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A propósito da morte de Hugo Chávez Frías
Miguel Judas (*)
1. A Revolução Bolivariana Socialista na Venezuela e Portugal
Muito poucas pessoas em Portugal têm acompanhado o desenvolvimento da Revolução Bolivariana na Venezuela desde o seu início, enquanto processo de exercício do poder, em 1999, com a vitória eleitoral de Hugo Chavez para a Presidência da República.
A Revolução passou, globalmente, pelas seguintes fases principais:
1ª – De ofensiva – 1999-2001 – Consistindo: na realização de um referendo para abertura de um processo constituinte; na eleição de uma Assembleia Constituinte; na elaboração e aprovação, por referendo, da nova Constituição; na eleição da nova Assembleia Nacional, na reeleição presidencial de Hugo Chavez e, finalmente, na aprovação de leis estruturantes do novo regime democrático, designadamente as Leis de Terras, de Hidrocarbonetos e de Pesca.
2ª – Defensiva – 2002-2004 – Consistindo na derrota das diversas tentativas da velha oligarquia para reverter todo o processo de mudanças, através de: sucessivas acções de desestabilização mediática, económica e institucional, designadamente paralisações empresariais e laborais; o golpe de Estado de Abril de 2002; agitação e confrontações de rua, a paralisação geral do sector petroleiro e outros sectores económicos, entre Dezembro de 2002 e Fevereiro de 2003; e, finalmente, o referendo revocatório do mandato do Presidente da República em Agosto de 2004, ganho por Chavez com cerca de 60% dos votos. Intensificação da campanha mediática internacional visando a diabolização de Hugo Chavez.
3ª – Consolidação – 2005-2006 – Consistindo na estabilização da vida nacional; na criação de Petrocaribe (aliança solidária entre a Venezuela e grande numero de países do Caribe em matéria petrolífera), da ALBA (aliança de sentido integrador bolivariano dos povos, com incidência social, económica, cultural e política entre a Venezuela, Cuba e Bolívia) e, no campo da informação televisiva internacional, da Telesur; no relançamento do papel da OPEP; na vitória eleitoral bolivariana para a Assembleia Nacional e na vitória eleitoral de Chavez nas eleições presidenciais de 2006.
4ª – Ofensiva – 2007-2013 – Consistindo na declaração da orientação socialista da revolução no quadro da Democracia, perdendo no entanto o regime o referendo para alterar a Constituição nesse sentido (Dez 2007); num avanço extraordinário dos programas sociais do Governo (saúde, educação, alimentação, habitação, regime de aposentações e desenvolvimento cultural); no acelerado desenvolvimento da rede de estruturas comunais e na transmissão de poderes e recursos para esta; no lançamento das bases de uma nova economia produtiva não capitalista, com vista a substituir progressivamente a actual economia rentista baseada no petróleo. No plano externo: no forte desenvolvimento da integração regional da América Latina e Caribe, compreendendo: o alargamento da ALBA a mais 5 países (Nicarágua, Dominica, San Vicente e Granadinas, Equador e Antígua y Barbuda), abrangendo hoje perto de 72 milhões de habitantes; criação da UNASUR, integrando todos os países da América do Sul; entrada da Venezuela no Mercosur; criação da CELAC, integrando todos os países da América Latina e Caribe; no desenvolvimento de amplos programas de cooperação solidária com muitos países latino-americanos e do Caribe e no incentivo e apoio ao processo de paz na Colômbia; na projecção internacional da Revolução no âmbito da luta global pela dignidade e soberania dos povos, da preservação do Ambiente e do estabelecimento de um mundo multipolar. De assinalar ainda, no plano interno, a nova vitória eleitoral bolivariana nas eleições parlamentares de 2010 e, em 2012, na reeleição presidencial de Hugo Chavez e na grande vitória eleitoral para Governadores em 20 dos 23 Estados Regionais que integram o país.
Nas cerimónias fúnebres de Hugo Chavez estiveram presentes 36 Chefes de Estado e de Governo e inúmeras representações internacionais e movimentos sociais de todo o mundo; mais de 50 Estados declararam luto; a Assembleia-geral da ONU e a OEA realizaram sessões especiais de homenagem a Hugo Chavez.
Aquilo que, há uns anos atrás, foi considerado um epifenómeno, sem qualquer influência no “curso normal” da história do Capitalismo neoliberal, transformou-se num processo de forte e directo impacto em toda a América Latina e Caribe e grande influência à escala planetária.
