianças em causa, mas, pelo contrário, enquadrá-las ainda mais, a fim de que corrijam o seu comportamento, mantendo-os em contacto com as crianças “normais”. E na enorme maioria dos casos – se não for a totalidade – não se nasce delinquente potencial, pode tornar-se delinquente no termo de uma história moldada pela família, a vizinhança, a escola, as condições materiais de existência, numa palavra, pelo conjunto do meio social no qual um indivíduo cresce.

 

Essa é a realidade de que a direita não quer ouvir falar porque, segundo ela, explicar a delinquência é justificá-la e procurar compreender o mal que combatemos é ser fraco. Que rematada estupidez! Explicar ou compreender não justifica nada, serve apenas para saber como agir eficazmente. A direita revela-se incapaz de fazer recuar a violência porque ela recusa a explicação rigorosa da delinquência e, de súbito, não entende nada (ou finge que não entende nada). Todos os estudos confirmam a forte correlação entre certas formas de delinquência e a condição social. Quem pretende reduzir a delinquência sabe, portanto, que a melhoria das condições de vida das populações desfavorecidas é uma alavanca de acção potente e prioritária. Afirmar isto não releva nem da ideologia nem da justificação mas da pura lógica matemática. É, pelo contrário, uma imbecilidade ou pura cegueira ideológica não querer ver que a violência dos subúrbios é alimentada pela concentração das populações desfavorecidas, pela ausência crónica de serviços públicos, pelas taxas de desemprego três a quatro vezes superiores à média nacional, pela penúria de actividades oferecidas à juventude, pela ausência de perspectivas profissionais, pela discriminação racial, pela miséria da família em dificuldades, etc.. Prevenir e fazer recuar a delinquência supõe um investimento massivo para transformar em verdadeiras “cidades” os terrenos vagos onde foram parqueados os pobres e os imigrados durante quatro decénios; para sustentar e enquadrar os pais em dificuldade; para criar empregos e actividade locais; para refazer a escola não só como lugar de instrução, mas também como lugar de educação e florescimento da infância.

 

Porque a primeira das prevenções da delinquência juvenil continua ser a educação. E a única resposta à delinquência é a reeducação. As sanções fazem parte da educação e da reeducação. A lei prevê já grande abundância de sanções e o governo felicita-se de que a taxa de resposta penal à delinquência juvenil está em aumento constante, atingindo já a taxa de 87%. Infelizmente sem nenhum efeito notável sobre a violência juvenil porque justamente a sanção não é “a primeira das prevenções” mas a última! Toda a gente sabe (com excepção da direita no poder?), que, nesta matéria, o essencial do êxito depende do número de adultos que enquadram o menor e o tempo que lhe é consagrado. Ora o que faz a direita? Reduz em várias dezenas de milhares o número de adultos que enquadram a juventude: suprimindo o emprego jovem e diminuindo os lugares de vigilantes e de educadores, cortando o abastecimento das associações de bairro, e aumentando, pelo contrário, o número de guardas prisionais. É lógico, visto que é aí que é cada vez mais necessário ocupar-se dos jovens, dos quais as escolas já não se ocupam.

 

Junte-se a isto a supressão da polícia de proximidade cujo único defeito era o de não estar suficientemente desenvolvida. Todos os sindicatos de polícia bem puderam assinalar que esta inovação – a polícia de proximidade - introduzida pela esquerda ia no bom sentido já que permitia o restabelecimento de uma relação de confiança entre as forças da ordem e a população, um melhor conhecimento do terreno, a referênciação dos jovens com problemas, etc. … que importa! Para marcar bem a sua diferença em relação à esquerda, a direita destruiu o único instrumento policial que começava a dar frutos em matéria de prevenção. Doravante, a polícia não intervém nos bairros a não ser para restabelecer a ordem ou fazer a gesticulação provocatória da praxe em frente das câmaras de televisão. A polícia já não está lá permanentemente para tranquilizar a população, mas surge apenas para punir quando não é para provocar a desordem que virá justificar a próxima lei repressiva, tão vã como as anteriores.

 

A direita está a fazer-nos entrar no círculo vicioso e sem fim que os Estados Unidos já experimentaram durante trinta anos: desinvestir em todos os serviços públicos e sociais que podem combater as causas da violência e investir (necessariamente a fundo perdido) nos serviços de repressão e na severidade das penas. Quando o Estado-Providência se transmuta em Estado-Penitência (14) não se faz mais que acrescentar violência à violência. Com trinta anos de atraso, a direita francesa está hoje a meter-nos por esse caminho louco. Quando um grande número de municipalidades norte-americanas já compreendeu que a paz civil e a segurança passam, em primeiro lugar, por uma política municipal ambiciosa, a ajuda às famílias, o apoio às associações locais e a polícia de proximidade, o governo francês continua persuadido do contrário: recusa todos os meios que poderiam fazer recuar a violência de forma duradoura, multiplica as demonstrações de força bastante espectaculares, mas muito pouco úteis, e com o risco de excessos policiais que desencadeiam motins.

 

É tempo de pôr um termo ao jogo perigoso com que a direita se diverte em relação à juventude dos subúrbios. Quando um ministro do Interior vem exibir a sua musculatura num bairro difícil e prometer limpar a “canalha”, com detergente, é bom que não se veja aí um sinal de coragem e de uma vontade política reencontrada. Trata-se de um sinal de inconsciência e de uma imaturidade grotesca e perigosa. O papel dos adultos, em geral, e dos políticos em particular, não é certamente o de se comportarem como adolescentes e desafiar os verdadeiros adolescentes que só estão à espera de um pretexto destes para dar livre curso à sua cólera.

 

A direita diverte-se a excitar os jovens dos subúrbios em vez de garantir realmente a segurança desses bairros e a educação dos jovens. Ela estigmatiza a violência dos menores, mas retira os vigilantes dos pátios de recreio! Será doida? Ou sabe muito bem aquilo que faz? Será que acredita que vai acalmar os nervos dos jovens ao excitá-los? Põe óleo no fogo pensando que assim o extingue? Ou mantém habilidosamente o espectáculo da desordem e da violência urbana para justificar o seu discurso securitário e desviar a atenção da opinião pública de outras preocupações? Não se sabe qual das explicações é preferível. Quer seja inconsciente ou maquiavélica, em ambos os casos é igualmente perigosa. Na nossa sociedade existem suficientes fontes de violência; será que temos realmente necessidade do que o governo faça ainda jogar outros factores de perturbação?

 

Em termos gerais, esta direita que se apresenta como a campeã da segurança, faz exactamente o contrário do que seria preciso para a combater. Trava as políticas em curso, corta créditos, suprime lugares que todos os profissionais julgam essenciais na luta conta a violência e a delinquência! Vota uma lei sobre a prevenção da delinquência que não prevê um único meio de prevenção! A verdade é que não faz nada que seja susceptível de conter verdadeiramente o aumento da violência sobre as pessoas, que progride cada vez mais rapidamente. Enquanto os ministros da República brincam aos aprendizes feiticeiros, é preciso ser cego para não ver que esta direita se tornou o primeiro dos perigos para a nossa paz civil.

 

Pelas mesmas razões e através dos mesmos métodos a direita coloca-nos igualmente em perigo pela sua política de imigração.

 

O medo do estrangeiro e a ilusão de uma imigração escolhida (15)

 

O discurso da direita sobre esta questão resume-se a uma constatação e duas orientações. A constatação: o laxismo e as regularizações massivas do passado teriam engendrado um fluxo de imigração incontrolada que ultrapassa largamente as capacidades de acolhimento do nosso país. As duas orientações que se seguem: reforçar o controlo e a repressão para reduzir os fluxos de imigração legal e clandestina; desenvolver apenas uma imigração “escolhida”, em função das necessidade económicas do país.

 

De acordo com estas orientações, a lei de 24 de Julho 2006 relativa à imigração e à integração tem por objectivo garantir o recuo da imigração global, um recuo da imigração sofrida (imigração familiar (16), pedidos de asilo, imigração clandestina) e a progressão de uma imigração contingentada em função das nossas necessidade de mão-de-obra. A fim de assegurar o recuo global do saldo migratório (diferença entre as entradas e saídas de imigrantes) a baixa da imigração sofrida deverá ser superior à progressão da imigração escolhida.

 

Como observa François Héran trata-se de uma política “soberanista” e “nativista”. Ela procura, com efeito, por um lado, restaurar o controlo soberano do Estado sobre a instalação de estrangeiros em França e, por outro lado, aumentar a proporção dos nativos em relação às pessoas imigradas. Entretanto, como procurarei demonstrar em seguida, esta política é perfeitamente contrária aos interesses da França e, por outro lado, irrealizável a médio prazo.

 

Através da pretensa constatação evocada atrás, a direita quer romper com o “angelismo” da esquerda e apresentar aos franceses o discurso da verdade. Na realidade, ela limita-se a retomar o discurso da extrema-direita que incita os franceses a imaginarem-se como vítimas de una invasão incontrolada de hordas de imigrados. Em 2003, a população francesa imaginava, em média, que os imigrados representavam 29% da população, ou seja, o triplo do seu peso real (8%)!

 

A realidade situa-se, portanto, a mil léguas dos fantasmas fabricados pelo discurso político. A França é um dos países industriais onde o saldo migratório é mais baixo. Com 105.000 entradas líquidas em 2004, o saldo migratório da França representa uma taxa de 1,7 por mil habitantes, ou seja, três vezes menos do que na zona euro (5,1%) e cinco vezes menos do que na Europa do Sul (10%). Sublinhemos ainda que a taxa de imigração em França era nitidamente superior nos anos 1950-1970 (17). Mais ainda, porque a França se distingue dos outros países industriais por uma taxa de fecundidade particularmente elevada, o contributo da imigração no crescimento da nossa população é relativamente fraco: não mais de 30% em 2004, contra 85% em media para ao países da União Europeia.

 

Não existe em França nenhum surto de imigração massiva que ameace transtornar bruscamente a estrutura da população francesa. Suscitando uma inquietação imaginária, a extrema-direita e a nova direita liberal desviam a nossa atenção do verdadeiro problema: a integração dos franceses descendentes de pais imigrados. Se o fluxo de imigração é relativamente fraco, ele é mais antigo e mais regular do que na maior parte os países europeus. Resultado: “Perto de um em cada quatro franceses tem pelo menos um avô imigrado e com mais uma geração chegaremos a uma razão e um francês em cada três” (18).

 

O verdadeiro problema suscitado por esta situação é o de que desde meados dos anos 1970, consagrámos mais energia a controlar os fluxos de imigração nova do que a garantir a integração dos jovens franceses nascidos de pais imigrados. Na ausência de uma política urbana e de uma política de integração adaptada, deixámos que se instalassem guetos com uma enorme concentração de populações de fracos rendimentos que vivem em espaços desprovidos de todos os atributos de uma cidade normal. Nada foi feito para evitar o desemprego em massa da geração que entrava no mercado de trabalho nos anos 1980 e não se elevou a luta contra a discriminação racial ao nível de uma prioridade nacional.

 

Numa palavra, as crianças da “segunda geração” não foram suficientemente tratadas como nossos filhos, como filhos da República. E hoje, ficamos espantados por vê-los em cólera? Incomodamo-nos ao vê-los desprezar os representantes da República. Deveríamos, em lugar disso, espantar-nos com o carácter ainda minoritário e esporádico da sua revolta. Deveríamos admirar-nos e felicitar-nos pelo facto de que a imensa maioria desses jovens respeita as leis da República e está perfeitamente integrada na sociedade francesa pela simples e boa razão de que os seus pais os educaram para esse fim. E, para terminar, em vez de ensinar nas nossas escolas “os aspectos positivos da colonização” (como se uma ignomínia contrária aos nossos princípios republicanos pudesse aceder ao menor começo de justificação) seria mais inspirado ensinar os benefícios da imigração para o nosso país e as virtudes da mestiçagem e da mistura das populações.

 

Em vez disso, a direita explora o espectáculo mestiço dos bairros suburbanos para despertar o sentimento nauseabundo de um excesso de imigrantes. É verdade que há muitos árabes e negros em França! Mas são franceses, são a França! E o facto de limitar drasticamente o fluxo da nova imigração não fará a mínima diferença.

