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A burguesia mundial em questão
Danilo Martuscelli (*)
1 Introdução
O processo de internacionalização do capital, ocorrido nas últimas décadas, tem suscitado uma série de questionamentos sobre a operacionalidade e a validade de certos conceitos, noções e categorias utilizados na explicação dos fenômenos sociais contemporâneos. Esses questionamentos são fruto de um novo modismo teórico-político: o modismo neoliberal e suas variações específicas. Por meio da apologia do livre mercado, da livre iniciativa individual e do Estado mínimo, o modismo neoliberal procura difundir as “teorias” que engendra – do fim das ideologias, da história, das classes sociais, do imperialismo e do Estado nacional – e refutar enfaticamente as análises críticas do capitalismo, em especial, as do capitalismo neoliberal.
O que nos chama a atenção é que esse modismo influenciou, inclusive, o “espectro anticapitalista”, tendo levado algumas análises críticas do capitalismo a assimilar – mesmo que a contragosto – elementos centrais da ideologia da globalização ou da “teoria neoliberal da globalização” (1) ao caracterizarem o capitalismo contemporâneo.
Em linhas gerais, a ideologia da globalização sustenta a ideia de uma crise irreversível do Estado-nação; exagera a novidade e o alcance da integração do espaço econômico internacional, apresentando-o como tendencialmente homogêneo e livre da intervenção estatal; e procura defender que esse espaço estaria sendo governado pelas grandes empresas ditas globais ou transnacionais, sem qualquer vínculo com uma base nacional específica.
Cabe lembrar, no entanto, que, enquanto ideologia, a teoria da globalização, ao mesmo tempo em que faz alusão à realidade social, produz uma série de efeitos ilusórios (2). Hirst e Thompson (1998), contestando os pressupostos principais dessa ideologia, salientam que, no período que antecedeu a Primeira Guerra Mundial, alguns países atingiram taxas de abertura econômica semelhantes às apresentadas no início dos anos de 1990. Esses autores também criticam a tese segundo a qual as empresas caracterizadas como transnacionais ou globais estariam dominando o mercado mundial, pois o que se observa é que a maioria das empresas que controlam o mercado mundial, centra-se num espaço econômico nacional, remetendo seus lucros ao Estado onde está localizada a sua matriz.
Um exemplo de assimilação da ideologia da globalização pelo “espectro anticapitalista” pode ser encontrado nas análises que defendem a existência de uma burguesia mundial (global ou transnacional) no capitalismo contemporâneo, isto é, nos estudos que apontam para um processo de unificação e integração da burguesia em escala mundial.
Tendo em vista que os enfoques teóricos para sustentar a tese da burguesia mundial são variados, o objetivo desta análise é identificar e explicar as principais variantes dessa tese, apontar seus limites e apresentar, por fim, uma abordagem alternativa para o estudo das relações intraburguesas no plano internacional.
2. As variantes explicativas da tese da burguesia mundial
Em linhas gerais, é possível identificar três variantes explicativas principais do processo de unificação e integração da burguesia em escala mundial. A primeira variante destaca o processo de internacionalização dos altos quadros e sua relação com a difusão das grandes empresas transnacionais. A segunda variante releva o papel das grandes corporações transnacionais no ordenamento econômico e político do capitalismo contemporâneo. A terceira variante procura ressaltar a financeirização como elemento fundamental da dissolução das clivagens e fracionamentos no interior das classes dominantes.
Salientamos, desde já, que a distinção dessas três variantes explicativas deve ser entendida como uma distinção meramente metodológica, uma vez que é possível encontrar entrecruzamentos ou justaposições de argumentos entre uma e outra variante explicativa, bem como subdivisões em cada uma delas, como veremos a seguir.
2.1. Sociologia da burguesia ou dos altos quadros?
De início, chamamos a atenção para o fato de que o empreendimento realizado pela primeira variante na tentativa de compreender o que une e integra a burguesia em âmbito internacional está mais propriamente voltado para a análise dos altos quadros das empresas ditas “transnacionais” do que da classe burguesa. Ao se centrarem na análise dos aspectos simbólicos, ideológicos e culturais que unem e integram a “burguesia mundial”, os estudos pertencentes à primeira variante explicativa tendem a omitir ou ocultar a discussão sobre o lugar que os agentes ocupam no processo de produção. Para tais estudos, os aspectos simbólicos, ideológicos e culturais que caracterizam a unidade da burguesia (ou seja, dos altos quadros) parecem conformar uma realidade fora do processo de produção. Nessa perspectiva, os altos quadros são identificados como parte da burguesia por assimilarem aspectos fundamentais de uma cultura burguesa dita “transnacional”.
A obra The Transnational Capitalist Class, de Leslie Sklair, pode ser concebida como um primeiro exemplo dessa variante explicativa. Ao analisar as mudanças em curso nas últimas décadas, Sklair salienta que, se o nível global é concebido como meta principal para as grandes empresas, o nível transnacional é a realidade na qual elas se encontram. No argumento de Sklair, fica evidente uma distinção fundamental entre o nível global – futura forma de estruturação das grandes empresas – e o nível transnacional – forma atual de atuação das grandes empresas.
Para esse autor, as mais importantes forças transnacionais são as corporações transnacionais, a classe capitalista transnacional e a cultura-ideologia do consumismo. De acordo com ele, em décadas recentes, o poder e a autoridade dos grupos transnacionais deixaram de derivar exclusivamente do Estado e tenderam cada vez mais a se articular num espaço transnacional em que imperam os investimentos externos diretos e a globalização da produção, ainda que esta esteja localizada em alguns setores. Nessa perspectiva, há espaço para conflitos entre os interesses pró-globalização e os antiglobalização, que constituiriam um dos obstáculos fundamentais para a formação de um espaço econômico verdadeiramente global.
Para caracterizar a classe capitalista transnacional, Sklair (2001) procura desmembrá-la em quatro frações principais, a saber: a) a fração corporativa, formada pelos executivos das corporações transnacionais e suas filiais locais; b) a fração estatal, formada pelos burocratas e políticos globais; c) a fração técnica, formada pelos profissionais globais; e d) a fração consumidora, formada pelos negociantes e pela mídia. Em seguida, apresenta cinco aspectos que justificariam o caráter transnacional dessa classe capitalista. Resumidamente, eles seriam os seguintes: 1) os interesses econômicos de seus membros estariam associados a um plano global e não nacional ou local; 2) os membros dessa classe exerceriam controle econômico no local de trabalho, controle político na política doméstica e internacional, e controle total da cultura-ideologia da vida cotidiana; 3) os membros da classe capitalista transnacional compartilhariam estilos de vida similares, advindo dos padrões escolares aos quais estariam submetidos e ao consumo de luxo de bens e serviços; 4) esses membros da classe capitalista transnacional projetar-se-iam como cidadãos do mundo no cenário mundial.
