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Glosa sobre o 1º capítulo do ensaio de Dany-Robert Dufour
João Esteves da Silva (*)
No 1º capítulo do seu brilhante ensaio “A arte de reduzir as cabeças”, intitulado “Da modernidade à pós-modernidade: referenciais”, na subsecção que se intitula precisamente “Da histeria à histerologia”, Dany-Robert Dufour escreve esta frase que, à primeira leitura, pode parecer assaz enigmática “Na transição da modernidade para a pós-modernidade, passámos da histeria à histerologia”; o enigma poderá desvanecer-se, com relativa facilidade, se nos lembrarmos que a histeria é a forma emblemática da neurose, e que a primeira obra mais conhecida de Freud, assinada juntamente com Breuer, se chamou justamente “Estudos sobre a histeria”, obra que esteve na origem da fundação da psicanálise e da descoberta do inconsciente. O termo histeria deriva do grego hustera que designava o útero, órgão da anatomia feminina que se imaginava que se contraísse nos casos de histeria, associados, desde os tempos medievais, à possessão pelo demo. Quanto à histerologia, a etimologia da palavra é completamente diferente, apesar da aparente semelhança de família: fala-se de histerologia para designar uma figura de retórica que se caracteriza pela inversão da anterioridade e da posteridade, o termo deriva do radical grego husteros que significava o posterior, por contraposição ao anterior, aquilo que veio antes: daí que a histerologia se chamasse, em grego, hysteteron-proteron ou hystero-proton, já que o que está em causa, nesta figura de retórica é justamente a inversão do antecedente e do consequente, como, no exemplo literário de Alfred Jarry que Dufour evoca no seu texto: “vou acender a lareira enquanto ele vai buscar lenha”. Percebe-se que esta figura seja muito grata aos humoristas e apareça hoje, com extrema frequência, no discurso dos economistas que não têm um particular humor, mas adoram o esquema da inversão das causas e das consequências, ou seja, o desrespeito pela ordem natural das coisas e dos factos exibindo, como se refere, com muita pertinência, no Curso Básico de Latim, “a desordem do espírito de quem fala”.
Após esta explanação sumária, já se tornará mais entendível o alcance da frase de Dufour com que iniciámos esta glosa. O que Dufour pretende pôr em evidência é o facto de que a época pós-moderna corresponde ao surgimento de uma nova forma de sujeito. Na pós-modernidade, o sujeito deixa de ser definido pela sua relação de dependência a Deus, ao Rei ou à República, mas, em vez disso, vê-se instado a definir-se por si mesmo. Como observa Dufour, a mais concisa e perfeita ilustração desta nova definição do sujeito falante é a que é condensada na fórmula criada pelo grande linguista Émile Benveniste, em 1946: “Eu é quem diz eu”. Na pós-modernidade, o sujeito já não se define hétero-referencialmente, mas de um modo auto-referencial. Outro indício desta emergência é o que é testemunhado por Lacan no seu famoso texto sobre o estádio do espelho. No seu pequeno livrinho, Lacan et le miroir sophianique de Jacob Boehme, Dufour já havia mostrado que, para além das diversas fontes já conhecidas e devidamente assinaladas (o narcisismo freudiano, o neo-darwinismo, a Gestaltpsycologie, o hegelianismo) o espelho lacaniano tem também uma origem teológica precisa, que é o espelho sofiânico de Boehme segundo o qual Deus utilizava um espelho para se conhecer na sua infinita (1) diversidade. De algum modo, Lacan como que cede ao sujeito auto referencialmente definido, o espelho onde Deus se mirava, para se conhecer. Depois de Deus ter sido apeado do seu pedestal, era preciso que Lacan reintroduzisse a figura do Grande Outro, coisa da qual jamais se coibiu, mas, no estádio do espelho, a ideia que o sujeito, tal como Deus, se faz da sua imagem é instituída de modo auto-referencial.
Poderá notar-se que existe uma certa congruência histórica entre estas definições do sujeito falante e o modo como as definições hétero-referenciais desembocaram na catástrofe nazi e da sua definição pela Raça. No seu livro Écrits pour la psycanalyse, II, Serge Leclaire, que comentava precisamente o ensaio de Dufour sobre Les Mystères de la Trinité, escreveu: «o século XX assistiu ao naufrágio de todas as figuras que conferiam ao terceiro a sua proeminência. Desde que Deus foi declarado morto, encadearam-se desilusões sucessivas que culminaram no horror da Shoah, até que finalmente se arruinou qualquer possível mausoléu de um terceiro instituído, de um corpo simbólico onde pudesse manter-se, em reserva, o espirito da Lei”.
Não é de espantar que, após tantas hecatombes tenha surgido o projecto de acabar de vez com as definições heterónimas do sujeito, conferindo-lhe o que Dufour chama o direito semiótico de dizer “eu”, sem ter que prestar contas a ninguém, seja a Deus ao Rei ou à República.
Mas conferir direitos semióticos ao novo sujeito, é uma coisa, prever ou encarar as consequências clínico-simbólicas do seu uso, é algo de muito diferente com que Benveniste jamais se preocupou; com efeito, Benveniste jamais de apercebeu daquilo que Lacan viu com a maior clareza: um sujeito definido auto-referencialmente é um sujeito que padece de um defeito de definição. Mas Lacan não foi caso único; a grande literatura estava atenta. Em 1946, exactamente no mesmo ano da descoberta da auto-referencialidade por Benveniste, Samuel Beckett que ignorava a existência do linguista, descortina a mesma fórmula mágica do “eu que diz eu”. Com a enorme diferença que tal fórmula lhe surge como algo capaz de conduzir de modo infalível às piores desordens. Com efeito, Beckett veio a inventar esta inesquecível fórmula anti-benvenistiana “Digo eu, sabendo que não falo de mim” que consta do seu grande romance, intitulado precisamente L’Innommable.
É justamente quando é dirigida a todo o sujeito a injunção de ser si-mesmo, que o “ser si-mesmo” encontra a maior dificuldade, ou até a impossibilidade, de ser si.
É tudo isto que surge condensado na formulação de Dufour da passagem da histeria à histerologia.
Recorrer à histerologia, como fazem os humoristas e os economistas, seus involuntários concorrentes, é postular algo que ainda não existe, e tomá-lo como base para se comprometer na acção de o construir. É essa a situação em que se encontra o sujeito democrático, livre e autónomo, quando é constrangido ao “Sê tu-mesmo”: ele é forçado a postular alguma coisa que ainda não existe (ele mesmo) para iniciar uma acção no curso da qual deverá produzir-se como sujeito! Ora como o apoio em que julga assentar é eminentemente instável, ou mesmo inexistente, o acto, ou fracassa num incessante processo de diferimento, ou se concretiza, mas forçando o sujeito a colocar-se numa posição em que não pode fiar-se, pelo que é levado a encarar-se como um impostor. Esta é a posição em que se encontra o sujeito histerológico em relação ao sujeito histérico. Enquanto o sujeito histérico se alienava ao Outro, não deixando evidentemente de criticá-lo, bem como criticar-se a si mesmo, pela dependência em que se colocara, o sujeito histerológico, privado de todo o apoio do Outro, ou seja, do Terceiro, só pode confrontar-se com uma forma de subjectivação tão emaranhada como um novelo, como se fosse, apenas uma metade ou um duplo de si mesmo, perdido numa temporalidade distendida entre um antes e um depois, desorientado no seio de um presente dilatado, separado entre um aqui e um além. É este o universo em que habita o sujeito dos romances de Beckett, confrontado com a injunção de se fundar a si mesmo.
Com o advento da pós-modernidade, a distância em relação ao grande Sujeito tornou-se a distância de si para consigo, como diria o nosso grande Camilo. O sujeito pós-moderno é não apenas clivado (a Spaltung de Freud), mas tendencialmente esquizóide. Permanentemente em busca da sua auto-fundação, o sujeito é constantemente confrontado com falhas mais ou menos graves, nessa sua edificação de si por si mesmo. Esta distância de si a si mesmo que é inerente ao sujeito pós-moderno altera profundamente o diagnóstico de Freud que, no seu tempo, detectava, no sujeito moderno, uma inclinação para a neurose, em relação à qual a psicose constituía uma excepção. Diferentemente do sujeito moderno, o novo sujeito pós-moderno exibe uma condição subjectiva que pode ser definida como um estado limite entre a neurose e a psicose, que alterna entre uma melancolia latente (a famosa depressão), a dificuldade, ou impossibilidade, de falar na primeira pessoa, as ilusões de omnipotência, e as fugas para a frente, nas personalidades múltiplas oferecidas profusamente pelo Mercado. Assistimos assim ao declínio do que Freud chamava as neuroses de transferência, em favor das psico-neuroses narcísicas contra as quais a última barreira é muitas vezes, a perversão.
Com o advento da pós-modernidade, aparecem novas formas de manifestação do inconsciente.
No seu ensaio, La Fatigue d’être soi, Alain Ehrenberg mostrou que, nos nossos dias, a perturbação mental mais generalizada é a depressão. Este florescimento da depressão coincidiu com o momento em que os modelos disciplinares de gestão dos comportamentos, as regras de autoridade e de conformidade com as proibições ditadas pelo grande Sujeito, que mostravam aos indivíduos um destino já traçado, começaram a ceder perante as injunções que incitam cada um à iniciativa individual, e lhes é imposta a obrigatoriedade de se tornar si mesmo. A depressão seria, de algum modo, o preço a pagar pela libertação do domínio do grande Sujeito, que se exprime pela tristeza, a astenia (a fadiga, a antiga “acedia”), a inibição ou dificuldade de agir a que os psiquiatras chamam a “desaceleração psico-motora”, que traduz a impotência de viver.
Esta paixão triste atingiria, hoje, em regime rotativo, cerca de 15 a 20% dos indivíduos e transformou-se num inibidor da acção e da iniciativa. Perante estes dados, não é de admirar que se generalizem cada vez mais as técnicas da acção sobre si; é disso mesmo que se trata nos programas televisivos que procedem a encenações da vida quotidiana, e nas narrativas de exibição de si mesmo que nos são impingidas sob a capa prestigiada da literatura, ou no uso de psicotrópicos destinados a melhorar o humor e a potenciar as capacidades individuais. O facto de que o nome Prozac seja hoje tão conhecido como a aspirina ilustra bem a extensão deste fenómeno. Uma das consequências mais notáveis deste fenómeno, nas nossas sociedades pós-modernas, é a diluição da distinção entre tratar-se e drogar-se. Outra é que, nesta situação de modificação artificial e permanente do humor, se torna muito difícil discriminar o que releva de nós mesmos ou da fabricação artificial mais ou menos alcançada de cada um por si mesmo. Nestas condições, será que pensar ainda faz sentido? Ou, o que talvez seja a mesma pergunta, será que o sentido faz sentido?
O sujeito falante pós-moderno, tendo que se fundar a si mesmo, encontra-se, hoje, na posição depressiva do antigo grande Sujeito. É impossível deixar de evocar a figura do Rei pascaliano. De facto, Pascal (2) já havia notado que, quando o Rei era deixado só, voltava a ser aquilo que era: um pequeno sujeito, como qualquer outro. Ouçamos as suas palavras: “faça-se a experiência; deixemos o rei só, e veremos que ele se vê como um miserável homem comum e se sente como um ser qualquer”. O Rei fundava os seus súbditos, mas não dispondo de nada onde se fundar a si mesmo, estava constrangido a uma persistente melancolia da qual precisava de ser incessantemente distraído. Era o papel dos bobos da corte de que o sujeito pós-moderno dispõe hoje, em grande profusão, em todos os ecrãs televisivos. Tal como o Rei de Pascal, que era obrigado a fazer de conta que era o grande Sujeito, hoje o sujeito tem que fazer de conta que é um rei pequenino. Só que, como dizia o mesmo Pascal, “o homem que só se ama a si, odeia, acima de tudo, estar sozinho consigo. Como procura tudo para si, foge de si como do diabo, porque quando se vê só, não se vê como desejava, e descobre, em si mesmo, uma montanha de misérias inevitáveis e um vazio de bens sólidos e reais, que não é capaz de preencher”.
Como observa muito pertinentemente Dufour, a depressão, que é quase sempre encarada como um dado clínico primário, não é mais do que o resultado do confronto do sujeito com a figura da histerologia. Com efeito, o sujeito torna-se depressivo ou melancólico quando, no trajecto da construção da sua subjectivação, encontra a figura da histerologia que o enovela no decurso de toda a espécie de acção: como será possível apoiar-se sobre o que ainda não é (si mesmo) para desencadear uma acção no termo da qual deverá produzir-se? A depressão não é um simples traço psicológico, mas reenvia à lógica impossível da subjectivação pós-moderna; por isso não deve ser hipostasiada como uma perturbação mental sem mais qualificação, mas concebida como uma dificuldade de subjectivação decorrente de uma impossibilidade lógica ou histerológica.
Além disso, não é caso para ficar obcecados com a depressão; o constrangimento histerológico característico da pós-modernidade pode desembocar na depressão ou inclusivamente neste mal-estar exacerbado a que se chama “ataque de pânico”, mas pode igualmente manifestar-se sob outras formas, como as que se enumeram em seguida:
1. O narcisismo descabelado e a enfatuação subjectiva. Na antiga economia psíquica, o movimento auto-referencial fixava-se no Terceiro da estrutura dialógica. No texto bíblico, a famosa definição auto-referencial “Eu sou aquele que sou” é atribuída a Jeová, ou” Iahvé” que, em hebraico significa “Ele é”. O terceiro assume uma forma unária. Na nova definição auto-referencial do sujeito, a ambivalência unária que na teologia caracterizava o Deus que era, ou o Todo, na sua face positiva, ou o Nada da mística negativa, transfere-se para o próprio sujeito falante que é, agora, incumbido da sua auto-fundação. Daqui resulta uma muito problemática desinibição do indivíduo em relação ao grande Sujeito.
Dufour recorre à autobiografia de Louis Althusser (3), escrita no hospital onde foi internado, depois de ter assassinado a sua mulher, como exemplificação paradigmática desta figura; Althusser descreve toda a sua vida como uma aventura dominada pelo fantasma de “ter que se dar a si mesmo, um pai imaginário, agindo como se fosse o seu próprio pai”. “Não tive pai e representei indefinidamente o papel de pai do pai, para ter a ilusão de ter um, e o facto de me atribuir este papel de pai de mim próprio, já que todos os pais possíveis não podiam assumir esse papel, rebaixava-os desdenhosamente, colocando-os sob a minha tutela manifesta”. No entanto, quando se tenta pôr em execução uma manipulação deste cariz, o sujeito não pode deixar de passar a encarar-se como “uma soma de artifícios e imposturas, sem nada de autêntico”. Estamos perante uma fantasia de uma perfeita feitura histerológica. Neste fantasma de intenção obviamente auto-fundadora, Althusser vai reencontrar um teorema idêntico ao da teologia negativa, como mostra aquilo que escreve sobre si: “Impotência total, que iguala uma omnipotência sobre tudo”. No âmbito da sua grande (e louca) inteligência, Althusser dá conta da proveniência teológica desse motivo: “terrível ambivalência cujo equivalente se encontra, aliás, na mística cristã medieval: totum = nihil”. Mas, como Dufour observa, Althusser não retira nenhuma conclusão sobre a emergência histórica desta figura, e não vê que o seu caso, longe de relevar de um acidente do seu percurso pessoal, o ultrapassava largamente porque era já o prenúncio da época que se aproximava. O drama de Althusser foi o de se confrontar com a forma sujeito própria da pós-modernidade, dispondo “apenas” dos meios filosóficos da modernidade, ou seja, de uma fixação, por muito ampla e livre que fosse, sobre duas figuras canónicas do Grande Outro, primeiro Deus e, mais tarde, o Proletariado.
Para além do caso exemplar de Althusser, há que examinar as consequências quanto ao vínculo social e ao ser-juntos, que a generalização pós-moderna de um sujeito que, ora se encara como omnipotente, ora, como totalmente impotente. Estas consequências são muito difíceis de evitar: quando as nossas acções já não se referem a nada que esteja para além delas, e as sustente, deixa de haver diferença entre o direito à liberdade, de que cada um dispõe incondicionalmente, e o abuso do direito à liberdade. Certamente que já notaram que, hoje, a sociedade aponta um dedo reprovador em direcção aos que não exercem os seus direitos até ao fim, em toda a sua extensão, ou seja, até ao domínio dos outros: quem não aproveita até ao limite a liberdade de que dispõe é certamente um mau democrata. Pode dizer-se, por um lado, que a democracia é o primeiro regime onde a liberdade pode oprimir. Mas, por outro lado, o problema maior é o de que é impossível estar contra a democracia. Mesmo numa época em que a liberdade se pensa como a liberdade da raposa dentro do galinheiro, se invocamos a liberdade contra a opressão, estamos ainda a recorrer ao princípio basilar da democracia. É assim que a democracia está sempre para lá da sua crítica, porque só é criticável recorrendo aos princípios que a fundam.
Vivemos hoje na hora em que o narcisismo se tornou um narcinismo, onde cada um é chamado a praticar, sob pena de ser votado ao opróbrio público, aquilo a que Lacan chamava “a política do escadote” e que consiste no incitamento permanente a subir imediatamente para o degrau mais acima, sempre que estamos em face de um outro qualquer. Há evidentemente uma graduação variada destes casos de narcinismo: há os que se arrogam um direito de vida ou de morte sobre todos os outros - é o caso do actual Governo de Portugal - e outros casos mais benignos, como, por exemplo, a exibição pornográfica que, hoje, nos é quase imposta pelos meios de comunicação de massa, ou o simples uso desta belíssima prótese sensorial que é o telefone portátil, que é hoje usada de forma a saturar todo o espaço público com conversações em alta voz sobre assuntos íntimos. A este propósito, Dufour refere o caso de Christine Angot, escritora que, após publicar narrativas dos seus incestos e dos mais variados amores, é adulada pelos meios de comunicação social. Há alguns anos ela explicava, numa emissão televisiva, que aquilo que é indecente consiste, não em expor, mas em ocultar a sua intimidade, pelo que ela se sentia obrigada, para não colaborar em práticas indecentes, a expor toda a intimidade nos seus romances. Este culto, tão ingénuo como embrutecedor, da transparência e da espontaneidade de um ego que só sente existir expondo aos olhos dos outros todos os segredos da sua vida, está hoje em vias de invadir a literatura e suspender, espera-se que não para todo o sempre, a grande ficção.
