A luta pela propriedade vital no Agro e na Urbe hoje

 

 

José Brendan Macdonald (*)


RESUMO

A propriedade vital ou controle do conjunto dos meios de produção que garante a reprodução da vida desde os primórdios da sociedade de classes é controlada hoje por uma minoria quando não pelos trabalhadores diretos que ainda conseguiram mantê-la. Pelo menos a partir do século XVI, primeiro na Europa e ainda hoje em países da periferia do mundo ocorre o fenômeno da expulsão de camponeses. Como reação autodefensiva ocorre a ocupação camponesa de latifúndios hoje em países do Terceiro Mundo. Principalmente lá também ocorre um fenômeno semelhante à tomada de terras de latifúndios, a saber, a ocupação de fábricas e outras empresas urbanas pelos trabalhadores quando os capitalistas já não conseguem mantê-las por insuficiência de lucros. Aqui são focalizados principalmente os casos do Brasil em se tratando da ocupação de latifúndios por camponeses e os da Argentina e do Brasil em se tratando da ocupação de fábricas e outras empresas urbanas.

1. Introdução

 

A propriedade dos meios de produção, desde que garantida em termos minimamente seguros, é uma arma para a sobrevivência. Se essa propriedade tem dimensões e características satisfatórias, seu dono goza da segurança política necessária para sua sobrevivência. E de acordo com essas dimensões e características, a sobrevivência política será maior ou menor, mais provável ou menos provável (1). Por isso a chamamos de propriedade vital.

 

Nos primórdios ou pré-história da humanidade a terra era um bem comunitário, um bem da comunidade local como um todo. Isto ocorria naturalmente durante todo o período neolítico pois o conglomerado humano típico, que ocorria através da aldeia, raramente ultrapassava 400 almas. Em épocas posteriores, isto é, a partir da vigência das sociedades de classes, a terra se tornou propriedade de alguns às custas de outros na qual os segundos trabalham sob as ordens dos primeiros, amiúde vivendo precariamente em razão da limitação de seus direitos em comparação com os dos proprietários. A presença dessa propriedade vital é a maior garantia política para a soberania de um grupo humano.

 

Hoje nos albores do terceiro milênio – embora não só hoje – existem dois fenômenos que desafiam esse tradicional arranjo discriminatório dos meios de produção que são a terra e os pertencentes à empresa mercantil urbana. Referimo-nos às ocupações de fazendas e empresas urbanas (estas últimas quase sempre fábricas) pelos trabalhadores. As ocupações de latifúndios se vêm tornando relativamente freqüentes no Brasil nas últimas décadas. As ocupações de fábricas ocorrem notoriamente no Brasil e na Argentina nos últimos vinte anos, mas também têm ocorrido com menor persistência em outros países. No caso dos latifúndios os novos ocupantes apostam em serem beneficiados por uma reforma agrária supostamente em vigor ou, na ausência desta, na força de seu próprio movimento. No caso das fábricas e outras empresas urbanas apostam na aceitação eventual da ocupação pelo Estado e geralmente têm a estima da opinião pública.

 

No presente artigo pretendemos fazer alguns comentários sobre esses dois fenômenos – que de certa forma podem ser vistos como variantes do que é essencialmente um só fenômeno – a saber, a luta pela propriedade como fonte de reprodução da economia tanto no agro como na urbe. O tema é muito complexo. Mesmo assim, pretendemos limitar-nos ao que vemos como seus aspectos principais ou mais marcantes.

 

2. A conquista da propriedade vital terra

 

Um dos primeiros exemplos da luta pela terra ocorreu, como nos lembra Marx, com a usurpação de terras camponesas por novos e poderosos aventureiros (2). Isso fez parte da acumulação primitiva ou histórica de capital (3). No Brasil e outros países da periferia do mundo esse fenômeno ocorre até hoje.