Como se depreende aqui, tanto no que se refere à caracterização das frações da classe capitalista transnacional, quanto na definição de seu caráter transnacional, Sklair (2001) alude aos altos quadros das grandes empresas e do aparelho estatal, bem como sobreleva a ideologia dessa categoria social, uma vez que seriam esses altos quadros administrativos que teriam assimilado mais fortemente a cultura cosmopolita dos grandes negócios – o que os levaria a dar mais importância à dimensão global do que à nacional. A despeito de falar em classe capitalista, Sklair (2001) parece estar muito mais próximo da elaboração de uma sociologia dos altos quadros executivos, uma vez que a análise dos grandes acionistas que controlam efetivamente as grandes empresas não é concebida como problema fundamental de sua investigação.
Outra reflexão que também se enquadra nessa perspectiva analítica é a desenvolvida por Kees Van der Pijl (1998). Para esse autor, conformou-se, nos últimos anos, uma “unidade atlântica” entre as burguesias européias e estadunidenses. O que teria propiciado a coesão de interesses dessas burguesias seria a instauração de fóruns internacionais, como, por exemplo, os casos do Fórum Econômico Mundial e do Clube de Bilderberg, abrigando grandes acionistas e dirigentes de grandes corporações privadas, bem como membros da alta cúpula estatal das principais metrópoles capitalistas que constituem a “unidade atlântica”. Pijl (1998) chama a atenção para o fato de que o processo de unificação das burguesias em nível transnacional não é inusitado, já que esse processo era visível desde a formação das organizações maçônicas. No entanto, o autor procura destacar as características específicas do período mais recente que concretizam a referida “unidade atlântica”.
Na análise de Pijl (1998), está presente a ideia de que a constituição desses fóruns de discussão internacional das burguesias atlânticas é de extrema importância para reduzir as dissensões intraburguesas e conformar ações coesas e planejadas entre essas burguesias. Ocorre que, em sua análise, o autor não esclarece se tais ações podem realmente se efetivar, ou melhor, Pijl não considera se há espaço para o planejamento no capitalismo e se é possível dirimir a importância da política implementada pelos diferentes Estados nacionais que compõem a “unidade atlântica”.
Entendemos que, se é importante detectar essas iniciativas de integração da burguesia em escala mundial, é também relevante analisar os resultados dessas iniciativas para verificar se elas apontam ou não na direção dessa integração ou unificação da burguesia. A inexistência de consenso e o fracasso das negociações das rodadas do Uruguai, do antigo GATT, e de Doha, da OMC, são alguns dos indícios de que tais iniciativas têm sido malsucedidas, uma vez que a lógica do protecionismo para alguns e da abertura econômica para a maioria dos países não tem agradado certos partícipes dessas reuniões nem mesmo promovido concórdia entre as partes envolvidas.
As análises influenciadas pela obra de Pierre Bourdieu também se incluem nessa primeira variante explicativa. Tratamos aqui dos trabalhos de Anne-Catherine Wagner (2003) e dos pesquisadores Michel Pinçon e Monique Charlot-Pinçon (2000). É consenso entre esses autores a ideia de que a chamada mundialização financeira fomentou o surgimento de uma fração dos altos quadros e dirigentes de empresas os quais se relacionam num espaço profissional social e simbólico internacional. Dado o crescimento dos investimentos externos diretos, em detrimento do comércio de mercadorias, as ligações internacionais têm-se intensificado, e os critérios de recrutamento e de promoção dos altos quadros têm-se tornado internacionais, constituindo o que Wagner (2003) chamou de “estilo de vida internacional”. Para essa autora, o que caracterizaria o estilo de vida internacional dos altos quadros seriam basicamente os seguintes elementos: plurilinguismo, experiência de vida e de trabalho em vários países, inserção no círculo de negócios internacionais, possibilidade de gerar uma carreira em escala internacional. Esses grupos constituiriam relações que transbordam a esfera do trabalho, tais como, casamentos mistos, dispersão geográfica da família e das relações, cosmopolitismo das amizades, entre outras.
Cabe observar, no entanto, como faz Wagner (2003), que, com o surgimento dos altos quadros internacionais, a posição do patronato nacional dos países avançados não chegou a ser ameaçada, embora esse grupo tenha sido levado a se adequar à dinâmica da ordem social inaugurada pela mundialização financeira. Outra observação importante que essa autora faz é a de que, em países como França e Alemanha, os altos cargos nas grandes empresas têm sido ocupados geralmente por profissionais de origem do próprio país. A combinação dessas duas constatações nos leva a crer que o chamado processo de internacionalização dos altos quadros é menos consistente do que sugerem os autores sob influência da obra de Bourdieu. Isso, na verdade, parece indicar, inclusive, que não ocorreram grandes rupturas em direção a uma internacionalização efetiva dos altos quadros e do patronato – rupturas que teriam tornado a questão nacional totalmente anacrônica.
É interessante observar, na análise desses autores com inspiração nas reflexões de Bourdieu, que eles procuram superestimar a dimensão simbólica, ideológica e cultural na constituição das classes sociais – o que os leva a aproximarem a posição dos altos executivos das grandes empresas às dos grandes acionistas. Sugerem não somente que os altos quadros também estão se tornando acionistas – o que indicaria uma possível solidariedade entre os agentes (executivos e acionistas) no nível econômico –, como também sustentam que o status de burguês não pode ser reduzido à propriedade dos meios de produção, uma vez que esse status inclui também a adoção de um estilo de vida marcado pela busca da distinção e pelas estratégias de reprodução dos privilégios sociais, com forte apelo para o cultivo do cosmopolitismo, da multiterritorialidade, enfim, para o reforço do habitus cosmopolita que privilegia sempre a dimensão internacional em detrimento da dimensão nacional.