2. A par deste narcinismo e da sua “política do escadote” onde, como observa Lacan, “cada um se julga o mais belo”, encontramos uma pulsão igualitária que tende a negar toda a ideia de esforço, o duríssimo trabalho de tentar produzir-se a si mesmo como sujeito (de que o estoicismo, por exemplo, nos dá uma lampejo). Uma vez que somos todos iguais, à partida, porque somos democratas, e todos somos providos de um eu, que temos que fazer florescer, a noção de que é preciso um esforço para devir aquilo que pudermos vir a ser, encontra, hoje, uma enorme resistência. Só deve aprender-se por prazer, tudo o que provoca algum sofrimento é mau por definição. Somos todos, espontaneamente, artistas, pensadores e literatos, tanto mais realizados, quanto com maior facilidade nos desembaraçámos da ideia reaccionária de criar.
3. Outra variante é o síndrome dito de personalidades múltiplas (de que Samuel Beckett anunciou a formulação genial na sua obra L’Innommable e que David Lynch explora actualmente em filmes como Lost Highway e Mulholland Drive) que é como que o oposto da depressão; enquanto nesta, o sujeito em construção se encara como pouco mais do que uma escassa metade de si mesmo, neste síndrome, ele vê-se como que multiplicado e desdobrado em personalidades diversas e consequentemente aumentado. Segundo os dados clínicos disponíveis, estes casos de “personalidades múltiplas” (4) estão hoje a aumentar consideravelmente nos Estados Unidos. O sujeito pós-moderno já não é apenas dividido ou clivado: pode também ser apenas metade, ou então, um duplo de si mesmo. O século XXI pode muito bem vir a ser o século das várias identidades num só corpo ou de uma mesma identidade comum a vários corpos (5).
4. A denegação do real. Desde logo, a denegação do real da diferença geracional, uma vez que o sujeito pós-moderno ignora, ou faz de conta que ignora, o princípio de anterioridade onde o pai funcionava como referência; ou a denegação, cada vez mais corrente, da diferença sexual.
Esta última denegação é, para mim, particularmente significativa porque, como já tenho referido a diversos amigos próximos, há, na minha vida intelectual, uma particularidade biográfica curiosa: nunca consegui ler o famoso ensaio de Simone de Beauvoir, “Le Deuxième Sexe”; quando tropecei na primeira frase, “On ne naît pas femme on le devient”, a minha repulsa foi tal que fechei o livro e nunca mais lhe peguei.
Hoje, verifica-se que os receios que já me inquietavam há mais cinquenta anos são confirmados e amplamente reforçados por quase tudo o que se escreve e de diz por aí.
No seu mais recente ensaio, “L’Individu qui vient” Dany-Robert Dufour dedica algumas brilhantes páginas às denegações atrás referidas; começa por fazer referência a uma passagem do livro “La Domination masculine” da autoria de Pierre Bourdieu, altíssimo expoente do pensamento sociológico supostamente de esquerda, e professor do Collège de France até ao seu falecimento, que reza assim:
“As aparências biológicas e os efeitos bem reais que um longo trabalho colectivo de socialização do biológico e de biologização do social produziu nos corpos e nos cérebros, conjugam-se para inverter a relação entre causas e efeitos e fazer aparecer uma construção social naturalizada (os “géneros”, enquanto hábitos sexuados) como o fundamento natural da divisão arbitrária que está na base da realidade e da representação da realidade e que, por vezes, se impõe à própria investigação”.
Dufour comenta este texto do seguinte modo: “Se esta frase tiver uma organização lógica, o que não é seguro, já que ela está construída como uma série de inversões encastradas umas nas outras, o seu sentido é o de que a natureza é secundária e não passa de um fruto da divisão arbitrária da realidade, operada na cultura. Aquilo que se vê: dois sexos, duas escritas, XX e XY, é, de facto, uma pura “aparência biológica”. Aparências biológicas construídas pela sociedade, o que, de novo, de modo assaz laborioso, é enunciado assim:
“O mundo social construi o corpo como realidade sexuada e como depositário de princípios de visão e divisão sexuantes. Este programa social de percepção aplica-se a todas as coisas do mundo e, em primeiro lugar, ao próprio corpo na sua realidade biológica; é ele que constrói a diferença entre os sexos biológicos em conformidade com uma visão mítica do mundo enraizada na relação arbitrária de domínio dos homens sobre as mulheres, ela mesma inscrita, com a divisão do trabalho, na realidade da ordem social. A diferença biológica dos sexos, isto é, o corpo masculino e feminino e, muito particularmente, a diferença anatómica entre os orgãos sexuais, pode assim aparecer como a justificação natural da diferença socialmente construída entre os géneros e, em particular, a divisão sexual do trabalho”.
Compreende-se por que razão a sintaxe é tão laboriosa; trata-se de demonstrar que é o “programa social” que constrói a diferença entre os sexos biológicos”. É, nada mais, nada menos, do que provar o impossível! Como pergunta Dufour, “Será que a sociologia do Collège de France autoriza que se tome a variável secundária (a representação dos sexos na cultura) como a variável principal (a diferença biológica dos sexos) e vice-versa”.
Fazer com que o sexo biológico - a diferença entre ter pénis ou ter útero - dependa da sua representação cultural é um caso de artilharia sofística das mais pesadas.
O que está ocultado na retórica de Bourdieu é precisamente a inversão das causas e dos efeitos que ele atribui ao “longo trabalho colectivo de socialização do biológico e de biologização do social terá produzido nos corpos e nos cérebros”. Que o cérebro seja capaz de produzir fantasmas que podem inclusivamente chegar ao ponto de alimentar todos os delírios da transsexualidade que actualmente proliferam por aí, como uma peste, é uma coisa, mas que estes delírios produzam, nos corpos, pénis e úteros a gosto, é coisa que nunca se viu ou se verá, por muitas pretensas “mudanças de sexo” que venham a ocorrer.
É precisamente a mesma retórica sofística da inversão que se encontra na manobra de Judith Butler quando pretende que o sexo é uma construção performativa. Sigamos o seu raciocínio:
“A performatividade deve ser compreendida, não como um “acto” singular ou deliberado, mas como uma prática reiterada e citacional pela qual o discurso produz os efeitos que nomeia.”
Esta coisa do discurso produzir os efeitos que nomeia, passava-se antigamente no domínio da feitiçaria, mas o pobre Austin daria voltas no seu túmulo se viesse um dia a saber que a sua teoria dos actos de discurso, que exige, como diria Wittgenstein, todo um “stage-setting” institucional, viria a ser alargada até à produção de orgãos reprodutores por simples efeito mágico do discurso cultural.
Como observa Dufour, na frase de Judith Butler acima citada a inversão sofística é muito clara, mas ela pretende uma clareza ainda maior e força a nota:
“As normas reguladoras do sexo funcionam de um modo performativo para constituir a materialidade dos corpos e, mais especificamente, para materializar o sexo do corpo, colocando a diferença sexual ao serviço do imperativo heterossexual”.
Estamos decididamente no reino da feitiçaria, a fim de colocar a diferença sexual ao serviço do imperativo heterossexual, o discurso normativo tem o condão – como se dizia nas histórias de fadas – de constituir a materialidade dos corpos.
Será que nos libertámos do Patriarcado e das usurpações e violências que ele consentia, para confiar a mais grave e mais vital das questões humanas – a da sexualidade – aos sofistas?
Perante isto, podemos ver até que ponto as barbaridades culturalistas e relativistas da Beauvoir fizeram escola. Apesar da minha juvenil repugnância, de há mais de cinquenta anos, jamais previ que pudéssemos chegar a este ponto: levar a sofística até à materialização de úteros e pénis!
Na mesma veia crítica, também Jean-Claude Michéa no seu “Complexo de Orfeu” informa que, na óptica de Judith Butler, o único sujeito político revolucionário capaz de substituir com alguma eficácia o “antigo” proletário da doutrina marxista é a/o Drag-Queen.
Por outro lado, foi publicado recentemente em França um ensaio com o título, já de si assaz explicativo, de “L’Invention de la culture heterossexual” em que o autor, Louis George Tin, se debate com o problema misterioso e angustiante de saber por que razão existem homens e mulheres que se sentem atraídos por seres do sexo oposto. Parece que permanece ainda paralisado por esta questão angustiante.
Após este rodeio por esta denegação extrema da realidade, podemos voltar à enumeração das figuras onde, para além da depressão, o sujeito moderno pode enredar-se:
5. Novas formas sacrificiais. Uma das formas a que o sujeito, constrangido à sua auto-fundação, pode lançar mão, é o recurso a um ponto de apoio externo. Ao contrário do que afirma Gilles Lipovetsky, na sua obra “L’Ère du vide”, a cultura sacrificial não desapareceu com o pós-modernismo, apenas tomou novas formas que já não são referidas ao Outro, antes se inserem numa dinâmica narcísica. Um caso típico é o que Dufour relata no seu ensaio “Folie et Democratie”, o de uma jovem norte-americana que teve um aborto, após a ingestão integral de uma garrafa de whisky, durante numa noite de depressão, e que, a conselho do seu advogado, moveu uma acção judicial contra o fabricante do whisky (na qual veio a obter ganho de causa e uma choruda indemnização). O que aqui está em causa é que, ao assumir-me como vítima de um trauma, o sujeito em causa leva a efeito como que uma amputação de si mesmo, assume não saber que não é recomendável ingurgitar uma garrafa de whisky quando se está grávida, o que, até ao advento da época pós-moderna era considerado conhecimento comum. Um dos fenómeno mais característicos da pós-modernidade é o de que hoje se tornou possível a qualquer um assumir que não sabe nada: há cursos para aprender a ser pai, para aprender a ser filho, e muitos outros que fazem a fortuna dos psicólogos e dos “personnal trainers”. Segundo Henri Frignet, psicanalista que trabalhou em muitos casos de transsexualidade, a exigência de ablação do pénis pode igualmente ser interpretada como uma das formas pós-modernas do sacrifício, que, na ausência de referenciais simbólicos, permite fundar uma referência identificatória e evitar o novelo histerológico. Há inclusivamente uma prática que foi já baptizada como apotemnofilia e consiste na amputação de um membro (eventualmente dois), o que permite ao sujeito viver o seu corpo como “regenerado” e reclamar uma identidade amputada.
Como é conhecido, existem também formas sacrificiais extremas que vão muito para além da simples ablação, já que visam o desaparecimento total de si. Surgem muitas vezes no decurso de uma passagem ao acto violenta: assiste-se, com alguma frequência, a indivíduos que acabam de cometer um massacre, e pedem, com a maior insistência, que os matem de imediato. É como o sacrifício ao quadrado: trata-se de uma nova forma de acto sacrificial que, ao perpetrar-se, permite a criação do suporte que lhe faltava para finalmente viver, mesmo que apenas por um instante, antes de desaparecer de vez. Esta nova forma sacrificial inicia-se com o sacrifício de vítimas inocentes, por vezes escolhidas de modo aleatório, e perfaz-se, após o curto instante de embriaguez identitária, com o sacrifício do sacrificador que aplica a si mesmo a sentença correspondente ao seu feito inqualificável. É o que transparece com toda a clareza nestas duas frases do diário de Richard Durn, autor da matança que vitimou nove membros do Conselho Municipal de Nanterre, em 2002: “Pude, por alguns poucos instantes, sentir-me vivo, matando” e “Vejo-me como um louco furioso que deve ser abatido sem misericórdia e sem escrúpulo”.
O sacrifício pós-moderno inaugura uma nova forma sacrificial na história da humanidade. Há, por detrás dele, um apelo desesperado ao vínculo social. Aliás, os matadores loucos da pós-modernidade transportam, nos seus actos, questões políticas: o cabo Lortie que descarregou a sua arma sobre os representantes da Assembleia Nacional do Québec, em Maio de 1984, tinha o objectivo firme de atingir os deputados; os dois autores do massacre de Littleton escolheram o dia do aniversário de Hitler, 20 de Abril, para data do seu acto; Richard Durn atacou a representação municipal da sua cidade, em Março de 2002; Robert Steinhauser atacou no seu liceu de Erfurt, em 26 de Abril de 2002, etc., etc.. Mas este novo tipo de sacrifício já não visa criar, por uma inversão da abjecção em sagrado, a figura de um terceiro capaz de ser o garante metassocial do vínculo entre os membros de uma comunidade. O golpe desferido sobre o outro faz ricochete sobre o sacrificador desfazendo imediatamente aquilo que queria construir e é imediatamente reabsorvido para aparecer como um acto isolado de um louco. A maior parte dos comentadores só vêem neste tipo de factos, actos isolados de loucos, bloqueando toda a etiologia, social, política e cultural, esquecendo que tais actos, longe de reenviarem à pura organicidade da loucura, traduzem o estado em que se encontra o vínculo social pós-moderno.
Quando recordamos, num passado relativamente recente, os modos que caracterizavam o sujeito moderno, não podemos deixar de ficar impressionados com as diferenças que revela, em relação ao sujeito pós-moderno. O sujeito moderno transportava consigo a paixão de ser o arauto de um Outro, ou seja, o desejo de se produzir como sujeito de um Outro. Este desejo revestiu uma enorme diversidade de formas: o sujeito quereria tornar-se o sujeito do Poema, o sujeito do Proletariado, o sujeito da pura intensidade do inconsciente, o sujeito de culturas diferentes, longínquas, perdidas, esquecidas… A este desejo de ser outro, o sujeito pós-moderno responde que quer apenas ser ele mesmo, e nada mais, a não ser si-mesmo. É por isso que, enquanto as patologias modernas giravam sempre à roda da paixão de ser outro, as patologias pós-modernas giram à volta da questão de ter que se fundar sozinho. Aparecem nos casos em que o constrangimento histerológico é máximo. Há que compreender que a histerologia é apenas um caso particular daquilo a que Lacan chamou a Verwerfung, a negação ou a proscrição do Nome do Pai. De facto, se não tenho pai, tenho que engendrar-me a mim mesmo. De onde resulta que as patologias pós-modernas, marcadas pela Verwerfung, coloquem na ordem do dia, um domínio para além da neurose, a psiconeurose. Coisa que Lacan havia pressentido, logo após 1968, quando dizia, no início dos anos setenta, que o capitalismo promovia a Verwerfung:
“O que distingue o discurso capitalista é isto, a forclusão, a proscrição, a rejeição do campo do simbólico, com todas a consequências que daí decorrem; a rejeição de quê? Da castração”.
Rejeição da castração, sonho de omnipotência, histerologia, Verwerfung e dessimbolização fazem parte do destino do capitalismo, que conduz à psicotização. O que Deleuze e Guattari tinham bem apreendido no momento do Anti-Oedipe, livro que tem por subtítulo Capitalisme et Squizophrénie. O único problema é o de que, tal como Marx acreditava que o proletário, produzido pelo capitalismo, iria redimir o mundo, Deleuze e Guattari quiseram acreditar que o esquizofrénico representava a nova figura do salvador. Veja-se esta citação:
“O que é o esquizofrénico, senão, em primeiro lugar, aquele que não já pode suportar “tudo isto”, o dinheiro, a Bolsa – as forças da morte dizia Nijinsky – valores, moral, pátrias, religiões e certezas ultrapassadas? (…) O processo esquizofrénico é o potencial da Revolução” (6).
O mínimo que pode dizer-se é que se trata de uma aposta demasiado arriscada nas potencialidades da esquizofrenia: como contraponto a redentores da estatura de um Artaud, pode temer-se que o capitalismo produza sobretudo uma multidão de pobres miseráveis des-simbolizados.
O que define mais profundamente o sujeito da pós-modernidade é o sentimento de omnipotência quando tem êxito, e de completa impotência quando fracassa.
É como se a vergonha tivesse substituído a culpabilidade. Enquanto a culpabilidade respondia perante os outros, a vergonha só me compromete a mim. Tenho vergonha, exactamente como posso ter fome ou ter sede. Enquanto a culpabilidade decorria de uma frustração que sofria e da qual não poderia sair sem me implicar num projecto pessoal que, através de múltiplos rodeios, poderia desdobrar-se em campos onde seria possível um resgate simbólico, a vergonha exige uma remissão rápida, uma resposta imediata. Enquanto a culpa implicava uma relação de sentido e um rodeio simbólico, a vergonha impõe uma relação de forças e o afrontamento imediato. Ela é um produto da intolerância narcísica.
Ouve-se, muitas vezes, dizer que a pós-modernidade corresponde à simples queda dos ideais do eu, indo até ao ponto de afirmar-se que esta queda, ao arrastar consigo os velhos ídolos, poderia ser a fonte de numa nova liberdade. Não se apercebe que a queda dos ideais do eu tem consequências muito mais pesadas, na medida em que afecta a constituição do que se chama, na análise freudiana, o superego que é precisamente a instância de introjecção dos ideais do eu. Freud tinha todas as razões para afirmar, já no ocaso da sua vida, que o conceito de superego “ainda não fora trazido plenamente à luz do dia”. Se não se entende a extraordinária importância deste conceito, torna-se difícil perceber como a queda dos ideais do eu, arrasta consigo a destruição do superego na sua face simbólica, aí onde se inscreve a lei. Na ausência dos ideais do eu, a construção do superego entra em pane porque fica privada de alimentação. Privados de uma instância que lhes peça contas dos seus actos, os sujeitos, ficam desorientados quanto ao sentido a atribuir às suas acções, como se se ausentassem dos seus próprios actos. Excluído o sentimento de culpabilidade, já nenhum comportamento lhes parece dever merecer elucidação. A conclusão que extraem é a de que o seu comportamento está inscrito na sua natureza, e que, portanto, são assim e não há nada a fazer. O próprio trabalho analítico, deixa de fazer sentido; a análise já não tem que ver com sintomas que enviam sinais aos sujeitos, e poderão eventualmente ser elucidados, pelo que o analista se depara apenas com condutas em bruto, que Jean-Pierre Lebrun designou precisamente como a-sintomas.
