O caso Snowden

 

 

Ângelo Novo (*)

 

 

 

Edward Joseph Snowden nasceu em Junho de 1983 numa pequena cidade da Carolina do Norte, filho de um oficial da guarda costeira e de uma funcionária judicial. Os seus pais divorciaram-se muito cedo, ficando a criança a cargo do pai e de uma madrasta. Era uma criança tímida e afável, desde sempre muito articulada e demonstrando profundidade de pensamento. No entanto, não chegou a concluir sequer os estudos secundários. Em 2004 alistou-se como recruta em forças especiais do exército norte-americano, mas não completou o treino, tendo sofrido um acidente que o incapacitou, com fratura de ambas as pernas. Nessa altura aspirava a combater na guerra do Iraque, para “libertar” o seu povo da opressão.

 

Considerava-se então já um “mago dos computadores”. Foi certamente o que pesou na decisão da Central Intelligence Agency (CIA) de empregar este jovem como administrador de sistemas e técnico de telecomunicações, em 2006. No ano seguinte, sob capa diplomática, estava já a trabalhar para a agência de espionagem norte-americana na Suíça. Em 2009 saíu formalmente da CIA e começou a trabalhar dentro do círculo da National Security Agency (NSA), em empresas suas contratadas. A primeira delas foi a Dell, ao serviço da qual esteve colocado numa base militar norte-americana no Japão. Nos inícios de 2013 transitou para a Booz Allen Hamilton, ficando colocado no Hawai.

 

O seu trabalho consistia em procurar meios de aceder a comunicações telefónicas e de internet em todo o mundo. Para esse efeito, aliás, frequentara com aproveitamento um curso de pirata informático (certified ethical hacker). Os seus talentos de base e o nível dos serviços prestados eram considerados excecionais, garantindo-lhe acesso praticamente ilimitado a dados da NSA. O que os seus supervisores não anteciparam foi que, com base nesses privilégios, provavelmente desde 2009 (senão mesmo antes), Snowden começou a recolher pessoalmente uma gigantesca base documental sobre operações secretas de vigilância de comunicações pessoais, com vista a denunciá-las publicamente, abrindo assim um debate democrático sobre essas práticas securitárias abusivas (1).

 

As primeiras revelações vieram a público em maio e junho de 2013, em The Guardian, The Washington Post e Der Spiegel, com a colaboração do jornalista Glenn Greenwald e da cineasta documental Laura Poitras (2). Foram as matérias sobre registo dos “metadados” de todas as chamadas telefónicas (a operadora Verizon fornece diariamente esses dados em obediência a uma decisão judicial secreta), o programa clandestino norte-americano de vigilância global PRISM, o seu equivalente britânico TEMPORA, a ferramenta de visualização e análise de dados Boundless Informant, as escutas da NSA em missões diplomáticas da União Europeia e na sede da O.N.U.. Empresas que fornecem ao programa PRISM todos os elementos que possuem sobre os seus utilizadores e sua atividade em linha incluem a Microsoft (desde a primeira hora), a Yahoo, a Google, Facebook, PalTalk, Youtube, Skype, AmericaOnline, Apple. A colaboração destas e outras empresas é voluntária, forçada por decisões judiciais secretas de um tribunal secreto (o Foreign Intelligence Surveillance Court), com base em leis secretas, ou mesmo dispensada de todo, sendo os dados em seu poder acedidos pela NSA por forma não consentida. Na verdade há aqui, por parte destas empresas, na maioria dos casos, um consentimento de facto, hipocritamente não assumido, deixando entreabertas as “portas traseiras” dos seus sistemas, por meio das quais os agentes ao serviço da NSA podem aceder a tudo que lhes interessar.