Essa sociologia inspirada na obra de Bourdieu concebe, portanto, a burguesia como uma classe formada pelos grandes acionistas e pelos altos executivos. Apesar de haver uma permanência do patronato nacional na ocupação das posições dominantes das sociedades capitalistas avançadas, essa sociologia procura apontar para o fato de que os mecanismos que fundam e legitimam essas posições têm-se alterado com a mundialização financeira, o que tem propiciado a formação de uma burguesia internacional. Em resumo, se, no plano estrutural, essas análises ignoram ou subestimam o aspecto econômico da determinação de classe – pois relevam o elemento simbólico –, no plano conjuntural, essa abordagem teórica não nos permite indicar qual posição política a burguesia internacional tem tomado frente à chamada mundialização financeira. Ou melhor, ao fazerem a crítica do economicismo, essas análises superestimam a dimensão simbólica da determinação de classe da burguesia, o que as leva a difundir um outro tipo de reducionismo: o determinismo simbólico. Com, isso, os autores informados por essa perspectiva analítica não nos esclarecem o lugar ocupado pela dimensão política na definição da classe burguesa, nem mesmo dão importância à relação existente entre as dimensões política e econômica nessa definição.
2.2 Grandes firmas transnacionais versus Estado nacional?
Os autores vinculados à segunda variante explicativa – Michalet, 1996; Vernon, 1996; e Dicken, 1998 – não fazem referência à intervenção estatal na economia e sua relação com os interesses das grandes empresas multinacionais. Tais análises tendem a superestimar o papel das grandes corporações transnacionais, juntamente com suas subsidiárias, naquilo que denominam inusitada integração internacional dos mercados. O argumento central dessas análises é que, nas décadas recentes, conformou-se um sistema econômico mundial coordenado e regido estritamente de acordo com os interesses das grandes corporações transnacionais, as quais supostamente teriam tomado o lugar dos Estados nacionais na articulação das diretrizes econômicas e políticas internacionais.
Essa segunda variante explicativa sugere a ideia de que o espaço econômico internacional é praticamente uma emanação da vontade e dos interesses das grandes firmas transnacionais, sem vínculos com qualquer base nacional, daí advindo a imagem dos novos Leviatãs, que estariam livres de limites para agir e sobrepostos aos conflitos de classe – pois, como afirma Hobbes, a possibilidade de superar a condição de guerra de todos contra todos é instaurar um poder soberano que seja absoluto, isto é, que se conserve fora de quaisquer compromissos recíprocos ou obrigações.
Numa posição menos apologética do lugar ocupado pelas empresas transnacionais frente ao Estado no capitalismo contemporâneo, encontram-se as análises de Hardt e Negri. Na conhecida obra Império, esses autores sustentam que o período atual não é marcado pela “vitória das empresas capitalistas sobre o Estado”. Defendem que as funções de Estado – tais como a captação e distribuição de riqueza, a disciplina de suas populações – e aspectos constitucionais foram deslocados para níveis supranacionais. Ou, como asseveram (2003, p. 330):
“O reconhecimento de que as corporações transnacionais cresceram acima e além do comando constitucional dos Estados-nação não deveria, entretanto, levar-nos a pensar que mecanismos e controles constitucionais declinaram, que as empresas transnacionais, relativamente livres dos Estados-nação, tendem a competir livremente e a se autogerenciarem.”
Para aprofundar a discussão da relação Estado e capital, e para definir o que significa esse poder global, os autores afirmam a existência de uma “pirâmide da constituição global”. O cume seria representado prioritariamente pelos EUA, incluindo-se também Estados-nação vinculados ao G-7, aos Clubes de Londres e de Paris, Davos, entre outros. Logo abaixo, numa segunda camada do poder global, encontrar-se-iam as redes formadas pelas empresas capitalistas transnacionais no mercado mundial e, de maneira subordinada a essas empresas, “o conjunto geral de Estados-nação que agora consiste essencialmente em organizações locais, territorializadas” (p. 331-2). Na última camada, localizar-se-iam os grupos que representariam os interesses populares.
Assim, Hardt e Negri (2003) procuram demonstrar como o poder global está distribuído. Isso os leva a implicitamente definir a política como um jogo de soma-zero, no qual as empresas transnacionais passam a ser mais fortes que determinados Estados-nação, embora o mesmo não suceda em relação a outros Estados. Ao apresentarem uma concepção imprecisa de Estado - segundo a qual este representa os interesses do capital coletivo -, os autores não atentam à análise concreta do conteúdo das políticas implementadas pelos Estados nacionais. Desse ponto de vista, chega-se à inferência de que as empresas transnacionais podem desempenhar até mesmo a função de Estado.
Vinculados à segunda variante, há autores que enfatizam o processo de formação dessas grandes empresas transnacionais no espaço econômico mundial. Outros procuram dar relevância também à nova institucionalidade política engendrada por esse fenômeno, assim como tematizar tais questões a partir da análise das classes sociais - e não propriamente da categoria empresa, como é o caso dos autores supracitados. Fazemos referência aqui às análises de Robinson e Harris (2000). Estes defendem estar em curso um processo de formação de uma classe capitalista cuja acumulação não mais estaria fundada num espaço nacional. Essa nova classe dispensaria as ligações com os Estados nacionais de origem para promover seus interesses, que, inicialmente, passariam a ser transnacionais, podendo vir a se constituir em interesses globais, num futuro não muito distante, quando a questão nacional tivesse sido completamente superada.
Robinson e Harris (2000) salientam o total anacronismo da questão nacional na fase da chamada globalização. Assim, defendem a tese da constituição de uma classe capitalista transnacional, não identificada com nenhum país particular nem mesmo com sede em quaisquer dos países existentes. Para esses autores, os indicadores empíricos da integração transnacional dos capitalistas seriam os seguintes: o crescimento das corporações transnacionais, o aumento do investimento externo direto, a proliferação de fusões e aquisições para além dos limites nacionais, o crescimento de um sistema financeiro global e de inter-relações de posições dentro da estrutura corporativa global. Sob tal perspectiva, os conflitos no interior das classes dominantes basicamente se dariam entre frações nacionais descendentes e frações transnacionais ascendentes. O poder econômico das classes transnacionais estaria se concretizando aos poucos no plano político, com a formação de um Estado transnacional que se materializaria em instituições como o FMI, o Banco Mundial, a OMC.
É importante ressaltar que os autores mencionados oscilam entre a ideia de que a classe transnacional está em processo de constituição – o que os obriga a reconhecer os conflitos entre grupos transnacionais e nacionais – e a concepção de que uma classe capitalista global já está plenamente constituída – o que os leva a supor uma ordem em que não existe de fato Estado-nação nem interesse nacional; sob essa ordem, o conflito entre uma classe capitalista global e um proletariado global estaria, em breve, na ordem do dia.
2.3 Financeirização e fim dos fracionamentos de classe?
A terceira variante afirma que os processos de financeirização, de concentração e de centralização do capital tornaram possível a unificação dos interesses da burguesia em escala global, vindo a constituir a chamada “burguesia global”.