Se não for posto em evidência este processo de des-simbolização, caímos no que Dufour designa como o angelismo da crença na libertação. É o triunfo do Id! Quando se desmorona a face simbólica do superego, é sempre em favor do reforço da sua “face obscena e feroz”, detectada por Lacan (7), aquela que deseja, em termos absolutos, a Ordem, mesmo que seja totalmente desligada da Lei (8).
A queda do superego deixa pressentir um enorme enfraquecimento do espírito crítico. De facto, como observa Dufour, para Freud, leitor de Kant, a aptidão para a moralidade e para a razão prática, tem a sua origem no superego. Nas suas Nouvelles conférences de psychanalyse, é claramente posto em evidência que, para Freud, não há possibilidade “de nascimento da consciência” sem “a formação do superego” (9). Há uma acentuada conivência teórica entre o sujeito kantiano e o sujeito freudiano, pelo que não surpreende que a queda de um deles arraste irresistivelmente a labilidade do outro.
Com excepção dos que partilham o angelismo da crença na libertação, não parece que a pós-modernidade seja analisável como a época em que os sujeitos começaram a ver com clareza a natureza imaginária dos ídolos do passado, mas antes como a época em que desapareceu a instância que, nos sujeitos, lhes dizia: “Não tens o direito de…”. Podemos dizer que, na pós-modernidade, o Pai foi morto sem que se lhe seguisse nem a culpa, nem a denegação do crime, graças às quais uma figura do Outro pode constituir-se. O que a pós-modernidade produz são sujeitos sem verdadeira consistência superegóica, insensíveis à injunção simbólica, mas vulneráveis a todas as formas de trauma; porque já não recalcam, escapam à culpabilidade e ficam apenas sujeitos à vergonha que se lhes cola à cara, como dizia uma personagem de um filme relativamente recente. Como dizia o Ministro francês da saúde, no caso do sangue contaminado e também um nosso, no caso da Ponte de Entre-os Rios, “responsáveis, mas não culpados”.
O universo simbólico do sujeito pós-moderno é radicalmente diferente daquele em que vivia o sujeito moderno; privado de qualquer figura do grande Sujeito, sem referenciais onde possa fundar-se uma anterioridade e uma exterioridade simbólicas, o sujeito pós-moderno não consegue desenvolver uma espacialidade e uma temporalidade de amplitude satisfatória e fica como que afogado num presente dilatado que constitui o seu único horizonte.
Como tudo se joga no instante, o projecto e a antecipação, e o retorno sobre si tornam-se operações muito problemáticas. É todo o universo crítico, tudo aquilo a que se chamava a força crítica do espírito que ficam comprometidos.
O que fazer, quando já não há qualquer Outro? Construir-se a partir de si mesmo, com os múltiplos recursos oferecidos pelas nossas sociedades? Não parece seguro que a autonomia constitua uma exigência a que a generalidade dos sujeitos possa corresponder de imediato. A autonomia é uma conquista que exige uma verdadeira ascese. Aqueles que a conquistam são sempre, ou quase sempre, aqueles que estiveram oprimidos, ou “alienados”, e tiveram que lutar para se libertarem. O aparente estado de liberdade promovido pelo liberalismo é totalmente enganador; começa logo por ser enganador pensar que a liberdade pode ser um estado: em bom rigor, a liberdade não existe, só existem libertações. É muito duvidoso que quem jamais se sentiu alienado possa, algum dia, vir a ser livre. Parece que os novos sujeitos do nosso mundo pós-moderno em lugar de livres, estão abandonados. “Estou livre, abandonado”, dizia precisamente o narrador de L’Innommable (10) de Samuel Beckett. Estes novos sujeitos, que se pensam livres, são, na realidade, abandonados, largados, postos de lado (mis au ban). Estranha soberania, a destes novos sujeitos de que fala Giorgio Agamben, quando se refere ao homo sacer:
“aquele que é “mis au ban” (a ban donné) não é propriamente colocado fora da lei ou indiferente a ela; ele é abandonado por ela, colocado e exposto neste limiar onde a vida e o direito, o exterior e interior, se confundem; não pode dizer-se dele, se é interior ou exterior à ordem” (11).
Os novos jovens abandonados, relegados em ban-lieu (subúrbio) tornam-se presa fácil de tudo o que possa parecer satisfazer as suas necessidades imediatas e alvos de um aparelho tão poderoso como o Mercado que pode invadir a sua vida e dominá-la, graças à sua capacidade de demarcação do tempo e do espaço e de controlo das imagens (televisão, cinema, jogos, publicidade…). A docilidade com que estes novos sujeitos se deixam tentar pelas marcas comerciais, exibindo os seus logos, nos seus corpos, testemunha uma nova servidão, tão voluntária e tão inconsciente como as anteriores e assaz difícil de compreender para a geração precedente, que ainda era crítica. Longe de ser nómadas, como Deleuze acreditava, os novos sujeitos são órfãos do Outro e procuram, como podem, compensar esta perda.
Podem detectar-se várias tendências, muito “lógicas” visando obviar a esta carência do Outro. Os exemplos abundam.
A primeira tendência é a que se traduz no bando. Na ausência do Outro, a impossibilidade de levar a cabo a autonomia e a auto-fundação exigida, pode conduzir com muita facilidade, à tentativa de fazer face a essas dificuldades em grupo. Isto é, em bando. O bando assume muitas vezes o papel de uma referência social. O bando tem um nome comum que cada um exibe para o exterior; tem a sua assinatura, a sua marca, o seu tag que marca e delimita o seu território. Uma simples viagem de metro, ou em comboio suburbano, permite imediatamente avaliar a extensão do fenómeno. Se um dos membros do bando tenta separar-se da personalidade global incarnada pelo bando, interessando-se por seja o que for distante das preocupações grupais, o bando que vela, acima de tudo, pela sua integridade, recorrerá a todos os meios possíveis para reconduzir a ovelha tresmalhada. Numa sala de aula, por exemplo, um professor pode ter a maior dificuldade de se dirigir isoladamente a um aluno, porque o bando responde, em grupo, à menor solicitação, exibindo suas prerrogativas grupais. Em vez da autonomia, o que se obtêm é a fusão de todos numa só entidade; todo o espirito crítico é pura e simplesmente excluído.
Uma variante do bando é o gang que representa o seu resultado natural. Um gang é um bando que conseguiu ter êxito através da imposição dos seus métodos expeditivos (ataques, assaltos, ajustes de contas…). Os estabelecimentos escolares, em zonas difíceis, estão particularmente expostos à transformação de bandos em gangs. Alguns gangs são muito eficazes no domínio da concorrência económica, como acontece, por exemplo na indústria do rap, onde surgiram empresas produtoras dirigidas por gangs, que foram capazes de se impor aos seus concorrentes e expulsá-los do mercado. Alguns grupos mafiosos compreenderam isso muito bem e vieram a controlar amplos sectores do mercado.
Uma segunda tendência releva do recurso a um sucedâneo para suprir a ausência do Outro, sendo que o seu modelo é a seita. Como é do conhecimento geral, as seitas florescem, hoje, nas sociedades pós-modernas: forma-se um pequeno grupo que brande a efígie de um guru ou de um novo mestre absoluto que, caso seja necessário, afronta outro guru rival, e o processo está em marcha. Ron Hubbard, fundador da igreja da cientologia, disse um dia que o modo mais rápido de ganhar alguns milhões de dólares consiste em fundar uma igreja. No interior do espaço pós-moderno, a queda do Outro, suscitou o desenvolvimento de inúmeras seitas que, quer puxam para o lado do orientalismo e do xamanismo, quer para o lado dos fundamentalismos e integrismos por vezes extremamente virulentos. Se os bandos e a seita podem, por vezes, associar-se (pense-se por exemplo no satanismo), também acontece que entrem em concorrência (por vezes, numa mesma família, pode encontrar-se um filho que pertence a um bando, enquanto o seu irmão se ligou a uma seita, como que para se defender da atracção do bando).
Há uma terceira tendência que releva igualmente do mecanismo do sucedâneo que se supõe suprir a carência do Outro; neste caso, o Outro já não é inscrito na ordem do desejo, mas na ordem da necessidade; é o que se chama a viciação, ou, como se diz pós-modernamente e mal, a adicção. A viciação apresenta-se como uma forma de reacção à depressão e como fuga na direcção de um consumo compulsivo de produtos que rapidamente se tornarão indispensáveis. Quando se fala de viciação tem-se em mente sobretudo a droga; mas não deve esquecer-se que a droga é apenas uma mercadoria um pouco especial. Pode dizer-se que existe no sujeito pós-moderno uma viciação habitual à mercadoria, estimulada e provocada pelo mercado, o que pode também prolongar-se numa viciação suplementar à mais cara e mais viciante das mercadorias: a droga. É o que se chama vulgarmente a toxicomania. O que está em jogo na toxicomania já não é superar a dificuldade de existir através de uma busca simbólica que possa suprir a eventual imperfeição do Outro reconstruído e exprimido pela criação artística (poesia, dança, música, pintura…). Pelo contrário, o que acontece na toxicomania é a substituição desta busca laboriosa por uma dependência em relação a um Outro que sai do campo do desejo para se inscrever, de algum modo, no real da necessidade. Pelo menos, neste caso, não restam dúvidas sobre quem é o Outro que nos falta: um simples produto químico tão viciante quanto possível que se pode ter à mão desde que nos tornemos o seu escravo.
A quarta tendência envolve um passo suplementar, um ir ainda mais longe, já que corresponde a uma tentativa de vir a ser o Outro, de ocupar o seu lugar, enfeitando-se com os seus signos de omnipotência, arrogando-se um direito de vida e de morte sobre os seus semelhantes, e dotando-se de poderes supostamente mágicos. Os mais cruéis actos de violência, como os de Littleton (12), por exemplo, podem ser desencadeados sem o menor escrúpulo.
Os actos extremos cometidos actualmente por adolescentes em todas as sociedades pós-modernas podem combinar, em proporções variáveis, diferentes possibilidades de ocupar o lugar do Outro: no limite pode-se ser membro de um gang, viciado em drogas, aderente de uma seita e autor de actos de violência extrema. Estas passagens intempestivas da pequena delinquência à toxicomania, ao fanatismo religioso até à extrema violência são observáveis com grande frequência, nestes novos sujeitos do mundo pós-moderno apanhados nas malhas da auto-fundação histerológica.
Há quem procure explicar estes fenómenos e a sua insistente repetição pela sede de sensacionalismo dos meios de comunicação, ou reconduzi-los a ocorrências erráticas e, portanto, inexplicáveis, que reenviam a misteriosas pulsões que se apoderariam subitamente de alguns jovens mais instáveis. Parece bastante mais plausível associar estes fenómenos ao declínio do Outro nas nossas sociedades, que afecta mais directamente os estratos da população mais sensíveis a este declínio.
Não pode afirmar-se que estes comportamentos excessivos atinjam a totalidade dos jovens, mas eles representam hoje uma tendência muito significativa, assaz difundida capaz de mobilizar sequências identificatórias, fascínios difusos e troços de mini-narrativas. De resto, o Mercado percebeu tudo isto muito depressa e bem, e já desenvolveu toda uma indústria do jogo, da música e da imagem violenta, relacionada obviamente com a vivacidade dos afectos decorrentes desta carência. Pense-se, entre outros casos semelhantes, nas três longas-metragens realizadas por Wes Craven, a partir de 1997, sob o título de Scream; não é por acaso que o filme apareceu na paisagem mental de diversos jovens, autores de crimes violentos, que relatam terem ouvido vozes que os intimavam a suprimir os seus pais, a sua mãe ou a sua namorada. É certo que apenas alguns jovens, provavelmente os mais frágeis, menos integrados nas famílias, ou no que resta delas, executam estas passagens ao acto, mas o síndrome é já hoje largamente partilhado, e tem reflexos visíveis nas estatísticas da pequena delinquência (furtos, car-jacking, agressões violentas…) que estão em vias de se tornar o normal da quotidianidade.
A renúncia à ficção do Outro pode ter-nos libertado dos velhos ídolos tirânicos do passado, mas veio confrontar-nos com questões “impossíveis” que o Mercado deixa abertas, ou, pior ainda, aproveita para agravar ainda mais a situação. Seria fatal que os jovens e os adolescentes viessem a constituir a camada mais sensível a este desvanecimento tendencial do Outro, pelo que são eles que representam a figura exemplar e emblemática da pós-modernidade. Mas, o facto de serem a camada mais precocemente atingida, não significa que estes fenómenos afectem apenas os adolescentes e os jovens adultos; eles afectam o corpo social na sua totalidade. Há que entender que as manifestações que se produziram, por ocasião da perda do Outro, não correspondem a um acidente histórico que será brevemente ultrapassado, mas são sinais que prenunciam uma característica estrutural das nossas sociedades que está em vias de instalar-se, com efeitos potencialmente devastadores.
Como resulta de tudo aquilo que anteriormente de deixou exposto, o ensaio de Dany-Robert Dufour que tenho vindo a glosar, e, por vezes, a plagiar sem vergonha nem arrependimento, defende a tese de que há uma mutação histórica da condição humana que está em vias de processar-se diante dos nossos olhos. Pode dizer-se que esta mutação não é uma simples hipótese teórica, uma vez que é claramente detectável numa longa série de acontecimentos, nem sempre analisados como deveriam ser, que afectam as populações dos países mais desenvolvidos. Trata-se de acontecimentos de que toda a gente já terá ouvido falar: império da mercadoria, dificuldades de subjectivação e de socialização, toxicodependência, multiplicação de passagens ao acto, aparição do que se chama, com razão ou sem ela, “novos sintomas” - como a anorexia, a bulimia, a toxicomania, a depressão, o ataque de pânico – a explosão da delinquência em fracções não desprezáveis da população jovem, novas manifestações de violência e novas formas sacrificiais, etc., etc..
Perante estes acontecimentos, muitos especialistas de questões psicossociais (educadores, psicólogos, psicanalistas) declaram redondamente que não estamos diante de nenhum problema novo; se hoje os detectamos com maior facilidade, isso é simplesmente devido ao acréscimo considerável da informação disponível, pelo que o interesse que suscitam é apenas devido ao modo de funcionamento dos meios de comunicação de massa que precisam de uma profusa dose diária de notícias picantes. Por isso, como diziam, os policiais dos regimes autoritários, os nossos especialistas, dizem “Circulem, não há nada que ver nestes pseudo-acontecimentos”. Haveria, quanto muito, que desconstruir os discursos que encenam e exploram estes dados. E lá se vai desconstruindo laboriosamente, esquecendo que, no termo de tanta desconstrução, o essencial fica por fazer: tornar possível uma nova inteligibilidade destes factos, porque como dizia Bachelard em L’Air et les Songes, os factos padecem de uma forte dose de obstinação.
Como diz Dufour, longe de constituírem, acidentes, artefactos ou epifenómenos mais ou menos fabricados pelos meios de comunicação, estes factos são sinais de uma crise muitíssimo grave que afecta toda a população dos países desenvolvidos e, em primeiro lugar, a sua parte mais exposta, a juventude.
Como decorre de tudo o que anteriormente se disse, a conjectura avançada por Dufour é a de que todas estas dificuldades estão fundamentalmente ligadas à transformação da condição subjectiva que está em vias de se perfazer nas nossas sociedades. Estamos a assistir a uma verdadeira mutação antropológica: o sujeito pós-moderno já não é o mesmo que existia há apenas uma geração atrás. A condição subjectiva e até mesmo o seu inconsciente, estão igualmente submetidos à historicidade e, com toda a probabilidade, estamos, neste momento, a atravessar uma mutação histórica que afecta de modo particularmente sensível, todas as nossas grandes instituições (políticas, educativas, de saúde física e mental, justiça…).
Dufour tem a perfeita noção de não ter sido o primeiro a detectar os sinais desta transformação do ser-si e do ser-juntos, na passagem da modernidade à pós-modernidade: a emergência de um novo sujeito corresponde a uma fractura na modernidade, de que diversos pensadores se aperceberam, cada um a seu modo; há já algum tempo, Jean-François Lyotard, que foi um dos primeiros a chamar a atenção para o advento de uma era pós-moderna, caracterizava esta época pelo esgotamento e a desaparição das grandes narrativas de legitimação, designadamente a narrativa religiosa e a narrativa política de emancipação (13). Entretanto, outras designações têm sido avançadas: o supermoderno, o hipercontemporâneo… Mas, independentemente da sua designação, o que é certo é termos entrado numa época onde assistimos à dissolução é à progressiva desaparição da totalidade das forças em que a modernidade se apoiava. Ao desaparecimento das grandes narrativas e das ideologias dominantes, destacado por Lyotard, outras manifestações vieram acrescentar-se para completar o quadro: a desaparição das vanguardas, o progresso das democracias e o desenvolvimento do individualismo, a diminuição do papel do Estado, a progressiva proeminência da mercadoria sobre qualquer outra consideração, o reinado do dinheiro, a transformação da cultura numa sucessão imparável de modas, a massificação das formas de vida acompanhada pela exibição de si, o achatamento da história numa indigerível sucessão de acontecimentos, a importância crescente de tecnologias muito poderosas, cujo controlo é cada vez mais problemático, o alongamento da duração a vida humana e a insaciável procura de uma saúde plena e perpétua, a desinstitucionalização da família, as múltiplas interrogações sobre a identidade sexual e sobre a própria identidade humana (já se fala, hoje, da “personalidade animal”), a desafeição progressiva da política, a transformação do direito num juridismo processualista, a desaparição do espaço privado (pense-se no alastramento das webcams), e privatização do domínio, público… etc., etc.. Esta é uma pequena resenha, aliás não exaustiva, dos traços que constituem sintomas da mutação que estamos a atravessar.