 

Ficou patente desde a primeira hora, perante todo o mundo, que a NSA alberga o propósito de reunir dados pessoais detalhados, bem como registos integrais das comunicações de qualquer indivíduo ou organização, em qualquer altura, em qualquer local no mundo, para poderem ser analisadas e tratadas quando o entender conveniente, tudo isto a coberto do mais absoluto sigilo, sem qualquer controlo judicial sério ou escrutínio público. Esta mesma opacidade, aliás, permite facilmente prever que os dados recolhidos e armazenados por esta vigilância totalitária poderão vir a ser sujeitos a desvios e tráficos variadíssimos. Em suma, quem dispuser dos meios adequados em termos de poder, dinheiro e conexões, poderá saber tudo o que quiser, sobre toda a gente, em qualquer altura, podendo depois usar esses conhecimentos secretos, manipulados a seu talante, para a prossecução dos seus fins próprios, tipicamente por meio da difamação, da intimidação e da chantagem. Não há só um big brother a vigiar-nos. Será big brother quem o puder. Operar-se-á assim uma disseminação radical do poder coativo do Estado sem qualquer vinculação à lei, fosse ela secreta. Só o dinheiro será lei. Nesse particular, é um interessante percursor de coisas certamente muito piores, ainda a vir, o caso das escutas ilegais realizadas pelo império mediático de Rupert Murdoch, servindo-se de meios e recursos policiais em conluio com as elites políticas britânicas (3).

 

Estão em causa todas as comunicações realizadas por telefone (móvel ou fixo), internet (correio eletrónico, navegação na rede, mensagens instantâneas, redes sociais, skype, buscas), rádio e televisão, GPS, etc., etc.. Basicamente, todos os dados codificados que circulem em fibra ótica ou deixem um rasto de radiação eletromagnética, estão a ser intercetados, medidos, analisados, classificados e armazenados para possível observação posterior, podendo a qualquer altura ser acedidos e examinados em tempo real. Nos E.U.A., por onde passam grande parte das comunicações internet mundiais, existem dezenas de centros de interceção e um gigantesco centro de recolha de dados, situado em local remoto no estado de Utah. Transações comerciais, operações bancárias, fruição cultural, dados médicos, deslocações pessoais, conversas íntimas, nada está a salvo da espionagem global.

 

A partir desse ponto, a história aventurosa de Snowden foi sendo publicamente conhecida em tempo real. No Hotel Mira em Hong Kong fez corajosamante a sua revelação pública como autor das fugas de documentos da NSA e anunciou os seus propósitos (4). Procurou chegar por via aérea à América Latina para solicitar aí asilo político (em Cuba, Venezuela ou Equador), mas a revogação do seu passaporte pelas autoridades norte-americanas forçou-o a permanecer durante mais de um mês no aeroporto de Sheremetyevo, em Moscovo, onde deveria passar apenas em trânsito. Com ele ficou aí Sarah Harrison, conselheira jurídica da WikiLeaks. Finalmente, foi-lhe concedido um asilo temporário na Federação Russa, a 1 de agosto de 2013, sendo mantido desde então em local secreto e sob proteção das autoridades moscovitas. Pelo meio, ficou um extraordinário episódio do sequestro e pirataria europeia sobre o avião presidencial de Evo Morales (participaram os governos francês, italiano, austríaco, espanhol e português) por imposição dos serviços de segurança norte-americanos, suspeitosos de que Snowden poderia estar a bordo.

 

Entretanto, a sanha persecutória e caluniadora do complexo militaro-securitário-judicial dos E.U.A. atingia níveis absolutamente demenciais, exarcebados por uma caricata e inabitual impotência. Para lá das constantes e desveladas ameaças de morte, existe uma acusação criminal de roubo de propriedade governamental e espionagem (ao abrigo de uma lei de guerra datada de 1917) que não é compatível com a realização de um julgamento público decente, com garantias efetivas de defesa. Na prática, é mais adequada à execução de um rapto e desaparição carcerária tingidos com uma leve demão de pretensa legalidade. Já foi o caso com Bradley Manning e é uma ameaça pendente sobre Julian Assange, apesar de este último não ser nacional norte-americano nem ter praticado quaisquer actos a que pudesse ser remotamente assacada qualquer relevância penal em território dos E.U.A.. Como cantava Zeca Afonso em ‘Coro dos Tribunais’: “já que o punhal não mata bem / a lei matemos também(5).