 

Aliás, podemos e devemos reduzir o fluxo da imigração? Sim, se quisermos condenar a França ao declínio demográfico e a um envelhecimento insustentável da população. Senão a resposta é claramente negativa. As projecções demográficas do INSEE são claríssimas. Supondo que a França mantenha uma taxa de fecundidade de 1,9 crianças por mulher e tendo em conta uma progressão da esperança de vida, o acréscimo natural da população francesa (excesso interno dos nascimentos sobre os falecimentos) passará dos 245.000 por ano actualmente, para 100.000 à volta de 2032 e zero em 2040/2045. Isto deve-se à progressão inelutável das mortes numa população envelhecida. Portanto, com o saldo migratório ao seu nível actual (100.000 por ano), a imigração tornar-se-á a principal fonte de crescimento a partir de 2032 e a única a partir de 2040/2045. Um bom número dos nossos vizinhos é já inteiramente dependente da imigração para garantir o crescimento das suas populações: são desde já confrontados com a necessidade de um ritmo acelerado e com as dificuldades daí decorrentes. Graças à sua fecundidade elevada, a França tem ainda mais trinta anos para se preparar para esta situação. É uma sorte para a França. Mas é esta sorte que a direita destrói programando a redução regular dos fluxos de imigração! Esta política aumentaria a proporção dos nativos durante os três próximos decénios, ao mesmo tempo que apoiaria uma cultura “nativista”. Mas com a inelutável aproximação do declínio demográfico interno, uma sociedade mais reticente à imigração teria que acomodar-se a um recurso súbito à imigração massiva! É a pura loucura.

 

A política nativista é insensata. Seja como for é ilusória. Mesmo se conseguíssemos reduzir para metade o saldo migratório anual, a data em que os imigrantes contribuiriam mais do que os nativos para a expansão demográfica recuaria apenas cinco anos! O único objectivo real do discurso nativista é o de cativar o eleitorado de extrema-direita explorando a sua ignorância demográfica. Viveremos inevitavelmente com uma proporção crescente de imigrados; a única política sensata é a que nos habitue a viver melhor com a miscigenação das populações.

 

Se uma política sensata deve colocar o acento sobre a integração dos imigrantes e dos seus filhos, será que podemos, no futuro, escolher os nossos imigrantes como pretende a direita? A ideia de que poderíamos, como que num supermercado mundial de mão-de-obra, alugar apenas e temporariamente os trabalhadores de que tivéssemos necessidade é absolutamente obnóxia. Tanto os princípios gerais da nossa República, como o direito internacional obrigam-nos a respeitar o direito de asilo e o direito ao reagrupamento familiar; a termo, a imigração do trabalho “escolhida” arrastará automaticamente uma imigração familiar pelo menos, equivalente; os trabalhadores jamais voltarão ao seu país de origem: a imigração de trabalho transforma-se em imigração de povoamento. Por outro lado, jamais se poderá erradicar toda a imigração clandestina e, sobretudo, não se poderá fazê-lo pelo emprego da força. A luta contra a imigração clandestina nem sequer progride: é apenas uma maneira de reprimir cegamente os sem-papéis.

 

É uma trivialidade lembrar que o efeito de atracção que exercem os países ricos sobre os povos do sul, se sobrepõe sempre ao efeito de repulsa que exerçe a repressão policial dos clandestinos. A França não ganha rigorosamente nada em violentar as mulheres e as crianças, reenviando-os para o seu país, recusando asilo político a pessoas realmente ameaçadas; não é isso que fará recuar o fluxo de imigração; só fará aumentar a violência e manchar a honra da República com mais atentados aos direitos do homem. O único meio de conter esta imigração é reduzir o desnível do desenvolvimento entre o Norte e o Sul. Em particular para a França, trata-se de contribuir para um desenvolvimento acelerado das perspectivas de emprego e de nível de vida dos países africanos. O que custa caro a curto prazo; pode contar-se com uns biliões de euros por ano. Mas, sobretudo se outros países europeus fizerem o mesmo, em menos de vinte anos, a bacia do Mediterrâneo e a África tornar-se-ão pólos de atracção para as nossas empresas. O nosso problema já não será, então, o de recusar imigrantes, mas o de reter os emigrantes!

 

De qualquer modo, esse é o futuro que se avizinha para um país industrial que envelhece. Quer se queira quer não, em alguns poucos decénios, o nosso equilíbrio demográfico tornar-nos-á dependentes da imigração, num contexto em que o conjunto dos outros grandes países industriais já viverá esta dependência há bem mais tempo do que nós. Os países do Norte entrarão em competição para atrair e reter os trabalhadores do Sul. O desafio que teremos a longo prazo não será o de sermos escolhidos pelos nossos emigrados, mas o de os escolhermos nós. E, em todo o caso, conseguir a sua integração.

 

Em vez de nos dizer o discurso do realismo e da verdade, a direita mente-nos. Ela diz-nos que acolhemos demasiados imigrantes enquanto a verdade é a de que não podemos dispensar o seu aumento contínuo. A direita põe-nos em perigo. Não disponibiliza os investimentos e os meios humanos necessários para evitar perpetuar o deficit evidente de integração das populações imigradas.

 

Assim nesta questão de extrema importância, como nas da segurança, do crescimento e do emprego, a direita segue uma linha ideológica ou demagógica absolutamente contrária ao interesse do país e que tende a agravar as dificuldades que pretende resolver. Esta constatação conduz-nos a interrogarmo-nos sobre a natureza democrática do nosso sistema político. Como é que um poder saído das urnas pode agir a tal ponto contra o interesse geral e permanecer indiferente, tanto aos protestos como ao voto hostil dos franceses, em cada uma das consultas eleitorais.

 

 

4.

A direita contra a democracia

 

Se a nova direita é apenas incompetente e incapaz de compreender as aspirações manifestadas pelos eleitores, ela já é extraordinamente perigosa; se age com uma real clarividência mas com vista a defender os interesses das classes superiores, ainda é mais perigosa. Talvez seja ainda mais temível porque ameaça a democracia. E, neste caso, mesmo aqueles que extraem proveito da sua política, têm razão de temê-la porque ela lamina o nosso último bem comum, aquele que nos permite viver em paz e em liberdade.

 

O espírito da democracia

 

Nestes tempos de tremenda incultura política, espero que me seja permitido recordar algumas noções fundamentais. Quanto mais um conceito político, no caso o de “democracia”, é comum, mais o discurso político o emprega a torto e a direito, até fazer esquecer o seu sentido primário e o seu alcance essencial. Resultado: se você pensa que a democracia já não é o que está em causa no debate político, você está completamente equivocado e não sabe o que é a democracia.

 

A democracia (literalmente, em grego, o “poder do povo”), recordemo-lo, é um modo de fazer sociedade. Mas não é o único. Para viver em sociedade, para manter em harmonia uma comunidade dividida por múltiplas divergências de interesses, de opiniões, de crenças, é preciso dispor de um sistema de escolha colectivo (poder legislativo), de um procedimento de resolução de conflitos (poder judicial) e de um poder executivo, aceite, com mais ou menos gosto, pelo maior número. Estes poderes podem estar concentrados nas mãos de um só (tirania) ser partilhados no seio de uma classe particular de indivíduos (aristocracia ou oligarquia) ou devolvidos ao povo inteiro (democracia).

 

A democracia aparece assim como um sistema cuja instituição prática não é evidente, porque verdadeiramente não óbvio o modo como “o povo todo inteiro” pode governar. A saída mais provável para este dilema é que, sob a aparência de uma democracia “representativa”, na realidade o poder seja exercido por uma “classe política” que escapa, em menor ou maior medida, ao controlo do povo. As nossas pretensas “democracias” podem funcionar na realidade como “oligarquias”. Podemos acomodar-nos a esta situação e considerar a democracia como uma utopia estéril, ou então, procurar corrigir esta inclinação natural para a oligarquia e esforçarmo-nos por tender para a democracia. Porquê esforçarmo-nos nesse sentido? Para procurar garantir que todos os membros da sociedade reconheçam a legitimidade das leis e que aceitem pacificamente as escolhas colectivas, mesmo quando elas são desfavoráveis aos seus interesses particulares. Se um conjunto de cidadãos tiver fundamento para pensar que o poder foi apropriado por uma categoria de indivíduos particulares e não tem, em consequência, nenhuma oportunidade de fazer ouvir as suas aspirações, esses cidadãos podem ser levados à rebelião e à secessão. Uma categoria excluída da partilha do poder não tem nenhuma razão para acatar a lei da maioria; não tem qualquer razão para votar, a não ser que seja num movimento populista ou fascizante que canalize as frustrações e a rejeição do sistema. Esforçar-nos por tender para a democracia (19) é, pois, preservar a adesão mínima de todos à comunidade que faz de nós um povo. Pelo contrário, tolerar uma deriva oligárquica é promover a “dissociedade” - a dislocação (19a) da sociedade em comunidades rivais, a atomização do povo numa multidão de indivíduos em luta – é ameaçar a paz civil e, finalmente, favorecer ascensão de movimentos antidemocráticos.

 

Esses são precisamente os perigos a que nos expõe hoje a nova direita que rejeita claramente as instituições, as práticas e as políticas que seriam necessárias para combater a deriva oligárquica no sentido da dissociedade.

 

A fim de nos aproximarmos de uma democracia é necessário instituir alguns princípios de base:

 

- Um princípio de soberania: o povo é o único soberano que determina as escolhas políticas essenciais, seja directamente, seja por intermédio de representantes eleitos.

 

- Um princípio de responsabilidade: os eleitos e os governos prestam regularmente contas sobre o uso do seu mandato popular, cumprem programas que propõem antes da eleição, têm em conta, no decurso dos mandatos, a aprovação ou a sanção expressa pelo povo por ocasião de eleições intermédias.

 

- Um princípio de partilha e de equilíbrio dos poderes: há que evitar a concentração de poderes numa só pessoa ou instituição, criando contrapesos que impeçam os abusos de poder.

 

-Um princípio de coesão social (ou de igualdade): o governo de maioria é exercido no respeito dos direitos das minorias; as desigualdades sociais são contidas a fim de evitar que alguma categoria da população se considere excluída da comunidade política.

 

O respeito destes princípios carece ao mesmo tempo de instituições adequadas, uma prática da política e eleitos animados por uma ética ou um “espírito” democrático. Ora, precisamente, em relação a estes princípios, as nossas instituições e as nossas práticas políticas sofrem de um sério deficit democrático que é urgente colmatar.

 

A necessária “revolução democrática”

 

As nossas instituições nasceram (em 1958) no contexto de uma grave crise do Estado que justificou um reforço inédito do poder executivo. Daí resultou um regime político que acumula defeitos ausentes de todas as outras democracias ocidentais. Estes defeitos básicos da Vª Republica são bem conhecidos: concentração anormal dos poderes nas mãos do Presidente da República; poder de controlo insuficiente do Parlamento; partilha do executivo entre o Presidente e o Primeiro-Ministro, com risco de colisão em caso de co-habitação; cúmulo dos mandatos, etc.. Uma vez eleito o Presidente, e quando dispõe de uma maioria parlamentar, pode comportar-se como um quase monarca irresponsável. Não é este o lugar de refazer a história da Vª Republica, mas toda a gente sabe que a prática da vida política e da função presidencial, qualquer que seja orientação do poder instalado, agravou o deficit democrático em lugar de atenuá-lo.

 

Este inconveniente foi ainda acentuado pela evolução da construção europeia, já que, pouco a pouco, uma parte crescente das leis, regulamentos e políticas é determinada pelas directivas europeias, que escapam a todo o controlo efectivo dos cidadãos europeus. Por outro lado, desde os anos 1990, com o mercado único, depois a criação da moeda única, a Europa impôs aos Estados a convergência das políticas económicas num sentido cada vez mais conforme com os dogmas do neo-liberalismo: rigor monetário e orçamental, prioridade à desinflação em detrimento do apoio ao crescimento e ao emprego, privatizações e abertura dos serviços públicos à concorrência.