A Revolução Bolivariana Socialista promovida e dirigida pelo Comandante Hugo Chavez veio provar, no concreto, que “Outro Mundo é Possível” quando o Homem se torna a origem e a finalidade de toda a vida social e quando os anseios por uma vida feliz se sobrepõem ao lucro e à “competitividade”; veio provar que as palavras Igualdade, Justiça Social e Socialismo não correspondem a utopias de excêntricos ou “bem-intencionados”; que as palavras Liberdade e Democracia podem encerrar conteúdos muito mais ricos e vibrantes do que a liberdade dos sistemas financeiros e as democracias “faz-de-conta”, meramente mediáticas, corruptas e constrangedoras dos direitos de cidadania, como a nossa actual.
Curiosamente, em Portugal pouco se fala de Chavez e da Revolução Bolivariana. Eu, pessoalmente, que acompanho de há muito essa Revolução e, normalmente frequento os meios “progressistas” ou de “esquerda”, não deixo de sentir a incomodidade de muitos dos meus interlocutores quando abordo o tema. Poderei arriscar uma explicação que, não se aplicando a cada um de forma idêntica, me parece abrangente.
Julgo haver duas ordens de razões:
Por um lado, a grande desinformação sobre o assunto promovida junto da sociedade portuguesa pelos principais órgãos de comunicação social, tanto por incompetência ou medo como por, intencionalmente, aceitarem fazer parte de um sistema ávido de petróleo e de sofrimento humano, que procura fazer cair a Venezuela Bolivariana, o qual utiliza todas as formas de comunicação de massas para manipular a informação e as emoções das pessoas, levando-as, infantilmente, a acreditar que “Vem aí o Lobo!”
Conforme disse Manuel Castells numa entrevista televisiva,
“O poder está no cérebro, não é o poder da polícia ou do exército, porque esses só se utilizam em último recurso, quando as coisas ficam muito más para os interesses poderosos. O mais importante é que se tu queres ter poder sobre mim, se conseguires que eu pense de formas que favorecem o que tu queres, ou de formas que eu fique resignado com a minha condição ainda que não me favoreça, aí está o poder. Portanto, o poder está na mente, e a mente organiza-se segundo redes de comunicação: redes neuronais no nosso cérebro em contacto com redes de comunicação na nossa envolvência. Portanto, quem controla a comunicação controla o cérebro e, consequentemente, controla o poder.”
Por outro lado, a desatenção ou conivência de muitos sectores políticos nacionais não só no que respeita à tentativa da oligarquia mundial de isolar internacionalmente a Revolução Bolivariana na Venezuela, mas também quanto às acções impositivas a que Portugal se encontra submetido, visando fazer aceitar pelos portugueses as políticas e medidas que conduzem à dissolução da identidade nacional, a apropriação externa dos recursos e sistemas nacionais (incluindo a terra e o mar portugueses) e a transformação da sua população em “criados de servir” na sua própria pátria, em escravos na Europa (como recentemente foi noticiado no Luxemburgo) ou em “gurkhas europeus” em qualquer guerra imperialista.
Seria de supor que, face à actual situação nacional e à sua provável evolução para um buraco ainda maior, fosse despertada alguma curiosidade intelectual a respeito da experiência venezuelana e, em geral, latino-americana, tanto mais que esses povos já passaram pelo que estamos agora, na Europa, a passar, e encontraram as suas próprias “vias de saída”. Não digo que fosse para as reproduzir, para os “imitar”, mas sim, pelo menos, para nos inspirarmos e para desenvolvermos um pensamento autónomo e propostas ajustadas à nossa própria realidade.
Mas não. Para muitos intelectos nacionais, Chavez (como se fosse só ele!...) não passou de um ditador, um caudilho voluntarista (ainda por cima tendo sido militar..., ai credo!) que punha em causa a “liberdade de imprensa”, etc... ou, em alternativa, que a Revolução Bolivariana Socialista na Venezuela não passaria de uma “boa intenção” socialista mas destinada ao fracasso porque não se sustentava numa “análise científica”.
Em minha opinião, “por ahora” muito minoritária, a experiência do “chavismo” na Venezuela e o conjunto dos processos da América Latina, deveriam ser estudados de forma séria, autónoma, livre dos condicionalismos que a oligarquia internacional nos impõem, Sem Medo, como defende a Associação 25 de Abril, de modo a, daí, podermos retirar algumas ideias para a nossa própria Libertação Nacional.
2. Contributo para um enquadramento teórico da Revolução Bolivariana Socialista na Venezuela
Após a derrota da experiência socialista de inspiração soviética e o colapso, ainda em curso, da ilusão sobre a coexistência pacífica entre o capitalismo e as aspirações dos povos à Felicidade, a qual guiou o reformismo social-democrata, as grandes massas trabalhadoras e populares ficaram destituídas de pontos de referência teóricos para a acção política de construção de uma sociedade Alternativa, Democrática, Humanista, de inspiração Socialista.