A “Arte de reduzir as cabeças” é fundamentalmente um ensaio que procura levar a cabo uma reflexão aprofundada sobre os diferentes aspectos desta mutação que corresponde à progressiva autonomização do indivíduo que, comportando, sem dúvida, uma evidente dimensão emancipadora, não pode deixar de engendrar sofrimentos inéditos. Com efeito, nada indica que esta autonomia seja uma exigência a que a generalidade dos sujeitos possa responder espontaneamente e sem dificuldade de maior. Toda a tradição filosófica ocidental tenderia a indicar que a autonomia é a coisa mais difícil de construir que há neste mundo e só pode ser a obra de toda uma vida.
Não é de admirar que os jovens que estão, por definição, numa situação de dependência, sejam expostos a esta exigência de autonomia de uma forma assaz problemática, o que cria um contexto difícil para todos os projectos educativos. Fala-se constantemente da “perda de referências dos jovens”, como se isso fosse algo que possa surpreender; surpreendente seria precisamente o contrário. É evidente que os jovens estão desorientados, uma vez que se defrontam com uma nova situação subjectiva para cuja solução, ninguém, e ainda menos os responsáveis pela Escola, dispõe das chaves. É perfeitamente ocioso invocar a perda de referências, se for para sustentar que algumas lições de moral, à moda antiga, bastariam para neutralizar os danos. Aquilo que não funciona é justamente a moral, porque a moral só pode ser transmitida “em nome de…”, e no contexto de uma progressiva autonomização dos indivíduos, ninguém sabe em nome de que ou de quem ela pode ser invocada. A situação actual é nova porque a ausência de um enunciador colectivo credível pesa sobre todos e especialmente sobre os jovens. O desaparecimento de uma instância que interpele todo o sujeito e a quem ele tem que responder, - e que a história sempre conheceu, designadamente através da Escola - torna urgente o desenvolvimento de estudos de psicologia que se debrucem sobre a situação de um sujeito que é intimado a fazer-se a si mesmo e ao qual nenhuma anterioridade histórica ou geracional pode legitimamente dirigir-se.
Mas o que será precisamente um sujeito autónomo? Será que esta noção faz sentido, quando sabemos, ou devíamos lembrar-nos, que o sujeito é, em língua latina, o subjectus, que designa o submisso? O sujeito é, pois, o submetido, mas submisso a quem ou a quê?
A filosofia, desde sempre, se interessou pela questão da submissão; sempre considerou o ser humano como uma entidade cuja existência não depende de si mesmo mas de um outro ser. A multiplicidade de ontologias que se constituíram a partir desta questão propuseram os mais variados nomes para o designar: a Natureza, as Ideias, Deus, a Razão ou o Ser. Pode inclusivamente dizer-se que toda a filosofia ocidental não é mais do que uma série de propostas sobre este primeiro princípio, o Ser. A começar com a entrada em cena dos sofistas que, para tentar desmontar a filosofia, ab ovo, avançaram que o Nada é, e o Ser não é, e tudo devém, para caírem imediatamente na armadilha que prepararam, ao ontologizar o seu pensamento sob a forma de uma tese: o devir é (14). Desde os pré-socráticos, que colocavam a Natureza como primeiro e único princípio, até Heidegger que fez do Ser o absoluto de que o homem seria o pastor, passando por Platão e as suas Ideias, Aristóteles com a sua ontologia do concreto, as onto-teologias medievais, como o seu Deus único, Descartes, Kant, Hegel, Husserl, Sartre… e todas as grandes filosofias se foram desdobrando entre transcendentalismo, imanentismo e empirismo.
Sempre sob formas altamente especulativas e, no entanto, pode afirmar-se, sem grande risco de erro, que todas estas propostas são eminentemente políticas.
Poderia pensar-se que ontologia é o que há de mais afastado da política que tem que ver com preocupações práticas de organização da vida de todos os dias e supõe o sentido da acção e da realidade; seria o maior dos erros: quando se debate a forma e a organização da comunidade, da cidade, do Estado, trata-se precisamente de fazer com que os homens acedam à verdade do Ser e de subtraí-los ao domínio das paixões imediatas. Tanto A República de Platão como A Política de Aristóteles são justamente modelos do género que mostram que a intenção última da filosofia é o político. Mas isto que é válido em relação a Platão ou a Aristóteles, é igualmente válido de todas as ontologias: todas elas celebram, organizam ou preparam o reinado do Ser sobre os homens. O filósofo italiano Giorgio Agamben vai ao ponto de escrever: “a política apresenta-se como a estrutura propriamente fundamental da metafísica ocidental enquanto ocupa o limiar em que se opera a articulação entre o vivo e o logos” (15).
O Ser nunca é simplesmente o ser; possui sempre uma tradução ou uma replicação política. Uma replicação a que pode atribuir-se o nome de “o Terceiro” ou o “Um”.
Alexandre Kojève, no seu Esquisse d’une philosophie du Droit, dizia: “há direito quando intervém um ponto de vista terceiro nos negócios humanos”. E Emmanuel Levinas foi o autor da que talvez seja a maior elipse da história da filosofia quando escreveu no seu ensaio Difícil Liberdade, “o terceiro, isto é, a justiça”.
O que isto significa é que, no fundo, a filosofia política não é mais do que o pensamento que se dedica a identificar, e a inventariar os diferentes Terceiros que a humanidade se deu, ao longo da sua história e das modalidades da sua construção e reconstrução. Como escreveu Bergson no final do seu livro Les Deux Sources de la moral et de la religion: “A função essencial do Universo é a de ser uma máquina de fazer deuses” e, mais recentemente,Jean-Pierre Dupuy, abre o seu recente ensaio sobre La Marque du Sacré com esta observação: “os colectivos humanos são máquinas de fabricar deuses”.
Em suma, os sujeitos falantes, simbolizáveis como eu e tu, nunca deixaram de construir eles eminentes, junto dos quais poderiam fundar a possibilidade de ser. Porque são seres falantes, os humanos jamais cessam de construir entidades que elegem como princípio unificador, como Um, ou o grande Sujeito, o sujeito eminente ao qual se submetem. É claro que o grande Sujeito é uma construção discursiva e o segredo do político reside em apresentar os grandes Sujeitos como entidades naturais; nesta naturalização das entidades produzidas pelos pequenos sujeitos que, em retorno os fazem existir, reside o verdadeiro segredo da abelhinha. Porque o terceiro, como centro dos sistemas simbólico-políticos, tem sempre a estrutura de uma ficção sustentada por todo o conjunto dos falantes, o político nunca é separável de um conjunto de mitos, narrativas e criações artísticas destinadas a sustentar esta ficção.
As sociedades humanas são sempre políticas, porque a disposição política dos homens mergulha as suas raízes bem longe no processo de humanização; neste sentido, todas as sociedades são políticas, mesmo antes de o saberem. Para que a política chegasse à consciência de si, foi preciso o “milagre grego” dos séculos V e IV antes da nossa era. Antes, os homens inventavam ídolos e totens, e outros diversos terceiros que os faziam existir; mas a Grécia veio modificar os dados da questão: a deliberação colectiva sobre a organização da Cidade passou a intervir na escolha, forma e na organização do Terceiro.
O termo político assinala, aliás, este novo dado: a polis, a cidade grega é o Terceiro que a sociedade grega se ofereceu no curso dos séculos V e IV antes da era cristã. Desde esta alvorada do pensamento, a política reenvia ao ser em comum dos homens, os agregados humanos não podem existir sem um princípio de unidade: a comunidade, a polis, o Estado…
Certamente que o Um nunca existiu, é uma pura ficção; mas, o caso é que a função simbólico-política só pode ser garantida pela criação de figuras que têm a natureza de ficções. Esta capacidade de criação do Terceiro é co-extensiva à nossa segunda natureza, a que também chamamos cultura.
Dois anos após a publicação do ensaio que tenho vindo a glosar, Dany-Robert Dufour produziu um segundo ensaio, que é como que um seu prolongamento, no qual, depois de ter exposto o que chama uma prova ateia da existência de Deus – a que, por minha parte, preferiria chamar, sob a influência de Bernard Stiegler, uma prova ateia da consistência de Deus – cujo cerne racional reside em mostrar que, independentemente da variedade de formas que possa assumir, Deus sempre existiu e sempre existirá, na cabeça dos homens, e procura mostrar que a história da Humanidade tem sido, e sempre será, a história das modalidades da construção e da reconstrução dos diferentes Terceiros, ou grandes Sujeitos, que os homens ficcionaram para que, pura e simplesmente, pudessem existir, e não apenas subsistir. Incidentalmente pode observar-se que, se o homem, por necessidade discursiva, tem a estrita necessidade de inventar ficções, não para viver, como ser natural, mas para existir, como ser de cultura, então, há que concluir que uma humanidade desencantada – como a que a pós-modernidade ocidental está em vias de edificar - terá os dias contados, a não ser que consiga, o que é muito duvidoso, regressar à animalidade de onde saiu.
Entretanto, vou recorrer ao ensaio de Dufour que acabo de referir e se intitula “On Achève bien les hommes. De quelques conséquences actuelles et futures de la mort de Dieu”, para prolongar um pouco mais a glosa que encetei do ensaio anterior.
Começarei com uma observação de Dufour sobre Spinoza que considero extremamente pertinente, no âmbito das últimas considerações que acabo de fazer. Dufour evoca as belas páginas do Traité Theologico-politique, onde Spinoza procura compreender como os homens combatem pela sua servidão, como se lutassem pela sua liberdade; a sua explicação é a de que inventam superstições e acreditam nestes delírios como se fossem verdadeiros. Spinoza identifica a religião com o governo de Deus e escreve “Por governo de Deus, entendo a ordem fixa e imutável da natureza… As leis da natureza, segundo as quais tudo se produz e tudo é determinado são os decretos eternos de Deus. Dizer que tudo se faz segundo as leis da natureza ou se ordena pelo decreto ou governo de Deus é exactamente o mesmo” (16). A superstição opõe-se, pois, à religião na medida em que suprime a possibilidade de explicar a natureza, pois “os homens forjam inúmeras ficções e quando interpretam a Natureza descortinam milagres por toda a parte, como se ela delirasse com eles”. A mensagem spinozista que arrepiou muitos dos seus contemporâneos, religiosos ao extremo, é de uma perfeita clareza: deixai de misturar a natureza com as vossas superstições; ela toma conta de si mesma e possui as suas próprias leis que deveríeis procurar descobrir. Quer dizer, para Spinoza, a superstição, como facto de (primeira) natureza, é pura e simplesmente de excluir. O raciocínio de Spinoza é impecável e é impossível deixar de o acompanhar, padece apenas de uma pequena omissão: esquece-se de notar que a superstição se não é, de facto, compatível com a primeira natureza, é, todavia, constitutiva da segunda. Há um lugar, a que chamamos cultura, onde a natureza se torna delirante e onde as leis da (primeira) natureza não se aplicam inteiramente, e carecem ser completadas pelas leis da segunda. Pelo menos, se quisermos perceber alguma coisa desta espécie falante (e delirante).
Toda a construção de Dufour assenta num dado antropológico fundamental que é o da neotenia do homem. Como recorda Dufour, foi preciso esperar pelo início do século XX para que uma descoberta científica permitisse uma reconsideração decisiva das relações entre as espécies naturais (os animais e os homens) e as espécies sobrenaturais (os deuses). Esta descoberta foi precisamente a da neotenia humana e é geralmente atribuída a Louis Bolk, anatomista holandês, autor em 1926, da obra Das Problem der Menschwerdung (A Génese do Homem), embora se saiba, hoje, que a primeira menção científica da ideia da neotenia tenha aparecido cinco anos antes num artigo de Émile Devaux que falava já do “infantilismo do homem”. Hoje em dia, a tese da neotenia, que concebe o ser humano como um animal essencialmente prematuro, que não atinge um desenvolvimento germinal completo, mas é, todavia, capaz de transmitir à sua descendência, os caracteres de juvenilidade que, nos outros animais são transitórios, é sustentada pela generalidade da investigação paleontológica (17).
Dufour julga-se no direito de supor e, ao que me parece, com boas razões, que a ideia da neotenia foi objecto de um verdadeiro mito moderno que percorreu subterraneamente a história da filosofia, antes de se afirmar efectivamente como um adquirido científico na corrente do pensamento darwinista.
Com efeito, a ideia da neotenia terá aparecido como um mito ou um “fantasma filosófico” nas lucubrações de um Rousseau no seu Discours sur inégalité, ou de um Freud no seu Totem e Tabou, com o seu mito da horda primitiva, mas ambos tinham uma plena consciência de que estavam a inventar, no caso de Rousseau, “um estado que porventura jamais terá existido”, ou no caso de Freud “um mito científico”, ficções de que careciam para dar um fundamento senão lógico, pelo menos mitológico às suas locubrações.
Como observa Dufour, ele mesmo já não está em situação semelhante à dos seus ilustres percursores, porque a ciência, no caso concreto, a antropologia darwiniana, lhe fornece uma problemática já muito desenvolvida, que não tem que inventar, mas simplesmente integrar num novo campo de conceitos filosóficos.
Mas, muito antes de Bolk, no tempo em que a neotenia humana não existia ainda como um conceito científico sustentável, muitos outros pensadores de grande envergadura tiveram que inventá-la para sustentar as suas propostas: quando nos lembramos de Pico della Mirandola, Erasmo, Kant, Fichte, Marx, Feuerbach… verificamos que a ideia da prematuração humana já ocupava um lugar destacado no pensamento ocidental, muito antes que a ciência viesse a estabelecê-la definitivamente.
Daí que seja perfeitamente legítimo afirmar que a ideia da neotenia, antes de se impor como um conceito científico, funcionou como um verdadeiro mito fundador subjacente a toda a filosofia moderna.
Mas, não só; é possível recuar bastante mais; tudo começa desde a fundação da filosofia, quando Platão retoma o mito grego de Prometeu cujas fontes remontam a Hesíodo (18). É em Hesíodo, que encontramos, pela primeira vez, o Prometeu piróforos, portador do fogo, que furtado aos deuses é oferecido aos homens:
“O corajoso filho de Jápeto soube enganar Zeus e roubou, de dentro de uma pá, a luz brilhante do fogo infatigável, e Zeus, que ruge nas nuvens, foi profundamente atingido no seu coração e irritado na sua alma… Logo criou, em lugar do fogo, um mal destinado aos humanos.” Hesíodo, Théogonie, v. 564-570
Na sua trilogia trágica, de que só sobra o Prometeu Agrilhoado, Ésquilo narra que Zeus, para punir o titã, acorrentou Prometeu a uma árvore, no monte do Cáucaso, local onde uma águia vinha indefinidamente comer-lhe o fígado que, durante a noite, retomava as suas proporções normais, antes de precipitá-lo, finalmente, nas profundezas do Inferno. E porque Prometeu roubara também uma caixa onde estavam guardados todos os males que os deuses destinavam aos humanos, e a tinha deixado à guarda do seu irmão Epimeteu, Zeus enviou então à Terra a terrível Pandora que desposou Epimeteu e abriu a malfadada caixa; pelo que todos os males se abateram sobre a humanidade, com excepção da Esperança que ficou colada ao fundo.
Com Ésquilo, a questão da técnica adquire um lugar especial, já que o homem deixara já as antigas paragens rurais para habitar as cidades, mobilizando as artes e as técnicas. “Todas as artes vieram aos mortais de Prometeu”, lê-se no Prometeu Agrilhoado (19).
Ao retomar o mito, Platão veio conferir-lhe uma nova dimensão, muito especialmente pelo papel atribuído a Epimeteu, a quem vai caber a tarefa da criação de todas a espécies animais. Ora a criação do homem vem pôr em destaque, por antecipação, uma notável ideia neoténica, já que Epimeteu, que não devia muito à inteligência, distribuiu profusamente por todos os animais a totalidade das qualidades a atributos de que dispunha, pelo que, quando chegou o momento de criar o homem, o saco das qualidades estava completamente vazio. Essa foi a razão pela qual o seu irmão Prometeu se viu forçado a roubar o fogo aos deuses para o oferecer aos homens, a fim de compensar a sua desastrosa deficiência constitutiva (20).