 

Para que serve votar quando os deputados eleitos não têm qualquer poder de orientação das políticas que são decididas noutro lado? Para que serve votar quando a direita e a esquerda conduzem, por toda a Europa, a mesma política, seja qual for o resultado das eleições? O povo já não é realmente soberano, os eleitos são irresponsáveis, a desconfiança em relação ao sistema político instalou-se e, por toda a parte na Europa, se verifica o progresso da abstenção ou o voto numa extrema-direita nacionalista, xenófoba e anti-europeia.

 

Em França, o regresso de uma alternância política em 1981, depois de um quarto de século de governos de direita, só por breves instantes voltou a dar corpo à democracia, a qual supõe, pelo menos, uma orientação política alternativa, ou seja, a possibilidade de optar entre dois projectos. Rapidamente caímos na alternância sem alternativa. Desde 1981, todos os que estão de saída foram batidos em eleições e todos os novos governos obedeceram, em maior ou menor medida, ao credo neo-liberal. No mesmo período, tanto o desemprego como os rendimentos das aplicações financeiras não cessaram de aumentar. Os franceses condenaram sistematicamente, em cada escrutínio, a orientação neo-liberal das políticas económicas, mas em vão. Esta alternância política sem alternativa esbateu de forma duradoura a clivagem esquerda-direita, alimentou a desconfiança em relação aos principais partidos políticos e consolidou a posição da extrema-direita.

 

O governo Jospin (1997-2002) tentou voltar a dar sentido à alternativa política e ensaiar uma primeira ruptura com o neo-liberalismo ambiente, e vimos já que o balanço da sua política foi incomparavelmente menos mau do que o dos seus sucessores. Mas não pôde sustentar o braço de ferro com o neo-liberalismo a nível europeu. Também manteve a nebulosidade da clivagem esquerda-direita com as privatizações e as baixas de impostos sobre o rendimento. A sua campanha de candidato presidencial declarando “o meu projecto não é socialista” acabou por alienar definitivamente uma boa parte dos eleitores de esquerda. Finalmente, o balanço globalmente satisfatório mascarou uma deterioração das condições de vida das classes populares a que o governo Jospin não prestou suficiente atenção. Portanto, por múltiplas razões, o facto é que o governo Jospin não conseguiu responder adequadamente à expectativa de um outro modelo. Uma fracção importante dos franceses hostil ao neo-liberalismo, já não encontrando na esquerda uma saída credível à sua desorientação, preferiu a abstenção ou o voto de protesto nos extremos. Resultado: a presença do líder populista na segunda volta da eleição presidencial privou os cidadãos do confronto e escolha entre duas políticas económicas e sociais, entre dois projectos de sociedade. A direita ganhou por falta de um verdadeiro adversário, sem combate, e com o apoio massivo da esquerda ao seu candidato, Jacques Chirac. Então, e regressaremos aí, o maior erro da direita – erro contra a República e contra democracia – foi o de responder ao espírito de responsabilidade republicana dos eleitores de esquerda impondo-lhes a mais radical viragem à direita desde o fim da Segunda Guerra mundial. Mas, antes de voltar aí, sopesemos devidamente a dimensão da crise política manifestada pelo voto de 21 de Abril de 2002. Nesse dia, no escrutínio que marca o tempo mais forte da nossa vida pública, 60% dos franceses disse “não” aos partidos do governo, abstendo-se ou votando nos extremos. Este movimento de desconfiança e de rejeição foi particularmente forte nas camadas sociais mais desfavorecidas, as mais pobres e mais atingidas pelo desemprego e pelo trabalho precário. Isto significa que o nosso regime permite a alternância no poder de uma classe política que nem sequer representa metade dos cidadãos: a imensa maioria dos franceses considera que os governantes não os representam e não se ocupam deles. A ligação entre esta crise do político e a insegurança social é inegável. Um grande número dos nossos cidadãos está em estado de secessão com a comunidade política, porque se encontra, de facto, excluído da partilha das riquezas com que se empanturram os ganhadores do sistema. A este deslaçamento do vínculo social por baixo acresce um abandono da parte de cima da sociedade: a reticência crescente dos mais favorecidos a assumir o custo de todos no progresso, a sua resistência ao pagamento dos impostos e dos encargos com a educação, a habitação, a saúde e as indemnizações de desemprego dos outros.

 

Não é possível deixar de fazer o paralelo entre a mutação do nosso modelo de crescimento e a do nosso modelo político. Sublinhei acima que, hoje, a nossa economia parece em condições de prosperar dispensando uma boa parte da população. Esta situação de facto incita muito logicamente os mais cínicos de entre nós a apoiar um novo modelo social no seio do qual cada um só conta consigo mesmo e jamais com o que é comum para garantir o bem-estar colectivo. Porque razão pagar pelos inúteis?

 

Ora, um objectivo essencial do político, em democracia, é precisamente combater esta tendência à secessão e preservar a comunidade política impondo a solidariedade social. Mas o já longo descrédito do político face à exclusão social instalou a desconfiança: uma larga parte das camadas populares não acredita no discurso político. A partir desta situação, mesmo a esquerda deixa de ter credibilidade para incarnar a luta contra a exclusão social e tem a maior dificuldade em obter o apoio eleitoral que lhe permitiria desenvolver esta luta. Encontramo-nos, assim, num sistema paradoxal onde a fracção da população que teria a maior necessidade de uma política diferente já não participa na escolha dos políticos.

 

O maior perigo para a democracia é que uma nação pode viver, por uns tempos, com este paradoxo. Tal como a economia pode acomodar uma situação em que o trabalho e sobreconsumo dos ricos compensam a exclusão dos pobres, o nosso sistema político pode muito bem funcionar com uma participação limitada a uma minoria de cidadãos que ainda mantenha nisso algum interesse. Essa é a dissociedade que tende a substituir a nossa sociedade. É um país onde coexistem três mundos: o dos “incluídos” que tiram partido do sistema e monopolizam o poder de decisão política; os “excluídos”, inúteis para o primeiro mundo e sobrevivendo como podem, e um “entre dois mundos” de precários, úteis para o primeiro mundo mas submisso às suas exigências, por medo de cair na exclusão.

 

Uma ordem social pode assim instalar-se, mas não a coesão social que mantém cada um e todos os cidadãos unidos numa comunidade política. É sempre possível salvar as aparências da democracia – preservando as liberdade públicas (eleições livres, liberdade de expressão, etc.). Mas a substância da democracia esvai-se quando apenas uma minoria aproveita destas liberdades. Se uma outra minoria ou uma enorme maioria nada obtém de uma ordem social que a mantém à margem da sociedade, então o campo fica aberto para grandes desordens e para os inimigos da democracia.

 

Com o termo programado da coesão social é o último (mas não o menor) dos princípios fundamentais da democracia que fica desfeito, após os princípios da soberania, da responsabilidade e do equilíbrio dos poderes.

 

É por isso que se torna necessário comprometermo-nos numa “revolução democrática” da qual defini, noutras obras, os principais contornos (20). Revolução das instituições que nos conduzirá para uma VIª Republica parlamentar onde um Primeiro-Ministro exercerá o poder executivo sob controlo de um Parlamento com poderes alargados e onde os cidadãos serão dotados de um novo poder de iniciativa, de participação e de controlo. Revolução das práticas, com o exercício de uma verdadeira responsabilidade política que exija, no mínimo, o respeito do mandato inicial conferido pelos eleitores e da sanção eventual expressa nos escrutínios intermédios. Revolução na construção europeia com a elaboração de uma nova constituição que dê aos cidadãos e aos seus deputados um real poder de orientação das políticas comunitárias. Revolução, finalmente, nas políticas públicas para reduzir as desigualdades e restaurar a coesão social.

 

E agora: a Vª República no seu pior

 

É certo que não é apenas a direita que está em causa. Não dissimulo a responsabilidade da esquerda na erosão dos princípios democráticos. A esquerda criticou muitas vezes o nosso sistema político, mas nunca se empenhou verdadeiramente na sua reforma. Sobre este ponto, porém, extraindo as lições do electo-choque do 21 de Abril, o Partido Socialista evoluiu. Os socialistas pronunciam-se hoje, sem ambiguidades, por uma nova república parlamentar e a candidata socialista à eleição presidencial reivindica a necessidade de uma “revolução democrática”. Os eleitores, porém, escaldados pela experiência passada, têm seguramente razões para serem cépticos e preferem reservar o seu julgamento sobre este tema, esperando para ver como a nova orientação será efectivamente executada pelos socialistas. Hoje é ainda a direita que está no poder e foi ela que teve a oportunidade e os meios de responder à crise do 21 de Abril de 2001. Esperando até ver o que fazem os socialistas, sabemos, desde já, o que a direita faz e pensa verdadeiramente sobre esta matéria. O que é que a direita fez para refundar a democracia? Em matéria de instituições políticas: Nada! E nas sua práticas política: o contrário do que se impunha.

 

Na realidade, para a direita, as nossas instituições são quase ideais porque elas permitem governar sem controlo parlamentar efectivo e autorizam um funcionamento de tipo monárquico. A força da Vª República assentava no encontro entre o carisma próprio de um homem e o povo da França. O governo tem a missão de o traduzir em decretos e projectos de lei e o Parlamento é apenas a câmara de registo das políticas governamentais. Para a nova direita, herdeira do gaulismo, é necessário preservar, e mesmo acentuar, esta natureza específica do regime político porque vivemos numa época de mutação económica e social que grande parte dos franceses recusa. Restituir realmente maior poder aos cidadãos é correr o risco de reforçar a resistência política de uma base hostil às “adaptações necessárias”.

 

Mais claramente, a direita sabe que não poderá impor a privatização de todos os bens públicos, o desmantelamento do código do trabalho e a redistribuição dos rendimentos em favor dos mais ricos e do capital, se tiver que contar, para isso, com o apoio da maioria dos cidadãos. Não é possível contar com ela para restabelecer o equilíbrio em favor dos parlamentares e dos cidadãos. O projecto de M. Sarkozy é, pelo contrário, o de reforçar o papel já extravagante do Presidente da República na condução das políticas nacionais. M. Sarkozy encara inclusivamente a possibilidade de conservar, se for eleito, a presidência da UMP (21). Em suma, M. Sarkozy tem a intenção de acumular os poderes efectivos de Chefe de Estado, de Primeiro-Ministro e líder do partido da maioria. O ideal institucional da nova direita é a Vª República, mas para pior.

 

O único dado que perturba verdadeiramente a direita, no funcionamento recente do nosso sistema político, é a subida a extrema-direita. Preocupação, aliás, legítima à qual poderia encontrar-se uma solução democrática, agindo em cinco direcções: uma dose de proporcionalidade que desse à Frente Nacional, como aos outros partidos políticos, a possibilidade de ter uma representação no Parlamento; políticas capazes de fazer recuar a insegurança social e os atentados violentos contra as pessoas; uma comunicação pública massiva sobre os benefícios e a necessidade da imigração; uma acção eficaz com vista à integração dos imigrantes e dos seus filhos; a repressão da discriminação racial. Compreende-se que esta via democrática não seja simples: ela exige uma real solução às preocupações e frustrações que alimentam o extremismo e o reforço das pretensões dos protestatários a serem representados. Esta via democrática não é algo que a direita possa encarar. Ela não pretende eliminar a angústia das camadas populares face à insegurança social e à insegurança geral, porque a sua política repousa sobre a insegurança e não pretende pôr um termo à violência sobre as pessoas. Nestas condições, oferecer melhores possibilidades de representação política aos eleitores frustrados seria equivalente a abrir uma avenida à Frente Nacional. A direita prefere uma outra solução, realmente mais simples: fazer um discurso semelhante ao da Frente Nacional em matéria de segurança e de imigração e oferecer, no seio da UMP, oportunidades de carreira aos quadros arrependidos do partido de Le Pen. Em suma: corromper os eleitores e os elegíveis da FN para proceder à sua progressiva absorção no seu seio. Eis o que deveria suscitar a indignação dos gaulistas se é que ainda os há. De facto, o General De Gaulle dificilmente imaginaria que os seus herdeiros abrissem as suas portas aos herdeiros da OAS!

 

Se a direita se mostra assim sensível aos apelos à repressão policial e à perseguição dos imigrantes, ela pratica a surdez integral para com a reivindicação constante e maioritária da população de uma outra política económica e social. Neste domínio, o Presidente Jacques Chirac deixou-nos o mais belo exemplo de desprezo pelo voto popular e pelo princípio de responsabilidade política.