Essa variante tende a diminuir o papel do Estado no capitalismo contemporâneo e a sobrelevar a existência de conglomerados econômicos multifuncionais ou de empresas transnacionais, bem como a sugerir a abolição das diferenças entre as frações do capital na atualidade. Ou seja, os autores vinculados a essa variante explicativa buscam sustentar a ideia de que as burguesias vêm-se unificando em dois sentidos:
“Primeiro, a burguesia perde seu caráter setorial: ela deixa de ser industrial ou comercial ou bancária etc. para converter-se em burguesia “global”, cuja característica principal é o fato de ela manter seu capital sob a forma financeira e investido em múltiplas atividades. Segundo, a burguesia também aplica (especialmente através do mercado de títulos) seu capital em diferentes países e assim se internacionaliza.” (MIGLIOLI, 1996, p. 142)
Cabe-nos observar que, embora Miglioli (1998) passe a considerar a existência da concorrência capitalista e, pois, dos conflitos intraburgueses no capitalismo contemporâneo, por exemplo, ao afirmar que: “Esse processo de unificação da burguesia – através da financeirização do capital e de sua concentração e centralização – não elimina todas as contradições internas dessa classe.” (p. 43), conquanto Miglioli faça tal asseveração, esses conflitos são secundários frente ao processo de unificação, já que
“diferentemente dos capitalistas dos velhos tempos que eram proprietários diretos de suas empresas [...], os atuais capitalistas (principalmente médios e grandes) diversificam a aplicação de seus capitais em ações de sociedades anônimas em diferentes setores ao mesmo tempo, de modo que deixam de ser rurais, comerciais etc. e se tornam capitalistas multissetoriais; cria-se assim uma burguesia unificada, isto é, não fracionada setorialmente, em que todos seus membros têm interesses em todos os setores ao mesmo tempo.” (MIGLIOLI, 2006, p. 18)
As análises vinculadas à terceira variante explicativa novamente trouxeram à tona o prognóstico feito por Kautsky (2008), momentos antes da Primeira Guerra mundial, ao sustentarem que, entre as formações sociais imperialistas, têm-se articulado uma “santa aliança” entre as burguesias desses países. Isso demonstraria a atualidade da tese do chamado “ultraimperialismo”.
Odile Castel (1999) faz até mesmo a distinção entre a fase do capitalismo – marcada pela lógica geopolítica, quando se manifestam os conflitos políticos entre as grandes potências (iniciada em 1880 e encerrada em 1970) – e a fase que a autora chama de geoeconômica (iniciada a partir dos anos de 1970). Castel afirma, ainda, que: “Essa ruptura na lógica das relações internacionais mostra que hoje os Estados estão submetidos aos imperativos econômicos dos oligopólios mundiais em formação no processo de mundialização” (p. 125). Os traços fundamentais desse processo, segundo a autora, sintetizam-se assim: 1) a concentração de capital criou os oligopólios mundiais, que têm um papel decisivo na vida econômica das nações; 2) a fusão das instituições financeiras e do capital produtivo ocorreu em escala mundial; 3) o comércio intrafirmas tornou-se decisivo no comércio internacional; 4) houve uma partilha do mundo entre os oligopólios mundiais; 5) deu-se “a passagem de uma lógica geopolítica para uma lógica geoeconômica a serviço dos oligopólios mundiais nas relações internacionais” (p. 131).
Para os autores ligados à terceira variante explicativa, à medida que o processo de mundialização do capital avança, mais se efetivaria uma fusão da esfera financeira com a esfera produtiva, possibilitando a cooperação e as alianças entre os oligopólios mundiais, já que estariam em condições de superar os conflitos setoriais. Sob essa perspectiva, o Estado passa a ser visto como mero facilitador das atividades das grandes firmas transnacionais, quando intervém na economia para implementar as políticas de desregulamentação, de privatização e de liberalização das trocas comerciais. Ou melhor, para esses autores, a própria legitimidade do Estado só pode ser assegurada se este garantir o desenvolvimento contínuo das atividades das grandes firmas. Consequentemente, difundem a ideia de que os chamados oligopólios mundiais nunca perdem no capitalismo contemporâneo, uma vez que o Estado sempre estará pronto para defender cabalmente – e não apenas prioritariamente – os interesses dessa classe. Trata-se, aqui, da retomada da famosa ideia instrumental do Estado, entendido como vontade de uma única classe. Ou, em outras palavras, é a problemática dos teóricos do capitalismo monopolista de Estado que fundamenta essa concepção de Estado.
É notório que os autores vinculados à terceira variante explicativa operam num plano de abstração muito grande quando tendem a generalizar a ocorrência da financeirização. Isso os conduz a eclipsar as características da constituição do processo de financeirização nas formações sociais capitalistas. Estão sempre preocupados com a dimensão global ou mundial, como se a financeirização fosse um fenômeno universal atingindo, indiferenciadamente, todas as formações sociais. Além disso, tendem a apontar o fim das divisões setoriais entre capitalistas enquanto fenômeno recente e inédito do capitalismo, como se o grande e o médio capital se transformassem em multifuncionais ou multissetoriais apenas na conjuntura mais recente. Apresentando uma visão imprecisa de Estado, essas análises também não logram destacar os efeitos produzidos pela política estatal sobre o bloco no poder (3). Isso leva os autores a ignorar o fato de que o Estado burguês não atende plenamente o interesse de classe ou de fração de classe alguma, e que, por priorizar os interesses de determinadas frações de classe em detrimento de outras, o próprio processo de implementação da política estatal promove a criação e a dissolução de agregados sociais.
Ademais, como crítica à recuperação da tese do ultraimperialismo perpetrada por tais análises, destacaríamos, como já o fez Lênin, em O imperialismo fase superior do capitalismo, que: “Substituir a questão do conteúdo das lutas e transações entre grupos capitalistas pela questão da forma destas lutas e destas transações (hoje pacífica, amanhã não pacífica, depois de amanhã de novo não pacífica) é rebaixar-se à tarefa de sofista” (p. 74). Lênin adjetivava como sofista o argumento apresentado pelos defensores da tese do ultraimperialismo, entendendo que, ao descurarem da análise do conteúdo da política estatal e ao sugerirem de modo genérico e vago a ideia de um oligopólio mundial, Kautsky e seus discípulos acabariam sustentando, no limite, a tese de que o processo de consolidação dos monopólios elimina ou dá pouca vazão à concorrência entre capitais. No nosso entender, isso equivaleria a afirmar que o capitalismo supostamente poderia oferecer condições para uma repartição igualitária da mais-valia global.