 

Mas aqui queremos considerar o fenômeno que corre no sentido contrário: a ocupação de latifúndios por camponeses. Este fenômeno não raro é uma reação ou prevenção contra o fenômeno anterior ao que acabamos de nos referir. Ocorre no Brasil e outros países periféricos. Trata-se de uma luta pelo que chamaremos de propriedade vital . A propriedade vital é todo meio de produção pelo qual a economia, isto é, a reprodução da vida, é garantida. Milhões de trabalhadores hoje sobrevivem, é verdade, sem meios de produção próprios, inclusive não raro em condições tidas como satisfatórias. Mesmo assim, isso representa um risco na medida em que não é o trabalhador mas sim fatores outros quem determinam a capacidade de sobrevivência deste. A necessidade de um trabalhador vender sua força de trabalho em razão da falta desses meios de produção é uma dramática realidade até os dias que correm. Queremos aqui considerar isso no tocante ao meio de produção terra e mais adiante aos meios de produção úteis para atividades em fábricas e outras empresas urbanas.

 

Conflitos hoje entre camponeses e proprietários (que podem ser pessoas ou famílias locais ou empresas nacionais ou multinacionais oriundas de fora) girando em torno da propriedade de um latifúndio seguem determinado padrão. Um latifundiário pode vender sua propriedade a terceiros ou, o que é muito mais freqüente, o proprietário morre e a terra fica para seus herdeiros legais. Estes vêem os camponeses moradores históricos da propriedade como empecilho para suas intenções para o uso da mesma - seja como empresa produtiva visando o lucro ou então terra ociosa a valorizar em termos de especulação pura - e começam a expulsar os mesmos. Assim vendo sua sobrevivência mortalmente ameaçada, os moradores históricos em boa parte recorrem a uma assessoria ligada a uma igreja ou a outra entidade ao passo que outra parte, intimidada a perder todo o ânimo para uma resistência, desiste de qualquer luta e vai embora. Os que resistem enfrentam uma luta contra táticas terroristas de vários tipos pelos novos donos e essa luta pode durar anos. A vontade do direito de ganhar o pleno reconhecimento da propriedade da terra pode também até contaminar alguns outros camponeses que nunca moraram no latifúndio, e sua participação é aceita pelos moradores históricos. O reconhecimento do direito legal à terra não é fácil pois, nem sempre mas inúmeras vezes sim, a tendência da justiça é de um viés favorável aos proprietários e ela dificulta até onde pode a consolidação legal da propriedade doravante como propriedade dos camponeses. Mas uma vez ocorrida esta, a terra é parcelada em propriedades para cada família camponesa embora existam alguns casos de fazendas que são a propriedade coletiva de todas as famílias envolvidas. Assim se estabelece um assentamento da reforma agrária nos países onde existe tal reforma.

 

É claro que o ânimo desses camponeses pobres de insistir nessa luta será até certo ponto maior na medida em que viverem num regime formal de Estado de direito democrático e em que houver alguma lei de reforma agrária. Mas mesmo no caso de países sujeitos a um governo claramente autoritário e sem legislação clara sobre uma reforma agrária, a necessidade de sobreviver através de uma propriedade vital da terra fará com que se insista numa luta pela terra. A não adesão à mesma pode significar a garantia de uma miséria absoluta sem solução. Mesmo assim muitos não se animam contra inúmeras dificuldades para participar dessa luta. Mas muitos outros por sua vez acham que os altos riscos dessa luta pesam menos que uma condenação à miséria pelo resto de suas vidas.

 

No Brasil os conflitos entre camponeses e proprietários em torno da propriedade da terra ocorrem nos termos acima indicados no período autoritário (1964-85) como também no período posterior até os dias de hoje. Mas também há lugares em que eles ocorrem em termos um tanto diversos.

 

No estado indiano de Orissa, por exemplo, há o caso dos grupos tribais que lutam pelo direito à terra para ganhar sua sobrevivência. Reclamam terras que dizem ser suas desde tempos imemoriais e que lhes foram tomadas por fraudes, não raro com aproveitamento do seu analfabetismo. Havia mais de 45.000 casos em disputa na justiça a resolver ainda em 2009 (4).