 

O soberano desprezo pelo povo soberano

 

Em 1995, Chirac é eleito na sequência de uma campanha de tonalidade resolutamente de esquerda. Julga que, prioritariamente, deve cortar a erva debaixo dos pés da oposição, que tem dificuldade em recompor-se da sua derrota eleitoral de 1993 (ela deixa a recordação recente da subida do desemprego e o rigor imposto em nome dos compromissos europeus). Promete, por isso, como primeira prioridade, a luta contra a “fractura social” (22), toma as suas distâncias críticas para com os constrangimentos europeus e explica que “não é o deficit público que faz subir o desemprego mas o inverso” (contrariando assim a doutrina do seu concorrente Edouard Balladur). Esta operação de marketing político obtém um franco êxito. Mas, três meses depois da sua eleição, Jacques Chirac faz exactamente o contrário daquilo que havia anunciado: dá prioridade ao rigor orçamental por respeito dos compromissos europeus! Neste contexto de um monumental e brutal logro, os planos Juppé de reforma da protecção social desencadeiam um vasto movimento de greve em Dezembro de 1995 e o governo perde toda a credibilidade. Em 1997, Chirac tenta sair desta situação pronunciando a dissolução da Assembleia Nacional. Em democracia, esta decisão só pode ter um significado: perante os protestos de rua e as dificuldades do seu governo o Presidente pede aos franceses que lhe renovem a confiança. Em resposta a este pedido, os franceses elegem uma maioria de esquerda! A mensagem não pode ser mais clara, mas Jacques Chirac continua no Eliseu! Em qualquer outra democracia ocidental este comportamento afigurar-se-ia assaz bizarro, porque se considera que num caso como este, o espírito da democracia implica a demissão. Jacques Chirac veio a confirmar mais tarde a sua concepção muito pessoal do alcance de uma consulta aos cidadãos em democracia. Com efeito, em 2005, ele pede aos franceses que votem “sim” ao Tratado que estabelecia uma Constituição europeia. Em 29 de Maio de 2005, os franceses respondem “não” numa percentagem de 55%, o que deixava ao Presidente duas opções: submeter-se a este voto, isto é, adoptar a posição maioritária no País e tomar rapidamente medidas para renegociar o Tratado sobre novas bases, ou demitir-se. Jacques Chirac, como se previa, decidiu ficar, mas continuar insubmisso à vontade popular que não pretende respeitar. A única coisa que respeita é o seu soldo de Presidente! Será preciso lembrar que o General De Gaulle, quando consultava os franceses por referendo, comprometia o seu mandato de Presidente? E quando, em 1958, os franceses lhe disseram “não” ele foi-se embora. Seria, em De Gaulle, tanto ou mesmo mais um efeito do seu sentido da honra do que do seu sentido da democracia? Não se sabe. Com Chirac, esta questão já nem sequer é discutida, os dois sentidos estão confundidos e só fica o bom velho sentido da gamela!

 

Lembrei anteriormente as condições em que Jacques Chirac obteve o seu segundo mandato: eleito em 5 de Maio de 2002, sem qualquer debate sobre o seu projecto político, por 82% dos sufrágios, dos quais metade eram de eleitores de esquerda! M. Chirac não recebeu, portanto, nenhum mandato popular para se comprometer com uma reorientação radical das políticas económicas e sociais.

 

A situação exigia: um espírito republicano de pacificação das relações sociais; uma política de compromisso que tivesse em conta a diversidade dos eleitores com cujo voto o Presidente obtivera o seu mandato; a abertura de um debate público abortado sobre o nosso modelo social; uma atenção prioritária às dificuldades das camadas populares que manifestamente se acham cada vez menos representadas pelos grandes partidos.

 

Em vez de tudo isto, desde os primeiros meses da legislatura, as prioridades da nova direita consistem em enriquecer os contribuintes ricos, abolir todas as políticas de emprego que haviam sido desenhadas pela esquerda e eliminar todas as protecções oferecidas aos assalariados pelo direito do trabalho, e a pôr em causa os fundamento do sistema de protecção social. Eleito por todos os republicanos deste país para barrar o acesso da extrema-direita, Jacques Chirac põe imediatamente em execução o programa de extrema-direita do patronato! O chamado “Presidente da República” comportou-se com a indecência e o descaramento de um chefe de bando – aproveitando-se de um acaso feliz para arrebatar o espólio em proveito de uma pequena minoria de aproveitadores. Sei bem que a maior parte dos eleitores de direita não vêem onde está o mal. O seu bom senso inclina-se para dizer: “A direita ganhou, portanto, ele põe em prática uma política de direita que não convém, claro está, aos socialistas e à CGT… nada de mais natural?”. Esta reacção, em todo o caso, compreensível, reflecte infelizmente até que ponto o entendimento e o sentido da democracia se desvaneceram. A democracia não é uma ditadura electiva na qual o chefe de Estado pode fazer o que lhe vier à cabeça a partir do momento em que foi eleito. Numa democracia, mesmo muito imperfeita, supõe-se que os eleitos validam um projecto político após um debate público contraditório suficientemente desenvolvido para que possa considerar-se que a maioria realmente “escolheu” um projecto de governo. Em 2002, este debate não ocorreu e seria totalmente insensato pretender que os eleitores mandataram claramente um governo para virar do avesso o nosso modelo social.

 

Poderá objectar-se que, em 21 de Abril de 2001, os franceses mostraram a sua desaprovação do governo anterior, repudiando o candidato que o representava logo à primeira volta e que isso autoriza o novo governo a praticar uma política diferente. Uma “política diferente”? Sim, sem dúvida. Uma transformação radical do modelo social sem nenhum debate prévio? Certamente que não. Suponhamos que a direita tomou este caminho porque pensava sinceramente ter a legitimidade necessária para tanto, após a derrota eleitoral da esquerda. Mesmo nesse caso, uma direita democrática deveria sempre respeitar o voto dos eleitores que ao mesmo tempo rejeitara igualmente a sua política. Porque, por três vezes, os franceses haviam rejeitado a política neo-liberal: em Março de 2005 (regionais), em Junho de 2004 (europeias) e em Maio de 2004 (referendo). E a sanção foi massiva. Em 2004, todas as regiões de França, apenas com uma excepção, passaram a ter uma presidência socialista e nunca os socialistas haviam obtido tantos lugares no Parlamento europeu! Tudo isto indica retrospectivamente que, em 21 de Abril, os eleitores que não votaram em Lionel Jospin não exprimiam a sua rejeição das políticas socialistas, mas a sua desconfiança num candidato cujo projecto “não era socialista”, um candidato que procurava reunir o centro, no momento em que os eleitores esperavam uma reacção mais forte ao neo-liberalismo. Mostra também que as reformas neo-liberais instituídas pela direita (reformas, seguro de doença, direito do trabalho, redistribuição em favor dos altos rendimentos) são rejeitadas pela maioria dos franceses. Se pudesse haver qualquer dúvida sobre a mensagem enviada pelos eleitores na Primavera de 2002, já não poderá ser esse o caso desde 2004. Os franceses não querem o liberalismo imposto sem mandato democrático, sem debate público e sem diálogo social. Mas isso pouco importa para a nova direita arrogante e anti-democrática no poder: a sua única resposta à indiscutível rejeição da sua politica consistiu em prosseguir na mesma direcção.

 

Depois da avalanche das derrotas eleitorais, os sucessivos Primeiros-Ministros (MM. Raffarin e Villepin) levarão mesmo a arrogância até explicar que compreenderam bem a mensagem dos franceses, resumindo assim a sua substância: “Os Franceses querem que avancemos mais depressa e mais longe na nossas reformas”. Eis aí um teorema alucinante da ciência política: os eleitores votam massivamente contra a maioria no poder para encorajar o governo na condução da mesma política ainda com maior determinação! Estão a brincar?

 

E não contente com o desmantelamento do nosso código do trabalho e do nosso modelo social sem o assentimento popular e sem negociação prévia com os sindicatos, esta direita autoriza-se ainda a fazê-lo por decretos sem qualquer debate parlamentar. Determinada em usar apenas a força, nem sequer se embaraça com as aparências da democracia.

 

Esta deriva autocrática do poder é uma outra “excepção francesa”. Sejam quais forem as suas insuficiências, todas as democracias ocidentais praticam, pelo menos, um princípio de responsabilidade política mínima: um fracasso eleitoral implica sempre alterações nas políticas e nas equipas governamentais incumbidas de as levar à prática. Em França, a prática política da direita distingue-se hoje pelo seu soberano desprezo pelo povo soberano.

 

Da democracia social à “ditadura do patronato”

 

Talvez me seja objectado a este respeito que a direita deu um pequeno passo democrático adoptando uma lei para “a democracia social” (lei Fillon de 4 de Maio 2004). Deixemos de sonhar. Nesta matéria, como em todas as outras, a direita segue a mesma lógica e a mesma estratégia de comunicação: avança um vocabulário progressista de esquerda para mascarar e maquilhar o seu modelo neo-liberal e neo-conservador. Assim, elabora uma lei sobre a “igualdade das oportunidades” que nada propõe para reduzir as desigualdades económicas e sociais; vota uma lei para a “prevenção” da delinquência em que só prevê medida repressivas. A lei para a “democracia social” não escapa a esta regra.

 

Em que consista verdadeiramente a democracia social? Ela supõe, como prevê o projecto socialista, que um acordo assinado entre patrões e sindicatos só possa ser validado se for “maioritário”, isto é, se for assinado por todos os sindicatos que, pelas eleições profissionais, representem a maioria dos sindicatos. Ora, que prevê a lei Fillon? O contrário da democracia: o acordo é considerado maioritário se for assinado por uma maioria de sindicatos, seja qual for o número de assalariados que eles representem! Como sublinha Gérard Filoche: “É como se na Assembleia Nacional uma lei fosse adoptada em função do número do grupos parlamentares que a apoiam e não em função do número de deputado que a votam” (23).

 

Por outro lado, outra condição da democracia consiste na regra de que a decisão pela maioria se aplica por igual a todos os membros da comunidade. Se o que é decidido pela maioria puder depois ser modificado livremente em benefício ou em detrimento de alguns, em função de determinadas relações de força, o princípio de uma sociedade democrática fica destruído: os indivíduos deixam de ser cidadãos iguais em direitos que respeitam a lei decidida pela maioria; são indivíduos desiguais regidos pela lei do mais forte.

 

Ora, a lei Fillon para a “democracia social” vem abolir também esta outra condição da democracia. Ela prevê que um acordo de empresa possa derrogar um acordo de ramo mesmo quando seja mais desfavorável aos assalariados. Quer dizer, trocado por miúdos, que assalariados que exercem a mesma profissão, no mesmo sector de actividade, com uma qualificação e experiência idênticas, podem ter direitos diferentes mesmo quando os patrões e os sindicatos assinaram um acordo que define direitos iguais para todos. O direito passa a aplicar-se apenas nas empresas onde a relação de forças impede o patrão de se subtrair à regra.

 

Mas não é tudo. O MEDEF reivindica uma regressão social ainda mais nítida. Exige que todo o assalariado possa assinar um acordo individual com o seu empregador que derrogue as disposições previstas nos acordos colectivos de trabalho ou na lei, num sentido ou noutro. Esta possibilidade já foi concedida no que toca à duração do trabalho: o assalariado pode dar o seu acordo para ultrapassar o contingente legal de horas de trabalho extraordinário e reduzir o seu tempo de repouso ao mínimo. Uma nova legislação de direita permitirá ao governo generalizar esta nova concepção da liberdade: os assalariados devem ser livres de renunciar aos seus direitos, o contrato deve sobrepor-se à lei. O trabalhador pobre que se arrisca ir para a rua se perder o seu emprego é assim “livre” de recusar ou aceitar o que o seu patrão lhe pede. Esta liberdade é aquela que oprime. Aquela que expõe o fraco ao domínio e à humilhação do forte, aquela que todos os filósofos liberais baniram em favor da igual liberdade conferida a todos pela lei democrática.