A passagem do diálogo platónico Protágoras (21) onde figura este mito neoténico merece ser longamente citada, como faz Dufour, na obra que tenho vindo a glosar, prática que gostosamente imitarei:
“Houve outrora um tempo em que os deuses já existiam, mas não ainda as espécies mortais. Quando chegou o tempo marcado pelo destino para a sua criação, os deuses moldaram-nas, nas entranhas da terra, a partir de uma mistura de terra, fogo e outros elementos susceptíveis de se combinar com eles. Quando se aproximou o momento de as trazer à luz, os deuses incumbiram Prometeu e Epimeteu de atribuírem a cada uma delas as qualidades apropriadas, mas Epimeteu pediu a Prometeu que o deixasse ser apenas ele a assumir o encargo de fazer a partilha. «Quando eu acabar, virás inspecionar a minha obra», disse. Acordada a permissão solicitada, Epimeteu meteu mãos à obra. “Iniciou, então, a distribuição: deu a uns a força sem a velocidade, a outros a velocidade sem a força; a uns forneceu armas, que não deu a outros, imaginando, para esses outros, meios de conservação; àqueles a que atribuiu um corpo de pequena dimensão, deu-lhes asas para voar ou abrigos subterrâneos, já que em relação àqueles que tinham um grande porte, o seu tamanho bastava para os conservar; aplicou este processo de compensação a todos os animais. Com todos os seus diversos expedientes, procurou impedir que alguma espécie desaparecesse. “Depois de os prevenir contra a destruição recíproca, preocupou-se em protegê-los contra as intempéries enviadas por Zeus; para tanto imaginou revesti-los de pelos duros e peles espessas, e abrigos contra o frio e, para os períodos de sono, coberturas naturais adaptadas a cada um; a uns deu cascos ou peles calosas desprovidas de sangue; depois, preocupou-se em dar a cada espécie alimentos distintos, a uns a erva da terra, a outros os frutos das árvores, a outros as raízes. A alguns deu-lhes animais a comer, aos quais conferiu uma posteridade numerosa para assegurar a sobrevivência da espécie. “No entanto, Epimeteu que não era suficientemente prudente, tinha gasto com os animais, todas as faculdades de que dispunha e quando já só faltava a espécie humana ficou sem saber o que fazer por falta de equipamento. Estava neste embaraço quando chegou Prometeu para examinar a partilha; viu que todos os animais estavam bem providos, mas o homem estava nu, sem calçado, sem cobertura, sem armas, quando já se aproximava o dia marcado pelo destino para trazer o homem, desde as entranhas da terra, até á luz. “Perante esta dificuldade, Prometeu, forçado a encontrar um meio de conservação para o homem, decidiu roubar a Hefraístos e a Atena não só o domínio das artes como também o fogo, porque, sem o fogo a habilidade artística seria inútil, e deu tudo isso de presente ao homem. “Foi deste modo que o homem passou a dispor das artes próprias para a conservação da vida; só que a política não estava ao seu alcance porque esta arte estava junto de Zeus e Prometeu não tinha tempo de entrar na Acrópole que era guardada por temíveis sentinelas: pôde, no entanto, entrar furtivamente na oficina comum onde Hefraístos e Atena cultivavam as artes, de tal modo que conseguiu roubar a Hefraístos a arte de manejar o fogo e a Atena as outras artes que ela dominava, e ofereceu-as ao homem. Foi assim que o homem entrou na posse dos recursos necessários à vida, e Prometeu foi depois punido pelo crime que cometera, para remediar a falta de Epimeteu. “Desde que o homem foi provido das artes divinas, dada a sua afinidade com os deuses, passou a ser o único animal que começou a honrá-los e a construir altares e imagens das divindades; em seguida pôde articular a sua voz e emitir sons e palavras, dar nomes às coisas, inventar habitações, vestuário e calçado e extrair alimentos do solo. Mas, de início, os humanos viviam dispersos e as cidades não existiam; por isso eram facilmente destruídos por animais selvagens mais fortes do que eles; as artes mecânicas bastavam-lhes para viver, mas continuavam impotentes na guerra com os animais, porque não dispunham ainda da arte política de que faz parte a arte militar. Por isso procuraram reunir-se e fundar cidades para se protegerem, mas porque lhes faltava a arte política, dispersavam-se outra vez e pereciam. “Então, Zeus, inquieto pela ameaça de desaparição da espécie humana, mandou Hermes levar aos homens o pudor (aidos) e a justiça (dike) para que pudesse haver regras capazes de unir as cidades e criar, entre os humanos, vínculos de amizade.”
Verifica-se, como comenta Dufour, que o esquema neoténico está perfeitamente esboçado com uma perfeita clareza: todos os animais são dotados pela natureza, o homem não dispõe de equipamento. Teria perecido sem o roubo de Prometeu… que, no entanto, não resolve tudo: os homens dependem ainda dos deuses quanto à arte política de se reunirem e se governarem. Na transposição platónica do mito de Prometeu, os dois tempos fortes da dinâmica neoténica estão definidos: Primeiro tempo (epimetiano) - o homem é inacabado. Segundo tempo (prometaico) - o homem cumpre-se. Mas é o político que confere uma medida que lhe permite viver em harmonia, já que este frágil ser, facilmente se torna presa da hubris, a ausência de medida.
A retomada deste mito tem lugar na Itália neoplatónica, designadamente em Florença, onde se inicia o Renascimento que arranca com Bocácio até Marsílio Ficino, Pico della Mirandola e Giordano Bruno, para se prolongar, no resto da Europa, em Erasmo e Bacon. Pode dizer-se que foi Pico della Mirandola que veio conferir ao mito de Prometeu o papel de mito fundador da modernidade; é no Discurso sobre a Dignidade do Homem (De Hominis Dignitate) que encontramos a verdadeira proclamação do surgimento de um mundo novo que, apesar de continuar a ser cristão, liberta o homem de uma submissão total a Deus. É aí que se assiste à primeira proclamação do ideal humanista: o homem é apresentado como o artesão do seu próprio destino e deixa de estar submetido a um determinismo estrito: Deus fez o homem incompleto, para que ele pudesse fazer uso do seu livre-arbítrio e da sua razão.
Leia-se este fragmento do texto o texto de Pico redigido e 1486, Oratio de Hominis Dignitate:
“O Arquitecto supremo escolheu o homem, criatura de natureza imprecisa, e colocando-o no centro do mundo, dirigiu-se-lhe nestes termos: «Não te demos, nem lugar preciso, nem uma forma que te seja própria, nem função particular, Adão, a fim de que, segundo o teu querer e o teu discernimento, possas tomar posse do lugar, da forma e da função que desejares. A natureza de todas as outras coisas é limitada e contida no interior das leis que lhes prescrevemos. Tu que não és limitado, nem constrangido, decidirás dos limites da tua própria natureza, segundo a livre vontade que colocámos nas tuas mãos. Colocámos-te no centro do mundo para que, a partir daí, possas facilmente observar todas as coisas. Não te criámos, nem do céu, nem da terra, nem mortal, nem imortal, para que, pelo teu livre-arbítrio, como se fosses o criador do teu próprio molde, possas moldar-te na forma que preferires” (22).
Nesta passagem é perfeitamente audível como que uma presciência da ideia da neotenia, de uma “natureza imperfeita do homem”, ou seja, a retomada da ideia platónica de um ser criado sem “faculdades” nem “equipamento”.
Esta grande ideia veio a ser declinada de múltiplas maneiras ao longo de toda a época moderna. Ela está subjacente em todas as narrativas de emancipação (do indivíduo ou da sociedade) que encontramos, desde o Renascimento; em todas elas há sempre uma referência clara a esta ideia neoténica que corre desde a época renascentista até às narrativas emancipatórias das Luzes e do Romantismo.
No que se tem chamado a “filosofia do Renascimento Francês” pode detectar-se, sem dificuldade, um fio genealógico que vai do teólogo Raymond Sebond até Descartes, passando por Bovelles, Montaigne e Charon, que mostra claramente o que todos estes pensadores devem à ideia prometaica da realização do homem por si mesmo, proveniente do Renascimento italiano, de Pico della Mirandola e do seu contemporâneo Marcílio Ficino.
Seguindo esta linha vermelha, pode citar-se a palavra de Erasmo de Roterdão, no seu Tratado da Educação das Crianças de 1529 “O homem não nasce homem, faz-se tal” (23). Nada impede que saltemos uns duzentos e cinquenta anos e, ao longo da mesma linha, citemos o Tratado de Pedagogia de Kant:
“Um animal é, pelo seu instinto, tudo aquilo que pode ser; uma razão alheia, já tomou, em relação a eles, os cuidados indispensáveis. Mas o homem tem necessidade da sua própria razão. Não tem instinto e tem que fazer, ele mesmo, o seu plano de conduta. Não sendo, porém, imediatamente capaz e chegando ao mundo em estado selvagem, carece do socorro dos outros. A espécie humana é forçada a extrair, pouco a pouco, de si mesma, pelos seus próprios esforços, todas as qualidades que pertencem à humanidade. Uma geração faz a educação da outra” (24).
Esta mesma ideia encontra-se igualmente em Rousseau, no começo do seu Emílio:
“Nascemos fracos, e precisamos da força; nascemos desprovidos de tudo, e temos necessidade de assistência; nascemos, estúpidos e precisamos de juízo. Tudo aquilo que não temos à nascença e de que temos necessidade como adultos, é-nos dado pela educação” (25).
É a mesma ideia que reencontramos em Fichte que tem esta fórmula lapidar: “Cada animal é aquilo que é, só o homem, originariamente, não é absolutamente nada” (26).
Mas é, sem dúvida, com o Romantismo que a ideia da neotenia, principalmente sob a sua vertente prometaica, adquire o seu maior esplendor. É certo que o tema de Prometeu, como salvador e reconstrutor do homem, já reaparecera no início do século XVII com o Prometheus de Francis Bacon; já se vislumbrava, nessa obra, o tema do sábio aprendiz de feiticeiro, disposto a transgredir todas a leis para atingir os seus fins: o Prometeu de Bacon anuncia a personagem do Fausto de Goethe; pode notar-se que ele aparece ao mesmo tempo do Golem da lenda judaica de Praga.
Goethe escreveu também um Prometeu a que dedicou quase tanto tempo como ao Fausto; aí aparecem, entrelaçados, os temas da revolta contra os deuses e do indivíduo criador e independente de qualquer poder exterior, que virão a traduzir-se na figura do rebelde romântico, o herói que luta pela liberdade das criaturas proclamando a vanidade dos deuses a que se contrapõem a potência e a liberdade dos homens.
É na mesma época que aparece o Frankenstein de Mary Shelley, que ela mesma apresenta como “um Prometeu moderno”, enquanto o seu marido Percy B. Shelley escreve um Prometeu libertado, que faz de Zeus e de todos os deuses a incarnação do mal e de Prometeu um Hercules que aparece como o salvador do mundo, contra os deuses que representam o mal, finalmente irradiado pelo advento do reinado do bem e do amor.
Durante esta época romântica aparecem 170 obras inspiradas pela figura de Prometeu, que se torna uma presença permanente e difusa nas obras de Schlegel, Byron, Shelley, Balzac, Victor Hugo ou Baudelaire. Prometeu e Satanás são vistos como dois rebeldes que, no fundo, talvez sejam um só. Pode dizer-se que todo o século XIX faz de Prometeu o mártir fundador da civilização, campeão da Revolta, da Ciência e da Razão. O próprio Marx, no prefácio da sua tese sobre Demócrito e Epicuro, parte do texto do Prometeu de Ésquilo para proclamar “Numa palavra, odeio todos os deuses!” pelo que, no calendário filosófico, “Prometeu ocupa o primeiro lugar entre os santos e os mártires”.
Entre 1840 e 1900 surgem, em França, quarenta obras literárias inspiradas por Prometeu e noventa em toda a Europa, merecendo especial referência o Nascimento da Tragédia de Nietzsche e o Prometeu mal Agrilhoado de André Gide que contém uma versão assaz original do mito: Prometeu apaixona-se pela ave que lhe devorava o fígado, acaba por matá-la e come-a, reencontrando um riso a que poderia chamar-se nietzschiano; do animal sagrado que tanto o consumira, conserva apenas as penas com que se enfeita.
A última aparição da ideia neoténica antes da sua conceptualização científica na obra de Bolk, nos anos 20, deve-se a Freud que, ao explorar o domínio da neurose encontra a neotenia; No final do seu texto Inibição, Sintoma e Angústia, publicado em 1926, o mesmo ano da comunicação de Bolk, Freud faz esta observação rigorosamente neoténica: “Entre os factores que participam na génese das neuroses… deve reter-se o estado de desamparo [Hilflosigkeit (27)] e de dependência prolongada da criança humana. A existência intrauterina do homem, aparece, face à da maior parte dos animais, significativamente encurtada: a criança do homem é lançada no mundo muito mais inacabada do que os outros animais”.
Após esta breve recapitulação da genealogia da ideia da neotenia humana, em que resumi em três páginas, cerca de 15 páginas do texto de Dufour, não me parece possível alimentar a mais pequena dúvida sobre a importância simplesmente decisiva desta ideia na história do pensamento humano. Ela está presente em todas as versões modernas do mito prometeico-epimetiano, ou seja, nas narrativas que relatam o não acabamento do homem e/ou exaltam a sua realização. As proposições que afirmam que o homem não nasce homem, mas faz-se como tal; que cada animal é aquilo que é, enquanto o homem não é nada, e deve advir a si mesmo utilizando os meios da razão ou da técnica, condensam a ideia que subjaz a todas as narrativas de emancipação do Ocidente moderno: busca de uma medida para este ser sujeito à hubris, promoção do livre-arbítrio, celebração da autonomia da razão, acesso ao sujeito transcendental, libertação pela técnica, narrativa do crepúsculo dos deuses e da morte de Deus, exploração das profundezas da psique humana.
Dufour sustenta a tese de que toda a descoberta científica de relevo suscita o aparecimento de uma renovação filosófica. Ora, hoje, dispomos de um novo dado antropológico capital sobre a estrutura da espécie humana, actualmente bem apoiado e desembaraçado dos seus defeitos de juventude (28). Dufour conta que, já alguns anos antes, havia escrito um primeiro livro exploratório, Lettres sur la Nature Humaine à l’usage des survivants, Paris, Calmann-Levy, 1999, e já nessa altura lhe parecera bizarro que esta teoria científica não tivesse ainda sido chamada a contribuir para uma renovação do pensamento filosófico e das ciências humanas e que ninguém se apercebesse das remodelações que é necessário introduzir em todos os domínios do pensamento quando se percebe, com o aval da ciência, que o homem é um neóteno, um ser que perdeu a sua primeira natureza e foi constrangido a inventar uma segunda, para sobreviver.
De facto, desde que dispomos desta teoria, é todo o nosso mundo humano e toda a história do homem que carecem de reconsideração; já não é possível conceber este nosso mundo como o produto de um Homem, apresentado como um “eleito”, um Rei da criação; porque o homem é um ser que não consegue integrar-se na primeira natureza, a “verdadeira”, mas é um ser inacabado, um ser que se viu obrigado a inventar, a partir da sua falta de recursos, uma “outra” natureza, a que chamou cultura e civilização.
A teoria da neotenia humana obriga-nos a conceber as grandes economias humanas sob uma nova luz. Por economias humanas deve entender-se a linguagem, o espírito, o psiquismo, o corpo, a história, a política, a criação estética e a fabricação protésica (ou seja, a técnica); é todo um novo pensamento filosófico que deverá ser reencenado para poder abarcar todas estas diferentes dimensões.
Como observa Dufour, há que fazer do neóteno uma nova personagem conceitual e lançá-la no teatro da filosofia ocidental. Há que começar a contar a História de um modo diferente. Com a entrada em cena desta nova personagem, é a relação ao Ser, a relação ao Outro, a relação aos outros e a relação a si… que já não podem ser vividas nem ser pensadas do mesmo modo. A História já não poderá continuar a ser contada a partir do ponto de vista do Rei da Criação, mas do ponto de vista de um ser excluído da primeira natureza e constrangido a inventar uma segunda.
O que é, pois, a neotenia humana, uma das grandes descobertas científicas do século XX?
A neotenia é uma tese neodarwiniana introduzida nos anos vinte do século passado por Bolk num artigo que se tornou célebre, Das Problem der Menschwerdung (O problema da génese humana). Antes desta data já se conhecia a neotenia animal que corresponde a um atraso do desenvolvimento de certas espécies: em alguns animais, o desenvolvimento pode parar antes do termo do processo de maturação (29). Estes animais são qualificados de neoténicos porque alguns caracteres de juvenilidade, normalmente transitórios, em lugar de desaparecerem, perduram e instalam-se como caracteres definitivos: a neotenia é precisamente isso, a persistência, no estado adulto, de caracteres juvenis normalmente passageiros. Aquilo que é novo, neo natal, perdura, de onde a designação de neo, novo e ten do radical grego, de teinen, prolongar, estender. O neóteno é, pois, o juvenil que se prolonga.
Há um pequeno animal aquático que se chama axolotl e vive em alguns lagos do México que é um belo exemplo de um neóteno: é um ser semi-peixe, semi-salamandra, cujo desenvolvimento pode ficar travado no estado larvar de animal aquático, o que dá o axolotl, ou prosseguir o seu desenvolvimento até ao estado aéreo vir a ser um amblistome, uma pequena salamandra com riscas. A propósito deste curioso animal, Dufour narra uma história muito interessante que se refere a Julio Cortázar, o famoso escritor argentino contemporâneo de Jorge Luís Borges. Acontece que Cortázar foi o autor de um conto que se chama precisamente, o Axolotl (30); neste conto, que é a história de um homem que vai todos os dias ao aquário contemplar um axolotl, de tal modo que, com o correr do tempo, deixa de saber de que lado do vidro se encontra; quando contempla o axolotl começa a ver-se paulatinamente como um axolotl que olha para um homem que o contempla. O que o conto de Cortázar dá a entender é que existe um parentesco “real” entre o homem e axolotl. O mais interessante desta história é que Dufour, que já tinha comentado o conto de Cortázar numa obra anterior (31), narra que só muito mais tarde veio a aperceber-se da razão pela qual Cortázar foi tão sensível a este parentesco. O caso é que Cortázar sofria de uma doença genética muito rara que implicava que jamais tivesse parado de crescer até ao fim dos seus dias. Em suma, Cortázar encontrava-se na pele de um super-neóteno. Era como que um neóteno em segundo grau: ainda mais neóteno que todos nós, um eterno adolescente condenado a um crescimento permanente. Compreende-se, pois, que Cortázar fosse particularmente designado pela lotaria genética para se aperceber na nossa condição de animais neótenos e revelá-la.
De facto, somos todos seres prematuros; comparando a maturação pré-natal do homem com a dos outros primatas, calcula-se que o ser humano deveria nascer, não ao fim de nove meses, mas de dezoito. O homem sai cedo demais do ventre de sua mãe!
Podem encontrar-se no homem múltiplas provas deste carácter prematuro: cavidades cardíacas não fechadas no momento do nascimento, imaturidade pós-natal do sistema nervoso piramidal, insuficiência dos alvéolos pulmonares, caixa craniana não totalmente fechada, circunvoluções cerebrais mal desenvolvidas, ausência de oponibilidade do polegar posterior, ausência de sistema piloso, falta de dentição de leite à nascença… Esta prematuridade do homem salda-se, entre outras consequências, por um alongamento muito significativo do período de dependência maternal e por um desenvolvimento sexual em dois tempos, separados por um longo período de latência. É sobre este estranho desenvolvimento em dois tempos que se baseia toda a teoria freudiana dos desejos infantis revelados a posteriori.