 

Na Indonésia, outro país multi-étnico como a Índia, não há uma definição clara para a propriedade da terra. Apenas um terço ou menos das terras tem títulos definidos. Daí há inúmeras disputas. O que está estabelecido é o princípio de “a terra para quem a trabalha” mas inúmeras vezes ele não é respeitado. Em 1960 se decretou uma reforma agrária mas ela nunca foi eficazmente implementada. Há muitas disputas, a maioria não formalizada na justiça, entre pequenos agricultores. Muitos camponeses, estimulados pelo Partido Comunista, tomaram terras. Num cenário de muita pobreza, o Presidente Abdurrahman Wahid reconheceu em 2000 que 40% das propriedades governamentais tinham sido roubadas aos camponeses (5).

 

3. A conquista da propriedade vital fábrica ou outro tipo de empresa urbana

 

No Brasil e na Argentina está ocorrendo nas últimas décadas um processo de tomada de empresas urbanas pelos trabalhadores. Algo semelhante está ocorrendo na Venezuela e alguns outros países latino-americanos também mas hoje quase não vem ocorrendo em países de fora da America Latina (6). O que ocorre é que os proprietários, notando um desempenho insatisfatório da empresa, resolvem abandoná-la já que sua manutenção seria mais desvantajosa em termos de lucros do que vantajosa. Assim, tais proprietários são não raro investidores um tanto menos expressivos embora alguns possam ser de grupos empresariais maiores. Ao enfrentarem novas dificuldades, atrasam os salários dos trabalhadores com a intenção de não pagá-los. Muitas vezes retiram algumas máquinas e peças de suas fábricas fracassadas. Quando temem a iminência de uma ocupação pelos trabalhadores, destroem ao menos parcialmente as máquinas e equipamentos que não têm tempo para retirar. Os novos gestores resolvem continuar produzindo por conta própria e ganhar o respeito dos clientes. Como ocorre nos casos de conflitos em torno da terra, alguns trabalhadores não continuam trabalhando na unidade de produção. Os trabalhadores que ficam e os donos formais que se desinteressaram pela continuação da produção lutam na justiça. São freqüentes os casos em que a justiça, pelo menos no sentido um tanto passivo de não penalizar os trabalhadores, não proíbe a continuação dos trabalhadores com a organização da empresa. São menos freqüentes os casos em que a justiça deixa bem claro que concorda com a atitude dos trabalhadores. Afinal prevalece a mentalidade do Estado burguês. Os novos administradores têm que lidar com sua falta de experiência anterior com o governo da empresa e, especialmente em se tratando de fábrica, têm que lidar também com boa parte das máquinas e equipamentos que são velhos. Mas na medida em que trabalham com o máximo possível de eficiência, ganham a confiança e o respeito dos clientes. A opinião pública também tende a lhes ser favorável já que, diferentemente dos camponeses que ocupam latifúndios, seu caso, exatamente por ocorrer na cidade, é mais visível para todos.

 

Segundo publicação da SENAES ou Secretaria Nacional de Economia Solidaria, instituída em 2003 e subordinada ao Ministério do Trabalho e Emprego, haveria 174 empresas recuperadas no Brasil em 2005 (7). Já na Argentina, na segunda metade da década de 2000, haveria cerca de 200 empresas recuperadas pelos trabalhadores (8).

 

4. Movimentos sociais de repercussão nacional no Brasil e na Argentina

 

Finalmente é importante frisar que a organização de movimentos sociais para defender e promover os interesses dos trabalhadores de um país é uma fonte de muita força. É o caso do que fazem os trabalhadores rurais do Brasil e dos trabalhadores das fábricas ocupadas da Argentina. O que provoca o surgimento de tais movimentos no caso do agro é a expulsão dos moradores históricos das fazendas ao passo que no caso da urbe se trata da ocupação de fábricas ou outras empresas abandonadas pelos empresários capitalistas – tudo isso como expusemos sucintamente acima.