 

Se o contrato pode abolir a lei, deixa verdadeiramente de haver lei. Esta “democracia social” de direita é a restauração da violência bruta nas relações sociais. A lei já só intervém para reprimir os desviantes que não respeitem os contratos “livres”. Dito de outro modo, a lei serve unicamente para colocar o poder de repressão estatal ao serviço das relações de força impostas pelos patrões. Esta é a conclusão lógica do processo de privatização do Estado.

 

A nova direita já não está longe do seu objectivo. Mais alguns anos serão bastantes para perfazer o edifício e, sobretudo, defendê-lo e colocá-lo ao abrigo de uma reforma que os eleitores não deixarão de exigir votando à esquerda. Consciente deste perigo, o patronato aguarda da direita uma nova reforma do direito social: nada mais, nada menos, do que a proibição de legislar em matéria social! Infelizmente não se trata de uma blague. A presidente do MEDEF preconiza “uma reforma da Constituição a fim de… permitir aos representantes dos empregadores e dos assalariados fixar as modalidades de aplicação dos princípios fundamentais do direito do trabalho, do direito sindical e da segurança social” (24). O relatório Chertier (2006) redigido para o governo de Villepin recomenda uma reforma análoga que consiste em proibir ao Parlamento que legisle na ausência de um acordo prévio dos parceiros sociais. Esta ideia está hoje a tornar-se de tal modo dominante à direita que virá certamente a inspirar uma nova reforma, se a direita continuar no poder. E, evidentemente, com a sua arte consumada de fazer passar uma regressão por um progresso, a direita justificará tal reforma pelos benefícios do “diálogo social”.

 

É certo que o diálogo social prévio deveria muitas vezes alimentar o debate público e o debate parlamentar. Mas, em democracia, não é a uma organização profissional que compete decidir e lavrar a lei comum. Só o povo é soberano e está legitimado para dar força de lei a escolha colectivas, seja por referendo, seja através dos seus representantes eleitos. É justamente este princípio fundamental que os neo-liberais e o patronato querem abolir em matéria económica e social. Eles afirmam, com efeito, que os cidadãos e os parlamentares são incompetentes para regular as questões técnicas a que só os profissionais são capazes de dar respostas adequadas. Deixemos, pois, os especialistas deliberar entre si e transformemos o Parlamento em câmara de registo do direito assim elaborado!

 

Compreendei bem que subscrever tal princípio é dizer adeus à democracia. Com efeito, esta ideia de que a ciência dos competentes pode decidir das leis que regem a sociedade é o ponto de partida de todos os totalitarismos. Se existe uma, e uma só, boa resposta às questões que se põem a uma sociedade, então essa solução deve ser imposta a todos com ou sem o seu consentimento. E uma vez que a massa não tem qualquer razão para se submeter de bom grado a um governo que lhe impõe leis que ela não validou, o próprio governo deve repousar sobre a força e não no consentimento. Devemos, portanto, compreender que a finalidade primária da democracia não é garantir a “melhor” das soluções teóricas a um problema, mas conduzir os cidadãos a aceitar espontaneamente as soluções resultantes de um processo de decisão cuja legitimidade reconhecem. Finalmente, nenhuma questão que ponha em jogo o bem-estar de, pelo menos, dois indivíduos pode ter uma solução científica indiscutível. Porque fica sempre a questão de saber como repartir as vantagens e os custos, ou seja, a questão da justiça. Na ausência de uma lei democrática, a questão da justiça só é decidida pela relação de forças isto é, pela guerra.

 

Será que você quer uma Constituição de direita?

 

Justificar pela “competência” o primado dos acordos profissionais sobre a lei é insensato e perigoso. Não é mais do que o argumento demagógico e anti-parlamentar habitual dos fascistas e de todos os inimigos da democracia. Mas se isso pode tranquilizar-vos, para a direita neo-liberal este argumento não é mais do que o disfarce exibido para dissimular uma motivação bastante mais trivial: proteger os interesses dos ricos e dos patrões contra as reformas sociais progressistas que a esquerda poderia instituir futuramente.

 

Com efeito, se a Constituição dispuser que a lei não pode intervir sobre o direito do trabalho sem um acordo prévio dos parceiros sociais e/ou que as modalidades de aplicação deste direito são determinadas por estes mesmos parceiros, então nenhuma maioria de esquerda poderá facilmente voltar a pôr em questão as reformas impostas pela direita; seria necessário proceder antes à revisão da Constituição. Dito de outro modo, este projecto visa, nem mais nem menos, que tornar as políticas de esquerda inconstitucionais! Trata-se de transformar a nossa Vª República, já insuficientemente democrática, numa Constituição de direita!

 

Imaginai, por um segundo, a situação dramática em que ficaríamos mergulhados se, na sequência de uma larga vitória eleitoral da esquerda, o governo ficasse impedido de aplicar o seu programa social porque a Constituição proíbe a modificação do código do trabalho enquanto o patronato recusar assinar novos acordos. Ou então, no caso de você ser de direita, que os franceses votam, numa percentagem de 70%, pelos deputados de direita e a nova maioria não pode aplicar uma reforma social porque a CGT e a CFDT recusam concluir um acordo com o patronato. Seria uma situação explosiva.

 

É, aliás, uma situação que já conhecemos com os tratados da União Europeia: uma maioria que reúna 80% dos deputados e 90% dos chefes de governo não pode fazer nada numa série de domínios (fiscais e sociais designadamente) que necessitam de uma decisão unânime. Uma das razões principais da rejeição da Constituição europeia era precisamente a de que este tratado, em vez de definir apenas os direitos fundamentais, queria fixar numa Constituição as regras de conduta e orientação de todas as políticas europeias. É certamente detestável que o resultado das eleições europeias possa não ter nenhum efeito sobre a orientação das políticas comuns. Mas sempre foi assim e a Europa não é o nosso país; este deficit democrático é lastimável mas já estamos habituados e não vemos sequer muito bem o que está em jogo. Por mais que o possamos deplorar, os cidadãos não esperam que o seu voto nas eleições europeias desempenhe um papel determinante. Neste contexto, o facto de o projecto de Constituição conferir alguns poderes suplementares aos cidadãos europeus pôde representar, para alguns, um progresso substancial que justificaria a aprovação da Constituição.

 

Mas tudo é muito diferente a nível nacional. Aí os eleitores esperam que o seu voto determine directamente a orientação do governo, muito particularmente no que respeita às políticas económicas e sociais. Se as reformas impopulares da direita jamais pudessem ser um dia reconsideradas (por ocasião de uma mudança da maioria) haveria, por certo, o desencadeamento de motins; porque, então, só a violência abriria a possibilidade de uma mudança real. Se os trabalhadores, já à beira de uma crise de nervos, não pudessem contar com um lei capaz de defender os seus direitos face ao poder dos patrões, com que mais poderiam contar? Com o sequestro dos dirigentes, a ocupação das fábricas, a destruição dos stocks! Os dirigentes contariam apenas com as tropas para desarmar os rebeldes… Ah, que magnífico regresso ao capitalismo sangrento do século XIX! É bom que isso não dê vontade de rir! É bem melhor que trocem dos loucos que querem impedir o Parlamento de estabelecer o direito do trabalho. Encarar a sério esta possibilidade de tornar inconstitucionais algumas políticas sociais é brincar com a ideia da guerra civil.

 

 

5

A direita contra a sociedade

 

Presentemente a direita governa não só sem o assentimento dos eleitores que, por três vezes, recusaram a sua orientação política, mas com a firme intenção de restringir futuramente a extensão dos domínios em que o assentimento dos representantes do povo é necessário. O modo de acção desta nova direita é muito claramente o de forçar a nota mesmo assumindo sem hesitar o risco de fracasso eleitoral. Nisso, aliás, e sem dúvida involuntariamente, a nova direita presta um pequeno serviço à democracia (e acessoriamente à esquerda). Rompendo claramente com o conservadorismo republicano da velha direita e multiplicando as reformas neo-liberais impopulares, a nova direita confere um novo relevo à clivagem esquerda-direita e, portanto, ao interesse do debate e do voto.

 

É certo que nos últimos meses que precederam as eleições da Primavera de 2007, os velhos reflexos do marketing político funcionaram. Assim, por exemplo, o governo que havia recusado as emendas socialistas em favor do direito à habitação, anuncia subitamente um projecto de lei nesse sentido, para atenuar o efeito desastroso de uma vasta operação de campismo selvagem dos sem-abrigo nos cais das grandes cidades. O presidente da UMP, Nicolas Sarkozy (que havia recusado inscrever o direito à habitação no seu programa eleitoral), coloca a sua campanha sob o signo da recusa da “capitulação social” – versão recauchutada da “fractura social” que tão bem havia servido a Jacques Chirac.

 

Todavia, se exceptuarmos esta última camada de laca social, aplicada à pressa sobre a política mais anti-social conduzida desde há um século, no conjunto da legislatura 2002-2007, a direita nunca se deu ao trabalho de praticar um marketing eleitoral de curto prazo. Bem pelo contrário, como sublinhámos, durante perto de cinco anos, a direita nunca alterou o seu rumo, apesar de recusada diversas vezes pelo voto dos eleitores. Ela sabe que procedendo assim se arrisca a facilitar o regresso da esquerda ao poder, mas esta eventualidade não a perturba, porque acredita que a esquerda não terá a coragem de voltar atrás com as reformas liberais introduzidas. O essencial manter-se-á, pensa ela, e ao fim e ao cabo, a esquerda, descredibilizada pela sua pusilanimidade, será de novo derrotada e a direita retomará o poder para prosseguir a sua obra, que representa hoje a sua grande tarefa, mais importante do que a manutenção imediata do poder.

 

Como pode existir esta enorme dedicação a uma “obra” que – como demonstrámos abundantemente – tem todo o ar de se traduzir numa catástrofe para o desenvolvimento económico, para o emprego, para a segurança das pessoas, para a paz social e para a democracia? Muito simplesmente porque este conjunto de finalidades se apresenta como secundário, e inclusivamente mesquinho, em relação à grande ambição da nova direita que conta entrar na história por ter operado a grande “ruptura” (cara a Nicolas Sarkozy), aquela que terá colocado a velha França no caminho de uma sociedade nova, uma sociedade de mercado aberta, uma sociedade de indivíduos autónomos e responsáveis, uma sociedade emancipada do Estado jacobino e do igualitarismo herdados da Revolução Francesa.

 

Incompetência, cinismo ou projecto de sociedade?

 

A nova direita inscreve-se na linhagem directa de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, que desencadearam a revolução neo-liberal dos anos 1980. O facto de que ela cumpre o seu grande desígnio com trinta anos de atraso sobre a América e a Inglaterra não tornará o seu feito menos glorioso, já que a França incarna precisamente, desde há três séculos, a antítese do modelo anglo-saxónico. Aos olhos da posteridade, a direita francesa deste começo de século ficará com a glória de ter feito algo de excepcional: ter posto um termo à excepção francesa.

 

Tais são os sonhos de grandeza que alimentam os líderes da nova direita. Estes líderes distinguem-se muito nitidamente dos seus pais porque abjuraram a religião do serviço do Estado e da Nação, renunciaram definitivamente ao pragmatismo e tornaram-se devotos de uma ideologia, no verdadeiro sentido do termo: um conjunto coerente de valores e de crenças que fundam um sistema geral de interpretação do mundo, da sociedade e da história.

 

Uma correcta consideração da dimensão ideológica de todo o compromisso político oferece-nos finalmente uma saída ao dilema interpretativo com que, por diversas vezes, nos deparámos: será que a direita é ignorante e incompetente ou é cínica e ao serviço dos ricos? Talvez que a resposta seja: nem uma coisa nem outra. Se a direita procurasse o crescimento, o pleno emprego, a segurança e a paz civil, poderíamos dizer seguramente que ela padece de uma gravíssima incompetência. Mas não é esse o caso. A nova direita sabe perfeitamente o que faz, traça o seu caminho sem fraquejar, sabendo para onde quer ir e sem se deixar impressionar com os redemoinhos insignificantes que são o marasmo económico, o desemprego, a insegurança social, a violência incivil, que se formam no pico da vaga da História (com H grande) que nos conduz ao mundo novo.