A luta por essa sociedade Alternativa, constitui uma urgência tanto maior quanto, nos dias de hoje, desaba todo o sistema de mitos em que o mundo “ocidental” tem assentado (o “progresso” indefinido baseado nas tecnologias e na competitividade, a “responsabilidade social” dos principais operadores económicos e financeiros – o grande capital internacional –, a gradual unificação de povos com base no respeito mútuo e na solidariedade, a “economia” como ciência e não como uma nova teologia, etc.) e, simultaneamente, se multiplicam os desequilíbrios e rupturas – crises económico-financeiras e confrontações culturais -, se adensam as tensões belicistas e se comprometem de modo acelerado as condições ambientais para a vida na Terra.
Essa luta trava-se diariamente e de modo diversificado entre as grandes massas populares de todos os países contra a dominação das classes opressoras e as suas sequelas. É uma luta universal, constante e prolongada; não é uma “corrida de 100 metros” mas sim uma imensa e perseverante “maratona” colectiva, com pontos altos e baixos, com momentos de aceleração e de ânimo elevado, com outros de grandes dificuldades e quase desfalecimento, onde o importante não é ser o primeiro mas sim avançar, tão rápido quanto possível, em direcção à meta.
O que Marx e Engels, fundadores do pensamento socialista moderno, nos deixaram como legado prospectivo fundamental foi que, sem prazo e sem modelo pré-estabelecido, o Capitalismo esgotará o seu papel histórico de integração mundial da sociedade humana e de extraordinário desenvolvimento das forças produtivas, de modo a dar lugar, através da luta de classes contínua e da luta revolucionária aguda, a uma sociedade sem classes sociais, de cidadãos livres, iguais e responsáveis, uma sociedade onde cada um dos seus membros “seja posto em condições de desenvolver e exercitar com absoluta liberdade todas as suas energias e aptidões”, caracterizada “pela utilização em comum de todos os instrumentos de produção e pela distribuição dos produtos com base num acordo comum, ou seja, pela chamada comunidade dos bens”.
Não bastará, porém, voltar a Marx, Engels e a tantos outros pensadores seus seguidores do século XX que, a partir dessa mesma raiz, desenvolveram diferentes perspectivas, mais “revolucionárias” ou mais “reformistas”, sobre as vias de libertação dos povos e sobre as configurações da sociedade futura, para compreender as forças que movem a história humana. Todos eles foram “homens do seu tempo”, sujeitos, eles próprios, aos contextos culturais existentes, e só puderam dispor da bateria de conhecimentos científicos que então tinham disponíveis. Por isso, eles não constituem o “fim da história” no que respeita ao conhecimento e à experiência humana. Não escreveram “livros sagrados” nem as suas previsões foram “profecias”.
Questões só afloradas por esses pensadores relativas à natureza do Homem, à consciência, às suas culturas e aos desígnios de Felicidade, bem como às relações com a Natureza e ao desenvolvimento das instituições sociais, vieram a ser objecto de sucessivos estudos e reflexões, designadamente no âmbito dos estudos históricos (e pré-históricos), da biologia e dos processos cognitivos (o papel da prática, por exemplo), da ecologia e dos sistemas complexos não lineares, que permitem, hoje, uma visão mais abrangente e profunda do desenvolvimento histórico do Homem e das Sociedades Humanas.
Os estudos de Marx e Engels revelaram, correctamente, a importância dos processos produtivos e das relações de produção na estruturação das sociedades e nas suas dinâmicas. Porém, a perspectiva “economicista” e “técnico-científica” - característica do racionalismo positivista da época - a que foram reduzidos esses estudos pela generalidade dos seus seguidores não é absoluta, não “esgota a matéria”, dado que se focaliza fundamentalmente no “acoplamento estrutural” (como diria Humberto Maturana) entre o “ser vivo – ser social” e o ambiente natural na perspectiva das trocas materiais, e não no “acoplamento estrutural” gerador de cultura, satisfação espiritual e harmonia social.
Para se começar a compreender melhor a totalidade da questão do humano e do social, haverá que estudar, para além desses pensadores e das experiências passadas visando a emancipação dos povos e o Socialismo, outras correntes do pensamento mundial, filosóficas e científicas, do ocidente e do oriente, do norte e do sul, antigas e modernas, que integram a tenaz luta da Vida contra a Morte, a luta do Desenvolvimento contra a Decadência, a luta da Felicidade contra o Sofrimento, a luta da Harmonia (Homeostase) contra o Caos.