 

Em outubro de 1985 uns camponeses conseguiram ocupar a Fazenda Anoni, um latifúndio improdutivo no estado do Rio Grande do Sul. Inspirados pelo êxito do caso, alguns camponeses formaram um grupo, a ser conhecido como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra ou simplesmente Movimento Sem Terra ou MST, o qual aos poucos chega a se envolver em âmbito nacional. O MST se dedica a ocupações de latifúndios improdutivos com a intenção de promover a exploração de boa parte de suas áreas por agricultores. Isto geralmente quando um novo proprietário, por herança ou compra, assume a propriedade da fazenda e resolve expulsar seus moradores históricos. O MST tem o apoio de boa parte do episcopado da Igreja católica. Outros movimentos de repercussão menor com essa mesma finalidade são formados. Naturalmente o Estado geralmente, notoriamente recorrendo ao emprego de forças policiais, não costuma ver essas ocupações com bons olhos. Mas o desejo de deixar de passar fome impele milhares de trabalhadores a aceitar esse desafio. Além do MST alguns poucos outros movimentos rurais de menor repercussão e menos conhecidos agem numa linha semelhante.

 

Quanto à Argentina, toma corpo o Movimento Nacional de Fábricas Recuperadas pelos trabalhadores ou MNFR. Seu ponto de partida foi a decisão dos trabalhadores de uma fábrica da província de Buenos Aires em 2000 de ocupá-la quando souberam que seus donos tinham desistido de continuar com ela e resolvido retirar máquinas e equipamentos. Essa resistência dos trabalhadores, que não foi fácil, deu certo e posteriormente, até os dias que correm, cerca de 200 casos semelhantes, como já vimos, se concretizaram. Fica comprovado que os trabalhadores não precisam depender de capitalistas para orientar a produção, administração, vendas e comercialização dos produtos. Assim fica comprovado que, ao contrário do que pressupõem muitos, o trabalhador é capaz de organizar a produção ao invés de apenas executá-la. Nas fábricas ocupadas a produtividade do trabalho tende a aumentar. Formou-se também na Argentina o Movimento Nacional de Empresas Recuperadas cuja atuação tem basicamente o mesmo propósito da do MNFR.

 

No Brasil, na Argentina e em muitos outros países não existe uma legislação clara e inequívoca para resolver para os trabalhadores a questão do destino do direito de propriedade de uma fábrica ou de uma fazenda mesmo quando isso significa que a própria sobrevivência dos trabalhadores corre o risco de desaparecimento. Neste sentido, o direito de propriedade dos donos originais tende a ter prioridade sobre a pretensão de direito de propriedade dos trabalhadores mesmo em casos de abandono da exploração do local pelos proprietários. Assim, o direito de propriedade é absolutizado para uns a ponto de negar o direito de sobrevivência para outros. Não é de estranhar portanto que surgem conflitos, não raro dramáticos, no agro e na urbe, a esse respeito. A propriedade burguesa permanece em um alto pedestal e, ao que parece, o número de juízes que entretém esse sentimento e raciocínio é maior que o dos que questionam o pressuposto de que o caráter burguês da propriedade é incontestável.

 

5. Nesses conflitos o que pensam e o que querem os trabalhadores?

 

Ao longo da história o trabalhador – o escravo, o servo da gleba, o trabalhador rural ou urbano de hoje – se encontra num estado inferior frente a seu patrão.  Por um processo de internalização ele até pode chegar a pensar que o patrão é quem de direito tem a razão e daí que uma reação à situação vigente não procede moralmente (9). Mas também é verdade que surgem momentos onde o trabalhador tem que partir para uma visão mais crítica do status quo. Isso ocorre quando o grau de exploração se intensifica ou, mesmo sem que se intensifique, o trabalhador é conscientizado da injustiça do arranjo, o que não raro ocorre em razão de um processo de conscientização e reivindicação de direitos que um novo ator social propõe. Esse novo ator pode ser um sindicato, um partido político de pendores revolucionários ou até mesmo um grupo que, negando seu comportamento comodista e elitista de tempos idos, começa a condenar – como é o caso de boa parte do clero e até do episcopado da Igreja católica no Brasil – as injustiças que caracterizam o status quo.

 

Assim, essa subordinação que castra o simples desejo de viver uma vida digna é vista finalmente como aquilo que ela realmente tantas vezes é: uma castração. O trabalhador é reduzido a uma besta de carga, a uma criatura que só pode e deve ser orientada pelo chicote. Mas graças à insólita coragem e ousadia de novos personagens o trabalhador é conscientizado do seu valor e junta coragem para resistir. Certamente isso acarreta um novo sofrimento mas este é enfrentado com a esperança de se alcançar a prazo maior vantagens que ultrapassarão todo o sacrifício necessário (10).