 

Este mundo é particularmente favorável aos ricos, aos detentores do capital financeiro e humano. Deve deduzir-se daí que a nova direita é exclusivamente composta por um bando de piratas cínicos ao serviço dos privilegiados? É verdade que se comportam assim, mas isso não prova que o façam em plena consciência e por essa razão! Por mim, julgo que eles agem, a maior parte das vezes, por fidelidade a uma ideologia, o que significa que julgam agir em nome da verdade e fazer aquilo que, ao fim e ao cabo, será conforme ao bem comum e ao sentido da História. O cinismo é uma explicação preguiçosa dos comportamentos humanos. Ela não toma em conta duas características muito importantes do ser humano: é um facto universal que o ser humano percebe o sofrimento dos outros como um mal e tem, além disso, necessidade da estima de si. Cada um de nós pode comportar-se como um canalha, mas é difícil que deixe de crer que age por uma razão estimável.

 

Alguns dos meus amigos de esquerda poderão julgar que eu procuro aqui encontrar uma justificação para um comportamento injustificável. Mas eles cometem, por seu turno, o erro desta direita, que recusa explicar a violência para evitar justificá-la. Seja dito mais uma vez: explicar serve apenas para compreender e permitir agir. Ora, no caso vertente, a minha finalidade é prevenir dos perigos mortais que a nova direita faz pesar sobre a sociedade. É por isso que me interesso também pelas intenções e pelas crenças que animam esta direita: estas crenças e estas intenções são partilhadas por uma larga parte dos eleitores que votam à direita e, dado que a minha finalidade é a de dissuadi-los de o fazer, devo convencê-los de que estas “intenções” são más e estas “crenças” são falsas.

 

Uma concepção errónea e mutiladora do ser humano

 

Todo o pensamento político assenta num certa ideia da natureza humana que funda, por sua vez, uma certa ideia da sociedade. Um exame rigoroso dos fundamentos do pensamento neo-liberal implicaria a articulação de um grande número de hipóteses antropológicas e filosóficas que exorbitam do âmbito desta obra (25). Cingir-me-ei aqui ao essencial.

 

Os neo-liberais partilham a concepção mais comum no pensamento moderno: o ser humano é um “indivíduo” autónomo que age e pensa por si mesmo, independentemente da sociedade. A simplicidade aparente desta afirmação mascara o seu completo absurdo, se devêssemos tomá-la à letra. Na realidade ninguém acede à capacidade de ser, de pensar e de agir, por si mesmo, senão graças aos outros, começando pelos seus pais. Ninguém nasce já fabricado (pronto a agir e a pensar) antes da sociedade na qual aparece! A autonomia em sentido absoluto não existe: ninguém pode sustentar que as regras de vida e de pensamento que se dá não dependem minimamente do meio familiar e social em que cresceu, antes de conquistar, pouco a pouco, uma relativa independência.

 

O erro fundamental mas largamente inconsciente ou impensado dos neo-liberais é o de adoptar uma concepção individualista do ser humano na sua versão mais radical e por isso mais tonta; daí deduzem até ao maior absurdo as consequências lógicas de um entendimento absoluto da autonomia individual.

 

O indivíduo, perfeitamente autónomo, aparece como único responsável pelas suas escolhas, pelos seus actos, pelo curso da sua vida e pela sua situação social. A sociedade não é responsável por coisa nenhuma! Propriamente falando, não existem “desigualdades” sociais ou problemas “sociais”. Só existem “diferenças” entre situações individuais, que resultam, seja de desigualdades “naturais” de capacidade e de talento, contra as quais a sociedade nada pode fazer, seja de escolhas livres efectuadas pelos indivíduos; os que têm mais vantagens não são “privilegiados”, mas indivíduos que devem a sua vantagem ao seu talento ou aos seus esforços pessoais. A autonomia absoluta induz deste modo uma concepção tautológica e insensata da liberdade; tudo o que um indivíduo faz, fá-lo voluntariamente, pois senão teria feito outra coisa. Por exemplo, só há desempregados “voluntários” porque eles teriam sempre a liberdade de fazer outra coisa (baixar as suas pretensões salariais, aceitar os empregos disponíveis, desistir de encontrar emprego, suicidar-se…!); estão no desemprego porque “preferem” esta situação às outras situações possíveis (a morte, por exemplo). Não é para rir! É exactamente assim que a teoria neo-clássica (sobre a qual repousa o culto neo-liberal da livre concorrência) trata o desemprego.

 

Se descermos à terra, os seres humano reais nunca são indivíduos autónomos em sentido estrito; são sempre inteiramente constituídos pelas suas relações e pelos seus vínculos com os outros. A formação definitiva e o funcionamento do cérebro da criança são inteiramente dependentes da comunicação entre o recém-nascido e a sua mãe, depois dos laços tecidos com todo o ambiente que o envolve (na família, na creche). A “personalidade” constrói-se nos laços com os outros, num contexto cultural local influenciado pelas convenções, pelas crenças, pelas dificuldades da história própria em termos gerais. Assim, exactamente ao contrário do que pensam os neo-liberais, originariamente, o indivíduo não é responsável por coisa nenhuma e a sociedade é, para com ele, responsável por tudo! Só os cuidados, a educação, as normas e os direitos fornecidos pelo envolvimento social do indivíduo o podem conduzir ao estado adulto de responsabilidade pelos seus actos. Mas a sociedade nunca pode exonerar-se definitivamente da sua própria responsabilidade na construção e no devir de um ser que não pôde tornar-se naquilo que é independentemente dela e que não escolheu livremente, a sua família, o seu território, a sua língua ou a sua cultura.

 

Pode, assim, ter-se a medida da perversidade do discurso liberal sobre a liberdade individual: ele consiste em descarregar toda a responsabilidade sobre os pobres, as prostitutas, os delinquentes, os desempregados, os jovens rebeldes e libertar o resto da sociedade de toda a sua inelutável responsabilidade. Este discurso tem uma tonalidade sofística: ele ordena a cada um que seja responsável pelos seus actos para o dispensar de ser responsável pelos outros. Último avatar de redistribuição à moda liberal: a irresponsabilidade total é garantida a todos os ganhadores, visto que os perdedores são completamente responsáveis pela sua sorte.

 

Os neo-liberais levam assim até ao extremo a ideia moderna do indivíduo “racional”, isto é, mobilizando a sua razão para agir do melhor modo possível. No pensamento neo-liberal, a racionalidade implica o egoísmo absoluto: o indivíduo procura sempre e só o seu interesse. Isso não exclui nem comportamentos aparentemente altruístas para com os seus próximos, os seus amigos, nem mesmo actos caritativos para com estranhos. Mas mesmo nestes casos, trata-se sempre de obter algo em troca (a estima, o reconhecimento social, etc.). Podemos deplorá-lo, mas em vão; é a lei da natureza. A evolução das espécies é uma luta interminável pela sobrevivência e a selecção natural só deixa prosperar os indivíduos mais aptos na defesa dos seus interesses. Os humanos, como todos os outros animais, são, portanto, naturalmente rivais. São, por outro lado, particularmente dotados para a competição, já que dominaram todas as espécies. São, finalmente, agressivos e predadores se tal for no seu interesse e se nenhuma força exterior reprimir a sua pulsão. Assim, os liberais acreditam sinceramente que o estado de guerra económica permanente em que nos encontramos hoje é a coisa mais natural do mundo e não é, de modo algum, a consequência de escolhas políticas deliberadas. Não se pode fazer nada: a competição crescente é o sentido da história que está muito simplesmente inscrito nos genes.

 

Todavia, a realidade natural do ser humano é completamente diferente. Nós não somos indivíduos, átomos separados uns dos outros e fechados em si mesmos. Somos seres naturalmente sociais, biologicamente moldados pelos laços que nos unem aos outros, mesmo antes da fala e da cultura. Desde então, é impossível dissociar no homem a aspiração de sermos nós mesmos e para nós mesmos, de uma irresistível aspiração de sermos com e pelos outros. A experiência íntima de cada um de nós confirma-nos todos os dias que os laços são mais queridos do que os bens (mesmo que, infelizmente, e por vezes, só tomemos consciência plena desse facto na dor da separação). A interpretação neo-liberal da selecção natural e da história da espécie humana é uma fábula filosófica decorrente do postulado inicial do indivíduo átomo independente. A paleo-antropologia ensina-nos que não foram a violência egoísta e o gosto pela guerra que forjaram o domínio da Terra pela espécie humana. A especificidade da nossa evolução reside, pelo contrário, no facto de ter abandonado todos os traços susceptíveis de lhe conferir uma vantagem física na luta, em prol de características capazes de intensificar a comunicação e as relações com os seus congéneres. O próprio do homem não tem que ver com a agressividade, com o egoísmo e com o gosto pela competição, mesmo quando disponha de todos esses atributos, mas antes à sua linguagem, ao seu olhar e ao grau único de sofisticação das suas relações sociais.

 

A concepção liberal da humanidade é, portanto, mutiladora. Ela amputa uma parte do nosso ser - a nossa aspiração a viver bem com os outros – e retém apenas o nosso desejo de afirmar o nosso eu e a nossa inclinação egoísta. Ora essas são as duas faces indissociáveis do nosso desejo de ser. Ao impor uma cultura e condições de trabalho que valorizam apenas o desempenho individual, a competição e a mobilidade, denegrindo a solidariedade e as ligações, o neo-liberalismo inflige aos seres humanos um sofrimento psicológico crescente, atestado por multíplos estudos de medicina e de psicologia do trabalho. Forjei o termo de “dissociedade” para designar uma sociedade inumana, fundada sobre a dissociação psíquica do ser, por amputação do seu desejo de ser com e para os outros (26).

 

A ideia errónea que os neo-liberais fazem da natureza humana leva-os fatalmente a uma concepção falsa da sociedade.

 

Uma concepção errónea da sociedade

 

Se os seres humanos são realmente indivíduos naturalmente dissociados, desligados, egoístas e eventualmente agressivos, pode perguntar-se: como e porquê vivem em sociedade? Os neo-liberais respondem: porque o agrupamento em comunidades cada vez mais vastas permite uma melhor divisão de trabalho, uma maior produção e uma protecção mais eficaz contra as agressões exteriores. Os indivíduos autónomos não têm necessidade uns dos outros para serem eles mesmo, mas têm necessidade para viver, isto é, para satisfazer do melhor modo que possam as suas aspirações egoístas.

 

Sendo assim, para os neo-liberais, “a sociedade não existe. Há apenas indivíduos” (Margaret Thatcher). Aquilo a que se chama “sociedade” é apenas um contrato de associação utilitária entre indivíduos independentes que procuram o seu interesse pessoal. A sociedade não cria vínculos, mas apenas conexões numa rede de trocas. Tampouco engendra “direitos sociais”: a sociedade não deve nada; um indivíduo só obtém um direito a alguma coisa em troca do que oferece; não há direitos sem contrapartida. É sobre esta certeza que se fundam designadamente as políticas neo-liberais que visam tornar condicionais todos os direitos sociais.

 

Eis-nos instalados em plena fábula. Como mostrámos, o que efectivamente não existe é o indivíduo em sentido estrito! Não existe indivíduo fora da sociedade que o põe no mundo, o educa e lhe confere a capacidade de vir a ser alguém. A sociedade nunca é um contrato de associação entre indivíduos, uma vez que necessariamente lhe preexiste! A pré-história e a arqueologia ensinaram-nos, além disso, que as primeiras sociedade sedentárias não apareceram com fins de produção agrícola, como durante muito tempo se julgou. As primeiras aldeias nascem em vista do desenvolvimento de actividades religiosas e culturais. É a necessidade de relações mais alargadas e mais complexas que está na origem do desenvolvimento da civilização e não uma pulsão produtiva. A partir do século XVIII, a filosofia liberal que funda as sociedades “modernas” e permite a emancipação do indivíduo face à tradição obscurantista, tanto do poder religioso como político, repousa principalmente na ideia de que existem direitos do homem inalienáveis sem contrapartidas de dever.

 

Convicto da sua concepção falaciosa do ser humano e da sociedade, o neo-liberalismo encontra-se hoje em grandes dificuldades para resolver o dilema fundamental da vida em sociedade.