Dificilmente haverá quem consiga, num esforço singular, extrair desse vasto universo de conhecimentos e experiências, de entre as “Leis mais Gerais do Desenvolvimento do Universo”, uma Lei Geral do Desenvolvimento da Sociedade Humana, que constitua um “clarão iluminador dos caminhos do futuro”. Sem desvalorizar os esforços integradores em busca da “maior verdade possível” em cada momento e circunstância, capaz de dar sentido e eficácia à acção colectiva, a Verdade (em cada momento e circunstância) é sempre democrática, isto é, corresponde muito mais à sincronização de uma miríade de pequenas “velas” de conhecimento e experiência portadas por muitos observadores, do que a um único foco luminoso.
As leituras de Karl Polanyi e de Lewis Mumford no domínio da interpretação histórica, de Humberto Maturana/Francisco Varela e Lynn Margulis, nos domínios da biologia e da antropologia (natureza e evolução da vida e do Homem, da mente e dos processos cognitivos, da complexidade, bem como da natureza do fenómeno social), por exemplo, a par de muitos outros, “marxistas” ou não, em vários domínios do conhecimento moderno, da física quântica à ecologia, são essenciais para esse esforço integrador e para a formulação de ideias mais claras sobre “onde estamos” e “para onde” seria desejável irmos.
Em consequência, o fenómeno mais recente e extraordinário de uma luta libertadora de grande alcance levada a cabo sob uma bandeira resgatada do Socialismo, a Revolução Bolivariana Socialista na Venezuela, por não se “encaixar” nos esquemas mentais tradicionais dos séculos XIX e XX que “exigem” a formulação de um modelo teórico completo e prévio, experiência essa aparentemente desenvolvida segundo a metodologia da “navegação à vista” e apoiada por fortíssimos factores de ordem espiritual (emoções, religiosidade, determinação da vontade, ética, etc.), sendo embora a mais incompreendida por todos os sectores da análise política (da “direita” à “esquerda” tradicionais), cunhada com toda a variedade de “ismos” depreciadores, é aquela onde, na minha opinião, se encontram mais coerentemente integrados todos os elementos de uma visão holística do Homem, da Sociedade e do Mundo.
A Revolução Bolivariana Socialista na Venezuela, sem negar todos os contributos, por vezes contraditórios entre si, do pensamento racionalista e socialista característicos do final do século XIX e do século XX, foi buscar as suas raízes inspiradoras não a “esquemas mentais” pré-estabelecidos, mas sim à Vida concreta e real dos povos, isto é, aos legados teóricos, éticos e práticos dos seus próceres (resistentes e libertadores), indígenas, afro-descendentes e crioulos, com especial destaque para Bolivar, Simon Rodriguez e Ezequiel Zamora, bem como às exactas condições materiais e culturais existentes, incluindo as referências éticas do cristianismo, fazendo emergir os seus valores ancestrais profundos de Amor e Bem Viver. “Ou inventamos ou erramos”, tem sido a sua divisa de sucesso, a única que parece ter sucesso, neste século XXI.
Na Revolução Bolivariana Socialista na Venezuela parece terem-se ultrapassado algumas das famigeradas dicotomias que se colaram às experiências de inspiração socialista anteriores, tais como entre o socialismo e a democracia mais irrestrita, entre a autonomia individual e a ética colectiva, a liberdade e a eficiência, o planeamento e a livre iniciativa, o Estado e o indivíduo, o Partido e as massas, o combate e a alegria, a tradição e a modernidade, a espiritualidade e a ciência, o trabalho e o gozo, a acção humana e a natureza, o patriotismo e o internacionalismo, etc..
O objectivo central da Revolução Bolivariana Socialista na Venezuela não se reduziu ao “desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção”, apresentando-se com uma formulação muito mais sistémica e ousada, visando proporcionar a cada indivíduo e a toda a sociedade, pela combinação de vários factores materiais, organizacionais e espirituais, “o máximo de Felicidade possível”.
Fundamentalmente, a Revolução Venezuelana tem constituído um processo Protagónico, no qual os seres humanos ultrapassaram a condição de objectos da política, da economia e de uma cultura de opressão para se tornarem sujeitos directos da construção das suas vidas, individuais e colectiva, a partir das suas circunstâncias e da sua profundidade humana.
Contou um dia Hugo Chavez que, tendo perguntado a Fidel Castro “qual fora o seu maior erro no decurso da revolução cubana”, este lhe teria respondido: “Acreditar que alguém sabia como se construía o Socialismo”.
(*) Miguel Judas é um militar de Abril, tendo integrado, como jovem oficial da Armada, a Assembleia Geral do Movimento das Forças Armadas (MFA). É atualmente membro da Associação 25 de Abril. Desenvolve intensa atividade de ensaísmo político e participou recentemente, com reflexões originais, em diversas iniciativas da sociedade civil, como o Movimento de Intervenção e Cidadania e o Forum de Cidadania pelo Estado Social.
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