3 Os principais limites da tese da burguesia mundial
Ao longo do texto, indicamos alguns dos limites das análises que defendem a existência de uma burguesia mundial no capitalismo contemporâneo. O passo seguinte será apontar de maneira aprofundada aquilo que entendemos como limites, ou melhor, como equívocos da tese da burguesia mundial.
No tocante à primeira variante explicativa, salientamos que, a despeito de indicarem que seu objeto de análise fundamental seja a classe capitalista ou a burguesia, na prática, realizam uma sociologia dos altos quadros. Ou seja, essas análises pautam-se por explicar como se reproduz simbolicamente a categoria dos altos quadros. Elas não levam a cabo uma discussão mais sistemática sobre a inserção dos agentes no processo de produção, ou ainda, a investigação sobre a relação existente entre os altos quadros e os grandes acionistas e a relação de ambos com os meios de produção. Na verdade, ao dar centralidade aos aspectos simbólicos, ideológicos e culturais que conferem unidade à classe capitalista transnacional (Sklair e Pijl) ou à burguesia mundial (Wagner e Pinçon-Charlot; Pinçon), esses estudos assimilam, direta e indiretamente, elementos importantes da ideologia da globalização. Como isso ocorre?
Em primeiro lugar, observamos que a discussão sobre o Estado não ocupa um lugar relevante na elaboração dessa sociologia dos altos quadros. Isso, de modo algum, coloca essas análises em conexão, mesmo que indireta, com a problemática da crise do Estado-nação. A ausência de uma reflexão da relação do Estado com os altos quadros ou com o que chamam de burguesia, parece indicar a ideia de que a política estatal não desempenha um papel importante na constituição desses aglomerados sociais.
Em segundo lugar, tais análises apontam para um processo de homogeneização dos componentes simbólico, ideológico e cultural da inserção social dos altos quadros, o que as conduz a apresentarem de maneira vaga e abstrata as noções de estilo de vida internacional ou habitus cosmopolita como caução de uma suposta unidade da classe capitalista transnacional ou da burguesia mundial.
Em terceiro lugar, os sociólogos dos altos quadros indicam como tendência a conformação de uma unidade de interesses dos altos quadros integral ou parcialmente desvinculados dos nexos nacionais, mas não logram demonstrar claramente como isso se manifesta, por exemplo, na ação política dos altos quadros. Um aspecto que nos chama atenção nas análises dos autores vinculados a essa variante é a inclusão dos altos quadros executivos no interior da classe capitalista. A propósito, é importante salientar que tais análises atêm-se, única e exclusivamente, aos aspectos formais de constituição dessa categoria, na medida em que não demonstram – ou mesmo que não podem demonstrar – o conteúdo político dessa unidade que conformaria a classe capitalista transnacional. O que conhecemos através dessas análises são apenas os aspectos mais gerais e abstratos dessa classe. Uma análise de conteúdo necessitaria da explicitação de determinados elementos para que a dimensão mais concreta ganhasse relevância. Assim, por exemplo, frente à implementação do neoliberalismo em escala mundial, que medidas específicas seriam matéria de consenso e quais delas integrariam politicamente a classe capitalista transnacional? Provavelmente não encontraremos, nessas análises dos altos quadros, qualquer resposta para tais questionamentos.
No que se refere à segunda variante explicativa, é visível a forma como assimilam a tese da crise ou do fim do Estado-nação. Para tais análises, a política operaria segundo a lógica de que quanto mais se ampliasse o poder das grandes firmas transnacionais, menos relevante se tornaria o poder do Estado nacional. Ocorre aqui o mesmo equívoco cometido pela primeira variante: não há nenhuma discussão sobre o conteúdo das políticas e sobre a forma como as grandes firmas transnacionais lograram obter um relativo protagonismo na conjuntura atual. Tudo se passa como se o Estado nacional não atendesse, desde sua consolidação, de modo desigual os diferentes interesses de classe e funcionasse apenas como uma espécie de caixa preta, na medida em que se projetaria efetivamente como uma instituição acima das classes sociais. Na melhor das hipóteses, ter-se-ia a constituição de um Estado transnacional para atender às demandas das classes transnacionais (ROBINSON, 2004) ou, numa outra versão, a constituição de um Estado que dividiria poderes com as grandes firmas. O argumento é circular, pois descura do fato de que um dos aspectos fundamentais de qualquer processo de implementação da política estatal seja que o Estado, salvo as conjunturas de crise de hegemonia, priorizará sempre os interesses de determinadas frações de classe em detrimento de outras. A forma de intervenção do Estado pode variar, mas a ideia de que o Estado possui poder próprio, desloca toda a problemática central, que é a de entender o Estado como um aparelho que organiza politicamente a burguesia e prioriza, nessa unidade, os interesses de certas frações em detrimento de outros (4).
Outro equívoco dessa segunda variante tem relação com a definição genérica de classe capitalista transnacional. Os argumentos apresentados sugerem que as burguesias não possuem uma base de acumulação nacional e que não repatriam seus lucros para suas matrizes localizadas, invariavelmente, nas metrópoles imperialistas.
Quanto à terceira variante, três aspectos fundamentais podem ser questionados. Em primeiro lugar, entendemos que a ideia dos grupos multifuncionais como fenômeno novo e típico do capitalismo contemporâneo parece ser bastante imprecisa. Ao tomarmos como exemplo os clássicos do imperialismo – tais como Hilferding, Bukharin e Lênin, que analisaram o processo de formação do capital financeiro –, notaremos que o processo de interpenetração de capitais já era algo que se desenvolvia fortemente nas metrópoles capitalistas do início do século XX. Esse processo resultou, inclusive, na passagem do capitalismo da livre-concorrência para o capitalismo monopolista. Nesse sentido, é possível indicar que a multifuncionalidade não é característica da fase atual, pois já no princípio do século passado, assistíamos a um processo avançado de interpenetração entre o capital bancário e o capital industrial, com a dominância do primeiro sobre o segundo. Ao analisarmos uma formação social dependente, também poderemos chegar à conclusão de que a multifuncionalidade não é um fenômeno novo do capitalismo. Vejamos, por exemplo, o caso da burguesia agroexportadora no Brasil da República Velha. Essa fração de classe não investia apenas na atividade de exportação de produtos agrícolas, mas era nessa atividade que os investimentos aplicados e os rendimentos obtidos se concentravam (PERISSINOTTO, 1994). O mesmo fenômeno ocorreu na formação dos principais bancos brasileiros, quando uma determinada família priorizava a atividade bancária, mas realizava investimentos em outras atividades econômicas (COSTA, 2002). Sob esse enfoque, talvez seja mais adequado afirmar que a multifuncionalidade é uma característica própria de alguns setores do capital os quais, por sua própria composição, possuem a capacidade de investir em mais de uma atividade, mas nunca deixando de priorizar aquela que lhes é mais rentável. Isso quer dizer que a despeito de poder investir e obter rendimentos em mais de uma atividade, um grupo capitalista multifuncional haverá de fazer a escolha na conjuntura política da atividade que considere principal ou dominante. Na conjuntura política, portanto, um grupo capitalista multifuncional particular tem necessidade de optar por aquela atividade que lhe ofereça maiores condições para a ampliação dos seus rendimentos, já que, como afirmamos acima, o modo de produção capitalista não permite, como sugerem os neoliberais, uma “ótima alocação de recursos”, isto é, uma repartição igualitária da mais-valia global (5).