Por outro lado, as comparações do desenvolvimento do homem com o dos outros símios superiores mostram que o processo de hominização é mensurável à luz de um parâmetro fundamental: o aumento do volume cerebral. Este fenómeno chama-se “contracção craniofacial” e implica o aumento do volume cerebral, a diminuição do rosto e o alargamento da mandíbula. Ora, as etapas desta “contracção craniofacial” são condicionadas por desfasamentos na cronologia do desenvolvimento relativos a todas as etapas da formação: embrionária, fetal, láctea (primeira dentição), de substituição (substituição dos dentes de leite) e adulta. O desenvolvimento do ser humano, nascido “demasiado cedo”, mostra-se mais lento; a sua juvenilidade prolonga-se e atinge o estádio adulto mais tarde. A consequência mais directa da neotenia é o ritmo do crescimento. Se compararmos os desenvolvimentos respectivos do chimpanzé e do homem, verifica-se um atraso generalizado do crescimento humano e uma duplicação do período do crescimento:
A fase embrionária que dura duas semanas no chimpanzé, prolonga-se até oito semanas no homem, sendo nesta fase que se constituem as células nervosas.
A fase fetal dura mais um mês no homem, mas deveria ser muito mais longa, o dobro, diz-se, visto que o bebé humano quando nasce é muito mais imaturo do que o bebé chimpanzé.
A fase láctea, de três anos no chimpanzé, dura seis anos nos humanos; ela continua a exprimir o fraco ritmo do desenvolvimento humano. No início deste período, o orifício occipital do jovem chimpanzé está situado na base do crânio como no homem, o que permite a bipedia que se observa nos jovens símios. No homem, o desenvolvimento da parte posterior do crânio é de tal modo lento que a bipedia, favorecida pela ausência de polegar, posterior, oponível, é estabilizada definitivamente. É esta estabilização da bipedia que arrasta a aparição de um corpo neoténico. Desde logo, em favor da estabilidade da estação dinâmica vertical (que, no jovem chimpanzé, denota uma situação de stress) sobrevém o fenómeno capital da libertação da mão que se torna num órgão estranho, sem função definida e, como tal, capaz de fazer tudo. Finalmente a não báscula occipital e a manutenção da estação vertical implica o afundamento da laringe que acaba por vir a encontrar-se numa posição desconhecida em todos os mamíferos, face às 4ª, 5ª, 6ª e 7ª vértebras cervicais, e a aparição, por baixo das cordas vocais, da caixa-de-ressonância da faringe sobre a qual de ergue um aparelho de uma composição complexa: úvula, palato duro, palato mole, língua, alvéolos, dentes, lábios. É toda esta aparelhagem que permita a modulação do ar expirado e vai funcionar como uma aparelho fonatório e originar um verdadeiro milagre: a voz humana articulada, e a concomitante desaparição de uma voz animal específica.
A fase de substituição caracteriza-se, no chimpanzé, pela báscula do orifício occipital obliquamente, em sentido posterior, obrigando-o à quadrupedia. A passagem à idade adulta dá-se aos onze anos no chimpanzé, mas aos catorze anos no homem que, como pode facilmente notar-se, não conhecendo esta báscula, se mantém geralmente bípede.
Ao momento de passagem à idade adulta corresponde a aparição da maturidade sexual. São necessários cerca de catorze anos para que o homem saiba qual é o seu sexo, o que talvez explique a razão pela qual nunca pode estar verdadeiramente seguro.
Esta juvenilização específica do homem, esta neotenização tem obviamente pesadas consequências: perdendo a sua primeira natureza, o homem perde o carácter especializado e finalizado que era o dos seus antepassados, cada um deles adaptado a terrenos específicos. O homem, na sua qualidade de neóteno, vê-se sem natureza própria: não finalizado, é um ser de uma enorme debilidade física, decorrente da fraqueza ou ausência de aparelhagem natural específica (ausência de garras ou de cascos, deficit de rapidez e de agilidade), num estado de stress permanente. E por que é inacabado, torna-se um ser de extrema plasticidade, capaz de se adaptar às situações mais diversas.
Pode dizer-se, dado o estado de não acabamento do homem, que não há verdadeiramente uma natureza humana. É óbvio que existem, no ser humano, processos bioquímicos similares aos que encontramos nos mamíferos superiores; é certo que possui uma organização corpórea morfologicamente idêntica à dos primatas, e para além disso, da generalidade dos mamíferos. Mas nada disto implica que exista uma natureza humana, dado que, em todos os animais, os processos fisiológicos e toda a organização morfológica estão orientados em vista de um fim, um fim que, em última análise, tem que ver com o lugar que o animal ocupa, na cadeia evolutiva.
Ora, há que verificar que o homem não ocupa nenhum lugar específico nesta cadeia; não é mais adaptado à planície do que à montanha, ao deserto ou à floresta tropical. Não está mais bem adaptado para correr do que para a escavação de túneis, para trepar às árvores ou para a vida à beira dos lagos. Tanto pode comer plantas como grãos, tanto se alimenta de vermes como de carne; tanto pode pescar como cultivar a terra, tanto pode caçar como viver da colheita de frutos.
Em suma, o neóteno não tem nenhum lugar específico para viver e nenhum encontro aprazado com qualquer objecto do mundo. Nem tem habitação definida e é incapaz de viver no instante, como os outros animais. Tal como não tem um espaço específico que lhe seja próprio, o homem é um ser fora do instante. O que caracteriza mais profundamente o neóteno é esta falta de presença no presente do instante.
É esta incapacidade de habitar o instante que leva o neóteno a viver no tempo ou, talvez melhor, a inventar o tempo. Ao contrário dos animais que vivem no presente, o homem vive sempre entre o passado e o futuro (32). A este propósito, Dufour observa que, tanto quanto sabe, nunca se viu uma alcateia de lobos reunir-se, após o ataque, para deliberar sobre o que terá corrido bem ou mal, no seu dispositivo ofensivo, todo ele orientado para o intenso momento “catastrófico” da captura. Toda a extraordinária inteligência animal esgota-se no instante do acontecimento. Pelo contrário, a do neóteno desdobra-se post factum (em francês, no “aprés-coup”). O que define a inteligência humana é precisamente esta capacidade de repensar aquilo que aconteceu para preparar o próximo passo. Enquanto o animal vive no “agora”, inteiramente presente a si mesmo e aos outros, o homem não está apenas no “agora”, e regressa constantemente ao que se passou para antecipar o próximo “agora”.
Deste modo, o neóteno entra numa dimensão que os verdadeiros animais desconhecem que é simplesmente a do desdobramento temporal, da temporalidade alargada para além da urgência do acontecimento e abrangendo o que vem antes e depois, no encadeamento e sucessão dos acontecimentos.
Pelo facto da neotenia, tornamo-nos, na bela expressão de Valère Novarina, no seu Discours aux animaux, “habitantes do tempo”.
Poderia pensar-se que esta saída do tempo do instante seria uma libertação da prisão do presente, da necessidade de estar sempre presente a si e aos outros. É não ver que tal libertação, em vez de nos fazer felizes e contentes, nos torna seres deprimidos, no sentido literal do termo, seres que definitivamente perderam a sua soberba – a admirável soberania da inteira presença a si. Um ser deprimido é aquele que, ao retirar-se da instantaneidade, vê-se como que dissipado num tempo alargado, eternamente distendido entre um antes e um depois. Esta presença dissipada do neóteno não será alheia ao recorrente sentimento nostálgico do homem que se declina, das mais diferentes formas, na grande literatura, sob os nomes de spleen, tédio, langewelle, saudade, melancolia, nostalgia…
A esta nostalgia vem acrescentar-se a única absoluta certeza, a da morte. Os neótenos, ao contrário dos outros animais, sabem que irão morrer. Porque é o único ser da criação que tem a capacidade de antecipar, não pode deixar de prever o seu destino mais certo, sem que saiba, todavia, o momento do desfecho.
Esta certeza imemorial precedeu inclusivamente a aparição da espécie homo sapiens, visto que se encontraram, em aglomerações de homo neandertalensis, necrópoles que testemunham a existência de ritos funerários que remontam a 500 000 anos A.C..
Quando se sabe que morreremos, tudo se torna relativo. Perante o absoluto da morte tudo é ridículo e do ridículo ao risível a distância é curta. Com o tempo e a morte, o neóteno descobre também riso e as lágrimas. Sabe-se, aliás, que o riso e as lágrimas são muito próximos; o rito do riso e do choro, não são apenas semelhantes, são o mesmo e dão testemunho da mesma raiva impotente.
Depois de todas as considerações anteriormente expendidas, parecerá muito claro que esta possibilidade única em todo o mundo animal, a de uma presença não instantânea mas distendida no tempo, seria inconcebível sem a instituição de um instrumento mental que permita jogar tanto com o tempo como com o espaço, isto é, a linguagem. É a linguagem que permite que as coisas ausentes se tornem presentes, sejam re-presentadas. O neóteno é um animal lastimável, mas fala.
É um animal que diz. Dizer provém do latim dicere que deriva do radical indo-europeu, deik ou dik que significa mostrar, dar a conhecer pela palavra. Quando se diz, mostramos algo com os sons, indica-se algo, como quando se aponta o índex para aquilo que se quer mostrar.
Esta conjunção entre o som e a representação não é tão evidente como a força do hábito pode fazer parecer. Fazer com que um som represente uma situação, como faz uma imagem, não é algo que seja imediatamente inteligível, embora seja o que há de mais comum.
Para que esse milagre seja possível é preciso um conjunto de diversos factores. Em primeiro lugar, é preciso que a espécie não disponha de um canto próprio, que abandone a voz específica. De facto, o homem é único mamífero que não dispõe de um voz própria que permita o seu reconhecimento recíproco, e pelas outras espécies. Em seguida, é preciso contar com a disponibilidade de uma porção do seu corpo; como vimos anteriormente, o corpo do neóteno desenvolve-se de uma forma que permite a modulação e encadeamentos sempre novos de sons.
Foi esta capacidade de produção de sons que foi mobilizada pelo sistema de representação sonora. Sabemos, pelas pinturas rupestres, que a representação gráfica, icónica ou pictográfica foi amplamente praticada, mas cedo foi duplicada pela representação sonora. Não é difícil de compreender por que razão o canal boca-orelha pôde suplantar o canal gesto-olho: é, pura e simplesmente, mais económico. Com efeito, o canal boca-orelha não envolve o outro importante órgão neoténico, a mão, que pode entretanto ocupar-se de outras tarefas. As orelhas, como observa Pascal Quignard (33), “não têm pálpebras”, estão permanentemente abertas. A falta da visão não impede a comunicação. Mesmo a noite é comunicante.
Se excluirmos o grito e a onomatopeia que mantêm uma relação mimética com a situação que representam, falar de representação sonora continua a ser estranho. Um som, com efeito, não representa nada, de forma directa ou homotética, e escapa à possibilidade de translação de um sistema a duas dimensões para três: o som é imune à perspectiva. A representação sonora funciona como um sistema desprovido de relações miméticas com aquilo que re-presenta: é um conjunto de sons, sem referência, reunidos num sistema, apenas pelas suas diferenças.
Um sistema sonoro caracteriza-se pelo arbitrário: não existe qualquer relação entre os sons proferidos (os significantes) e aquilo que significam. Como disse Saussure: “na língua, há apenas diferenças. E mais: uma diferença supõe, em geral, termos positivos entre os quais se estabelece, mas, na língua, só há diferenças sem termos positivos” (34).
A língua é, pois, uma pura instituição, a primeira das instituições humanas. Ela define um sistema sonoro (registo fonológico) próprio à comunidade e ao seu modo específico de modular o ar expirado, um conjunto de formações sonoras, de reunião de nomes (um léxico) e um modo de combinar estas formações (uma sintaxe) que vale de forma convencional.
Nada pode, jamais, garantir a mais pequena relação entre este mundo da representação sonora e as situações que ele consegue representar. A única coisa de que podemos estar certos é de que as formações sonoras convencionais de cada língua, ou dialecto, humano, funcionam como palavra-passe entre os membros a respectiva comunidade. Quem domina estas formações sonoras e os sistemas que as ordenam, pode não só representar aquilo que quiser, como ser membro da comunidade - é fácil reconhecer a essência do simbólico na fábula grega do sumbolon (um objecto qualquer dividido em dois fragmentos) que funcionava como um signo de reconhecimento quando os seus detentores conseguem reuni-los de novo (sumballein).
O que há de mais extraordinário, é o facto de que este maravilhoso sistema não pode funcionar sozinho. Quanto mais se depura num sistema formal, mais é obrigado a integrar aquilo que exclui: o grito, os sons não pertinentes, no sistema, mas que valem como traços miméticos e homotéticos - o que se chama os “índices” na semiótica de C. S. Pierce (35). Numa palavra, as palavras podem representar quase tudo, mas não podem deixar de integrar o melos, o canto. Aí se concentra tudo o que é passional, o patético, que pode ir do glossolálico até ao musical, passando pelo poético. É por este permanente regresso ao que não é pertinente no sistema formal que se procuram desesperadamente os meios de remotivar os sistemas sonoros desmotivados, e fazê-los transbordar do arbitrário.
É assim que o discurso se desdobra, como bem reconheceu Michel de Certeau, numa “vocalização secundária e disseminada que atravessa o discurso enunciado” (36) e o satura de “ruídos paralelos”, “ruídos de corpos, citação de sons delinquentes, fragmentos de vozes bizarras” que representam como que “uma tatuagem interlocutória e vocal sobre o discurso”. Esta vocalização secundária pode ser ocasional ou sabiamente elaborada, como no trabalho poético que busca introduzir uma significação directa imanente à sonoridade.
Deve notar-se que o aparecimento desta motivação perdida não ocorre apenas pelo acréscimo intempestivo de proliferações glossolálicas delinquentes (como acontece com Artaud) mas advém igualmente pela adjunção de novas regras às que regem o sistema formal. Temos, neste caso, regras novas que atentam contra o sistema de diferenças, como as rimas e as aliterações, que minam as diferenças jogando com a repetição dos mesmos sons. Pode ocorrer igualmente o jogo de constrangimentos sintáticos, rítmicos (repetição alternada dos sons longos e breves), métricos (versos hexâmetros, heptassilábicos, alexandrinos…) ou fonológicos (como, por exemplo, na técnica de “lipograma” de Georges Perec que consiste na escrita de um texto de alguma dimensão sem o aparecimento de uma letra determinada, seja um “e”, que é a letra mais frequente nas línguas francesa e portuguesa). Em todos estes casos, a imposição de alguns constrangimentos supranumerários, em relação ao funcionamento comum da linguagem, permite, na medida em que enfraquece o sistema de puras diferenças, a criação de um outro mundo possível, ou seja, a representação daquilo que falta, ou daquilo que talvez jamais tenha existido.
Quanto mais falamos e utilizamos, um sistema fonológico formal, mais temos a tentação de o remotivar; é por isso que o neóteno não só fala, como canta - e aquilo que define o canto, palavra cantada ou escandida, melodia, harmonia ou ritmo - é o que confere relevo ao sistema formal dos significantes. O canto, tal como o poema, remotiva o significante desmotivado. Poderá dizer-se que desempenha o mesmo papel de estimulação e simulação da dimensão suplementar que a perspectiva acrescenta aos sistemas gráficos a duas dimensões. Pode dizer-se que o canto nunca deixou de funcionar como suplemento representacional e substituto nostálgico do canto específico perdido.
Dizer do neóteno que habita o tempo e que é com o seu discurso que compensa indefinidamente a falha do instante é exactamente a mesma coisa. Graças à linguagem, o ser humano vive num tempo estranho, o re-presente. Isto significa que vive num outro mundo, um mundo alucinado devido à linguagem. Alucinado pela ausência do objecto, ouve e transmite sons e a partir deles infere uma situação até a representar no que os Gregos chamavam phantasiai e os romanos visiones. Já Quintiliano, o grande orador latino, havia posto em evidência “este poder de representar, no espírito, coisas ausentes, de tal modo que acreditamos estar a ver estas visões com os nossos olhos”. No ser neóteno, aquilo que supre, ou suplementa, a não presença no instante e o instala no reino das representações, é uma disposição geral e universal para a linguagem. Todo o ser humano nasce com esta capacidade universal que só espera ser activada e quando se actualiza se torna particular segundo as paragens onde se desenvolve e as línguas que por lá se falam.
Basta que o neóteno abra a boca e module o ar expirado, segundo as convenções em uso no seu ambiente, para que lhe surjam representações que fazem regressar a ausência: aquilo que foi, mas já passou, como aquilo que nunca existiu. É sempre possível dizer - no seu sentido original de mostrar - aquilo que nunca se viu, ordenando muito simplesmente os sons de acordo com as convenções em uso. Qualquer situação pode ser representada independentemente de saber se alguma vez ocorreu. A linguagem cria realidades que jamais foram presentes, mas que nem por isso deixam de ser representáveis.
É deste modo que a modulação sonora do ar expirado permite a criação de uma segunda natureza que vem suprir a perda da primeira. A espécie neoténica, composta de seres inacabados, ofereceu-se a si mesma um mundo de substituição graças à linguagem. Habita um território que é co-extensivo á sua palavra, um território simbólico que vai criando à medida que fala, e vai povoando de coisas ausentes tornadas presentes e trazidas à presença dos seus congéneres por meio de todos os artifícios possíveis. Os homens não habitam as estepes, as clareiras, as florestas ou as margens dos lagos ou dos rios, habitam, em primeiro lugar, a linguagem, como diz, com toda a pertinência Pascal Quignard.
Representação é algo que deve ser entendido no seu sentido literal, como construção de uma cena mental em que imagens (vistas ou não vistas) voltam a estar presentes ou aparecem como que reconstituídas mentalmente. Basta que, perante o neóteno, seja ordenada uma sequência de sons convencionais, para que, de imediato, infira uma imagem mental. Quando alguém me fala, eu vejo aquilo que me querem dizer; e se, por acaso, não vejo nada, posso pedir que o discurso recomece, até que finalmente veja. Representar é sempre efabular.