 

Nesses momentos de maior percepção, os trabalhadores não escondem sua revolta. É o que se vê, por exemplo, nas atitudes de camponeses ameaçados de expulsão de um latifúndio no Nordeste do Brasil quando seu novo dono ameaça expulsá-los: “Tudo que a gente quer é um pedaço de terra onde a gente possa plantar nossa própria comida. A gente quer ser livre, a gente quer viver!” Ou outro caso da necessária decisão de camponeses de não largar o latifúndio onde trabalham há anos: frente à perspectiva de “viver em terra alheia em estado de miséria e sendo explorados no alugado mais valia lutar pela conquista de uma terra improdutiva que não servia a ninguém” (11).

 

Se é assim que nas ocasiões de expulsão se expressa o humilde trabalhador rural, o que ocorre em semelhantes ocasiões nas fábricas e outras empresas urbanas não é muito diferente. Pois em ambos os casos se trata de uma luta pela sobrevivência, pela própria vida. A tomada de uma fábrica ou outra empresa urbana tem características que brindam um novo modo de ser para os trabalhadores não só no tocante ao seu papel de produtores mas também no tocante a outros aspectos de sua vida também. Como comentou um trabalhador da Flaskô, fábrica recuperada de bombonas na Grande São Paulo: “Dentro da fábrica melhorou muito. Havia uma animosidade entre os trabalhadores. Os encarregados dificultavam essa relação. No geral melhorou muito”. Ou ainda outro trabalhador da mesma empresa: “Os trabalhadores trabalham mais contentes, são amigos, têm a liberdade de tomar um cafezinho, fumar um cigarro, não têm o patrão ou um encarregado controlando o tempo que você gastou no banheiro.” Na fábrica recuperada de cerâmica Zanón no oeste argentino, um dos operários se expressou assim: “Aqui o lindo é que você chega a qualquer lugar e vê dois ou três reunidos, quatro reunidos, há companheiros sempre falando, dialogando, tomando mate e trabalhando ao mesmo tempo também” (12).

 

Além do mais, numa empresa recuperada todos abandonam o cumprimento monótono de uma única tarefa e a tendência é fazer um rodízio onde todos conhecem e sabem cumprir várias funções. Não há gerentes. Os trabalhadores agora têm auto-estima. Geralmente as famílias que moram perto da empresa simpatizam com a causa dos trabalhadores desde o início do conflito com os proprietários capitalistas quando os trabalhadores não raro têm que enfrentar cacetadas da policia e, uma vez que os trabalhadores consolidam sua direção da empresa, essa simpatia continua. Em muitos casos fábricas recuperadas têm estabelecido junto a si centros comunitários e culturais em benefício dos bairros onde se localizam. Já não é preciso gastar com as suntuosas remunerações dos antigos patrões e pode-se gastar inclusive com projetos culturais. A produtividade e a produção tendem a aumentar.

 

6. À guisa de conclusão

 

Aqui realçamos, embora não em termos aprofundados, os casos da Argentina e Brasil (com um olhar muito limitado sobre dois países asiáticos) no tocante à luta na urbe e o do Brasil no tocante à luta no agro. Isto porque conhecemos melhor as realidades dos dois países latino-americanos nesses termos.

 

Como vivemos na época do Estado burguês, moldado e mantido de acordo com os ditames do grande capital, é necessário assumir uma luta sem trégua contra esses interesses elitistas. Essa luta é provocada pelo seu sujeito mais forte e este é protegido pelo Estado burguês que tem aparelhos eficientes como a justiça e a polícia via de regra a seu favor. Daí a dificuldade enorme da luta do trabalhador contra esse protagonista poderoso.

 

É preciso que haja uma legislação específica que estabeleça uma reforma agrária e que estimule ao capitalista a venda de sua fábrica aos trabalhadores em termos mutuamente interessantes no caso de não mais ficar com ela. É claro porém que nem tudo poderá ser resolvido por semelhante legislação. Pois muitos capitalistas não a respeitarão e é provável que isso ocorra impunemente por muito tempo. Assim, a longa luta entre capital e trabalho em torno da propriedade e o direito de usá-la ainda está longe do fim.