Outro aspecto a ser questionado e que tem relação direta com a tese da multifuncionalidade é a própria caracterização do processo de financeirização, entendido como um fenômeno de alcance universal. Mais uma vez constatamos uma visão simplista e imprecisa no argumento das análises vinculadas à terceira variante explicativa. Como já indicamos acima, essas análises, quando se referem ao processo de financeirização, não esclarecem o plano mais concreto em que esse processo se efetiva, ou seja, ignoram a análise das formações sociais e apelam para uma análise geral do capitalismo, vindo a sugerir que a financeirização atinge todos os países do globo indistintamente.
Quando, por exemplo, caracteriza o que vem a ser o capital financeiro, Miglioli (1998, p. 40) afirma:
“É a este capital, materialmente constituído de papéis, que representam um direito de receber dividendos (lucros distribuídos) e um direito de votar nas assembléias de acionistas (quando se é possuidor de ações ordinárias) e que podem ser rapidamente convertidos em dinheiro através de suas vendas nas bolsas, que se dá o nome de capital financeiro.”
Ora, essa definição de capital financeiro opera com a ideia da dissociação completa existente entre a esfera financeira e a esfera da produção. Miglioli (2006, p. 18) explicita a existência dessa dissociação ao definir o caráter da burguesia financeira: “em lugar de possuir capital real (prédios, máquinas, equipamentos etc.) ela se converte em proprietária de capital financeiro, que compreende o dinheiro e papéis facilmente conversíveis em dinheiro (como as ações, os títulos de crédito etc.)”. Encontramos uma análise mais satisfatória do conceito de capital financeiro na obra de Lênin (1985), que aborda a interpenetração do capital industrial com o capital bancário sob a dominância deste último. Sob esse enfoque, embora constituam atividades distintas, o capital bancário e o capital industrial não são concebidos como atividades separadas, já que podem ser controlados por um mesmo grupo de capitalistas, no decorrer do processo de intensificação da concentração e centralização de capitais. Com isso, queremos sugerir que a ideia de um processo de financeirização universal é imprecisa, pois não atenta à particularidade histórica de constituição do capital financeiro em cada formação social capitalista.
O terceiro aspecto dessa variante explicativa a ser questionado diz respeito à ideia de internacionalização da burguesia. O argumento defendido por essas análises é o de que, na medida em que realiza aplicações em títulos em empresas de outros países, a burguesia se internacionaliza, perdendo, assim, os laços com seu Estado nacional de origem. Nesse caso, tal interpretação tende a ignorar, no limite, as relações de dominação e de dependência entre os Estados nacionais, sugerindo que o capital circula livremente pelo mercado mundial e que não se concentra em nenhum espaço nacional específico, já que as burguesias perderam seus laços sociais nacionais. Contrariando esse tipo de análise, Borón (2002) caracteriza a crença na livre mobilidade dos fatores produtivos como um mito, pois entende que a força de trabalho, o dinheiro, a tecnologia, as fábricas e os equipamentos estão todos sujeitos a certas restrições que impedem a sua livre mobilidade. Em relação à suposta existência de empresas globais e transnacionais, Borón (2002, p. 51) é contundente ao afirmar que:
“A retórica dos ideólogos da globalização neoliberal não consegue dissimular o fato de que 96% dessas duzentas empresas globais e transnacionais têm suas casas matrizes em oito países, estão legalmente inscritas nos registros de sociedades anônimas de oito países, e suas diretorias têm sua sede em oito países do capitalismo metropolitano [...] Seu alcance é global, mas sua propriedade e seus proprietários têm uma clara base nacional.”
Diante do exposto, só podemos concluir que a tese da existência de uma burguesia unificada e integrada mundialmente no capitalismo contemporâneo é parte componente da ideologia da globalização. Diferentemente do que prega essa ideologia, entendemos que o desenvolvimento desigual do capitalismo, a existência de diferentes Estados nacionais e a impossibilidade de ocorrência de um processo de repartição igualitária da mais-valia global são obstáculos estruturais à formação de uma classe dominante mundial ou global nos marcos do modo de produção capitalista. Se, por um lado, há um movimento expansivo do capital, que faz com que, no dizer de Marx e Engels (1977, p. 24), “a burguesia invad[a] todo o globo”; por outro lado, esse movimento ou processo não ocorre sem contradições – o que leva “a burguesia vive[r] em guerra perpétua; primeiro, contra a aristocracia; depois, contra as frações da própria burguesia cujos interesses se encontram em conflito com os progressos da indústria; e sempre contra a burguesia dos países estrangeiros” (p. 29).
A referência aqui feita ao Manifesto Comunista não é casual nem pretende reforçar acriticamente qualquer discurso de autoridade, mas visa tão somente a contestar a ideia defendida por Ianni (1998, p. 161) de que seria possível encontrar no pensamento de Marx e na tradição marxista “recursos metodológicos e teóricos fundamentais para a inteligência da globalização”. Ao contrário, consideramos que é mais adequado extrair, do pensamento de Marx e da tradição marxista, uma série de elaborações teóricas que nos afastam da problemática da globalização e também da visão essencialista das classes sociais. Isso nos leva a propor, de modo indicativo, uma abordagem alternativa para o estudo das relações intraburguesas no plano internacional.
4 Por uma abordagem alternativa das relações intraburguesas no capitalismo contemporâneo
Nas primeiras décadas do século XX, os conceitos de burguesia nacional e de burguesia compradora foram elaborados e difundidos pela tradição marxista para compreender o posicionamento das classes dominantes das formações sociais dependentes e semicoloniais frente à dominação das potências imperialistas.