Não há forma de acabar com o discurso, pelo menos enquanto houver homens. Quando se pensa que acabamos as grandes narrativas, é porque começamos a contentar-nos com as pequenas que proliferam, por toda a parte como as pragas.
Há, no entanto, que notar que representar não é alucinar. A alucinação implica a passividade de quem a sofre enquanto representar supõe uma participação activa. Mas tanto a alucinação como a representação ficcional arrancam do movimento desencadeado pela relação do neóteno com a linguagem.
Como observa Dufour, quanto à relação do ser humano com a linguagem, das duas uma:
- Ou este encontro tem lugar, ou não. Se não se dá, não há nem representação nem alucinação; estamos naquilo que se chama o autismo. Este não encontro pode ser causado por uma carência orgânica da disposição genética à linguagem que, geralmente, está presente em cada um de nós, por uma não activação desta capacidade, ou por uma activação ultra traumatizante implicando um sofrimento insuportável seguido de uma irremediável renúncia. Se nos perguntarmos de onde pode provir este traumatismo extremo, pode conjecturar-se que proceda muito provavelmente da vertigem absoluta provocada pela ruptura com a primeira natureza e a entrada num mundo infernal de alucinações ininterruptas.
- Ou se dá o encontro normal do neóteno com a linguagem e, então, a insuficiência do neóteno perante a primeira natureza é trocada por um universo de alucinações incessantemente renovadas. Poderia dizer-se que a loucura – este estado em que o homem incessantemente alucina - é a alternativa mais lógica ao autismo. A loucura seria, então, o estado normal do homem que escapou ao autismo. Há, contudo, que acrescentar que pode acontecer que a alucinação dê lugar à ficção e, por isso, embora exista uma real continuidade entre a alucinação e a ficção, há também uma diferença. Esta diferença é o sentido.
Se nos mantemos na alucinação ficamos loucos, fora do sentido, perdidos numa pura fruição da língua que começa a falar sozinha, com exclusão de um sujeito capaz de assumi-la, e exige apenas um sujeito passivo, vítima da alucinação. Se acedermos à ficção, ficamos simplesmente neuróticos, ou seja, seres de sentido por vezes tão fugidio que precisamos de correr atrás dele.
A condição deste acesso à neurose, consiste na possibilidade de conferir a certas unidades do discurso (chamadas significantes) um valor especial que reenvia a significados reais indexados à primeira natureza. Por exemplo, o facto de que haja “um pai” institui um significante especial “o Nome-do-Pai”, que reenvia, desde logo, às duas realidades de base que regem a primeira natureza: a sucessão dos indivíduos, de pai em filho, na espécie, e o facto de que seja preciso dois sexos (logo, um pai diferente de uma mãe) para que esta sucessão se verifique. Mas para aceder a este significante realmente significativo, há um preço a pagar, a neurose que resulta de facto de cada um de nós se ver colocado na condição de ter contraído uma dívida simbólica exorbitante (porque insaldável) em relação a este pai. Visto que lhe devo tudo, só tenho três opções: adoptá-lo como modelo (e negar-me a mim mesmo), procurar seduzi-lo (ou seja, fundir-me nele) ou desejar eliminá-lo… De onde decorre o corrupio de invejas, de impossibilidades e de culpabilidades de que se alimentam as neuroses.
De acordo com esta construção, o que permite obviar à loucura constitutiva do homem é a presença, no discurso, de certos significantes indexados ao real da espécie. Nesta hipótese, a neurose não seria mais do que um caso particular da loucura humana implicando uma busca infinita do sentido por comunidades reunidas à roda de um pai (37).
Isto não quer dizer que aqueles que não acedem à neurose e ficam loucos, sejam completamente excluídos do vínculo social; bem pelo contrário, toda etnologia mostra que, muitas vezes, os neuróticos souberam confiar aos loucos papéis sociais que não eram capazes de desempenhar. Muito loucos foram designados para desempenhar papéis carismáticos, ligados a funções de autoridade simbólica (adivinhos, mágicos feiticeiros, profetas, messias…) ou políticas (em cargos em que é preciso “tomar-se por chefe”, o rei, o soberano…).
Neste ponto, Dufour avança, portanto, a hipótese de que a neurose possa não ser, ao contrário do que pensava Freud, a principal modalidade da condição humana, indo ao ponto de dizer que, se tal hipótese for legítima, a neurose terá que ser concebida como um acidente que pode ou não acontecer. Se assim for, e a neurose não vier, só resta ao neóteno, a loucura.
Após tantas centenas de milhares de anos de presença humana sobre a terra, esta suposição parece-me demasiado aventurosa. Como se disse acima, não me parece que se possa acabar com o discurso, ou seja, com a procura do sentido. Mais ainda, julgo que Dany Dufour está tão convencido disto como eu, e é por isso que resiste tenazmente aos projectos pós-humanistas que ameaçam pôr termo à persistência da humanidade como espécie animal.
É óbvio que o que está por detrás desta aventurosa hipótese de Dufour é o progresso vertiginoso de des-simbolização a que assistimos todos os dias e o modo como somos sistematicamente imbecilizados e infantilizados pelos meios de comunicação social. Tal como Dufour, também penso que se não resistirmos à invasão de todo o espaço público e social pela mercadoria, acabaremos todos loucos; mas tal como Dufour, também luto pelo pobre neóteno contra o super-homem que nos prometem os aprendizes de feiticeiro que nos acenam com os prodígios da clonagem e da engenharia genética.
No último capítulo do ensaio que tenho vindo a glosar e, por vezes, a plagiar, sem o mínimo escrúpulo, tal é a identidade dos nossos pontos de vista, Dufour ataca frontalmente a questão que hoje se coloca, embora, muitas vezes, de forma sorrateira, para não assustar demasiado o velho neóteno, de uma saída da humanidade em direcção a um mundo novo hiper-real que seria o mundo futurista da tecnociência.
É curioso saber que, já nos anos cinquenta, no capítulo XXII do seu Seminário IV intitulado La Relation d’object, na secção que tem por título “Essai sur une logique en caoutchouc “, Jacques Lacan entrevia a possível entrada neste mundo que hoje começa a aproximar-se. Há, no entanto que notar que, nos anos cinquenta, Lacan podia ainda referir-se a esta utopia científica no tom irónico que ressalta de todas as linhas do texto que seguidamente se transcreve e que, hoje, já não é capaz de nos fazer sequer esboçar um sorriso:
“Dentro de uma centena de anos faremos às mulheres filhos directos de homens de génio que estão actualmente vivos e que até lá serão preciosamente conservados em pequenos frascos. Nesse momento teremos cortado ao pai qualquer coisa de muito mais radical - e, além disso, a palavra. A questão é a de saber como, e por que via, irá inscrever-se no psiquismo da criança a palavra do antepassado… (guardada em frasquinhos). Convirá, então, eliminar talvez o termo “natural” dado o carácter profundamente artificial daquilo que, até hoje, se chamou natureza. Numa palavra, nesse momento ter-nos-emos tornado completamente inúteis como referências. (…) A distinção do imaginário, do simbólico e do real já não poderá servir para equacionar este problema que, no entanto, não parece perto de ser resolvido”.
Neste texto, Lacan encara, ainda que de forma hipoteticamente irónica, a desaparição do seu ternário com o surgimento de um mundo hiper-real produzido pela tecnociência. Hoje, como observei acima, é impossível encarar este texto com um sorriso nos lábios. A coisa está a ficar séria. Estamos a assistir todos os dias à desinibição simbólica, à denegação do que era o “velho” real, e à chegada triunfante da hiper-realidade, que como observa Dufour, são fenómenos associados.
O surgimento de um homem novo, amputado da faculdade de julgar, capaz de gozar sem desejar, aberto a todas as flutuações identitárias e a todos anzóis mercantis, já não é algo que nos faça sorrir, porque parece ser o prelúdio de uma redefinição real do homem.
De facto, pela primeira vez na história dos seres vivos uma criatura conseguiu o prodígio de ser capaz de ler a escrita de que é expressão. Estamos a chegar ao momento em que a criatura tem a possibilidade de interferir no mecanismo da sua criação e apresentar-se como criador de si próprio. Como diriam os franceses, “la boucle est bouclée”, ou em bom português, a vida encaracolou-se sobre si mesma, a serpente engoliu a cauda, e tudo pode tornar-se auto referencial.
É como se a recomendação humanista de Pico della Mirandola tivesse sido projectada para além de toda a desmesura até desferir sobre todo o humanismo o golpe de misericórdia. O homem não está apenas a “esculpir a sua própria estátua”, como queria Pico; está a esculpir uma estátua semiviva ou semi-mecânica – um robot (?) ou um Golem (?) - onde é duvidoso que venha reconhecer-se como gente. Se chegar o dia do fim do neóteno, teremos saído da História humana, da história política e estética dos ídolos, dos terceiros, dos grandes Sujeitos que nunca deixámos de inventar para suportar a nossa mísera condição. E entraremos numa pós-História, da qual só podemos prever que destruirá, de forma sistemática, os cinco pilares em que assentou até hoje, a humanidade do homem:
- a fragilidade do neóteno; - a fatalidade da morte; - a individuação; - a problemática, mas efectiva coabitação dos dois sexos; - e a sucessão geracional que se virá a confundir por encaracolamento.
Nietzsche dizia que, ou o homem é um erro de Deus, ou Deus é um erro dos homens. Hoje, há quem pense que o erro que realmente somos, carece ser reparado à força recorrendo a todos os recursos da tecnociência.
No momento em que a nossa sorte política está essencialmente nas mãos do Mercado, isto é, de comerciantes e financeiros sem escrúpulos, magos duvidosos, médicos e sábios incontrolados prontos a retomar, com outros meios, as tenebrosas experiências do Dr. Mengele, a abertura de um espaço político de discussão destas questões é essencial. Existe, hoje, e está em marcha, um programa de fabricação de uma “pós-humanidade”. Este programa avança de forma sorrateira, já que há que não assustar demasiadamente os neótenos; sobretudo não é conveniente dar-lhes a entender que trabalham com vista a cumprir o objectivo da sua própria extinção (38).
Mas é tão potente que, por vezes, aparece à luz do dia.
Francis Fukuyama, o famoso arauto do neoliberalismo que, após a queda do muro de Berlim, proclamou o Fim da História, pela perfeição das democracias liberais, teve que cair em si e admitir que o triunfo do Mercado poderia, afinal, não ser o último episódio da história humana. Desafortunadamente, esta semi-iluminação não impediu que mergulhasse em novo erro de apreciação. Fukuyama reconhece que “uma técnica suficientemente potente para remodelar aquilo que somos, arrisca-se a vir a ter consequências potencialmente danosas para a democracia liberal” e realmente quando deixar de haver homens a democracia arrisca-se a funcionar um pouco no vazio. Ele acredita, porém, que, enterrado o liberalismo, o neoliberalismo saberá preservar-nos desta engrenagem fatal… (embora pareça evidente que é ele que nos conduz nessa direcção). Para evitar os perigos que nos espreitam bastará, na opinião de Fukuyama, que “os países regulem politicamente o desenvolvimento e a utilização da técnica”. Piedosa intenção que permite ao autor passar por cima do essencial: é o Mercado que mantém o desenvolvimento sem fim das técnico-ciências que, sem regulação, conduzem directamente à saída da humanidade. Se o Mercado implica o fim de toda a forma de inibição simbólica e de toda a referência a qualquer valor transcendental, em favor do único valor venal, nada impede que os homens se queiram libertar da sua condição ancestral desde que disponham dos meios para tanto. Ao contrário do que por vezes se diz, não é a ciência sozinha, mas a ciência ajudada pelo efeito deletério do Mercado que pode estar em condições de realizar esse projecto.
Quanto ao qual, aliás, Fukuyama não alimenta quaisquer reservas:
“O período aberto pela Revolução francesa assistiu ao florescimento de diversas doutrinas que teriam desejado ultrapassar os limites da natureza humana, criando um novo tipo de ser que não estivesse submetido aos preconceitos e limitações do passado. O fracasso destas experiências, mostrou-nos, no final do século XX, os limites do construtivismo social confirmando - a contrario - uma ordem liberal fundada no Mercado, estabelecida sobre verdades manifestas atinentes à Natureza. Pode muito bem acontecer que os instrumentos dos construtivistas sociais do século, desde a socialização da infância ao agit-prop e aos campos de trabalho, passando pela psicanálise, tenham sido demasiadamente grosseiros para modificar em profundidade o substrato natural dos comportamentos humanos”.
Esta rusticidade e incipiência dos meios utilizados pelas sociedades totalitárias, não conduz os neoliberais a contestar a racionalidade do projecto construtivista em si mesmo. A única questão que se coloca é de saber em que medida o liberalismo integralmente desenvolvido poderá retomar este magnífico projecto histórico sobre bases finalmente realistas e eficazes.
Sobre este ponto, o optimismo de Fukuyama é total:
“O carácter aberto das ciências contemporâneas da natureza – escreve ele – permite-nos supor que, daqui até às próximas gerações, a biotecnologia fornecer-nos-á os meios que nos permitirão realizar aquilo que os especialistas de engenharia social não conseguiram fazer. Chegados a este estádio, teremos terminado definitivamente com a história humana porque teremos abolido os seres humanos como tais. Então começará uma nova história para além do humano” (39).
“A História só pode atingir o seu termo quando as ciências contemporâneas atingirem a completa maturidade. E nós estamos no limiar de novas descobertas científicas que pela sua própria essência abolirão ahumanidade como tal” (40).
Pode acontecer que este entusiasmo liberal pela liquidação do homem comum, ainda seja um pouco chocante para todos aqueles que estão ainda ligados à velha humanidade por um sentimentalismo pouco racional. Mas se a mutação antropológica que Fukuyama tão ardentemente deseja é realmente inelutável e está iminente (e deve realmente estar porque, segundo ele, “é a ciência que conduz o processo histórico” e estamos “no limiar de uma nova explosão da inovação tecnológica nas ciências da vida e na biotecnologia”) teremos, então, que reconhecer que o liberalismo representa o enigma resolvido da História e que, hoje, ele está em condições de oferecer aos homens (pelo menos aos que sobrevivam) uma síntese inesperada do Futuro Radioso e dos cálculos gélidos do realismo político.
É pois neste ponto preciso que a História termina, chegámos ao fim da viagem e a Humanidade deve apear-se.
Não é difícil de imaginar o espanto que um Adam Smith ou um Benjamin Constant teriam perante um desenlace filosófico deste jaez. Mas, no fim de contas, esta surpresa não seria muito diferente da que Górgias teria experimentado se um dia de cruzasse com Cálicles, o seu filho espiritual mais talentoso. Só com a pequena diferença de que Cálicles só deve a sua existência filosófica à potência lógica de Platão, ao passo que Fukuyama e alguns milhares dos seus clones ideológicos estão actualmente aos comandos do mundo em que vivemos.
Há, por isso, que constatar que a expansão espectacular do liberalismo contemporâneo deslocou consideravelmente a nossa questão. A nova ordem humana que as elites liberais estão hoje determinadas a impor à escala do planeta exige, com efeito, que os homens cessem realmente de “se sentir homens” e se resignem a tornarem-se pobres mónadas egoístas, cada uma delas lutando impiedosamente contra todas as outras, à espera do seu hipotético “quarto de hora de celebridade”.
Hannah Arendt tinha perfeitamente razão ao sublinhar na ‘Condição do Homem Moderno’ (na edição original Vita Activa) que “aquilo que há de inquietante nas teorias modernas não é que sejam falsas, mas que possam vir a tornar-se verdadeiras”.
Se continua a ser exacto que o homem não é um ser egoísta por natureza, não é menos exacto que a domesticação mercantil da humanidade cria, dia após dia, o contexto cultural ideal para que o egoísmo possa tornar-se a forma habitual do comportamento humano. Aqueles que querem ainda tomar o partido da Humanidade não podem subestimar esta nova realidade. Devem imperativamente tomar consciência de que a corrida já começou e que, nesta corrida desenfreada, o tempo corre também, mas contra nós. O triunfo universal do capitalismo não tem nada de inelutável. Mas tem-se tornado cada vez mais plausível. Isto significa que a desaparição da Humanidade (no sentido da tarefa a que altivamente se dedicam os Fukuyama e os seus donos), bem como a paralela destruição da Natureza, constituem hoje verdadeiras hipóteses de trabalho e não apenas divertidos argumentos da ficção científica hollywoodesca.
Mas se vier a acontecer que a Humanidade venha a perder o seu último combate e seja forçada a dar o seu lugar às máquinas pós-humanas no mundo devastado do liberalismo vitorioso, há uma verdade inapagável que ficará para sempre. Para um ser humano, ou dizendo talvez melhor, com Bernard Stiegler, não inumano, a suprema riqueza – e a chave da sua felicidade – terá sido sempre, e nunca deixou de ser, o acordo consigo mesmo.
Este é um luxo - nunca se ter deitado ao lado de um canalha - que aqueles que consagram a sua breve passagem nesta terra a explorar os seus semelhantes nunca conhecerão, mesmo que o futuro venha a pertencer-lhes, coisa que acima de tudo temos que evitar.
Por exemplo, Peter Sloterdijk que já em 1999 desencadeara uma enorme polémica ao proferir, no âmbito de um Colóquio consagrado a Heidegger, uma conferência intitulada, “Regras para um parque humano”, veio a prolongá-la numa nova conferência, desta feita proferida em Paris, em Março de 2000, no Centre Georges Pompidou com o título La Domestication de l’Être (41), onde vem acolher, em tom jubilatório, a boa nova da próxima mutação do homem.