 

O que é favorável à causa popular no agro e na urbe é a determinação de muitos trabalhadores de continuar com a luta. Essa determinação não é fácil obter e não é à toa que vemos que muitos trabalhadores não chegam a tê-la. A luta continuará ainda durante muito tempo.

 

Os trabalhadores rurais do MST popularizaram seu lema “ocupar, resistir, produzir.” Os trabalhadores da indústria e outras atividades urbanas do Brasil e da Argentina adotaram esse mesmo lema. Assim, essa causa popular vai sendo conhecida mundo afora e, fora os não poucos casos bem sucedidos da campanha de engano da mídia, a opinião pública, especialmente quando vê essa luta mais de perto, tende a ser favorável aos trabalhadores.

 

 

 

 

 

(*) José Brendan Macdonald, sociólogo e também doutor em história, é professor emérito da Universidade Federal da Paraíba, onde faz trabalho voluntário na INCUBES (Incubadora de Empreendimentos Solidários), trabalho comunitário sobre geração de ocupação e renda. É pesquisador principalmente no campo de economia solidária.

 

 

_______________

NOTAS:

 

(1) Não negamos a possibilidade da existência de fatores apolíticos como a clemência ou inclemência da Natureza para a sobrevivência ou não de uma comunidade humana. Mas tais fatores não entram na presente discussão.

 

(2) Thomas More, humanista inglês do século XVI, se referiu à crueldade desse processo que já virara rotina no seu país (e em outras partes da Europa também): “Assim, um aventureiro faminto fecha, num cercado, milhares de jeiras; enquanto que honestos cultivadores são expulsos de suas casas, uns pela fraude, outros pela violência, os mais felizes por uma serie de vexações e de questiúnculas que os forçam a vender suas propriedades.”  A Utopia [1516], p. 45, Livro Primeiro, Edições de Ouro, Rio de Janeiro, sem data.

 

(3) Karl Marx, O capital, Livro1, capítulo 24, o que veio a lume em 1867.

 

(4) Bibhuti Pati Narayanpatna, Whose land is it anyway?: An article on Koraput land struggle.

 

(5) Who owns the land? Peasant struggles in Indonesia, tirado de material de Wildcat, n.º 90, verão de 2011.

 

(6) Para este último tipo de caso veja Macdonald, José Brendan e Faria, Mauricio Sarda de, “Fábricas recuperadas na América Latina e além – Uma questão para hoje e amanhã?”, especialmente a seção intitulada “O Fenômeno Fora da América Latina” a aparecer.

 

(7) Dado citado por Thais Linhares Juvenal, que explicita sua fonte exata, em “Empresas recuperadas por trabalhadores em regime de autogestão: Reflexões à luz do caso brasileiro”, p. 121, Revista do BNDES, Rio de Janeiro, volume 3, n.º 26, p. 121, 2006.

 

(8) Para este último caso veja Ruggeri, Andrés et alii, Las empresas recuperadas en la Argentina 2010, p.133-139, Ediciones de la Cooperativa Chilavert, Buenos Aires, 2010. Aí o autor faz uma lista de todas as empresas em questão.

 

(9) Aliás, até o termo patrão deriva do latim pater, o que significa pai. O patrão deve ser tido como um pai para o trabalhador.

 

(10) É verdade que há muitas ocasiões em que a exploração do trabalhador pelo patrão se mantém num nível de respeito mútuo, isto quando o grau de exploração não é elevado, como ocorre muitas vezes (mas certamente não sempre) quando o patrão é um pequeno capitalista. Nosso enfoque aqui é porém sobre o outro caso que ocorre com tanta freqüência notória.

 

(11) Dois casos de depoimentos de humildes trabalhadores rurais encontrados em Macdonald, José Brendan, “Os conflitos de terra na Paraíba, 1972-1995”, p. 149 e 147, tese de doutorado em história, Universidade Federal de Pernambuco, 1995.

 

(12) Estas três citações se encontram em Chedid, Flavio, “Empresas recuperadas no Brasil e na Argentina”, p. 257 e 240, tese doutoral, Rio de Janeiro, 2012.