O conceito de burguesia nacional foi elaborado para se referir a uma fração de classe da burguesia dos países dependentes e semicoloniais a qual possuía uma base própria de acumulação, agia interessada em ampliar o mercado interno, redistribuía renda visando à constituição de um mercado de massas e aceitava, sob pressão dos trabalhadores, a ampliação de alguns direitos sociais e trabalhistas. Em algumas situações históricas particulares, essa fração de classe chegou até mesmo a participar de frentes anti-imperialistas juntamente com setores populares – o que resultou, por exemplo, nas lutas de libertação nacional e nas revoluções democráticas do Pós-Segunda Guerra mundial.
Nos dias atuais, mesmo com a forte ampliação do processo de internacionalização do capital, não se exclui a possibilidade de formação de burguesias nacionais, em economias de enclave, caracterizadas por uma indústria pouco diversificada e um débil sistema bancário, como são os casos de Venezuela, Bolívia e Equador. Esses Estados distinguem-se das demais formações sociais latino-americanas pelo fato de seus governos avançarem significativamente numa política de nacionalização e estatização de recursos naturais e de empresas e serviços estratégicos, adotando medidas voltadas para uma maior redistribuição da renda, e, desse modo, chocarem-se diretamente com os interesses imperialistas e com as burguesias locais que dão sustentação política a tais interesses. A propósito, demonstramos aqui a nossa discordância em relação à tese fatalista de que as burguesias dos países dependentes estão fadadas à integração total e irrestrita ao capital imperialista.
Cabe ressaltar, ainda, que a aplicação do conceito de burguesia nacional, ao contrário do que supunha certa leitura mecanicista das classes sociais, não tem um alcance universal, isto é, o conceito de burguesia nacional não pode ser atribuído indistintamente ao estudo de todas as formações sociais dependentes e semicoloniais. Defender tal universalidade da aplicação desse conceito nos conduziria a assimilar acriticamente uma visão essencialista das classes sociais, em vez de recorrermos à “análise concreta da situação concreta”. Equívoco similar seria afirmar a inexistência da burguesia nacional enquanto fenômeno histórico.
O conceito de burguesia compradora foi formulado para referir-se à fração de classe burguesa que apoia integralmente os interesses imperialistas, não podendo, assim, ser incluída numa frente antiimperialista. Além de ser uma mera extensão do capital imperialista nos países dependentes e semicoloniais, essa burguesia não possui uma base de acumulação própria.
É importante ressaltar também que o emprego do qualificativo “compradora” para designar um setor da burguesia totalmente atrelado ao capital imperialista estava diretamente vinculado a uma fase do capitalismo em que as principais diretrizes macroeconômicas da economia mundial eram ditadas pelo comércio de mercadorias (importação/exportação). Como afirmam Hirst e Thompson (1998), se entre 1945 e 1973, a economia mundial era dirigida pelo crescimento do comércio internacional, a partir dos anos 1980, o crescimento do investimento externo direto é que ditaria as regras do mercado mundial. Assim, num período em que o capital monopolista se estabelece em nível mundial e em que a exportação de capitais assume o lugar do comércio de mercadorias, passando a subordiná-lo às suas diretrizes, parece-nos ser mais adequado evitar o uso do conceito de “compradora”, substituindo-o pelos conceitos de “burguesia integrada” ou de “burguesia associada”. Eles indicam, de modo mais preciso, essa nova realidade de setores das burguesias de alguns países dependentes, tornados simples “correias de transmissão” dos investimentos externos diretos provindos das potências imperialistas.
Se, ao longo do século XX, o debate acerca das relações intraburguesas no plano internacional tendeu a dar prioridade aos nexos existentes entre as potências imperialistas e as formações dependentes e semicoloniais – daí advindo os conceitos de burguesia nacional e de burguesia compradora –, a partir dos anos de 1970, Nicos Poulantzas procurou deter-se no estudo das relações existentes entre as burguesias das potências imperialistas, mais precisamente, na relação do capital imperialista hegemônico (dos EUA) com as burguesias européias.
Para tratar de tal tema, Poulantzas (1974; 1975) desenvolveu, de maneira original, o conceito de burguesia interna (ou interior), identificando, desse modo, uma fração burguesa que ocuparia uma posição intermediária entre a burguesia nacional e a burguesia compradora.
Para esse autor, a burguesia interna possuiria uma base de acumulação própria, estando conectada ao capital imperialista hegemônico; mas seria refratária a algumas das políticas de interesse desse capital. Essa fração se comportaria de maneira ambígua frente ao capital ou núcleo imperialista hegemônico, dada a sua própria situação contraditória de dependência e de autonomia em relação a esse capital.
O exemplo histórico a que Poulantzas recorre como referência é o das burguesias européias dos anos 1970, formadas como resultado do forte processo de internacionalização do capital naquele período. Devido à criação do Plano Marshall, financiado pelos EUA, visando reestruturar a economia dos países europeus afetados pela Segunda Guerra Mundial, o capital que passa a se consolidar na Europa, estrutura-se numa relação de forte dependência ao capital estadunidense. Como observa Poulantzas, as burguesias européias, no entanto, aos poucos iriam tentar construir uma relativa autonomia em relação a esse capital. Um exemplo disso foi a própria criação da Comunidade Econômica Européia, em meados dos anos de 1950, tendo como objetivo declarado a organização do livre comércio no continente europeu, mas visando, de fato, a articular certa autonomia em relação ao capital estadunidense. O resultado desse processo culminou com o surgimento das burguesias internas na Europa.
Farias (2009, p. 89), sintetizando a análise de Poulantzas, indica três formas de presença do capital estrangeiro na formação social:
“(...) o capital estrangeiro totalmente externo, mas com interesses internos (ação externa/interna); o capital estrangeiro internalizado (atua como capital local, mas envia dinheiro para a matriz); e o capital associado (nativo e estrangeiro, como no modelo joint ventures).”
E conclui que, a cada uma dessas presenças, a burguesia interna pode ter um tipo de reação, sendo “mais resistente com um e menos com outro desses tipos de capital estrangeiro”.
Ocorre que, embora as resistências em relação ao capital estrangeiro possam ser variáveis, dada a própria variabilidade da presença desse capital na formação social, para Poulantzas (1974; 1975), há uma característica comum a todas as burguesias internas: sua fragilidade político-ideológica perante o capital imperialista hegemônico – o que tendencialmente as impede de romper com esse capital ou exercer, a longo prazo, a hegemonia no bloco no poder, principalmente nas formações sociais que ocupam uma posição marginal no núcleo das metrópoles imperialistas, como são os casos da Grécia, Espanha e Portugal, analisadas por Poulantzas (1975).