Nesta obra, Sloterdijk, retoma uma tese central do seu mestre Heidegger, mas para a inverter. Já não se trata de sustentar que a técnica é “o esquecimento do Ser”, mas proclamar que ela concorre essencialmente para a “domesticação do Ser”, já que o atributo fundamental do homem neoténico é o da produção de si mesmo. Não é preciso escavar muito para evidenciar o que representa esta posição: ela é uma releitura, em tom de humor negro, da pastoral heideggeriana. A técnica, recalcada por toda a metafísica ocidental, desde as suas origens platónicas, é erigida na conquista determinante do homem neoténico, com o recalcamento inverso de todo o quadro simbólico feito de leis, prescrições e interditos. A partir de tais premissas, todas as consequências possíveis da técnica são justificadas e legitimadas à partida. Face à completa desvalorização da deliberação moral, é apenas a técnica, com o seu discurso desinibido que é capaz de determinar uma ética, a que o autor chama “a ética do homem maior”, evidentemente aberta a todas as “auto-manipulações biotecnológicas”. Logo, a ética deve seguir a técnica, o que a imuniza totalmente contra qualquer forma de consideração moral. Assim, o homem, arrancado às garras do Ser, assume a incumbência de mudar a sua condição vital para se abrir à “multiplicidade biológica”. O velho homem passará a chamar-se “homem primeiro” – onde é óbvia a clara eufemização do termo “primitivo” (como já acontece no “Museu da Artes Primeiras”), uma vez que o velho homem histórico não é mais do que um pobre primitivo, perante os homens superiores que estão a chegar. Sloterdijk parece querer dizer que não era ainda tempo para alucinar o regresso do Ser, na farsa sinistra do nazismo. Isso foi apenas um erro lastimável do seu caro mestre. O verdadeiro homem superior está hoje a chegar e os seus arautos já lhe entoam cânticos e policiam as estradas para lhe abrir caminho porque, desastradamente, a estrada ainda está atravancada de velhos homens primitivos, reaccionários e constitucionalmente surdos ao “potencial generoso” da “transformação plurivalente”. Este velho homem só pode ser o “homem do ressentimento”, disposto a reunir forças para barrar o caminho às “populações desinformadas” e conduzi-las “para falsos debates sobre ameaças vãs, sob a batuta de editorialistas lascivos”… Abaixo, pois, estes “humanólatras” que movidos por uma “histeria anti tecnológica” pretendem opor-se ao chamamento, não do ser, mas da técnica, porque evidentemente não há nada de “perverso” na ideia da nossa “transformação por auto técnica”.
Todas as frases e termos que estão entre aspas são afirmações extraídas do citado livro de Sloterdijk (42). Mas estas afirmações não deixam de ter a sua utilidade, até pelo seu carácter excessivo, elas permitem compreender que a desinibição simbólica actual não é apenas, como tantas vezes se pretende, uma consequência da libertação dos costumes e da saída, mais ou menos dolorosa, do patriarcado. De facto, o clima actual de levantamento de todos os interditos mostra que ainda perdura um verdadeiro projecto pós-nazi de sacrifício do humano. De resto, nas condições dramáticas que hoje atravessamos, não se vislumbra muito bem como poderemos escapar à concretização deste programa. Excepto se entendermos que este velho homem, com todas as suas imperfeições, é muito mais desejável do que todas as perfeições imagináveis.
Dufour, evidentemente, já tomou o seu partido que é o de preferir o homúnculo ao super-homem, o que pode certamente indispor alguns nietzschianos, como Sloterdijk, mas se o próprio Nietzsche, momentos antes de enlouquecer, abraçou um cavalo de fiacre, que era maltratado pelo cocheiro, também nós que não somos grandes filósofos, temos o direito de nos apaixonarmos pelo neóteno, com os seus totens, as suas efígies, as suas próteses, as suas gramáticas. E o ensaio que tenho vindo a glosar encerra com um pequeno apólogo bem gostoso, como diria os meus amigos brasileiros, que pode ser apresentado sob a forma de um silogismo:
Charles Baudelaire, no seu Journaux Intimes, colocou a premissa maior: “Deus é o único ser que, para reinar, nem tem necessidade de existir”.
Alphonse Allais, o humorista, apresentou no Le Courrier Français, a premissa menor: “Antes de se despedir dos seus convidados, Deus concordou, com a maior graciosidade do mundo, que realmente não existia”.
E Dufour extrai a conclusão: “Quando Deus libertou os seus convivas da sua presença demasiadamente prolongada, cada um teve um breve momento de sufoco, depois, vendo que nada acontecia, toda a gente começou a rir gostosamente, depois a bandeiras despregada… até morrer de riso”.
O que isto significa é que estamos numa encruzilhada e cada um deve escolher o lado onde se situa: Ou optamos pelos nossos corpos mal acabados, sustentados por coisa nenhuma, além das ficções que nos dominam e, nesse caso, é preciso, com urgência, inventar, se não novos deuses, pelo menos, novas crenças, ou entraremos na nova crueldade inaudita que consiste em querer modificar este corpo velho de centos de milhares de anos.
Um ser de discurso não pode prescindir de ficções. Tudo depende da forma que toma esta efabulação: precisaremos de uma nova religião, neste momento em que os integrismos se enfurecem cada vez mais, brandindo figuras do Outro de forma tanto mais furiosa quanto é certo que a organização das sociedades depende muito menos dos deuses do que da instância reificada do Mercado?
Aquilo que nos une imprescritivelmente é a nossa comum disposição ao discurso; esta é a nossa religação (ou religião) natural, como a língua que também se diz natural e não precisa de nenhum clero, mas apenas de seres falantes. O seu fundamento repousa sobre uma única proposição: visto que não posso abrir a boca sem que um eu fale a um tu a propósito de um ele, é forçoso instituir um terceiro, para que a nossa fala se sustente.
Foi sobre este fundo discursivo imemorial que os neótenos erigiram os seus deuses ao longo da história. Como escreveu o nosso Fernando Pessoa,
Natal
Nasce um Deus. Outros morrem. A Verdade Nem veio nem se foi; o Erro mudou Temos agora uma outra Eternidade, E era sempre melhor a que passou
Cega, a Ciência a inútil gleba lavra. Louca, a Fé vive o sonho do seu culto Um novo deus é só uma palavra. Não procures nem creias; tudo é oculto
Contemporânea, nº 6. Dezembro de 1922 (43)
É certo que a instituição de um Terceiro foi sempre a ocasião da constituição de seres supremos, de cleros e de classes “eleitas” impondo a submissão ao resto dos neótenos. Pensámos libertar-nos deste inconveniente pela recusa de todo o terceiro, mas parece ter sido para cair sob uma forma de domínio mais virulenta ainda, a que se desencadeia no reino dessimbolizado da mercadoria. Que fazer, então?
A proposta que Dufour avança, na última página do seu ensaio, merece, senão uma adesão imediata, que, pelo menos, se reflita profundamente sobre ela:
Se a necessidade de um terceiro está inscrita na natureza neoténica do homem, mas um terceiro exterior não resolve o problema de todos, mas apenas de alguns, e a ausência do terceiro se arrisca a desfazer o conjunto, há que fazer uma nova aposta. O que seria verdadeiramente inédito, seria a aceitação da nossa condição paradoxal, e simplesmente convir que não temos necessidade de um novo deus, mas de um terceiro lógico e laico. Isso supõe a admissão de que não há nada, onde se supunha que houvesse alguma coisa, e recomeçar de novo para erigir uma nova soberania: realizar, enfim, a justiça, salvaguardar o mundo e a sua diversidade, antes que se torne demasiado tarde, retomar a tarefa infinita da conquista da autonomia, manter o olhar fixado numa arte aberta ao infinito da sublimidade. E quanto a tudo o mais, e já que o terceiro pode assumir as formas mais diversas, competirá a cada um inventar o mestre graças ao qual espera encontrar-se. A nova experiência que resta por fazer será a de uma nova transcendência que cada um possa trazer consigo de modo imanente. Ou seja, uma nova figura do Outro, não exterior, incarnada em uma efígie de devoção, mas uma instância não colectivizável, singular, que cada um possa interiorizar como limite lógico capaz de se opor à vontade de se perfazer que o assombra, e que, se não for dominada, poderá muito bem acabar com ele.
(*) João Esteves da Silva Silva (n. 1936) é um filósofo e ensaísta português, residente em Lisboa e colaborador permanente do ‘O Comuneiro’. É autor de ‘Para uma Teoria da História – de Althusser a Marx’ (2 vols., Diabril, Lisboa, 1975-76) e ‘Cinco ensaios sobre Wittgenstein’ (Cadernos de Filosofia das Ciências, Lisboa, 2010) para além de diversas outras obras, dispersos e inéditos.
_____________ NOTAS:
(1) Esta observação de Boehme, e o comentário de Dufour, recordam a explicação do Talmude para o facto de os homens terem uma diversidade infinita de rostos: foram todos criados à semelhança de Deus.
(2) Vide Pascal, Les Pensées, Flammarion, Paris, 1929, p.129.
(3) Louis Althusser, L’Avenir dure longtemps, suivi de Les Faits, Stock/IMEC, Paris, 1992.
(4) É curioso verificar que, precisamente na mesma época em que Dufour publicou o seu ensaio, os psicanalistas Charles Melman e Jean-Pierre Lebrun publicavam, sob o título “L’Homme sans gravité”, uma resenha das conversações entre ambos que tiveram lugar entre Julho de 2001 e Julho de 2002, que aborda, de um ponto de vista mais clínico, os temas sobre os quais se debruça o ensaio de Dufour. Aliás, no seu Prefácio, Dufour inclui uma nota onde refere a publicação do “L’Homme sans gravité” e dá conta de que essa obra só lhe chegou às mãos no momento em que acabara de completar a redação do seu ensaio, pelo que não dispôs do tempo necessário para mencionar as ligações entre as duas obras, mas releva, com grande satisfação que a sua tese filosófica sobre a destruição do antigo sujeito e o surgimento do sujeito pós-moderno pode hoje apoiar-se sobre observações clínicas precisas. Pela minha parte, só posso recomendar a leitura do livro citado que já foi, entretanto, editado na colecção Folio da Gallimard. No prefácio que escreveu para introduzir esta obra, Jean-Pierre Lebrun conta como nasceu o projecto desta obra a partir do seu encontro com Charles Melman, em Paris, por ocasião dos Quatrièmes Reencontres de la Psychyatrie, onde Melman anunciava o surgimento da Nova Economia Psíquica onde, como escreve Lebrun, “não se trata apenas de evocar as modificações da sociedade e as suas incidências sobre a subjectividade de cada um, mas de uma mudança inédita; a sua leitura radical da situação actual leva-nos a pensar numa transformação de grande amplitude de consequências antropológicas incalculáveis”.
(5) O que Antonin Artaud havia antecipado.
(6) Deleuze e Guattari, L’Anti-Oedipe, Paris, Éditions de Minuit, p. 408.
(7) Cf. Lacan, Écrits, «La direction de la cure», p. 619; e o seu seminário Étique de la Psychanalyse, Paris, Seuil, 1986.
(8) Sobre este tema, não posso deixar de recomendar a leitura do pequeno ensaio de Gilles Châtelet, Vivre et penser comme des porcs, Paris, Gallimard, Coll. Folio, 1998.
(9) Freud, Nouvelles conférences de psychanalyse, Paris, Gallimard, 1984.
(10) S. Beckett, L’Innommable, op. cit, p. 38.
(11) Giorgio Agamben, Homo sacer, le pouvoir souverain et la vie nue.
(12) No dia 20 de Abril de 1999, em Littleton, nos Estados Unidos, dois rapazes de 18 e 17 anos, fascinados pelas máquinas informáticas, os jogos vídeo e certas seitas violentas, assassinaram 13 dos seus camaradas de classe, antes de se suicidarem. Actualmente, julga-se saber que o projecto destes jovens autores da matança da Columbine High School, era o de, após a consumação do massacre, desviar um avião e despenhá-lo contra as torres do World Trade Center! O 11 de Setembro poderia ter acontecido em 20 de Abril com dois jovens americanos aos comandos.
(13) Vide J. F. Lyotard, La condition postmoderne, Paris, Minuit, 1979.
(14) Sobre este tema, deve ler-se o belo trabalho de Barbara Cassin, L’Effet sofistique, Gallimard, Paris, 1995, onde se mostra que “para os sofistas o ser não é o que a palavra revela, mas o que o discurso cria”, de onde o termo que forja de “Logologia” que se opõe à “ontologia”. Haveria sempre que ter em conta a enunciação por detrás do enunciado e reportar a objectividade da coisa à performatividade do discurso. Já vimos atrás como esta técnica sofística continua a fazer estragos (veja-se, infra, a referência às enormidades de Judith Butler).
(15) Giorgio Agamben, Homo sacer, le pouvoir souverain et la vie nue, Le Seuil. Paris, 1995, p. 16.
(16) B. Spinoza, Traité Théologico-politique, Paris, Garnier Flammarion, 1965, cf. Cap. III, 2.
(17) Designadamente pelo grande biologista e antropólogo Stephen Jay Gould. Vide, deste autor, Ever Since Darwin, Pelican Books, 1980 e The Panda Thumb, Pelican Books, 1980.
(18) Hésiode, La Théogonie, v. 507-617, e Les Travaux et les Jours, v. 105.
(19) Ésquilo, Prométhée Enchainé, v. 506.
(20) Sobre este tema, poderá consultar-se, com muito proveito, a obra de Bernard Stiegler, La Faute de Épiméthée, que constitui o tomo I da obra monumental La Technique et le Temps, Galilée, Paris, 1994.
(21) Platão, Protágoras, Garnier-Flammarion, tradução e notas de E. Chambry, p. 52-53.
(22) Marguerite Yourcernar, que escolheu este texto para epígrafe do seu romance Oeuvre au Noir, traduz a última frase deste modo: “para que tu livremente, à maneira de um bom pintor ou de um escultor hábil, completes a tua própria forma”. Noutras traduções, a última linha, retoma uma passagem famosa das Eneidas de Plotino e reza assim “a fim de que esculpas a tua própria estátua”.
(23) Frase que, como facilmente se entende, tem muito pouco que ver com a primeira frase do Deuxième Sexe, atrás citada e que me bloqueou a sua leitura.
(24) Kant, Traité de Pédagogie.
(25) Rousseau, Émile.
(26) J. G. Fichte, Fondement du droit naturel, Paris, PUF, 1984.
(27) Este termo alemão, usado por Freud, neste e noutros textos, tem sido vertido em francês, nas traduções mais recentes, pela palavra “desaide” em lugar de “détresse” que era usado nas edições mais antigas. Em português a palavra “desaide” poderia ser literalmente traduzida por “desajuda”, mas felizmente, julgo que “desamparo” traduz com maior rigor o sentido do termo original.
(28) Esta observação alude às referências de Bolk a uma suposta superioridade da “raça nórdica” em relação à “raça negra” que se explicaria pelo seu grau superior de neotenização (Cf. na Génese do Homem, o capítulo intitulado “As raças humanas e fertilização”). É evidente que só depois de terem sido aliviadas deste pesado fardo é que a construção de Bolk se torna digna de interesse. Este trabalho foi levado a cabo por Stephen Jay Gould, em Ever since Darwin, op. cit., capítulo VII, “Racism and Recapitulation”, onde Gould coloca as teses de Bolk no seu devido lugar.
(29) No capítulo 6 da Origem das Espécies, Darwin havia observado que “alguns animais ficam aptos a reproduzirem-se numa idade muito precoce, antes de terem adquirido os seus caracteres de adulto”.
(30) Este conto está publicado em França e faz parte de uma colectânea intitulada Les armes secrètes, Paris, Gallimard, 1963.
(31) Vide, D.-R. Dufour, Lettres sur la nature humaine… op. cit., capítulo I, «Lettre sur les néotènes, les axolotl et les Vénus de Botero».
(32) Recorde-se que “Entre o Passado e o Futuro” (Between Past and Future) é o título de uma magnífica colectânea de ensaios de Hannah Arendt, que tem como subtítulo “Oito exercícios sobre o pensamento político”.
(33) Pascal Quignard, La Haine de la musique, Paris, Calmann-Lévy, 1996.
(34) Ferdinand de Saussure, Cours de linguistique générale.
(35) Cf. Charles Sanders Peirce, Écrits sur le signe, Paris, Le Seuil, 1978, p. 178 e ss..
(36) Michel de Certeau, «Utopies vocales; glossolalies», in Traverses, nº 20. 1980, p. 26-37.
(37) O que não implica necessariamente o sistema do patriarcado porque é muito diferente passar pelo pai para aceder ao simbólico, ou instituir um sistema social de domínio do pai.
(38) Não se trata de nenhuma atoarda contra o vertiginoso progresso da ciência; que devemos pensar desta frase de um sábio tão reputado como François Jacob, num artigo no Le Monde de 26 de Agosto de 2004: “Penso que progressivamente, viremos a conseguir fazer inúmeras coisas. No entanto, julgo que se deve evitar dizer ao público que se vai fazer tudo e mais alguma coisa, principalmente no que respeita ao homem”?
(39) Cf. Francis Fukuyama, La Fin de l’homme: les conséquences de la révolution biotechnique, Paris, La Table Ronde, 2002.
(40) Cf. Francis Fukuyama, «La fin de l’Histoire dix ans après», in Le Monde de 17 de Junho de 1999.
(41) Peter Sloterdjk, La Domestication de L’Être, Paris, Mille et une Nuits, 2000.
(42) La Domestication de L’Être, op cit. p. 88-99.
(43) E, noutro local, “… destruir as ficções sociais, tanto pode ser para criar a liberdade, ou preparar o caminho para ela, como para estabelecer outras ficções diferentes igualmente más, porque igualmente ficções. (…) … no estado social presente não é possível a um grupo de homens, por muito bem-intencionados que sejam, combater as ficções sociais e trabalhar pela liberdade, sem espontaneamente criar uma tirania nova que venha juntar-se à das ficções sociais, sem estorvarem ao máximo, na prática, o intuito que querem promover em teoria”. In O Banqueiro Anarquista, Obras Completas Tomo II, pp. 385 e 395. Porto, Lello & Irmão Editores, Porto.
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