 

Em direcção à guerra das comunidades

 

Se os indivíduos são rivais e agressivos e não têm nenhum motivo para estar juntos que não seja a satisfação da sua pulsão egoísta, como evitar a violência, a predação e o caos social? Uma lei comum e um Estado forte são indispensáveis para evitar uma situação de guerra permanente que ameaçaria a ordem e a segurança. A assombração justificada dos liberais foi sempre a de que o Estado alargasse o seu poder de modo abusivo e atrofiasse a autonomia dos indivíduos. De onde a invenção de processos democráticos de limitação e controlo do poder político. Mas, uma vez admitido o princípio da democracia, um autêntico liberal deve reconhecer que cabe aos cidadãos os domínios e as modalidades da intervenção do Estado. Ora, também aí, os neo-liberais se distinguem por uma posição extrema. No seu entender, o Estado ideal seria um “Estado mínimo” que se limitasse a garantir a segurança dos bens e das pessoas e o respeito dos contratos. Estão convencidos de que, em qualquer outro domínio, a intervenção política só pode amputar as liberdades; o resto das actividades humanas deve relevar da livre concorrência, das organizações privadas e dos contratos livres.

 

Esta “solução”, no entanto, não resolve o dilema da vida em sociedade. Permitir o livre curso da iniciativa privada e a livre concorrência arrasta sempre grandes desigualdades de condição e de fortuna, que acentua a rivalidade e alimenta as frustrações e as invejas. Não se enxerga porque razão os perdedores do sistema manteriam o respeito pelas leis, a não ser que sejam permanentemente ameaçados por um Estado policial sobredimensionado que absorveria uma parte crescente da riqueza nacional.

 

Mas nem por isso os neo-liberais entendem dever reduzir as desigualdades através do desenvolvimento do Estado-Providência. Para além de que, em seu entender, as desigualdades não são senão diferenças legítimas fundadas sobre o mérito, o talento e o trabalho dos indivíduos, elas exercem um efeito de estímulo sobre o egoísmo dos indivíduos que só são plenamente estimulados ao esforço e à produtividade se puderem apropriar-se dos benefícios que daí resultem. Reduzir as desigualdades redistribuindo uma parte dos ganhos dos que têm melhor desempenho, em favor dos perdedores, desencorajaria a energia produtiva. Sendo assim, quanto mais se redistribui o bolo, mais o bolo diminui, de modo que toda gente fica pior e as tensões sociais não são atenuadas. No modelo neo-liberal, o melhor que se possa fazer pelos mais desfavorecidos é garantir-lhes uma dotação de subsistência mínima, sob condição de que contribuam com algum trabalho, porque não há direito sem contrapartida.

 

Também aqui o neo-liberalismo erra. Na verdade, os homens são tão motivados pela dedicação aos lugares e à cooperação mútua como à acumulação solitária do seu bem-estar pessoal. Por isso eles são tanto, ou mesmo mais, eficazes e produtivos num ambiente de trabalho que privilegie a cooperação e a solidariedade do que num meio de competição desbragada. Em consequência, um sistema económico que limite a extensão da concorrência e favoreça a solidariedade colectiva promete, ao mesmo tempo, uma maior eficácia produtiva e a redução das desigualdades e das tensões sociais. Tanto a teoria económica contemporânea como a história demonstram, por outro lado, que, longe de ser um travão, a redução das desigualdades é um factor de desenvolvimento.

 

Os neo-liberais, cegos pela sua ideologia, não são capazes de integrar esta realidade no seu raciocínio. Mantêem-se convencidos de que um indivíduo não mostra o seu génio criador e o seu esforço, a não ser para ser mais forte e ter mais do que os outros. Assim, agarram-se à ideia de que as desigualdades resultam primariamente das diferenças naturais de talento, e do esforço livremente consentido pelos indivíduos. O poder político não deve ser para aí chamado.

 

Mas se renunciarmos ao progresso da igualdade como será possível conter as tensões sociais sem recorrer a uma extensão indefinida do Estado policial? Só restam dois instrumentos: o consumismo e comunitarismo.

 

Num mercado desregulado, supõe-se que as virtudes da concorrência conduzirão naturalmente a uma sociedade de abundância material. A longo prazo, a abundância dos bens materiais será de tal ordem que os conflitos de repartição tenderão a dissolver-se no reino da superação da raridade; poderemos, então, sonhar com uma sociedade empanturrada de consumo onde a polícia, o Estado, a política e as leis deixem de ser necessárias. Já não haverá guerra possível: toda a gente faz a sesta no intervalo entre duas orgias.

 

Que utopia mais louca! Em primeiro lugar, o maior desafio da humanidade nos decénios que se aproximam será o de evitar a todo o custo a corrida para a abundância material, para garantir a preservação de um ecossistema viável. Não há nenhuma abundância material que seja capaz de satisfazer seres humanos que são governados pela pulsão, mais do que pelo desejo e a necessidade. O capitalismo só pode prosperar cultivando a frustração e não combatendo a raridade. Mal um desejo fica saturado, é preciso criar um outro para garantir a perenidade dos lucros e prosseguir até ao infinito a corrida ao aumento da produção que conduz a humanidade à autodestruição. A outra pista, o comunitarismo, infelizmente, é uma pista que não tem nada de utópico.

 

Uma vez que as baixas de impostos o impõem, numa sociedade que maximiza as desigualdades e as frustrações, os neo-liberais têm que acentuar a pressão sobre os desviantes e os rebeldes, sem recorrer apenas ao Estado policial. A única pressão social disponível só pode advir do reforço da identidade étnica, religiosa, sócio-cultural, no sentido mais tradicional, que impele os indivíduos a identificarem-se com a lei do grupo. A sociedade neo-liberal ideal é, pois, uma dissociedade que justaponha comunidades fortemente soldadas por uma identidade comum e aniquilando de tal modo a autonomia (relativa) dos indivíduos para que a intervenção policial deixe de ser necessária. Posto tudo isto do modo mais claro possível: que os negros vivam com os negros, os ricos barricados em parques envoltos em câmaras de vigilância, os velhos em bairros que lhes sejam reservados, os muçulmanos com outros muçulmanos, etc.. Então, o Estado-gendarme poderá ser verdadeiramente mínimo visto que bastará vigiar as fronteiras entre as comunidades, quando numa sociedade não compartimentada há milhões de fronteira entre os entes singulares.

 

As comunidades incumbir-se-ão do policiamento no seu seio e conseguem-no, na maior parte dos casos, sem polícia, pelo simples jogo do conformismo social e da pressão moral e religiosa. Esta dissociedade é pura e simplesmente o regresso programado à sociedade tradicional, ante-moderna, na qual a liberdade de pensamento, a autonomia da consciência e a própria ideia de “indivíduo” não existia. Eis como o neo-liberalismo se transmuta em neo-conservadorismo que destrói a autonomia individual. O neo-liberalismo é, de facto, fundamentalmente anti-liberal.

 

A reestruturação da sociedade em dissociedade já está bem avançada em certos países como os Estados Unidos. Ela representa a única maneira de conceber a vida em sociedade quando se postula que os indivíduos são naturalmente dissociados; indivíduos assim só conseguem suportar a vida com os seus próximos. Todavia, a vida confinada aos muito semelhantes é profundamente destruidora para um verdadeiro ser humano, um ser naturalmente social e cujo florescimento supõe o acesso a esferas alargadas e diversificadas de relações humanas. O comunitarismo pode constituir um deserto para o ser e um inferno para o indivíduo. Mas o pior nem é isso.

 

A experiência mostra que a vida confinada aos semelhantes se torna rapidamente uma caça obsessiva às diferenças. Este tipo de vida só contribui para atiçar naturalmente rivalidades entre comunidades distintas, fazendo crescer, dia após dia, a ameaça de um afrontamento entre comunidades.

 

Não se sai do dilema da vida em sociedade senão assumindo o projecto de fazer sociedade, ou seja, criando condições para que pessoas diferentes, que podem eventualmente não estar de acordo sobre nada, excepto sobre a vontade de viverem juntos, o possam fazer. Esse é o ideal da República e da democracia, que a direita neo-liberal hoje compromete.

 

 

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Epílogo

 

Tanto se pode votar à esquerda como à direita. Mas, em ambos os casos, é preciso ter uma boa razão para o fazer. E esta tem que ser singularmente boa para reconduzir no poder uma direita que não é capaz de fazer progredir a economia e o emprego, despreza os princípios da democracia, acentua as desigualdades, encoraja a dissociedade, mantém um perigoso clima de afrontamento social permanente e se comprometeu, sem o nosso acordo prévio, na reviravolta dos princípios que, até aqui, fundavam a nossa sociedade.

 

Essa razão existe, mas resume-se a uma só. Se o leitor adere ao modelo de dissociedade neo-liberal, poderá votar à direita sem estados de alma. Se pensa que os desempregados e os pobres são fundamentalmente preguiçosos que é preciso sacudir; se pensa que as estrelas do showbiz têm bons motivos para sair de França para evitar o assalto fiscal; se fica satisfeito com o facto de que o imposto que recai sobre os menos ricos financie as despesas dos mais ricos; se sonha com uma França para os franceses de origem; se prefere uma dissociedade pacificada pela polícia a uma sociedade pacificada pela solidariedade e pela integração social; se prefere pagar mais guardas prisionais do que educadores nas escolas, etc.. Então, a nova direita situa-se em pleno no vosso campo.

 

Mas se, como vos desejo, não é esse o caso, o leitor não terá nenhuma razão para colaborar na realização mais avançada de todos os perigos de que foi advertido, se não o estava já antes de me ler. Todavia, sei que as coisas não são assim tão simples. Em relação aos eleitores de direita, sei-o por experiência. Todos os meus amigos ou parentes próximos que votam habitualmente à direita parecem-me, muitas vezes, muito mais em fase com a minha concepção da democracia e da liberdade do que com a da direita neo-liberal. E, no entanto, porque nunca na sua vida votaram à esquerda, não encaram sequer a possibilidade de o fazer. Não é simples mudar de bordo porque isso afecta a nossa identidade. Reproduzir hoje as escolhas passadas, as dos nossos pais, do nosso meio, é também ratificá-las, ficar solidário com elas, com aqueles com quem as partilhámos. É, finalmente, evitar desautorizar-se a si próprio. Nos menos jovens apercebo-me, por vezes, de uma impossibilidade de votar à esquerda, por fidelidade a compromissos passados ou pelo velho medo do comunismo. É também, por vezes, porque viveram a sua vida activa antes dos anos 1990 e não se apercebem em que se tornaram as condições de vida e de trabalho para a maioria dos assalariados. Acham exageradas as críticas contemporâneas do capitalismo neo-liberal porque ainda guardam na memória o capitalismo dos Trinta Gloriosos.

 

A todos aqueles que não podem rever-se na ideologia sinistra da nova direita, sou tentado a dizer-lhes: não se deixem enganar em relação ao que está em jogo, não se enganem na época! Não sois vós que estais em causa, mas o bem comum. Não são os tanques do Exército Vermelho que ameaçam a nossa sociedade; é o culto da rivalidade, o egoísmo dos ricos, a obsessão da rentabilidade até ao ponto de levar os assalariados ao suicídio para não ter que pagar as indemnizações de despedimento. Que todos aqueles que tiveram a oportunidade de viver e trabalhar num mundo diferente não se desinteressem tanto por saber o que se tornou o mundo que vão legar aos seus netos. Seria por certo o que fariam se o seu juízo político em 2007 não se limitasse a repetir o seu julgamento passado.

 

Existe uma outra desculpa, aparentemente aceitável, para evitar a passagem do voto à esquerda: a direita liberal é efectivamente perigosa, mas não é toda a direita. E é verdade que nem todos os homens e mulheres de direita se reconhecem nesta nova direita neo-liberal. É bom que assim seja porque é só na convergência entre uma esquerda e uma direita democrata e republicana que a Franca pode eventualmente encontrar o caminho de uma alternativa pacificada e construtiva. Mas o facto é que a direita que governa é neo-liberal. As divisões que se apercebem no seio da UMP não manifestam um real debate ideológico; alimentam-se de ambições contraditórias. O candidato da UMP quer, aliás, criar a ilusão de que incarna uma política diferente da do governo a que pertenceu durante toda a legislatura! Assim, o lamentável balanço da direita não lhe será imputável e a verdadeira alternativa jogar-se-ia entre direita e direita bis e não entre esquerda e direita. O buraco é grande demais para que se caia nele (27).