Outra característica da burguesia interna é o seu interesse no desenvolvimento econômico, mas, ao contrário da burguesia nacional, a burguesia interna defende o desenvolvimento econômico voltado para a conquista do mercado externo. Não se trata, assim, de uma “burguesia fechada no espaço nacional”. Além disso, a burguesia interna é socialmente conservadora, pois não visa ampliar os direitos sociais e trabalhistas, visto que, para essa fração de classe, tais direitos implicariam o aumento dos custos de produção e a redução da competitividade dos produtos nacionais no mercado externo (SAES, 2007).
Caberia indagar ainda se o conceito de burguesia interna seria operacional para explicar o comportamento de certas frações burguesas das formações sociais dependentes. Embora não tenha desenvolvido tal hipótese, o próprio Poulantzas aponta essa possibilidade ao afirmar que:
“(...) pela “industrialização periférica”, núcleos de burguesia interna podem igualmente aparecer nas formações periféricas: se essas burguesias já não constituem mais as burguesias nacionais das fases precedentes do imperialismo, elas não se reduzem forçosamente ao que G. Frank designa como Lumpen-burguesias.” (1974, p. 72)
A aplicação do conceito de burguesia interna na análise das formações sociais dependentes indica, assim, uma terceira possibilidade de interpretação das relações intraburguesas no plano internacional, uma vez que o comportamento ambíguo dessa fração, ora de apoio, ora de resistência ao capital estrangeiro, assume nesse caso uma feição particular. Nas formações sociais dependentes, o capital imperialista tende a assumir um caráter compósito, já que um conjunto de capitais estrangeiros pode formar o núcleo hegemônico – e não apenas o capital imperialista hegemônico (por exemplo, os EUA). Isso produz efeitos sobre o próprio alcance das possíveis reações que esse tipo de burguesia interna pode articular frente ao capital estrangeiro, em especial ao capital imperialista, o que nos leva a denominá-la burguesia interna dependente, justamente para qualificar sua particularidade frente a outras burguesias internas, como, por exemplo, as européias.
Em decorrência da subordinação ao capital imperialista, a burguesia interna dependente tem muito mais dificuldades para se opor aos interesses desse capital. Tal situação pode ser atenuada, ou parcialmente neutralizada, de dois modos, fundamentalmente:
a) Por via da exploração em seu proveito das contradições interimperialistas, derivadas do agravamento de conflitos político-militares, da emergência de crises econômicas, da dificuldade das burguesias imperialistas para encontrar consenso nas negociações de comércio exterior (de mercadorias e de capitais), entre outros motivos. Isso significa que as contradições interimperialistas abrem brechas para que a burguesia interna dependente possa ampliar o seu poder de barganha nas negociações com o capital imperialista.
b) Por via da expansão do capital dessas burguesias internas sobre outras formações sociais. O exemplo mais recente desse processo é a forte influência que as empresas brasileiras passaram a ter sobre a economia dos países sul-americanos, o que tem resultado, até o presente, num crescente processo de internacionalização do capital das burguesias brasileiras.
Enfim, as indicações que apresentamos acima nos levam a concluir que urge ao pensamento crítico desvencilhar-se das armadilhas produzidas pela cantilena da globalização. Caso isso não ocorra, seremos convidados a assimilar a ideia de que o processo de internacionalização do capital está em vias de suprimir o desenvolvimento desigual do capitalismo e tende a projetar um tipo de capitalismo em que é possível a repartição igualitária da mais-valia global – o que significaria ausência dos conflitos intraburgueses e a emergência efetiva de uma burguesia mundial. Supor tal ideia nos parece tão irracional quanto um “logaritmo amarelo”.
(*) Danilo Martuscelli tem graduação em Ciências Sociais (2002), mestrado em Ciência Política (2005) e doutorado em Ciência Política (2013) pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). É atualmente docente do curso de Licenciatura em Ciências Sociais do campus de Chapecó da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) e membro do comitê editorial do blog marxismo21. O autor agradece a Andréia Galvão, Patrícia Trópia, Sonia Martuscelli e Tatiana Berringer pelos comentários e críticas que fizeram às primeiras versões deste texto. Este artigo foi publicado anteriormente no número 30 da revista Crítica Marxista (Brasil), em 2010. A convite dos editores da revista eletrônica O comuneiro, é aqui republicado sem qualquer modificação.
____________ NOTAS:
(1) A expressão “teoria neoliberal da globalização” foi empregada por Borón (2002).
(2) Tomamos emprestada de Althusser (1999) a concepção de ideologia como alusão e ilusão.
(3) O conceito de bloco no poder foi elaborado por Poulantzas (1972) para designar a unidade contraditória dos interesses das frações burguesas sob a dominância de uma das frações (a fração hegemônica). Sob essa perspectiva, o Estado burguês não pode atender igualmente aos interesses de todas frações burguesas. A implementação da política estatal favorece os interesses de determinadas frações em detrimento de outras. Ademais, observamos que, ainda que Poulantzas restrinja a aplicação do conceito de bloco no poder às formações sociais capitalistas, concordamos com Saes (1985, p. 93-5) quanto à possibilidade de se aproveitar esse conceito para a análise dos processos políticos nas formações sociais pré-capitalistas.
(4) A concepção de Estado capitalista como organizador dos interesses políticos das frações burguesas encontra-se desenvolvida sistematicamente em Poulantzas (1972). Nessa obra, Poulantzas emprega o conceito de fração hegemônica, já aludido acima (ver nota 3), para designar a fração burguesa que teria seus interesses priorizados pela política estatal. O autor também faz alusão à existência de uma única fração de classe que exerceria hegemonia no bloco no poder. Consideramos, no entanto, imprecisa a ideia de uma única fração exercendo hegemonia. Entendemos que a hegemonia política possui um caráter compósito, podendo combinar uma diferenciação interna da classe ou fração hegemônica, em termos de escala do capital (grande, médio e pequeno), e uma diferenciação segundo a função do capital (industrial, comercial e bancário), formando, assim, um “sistema hegemônico” (SAES, 2001) ou um “núcleo hegemônico” (FARIAS, 2009).
(5) É curioso notar que não são poucos os autores atualmente afetados pela síndrome da novidade: enquanto muitos sustentam a tese segundo a qual a multifuncionalidade do capital é um fenômeno novo no capitalismo, no campo dos estudos da classe trabalhadora, não são raras as análises que defendem o argumento de que a heterogeneidade da classe trabalhadora seria supostamente um fenômeno típico do capitalismo contemporâneo, quando, na verdade, trata-se de um aspecto estrutural da constituição dessa classe.
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