 

Decididamente, julgo que não há grande escapatória. O leitor terá que pronunciar-se por ou contra o neo-liberalismo. Por ou contra a dissociedade. Por ou contra a ascensão contínua da violência social. Por ou contra a divisão dos franceses em comunidades rivais. Por ou contra o desprezo da democracia, numa palavra, por ou contra tudo aquilo que nos promete a direita que está efectivamente no poder. E se o leitor pensa que é de direita, deve perguntar-se se ainda pode ser dessa direita.

 

No tempo da minha infância, a questão que se punha, nas famílias católicas, era completamente diferente: perguntava-se se é possível ser cristão e comunista. E esse foi inclusivamente o tema do meu primeiro texto político, ao tempo em que era um jovem adolescente, sob forma de uma carta dirigida a um grande jornal diário. Tanto quanto me lembre, tive que explicar, em substância, que a incompatibilidade entre o marxismo e cristianismo não proibia os cristãos de se comprometerem ao lado dos marxistas para defender concretamente uma política de solidariedade. A bem dizer, a verdadeira questão, para mim, foi sempre: como se pode ser cristão e de direita? Como é que se pode ser cristão e não preferir a solidariedade à competição, a igualdade às desigualdades? Como ser cristão e não estar ao lado dos pobres, dos pequenos, dos fracos, dos dominados? Como ser cristão e tolerar um capitalismo que faz passar a dignidade dos homens após a rentabilidade do capital? Como ser cristão e aceitar a reposta à violência pela violência, o desencadeamento da repressão e da regressão dos meios consagrados aos que se degradaram pelo crime? Por muito que me esforce não encontro outra reposta senão esta: é impossível.

 

Claro que, ainda hoje, me coloco a mesma questão quando visito a minha família. O que mais me intriga é a certeza de que tudo aquilo em que acredito, tudo aquilo que penso como socialista, é, em primeiro lugar, o fruto da minha educação, que me transmitiu o sentido do dever para com a colectividade, a exigência da fraternidade e o amor ao próximo… Como é que aqueles a quem devo tudo isto podem ignorar o que me ensinaram?

 

Julgo que, como muitos outros, não podem votar à esquerda porque a sua educação e a história da sua geração nem sequer lhes permitem encarar essa possibilidade. No passado, isso não chegava verdadeiramente a perturbar-me. Disse no início deste livro a razão pela qual, durante muito tempo, acreditei que “o nosso fundo de valores comuns podia traduzir-se por escolhas políticas opostas”. Este fundo de valores que era comum com os meus pais e a sua direita desapareceu. Hoje, as pessoas em que eles possivelmente irão votar espezinham abertamente todos os ideais que deram sentido à sua vida. Se apesar de tudo o fizeram, não irei censurá-los; censurar-me-ei a mim próprio por não ter sido capaz de convencê-los.

 

 

 

 

 

 

(*) Jacques Généreux (n. 1956) é um economista universitário francês, mestre de conferências, presentemente colocado no Institut d’Études Politiques (IEP) de Paris. Adversário intelectual de longa data do chamado “neoliberalismo” (que ele prefere chamar “mercadismo”) publicou diversas obras de grande relevo, com destaque para Manifeste pour l'économie humaine (2000), Les Vraies Lois de l'économie (2001), La Dissociété (2006) e L'Autre société (2011). Em Novembro de 2008 abandonou o Partido Socialista para participar na fundação do Parti de Gauche (Partido de Esquerda), do qual é secretário nacional para a Economia. O presente texto foi publicado em livro - Pourquoi la droite est dangereuse, Seuil, Paris, 2007 - em França, há já sete anos, não tendo perdido entretanto nada da sua atualidade. Pelo contrário, foi de tal modo lúcido e presciente no diagnóstico do que está em jogo no balanço político da Europa que quase nos custa a acreditar que tenha sido escrito antes da crise de 2008 e sua sequela na crise das dívidas soberanas. Deste modo, embora muito centrado nos desenvolvimentos da política francesa, ajuda-nos a desmascarar o embuste da emergência e da excecionalidade com que, por toda a Europa, a presente ofensiva social se apresenta publicamente. A tradução é de João Esteves da Silva.

 

 

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NOTAS:

 

(1) La Dissocieté, Seuil. Outubro 2006.

 

(1a) [Nota do editor] O autor refere-se aqui ao fim do segundo mandato de Jacques Chirac na presidência da república de França, ocorrido em maio de 2007.

 

(2) Les Vraies Lois de l’économie, Seuil. Tome I, 2001; tome II, 2002 (Prémio liceal do livro de economia). Assinale-se que este best-seller foi comentado por toda a imprensa económica reputada mais próxima do liberalismo do que do socialismo. Ora, em todos estes comentários, ninguém se deu ao trabalho de contestar seriamente nem uma só das minhas “verdadeiras leis”.

 

(3) Fiz um inventário completo destes fracassos no Capitulo 2 de La Dissocieté, op. cit..

 

(4) Uma demonstração ainda mais precisa e mais completa da minha tese acaba de ser publicada por Alain Villemeur: La Croissance américaine ou la main de l’État, Seuil, 2007.

 

(5) O desemprego real é nitidamente superior mas não vou entrar nesse debate porque o que me interessa é a comparação com o desempenho dos países europeus, cada um deles com a suas formas próprias de desemprego disfarçado ou dissimulado.

 

(5a) [Nota do Editor] A UMP, Union pour um Mouvement Populaire, é o grande partido político francês da direita, unificando as tendências gaulistas, centristas e liberais, nascido em 2002 para apoiar a reeleição de Jacques Chirac à presidência da república.

 

(6) Em Capitalisme, socialisme et démocratie (1947), Payot, 1990, para a tradução francesa.

 

(7) Os mecanismos pormenorizados desta “privatização do Estado” são descritos no capítulo 3 de La Dissocieté, op. cit..

 

(7a) [Nota do Editor] Denominam-se correntemente como DOM-TOM as possessões coloniais e neo-coloniais francesas situadas fora do continente europeu. São, nomeadamente, DOM (Départements d’Outre-Mer), Guadeloupe, Martinique, Guyane, La Réunion e Mayote. Os TOM (Térritoires d’Outre-Mer), que na verdade agora de designam legalmente como COM (Communautés d’Outre-Mer), são Saint-Pierre-et-Miquelon, Saint-Barthélemy, Saint-Martin, Wallis-et-Futuna e La Polynésie Française. A Nouvelle Calédonie tem um estatuto especial, de soberania partilhada.

 

(8) Para justificar o “escudo fiscal” a direita explorou o problema colocado pelo caso de antigos proprietários de terrenos ou de uma casa de família situada num local onde a explosão dos preços do imobiliário, os expõe a um imposto municipal muito pesado, incompatível com os seus parcos rendimentos. Trata-se de uma cortina de fumo porque o problema pode ter uma solução mais equitativa, como, por exemplo, a exoneração dos bens detidos desde há uma certa data enquanto a mais-valia latente não é realizada.

 

(9) Pode encontrar-se uma análise crítica de todas as reformas sociais da direita francesa em Gérard Filoche, “La vie, la santé, l’amour sont précaires. Pourquoi le travail ne le serait-il pas?” Faut-il bruler le code du travail?, Jean-Claude Gawsewitch Éditeur, 2006.

 

(9a) [Nota do Editor] O MEDEF (Mouvement des entreprises de France) é uma poderosa associação patronal fundada em 1998 que reclama ter 750.000 empresas filiadas, tendo um grande peso na vida política e social francesa. À altura da escrita deste trabalho era presidida por Laurence Parisot.

 

(10) Criação de um “Salário mínimo jovem”: 80 % do salário mínimo até ao bac + 2. [Nota do Editor] O baccalauréat ou “bac” é um grau académico adquirido em França no final do ensino secundário, ao qual se acrescentam depois os anos de frequência universitária (+1, +2, +3...).

 

(11) Laurence Parisot pronunciou esta frase aquando da sua conferência na Universidade do MEDEF, em Agosto de 2005. Esta frase brilhante serve de título à última obra de Gérard Filoche, op.cit..

 

(12) Desde a lei de orientação para a segurança interna (Agosto 2002) à lei sobre a prevenção da delinquência (Novembro 2006). Pode encontrar-se a apresentação resumida de todas estas leis no Le Monde de 6 de Dezembro 2006, p. 22-23.

 

(13) 16%, entre 2002 e 2005, segundo as estatísticas oficias do ministério do interior, às quais tem que acrescentar-se, pelo menos, 7%, só no ano 2006, de acordo com os dados do Observatório Nacional da Delinquência. Escolhi deliberadamente a hipótese mais baixa, que é já assaz inquietante, enquanto outras estimativas avançam uma subida de 27% das violências sobre as pessoas no mesmo período (2002-2006). Para maiores pormenores, veja-se o dossier “Insecurité, pourquoi ça ne s’arrange pas”, Alternatives Economiques, Novembro 2006.

 

(14) Dou mais alguns pormenores sobre este processo no capítulo 3 do meu livro La Dissocieté, op. cit..

 

(15) Todos os dados que utilizamos nesta secção são pormenorizados e analisados no livro de François Héran, Le Temps des immigrés. Essai sur le destin de la population française. La République des idées/Seuil, 2007.

 

(16) A imigração familiar compreende o reagrupamento familiar (estrangeiros que vêm juntar-se à família instalada em França: mais ou menos 25.000 pessoas) e imigração de estrangeiros que se reúnem com um cônjuge francês (mais ou menos 6.000 pessoas).

 

(17) 3,3% entre 1955 e 1964; 2,7% entre 1969 e 1973; Cf. François Héran, op. cit..

 

(18) Ibidem, p. 59.

 

(19) Sublinho estas palavras para evitar um contrassenso ao leitor pouco atento ou disposto a qualificar como utópica toda a proposição que o deixa sem argumentos. Não acredito na democracia perfeita, que é uma utopia. Mas a oligarquia perfeita também é uma utopia porque, para se sustentar perante a secessão e a revolta crescente dos excluídos do poder, desemboca sempre na tirania, na guerra civil ou em ambas. O nosso problema não é o de escolher entre a utopia democrática e a realidade oligárquica mas o de saber qual dos ideais deve guiar as nossas escolhas. [Nota do Tradutor]: estou quase integralmente de acordo com o conteúdo desta nota: o autor só se esquece de recordar que a oligarquia não é bem um ideal, existe mesmo, ao passo que a democracia não existe e é por isso que a queremos.

 

(19a) [Nota do Tradutor]: “dislocação” não é deslocação, tal como “dissociedade” não é a sociedade.

 

(20) Vide, “Refonder la politique”, Une certaine idée, nº 8, octobre-décembre, 2000; Quel renouveau socialiste? Textuel, 2003; La Dissocieté, op.cit., cap.11.

 

(21) E tem boas razões para isso. Ele próprio já passou a perna a Jacques Chirac, que perdeu toda a margem de manobra permitindo que tomasse o controlo da UMP. Não tem nenhuma vontade de que alguém “lhe aplique o mesmo golpe” se vier a ser Presidente.

 

(22) Recitando assim as fórmulas elaboradas por Henri Guiano, o mesmo que inventa hoje as fórmulas republicanas e sociais de Nicolas Sarkozy.

 

(23) «La vie, la santé, et l’amour sont précaires…», op. cit..

 

(24) Les Échos, 29 de Agosto de 2006, citado por Gérard Filoche «La vie, la santé, l’amour sont précaires…», op. cit., p. 36.

 

(25) A análise destes fundamentos, como dos do conjunto das correntes do pensamento político moderno, é pormenorizada nos capítulos 5 a 8 de La Dissocieté, op. cit..

 

(26) Oponho-lhe outra forma de sociedade inumana, a “hipersociedade” que, inversamente, funde o indivíduo num grande Todo social, amputando a sua aspiração a ser si mesmo e para si mesmo.

 

(27) [Nota do Tradutor]: Verificou-se que, afinal, o buraco ainda não era suficientemente grande.