 

Tudo isto era absolutamente previsível, mas não deteve nem intimidou Snowden. De um modo que mesmo George Orwell teria tido dificuldade em imaginar, este jovem de 29 anos resolveu desafiar, de forma inteiramente solitária, os maiores e mais implacáveis poderes à face da Terra. E o facto é que, até ao momento, tem conseguido manter a sua posição, ganhando paulatinamente terreno na opinião pública mundial. De tal forma que já recebeu elogiosos editoriais e foi objeto de pedidos de clemência do New York Times (1.1.2014). Para não falar de prémios e honrarias diversos um pouco por toda a Europa. Na verdade, mesmo no braço de ferro direto com a administração norte-americana, esta última está já a dar abundantes sinais de cedência. Não só se sentiu na necessidade de proclamar reformas cosméticas nas regras de atuação da NSA, envia também sinais de que está pronta para firmar um compromisso com o próprio Snowden, moderando ou deixando cair discretamente as acusações crimimais contra ele. Agora é este último que faz questão de frisar que não está interessado em garantir a sua segurança pessoal a qualquer custo, ou seja, envolvendo no processo qualquer grau de sacrifício da sua missão de defesa do interesse público e das liberdades essenciais do cidadão.

 

Este incrível triunfo num desafio tão absurdamente assimétrico deve-se sem dúvida ao facto de Snowden ter seguido uma estratégia realista, bem calculada e sem ilusões românticas ou voluntaristas. Foi uma atitude de extraordinária coragem física, mas também de frio calculismo. Sabia perfeitamente com quem estava a lidar, soube escolher as armas que mais mossa podiam fazer ao adversário e usá-las, na altura certa, de forma eficiente e desapiedada. Segundo as mais abalizadas estimativas, terá em seu poder 1.700.000 ficheiros de espionagem norte-americana, 58.000 britânicos e 15.000 australianos. Todo este material está depositado de forma encriptada em locais seguros, à disposição de várias pessoas de confiança, em diversas partes do mundo, as quais foram instruídas para o revelar publicamente assim que surgisse algum problema com a segurança pessoal ou a liberdade de movimentos de Snowden. As revelações até agora feitas foram ínfimas, ditadas muitas delas por razões de pura oportunidade ou cortesia (espionagem sobre a China, sobre Merkel, sobre Dilma Rousseff).

 

O acervo total dos documentos desviados por Snowden comporta um risco diplomático e de segurança absolutamente esmagador para o imperialismo norte-americano e seus aliados mais próximos. A primeira abordagem ao problema, baseada na difusão histérica do epíteto de traidor e na perseguição pessoal com conspícua ameaça à vida do whistleblower está agora completamente comprometida. Depois de muito ranger de dentes, de patéticos gestos e esgares de raivosa impotência, a situação agora é completamente outra. Do ponto de vista do Estado norte-americano, todas as reais opções atualmente disponíveis são más e, dentre elas, a menos horrível acabará mesmo por ser, provavelmente, conceder um triunfo moral completo ao jovem ethical hacker. Sem que isso implique, naturalmente, qualquer real sacrifício nos programas de vigilância global, pois que esses correspondem a uma necessidade do próprio processo de acumulação de capital, na sua atual fase de impasse histórico.

 

Snowden está muito longe de ser um revolucionário ou um socialista. Nas últimas eleições presidenciais norte-americanas apoiou mesmo monetariamente o conservador libertário Ron Paul, nas primárias do Partido Republicano. Acredita firmemente na economia de livre iniciativa privada, na propriedade inteletual e mesmo em todas as atuais instituições do seu país, que julga serem perfeitamente capazes de corrigir o que considera serem simples práticas abusivas, perigosas sim, mas localizadas. Não está de modo algum isento daquele toque de chauvinismo muito típico do norte-americano médio. Todas as suas ações são motivadas por uma consciência democrática e liberal de recorte absolutamente clássico. As suas alegações jurídicas e proclamações doutrinais, frequentemente assaz densas, poderiam ser subscritas por um Isaiah Berlin ou um Karl Popper (6).

 

No entanto, estamos perante um proscrito, um verdadeiro “dissidente” como era costume designar os refractários à ordem vigente nos países do “socialismo real”. E este é um fenómeno novo no mundo ocidental, neste início de século XXI, em sociedades que nos habituáramos a considerar pluralistas e tolerantes. Não é mais assim. Com a crise de lucratividade do capital e a guerra social que com ela se desencadeou sobre as classes laboriosas, vivemos hoje, na Europa e nos países de colonização anglo-saxónica, em sociedades em que a democracia se tornou uma farsa ritualizada e as liberdades públicas se degradam contínuamente (7). Mesmo princípios constitucionais básicos da tradição demo-liberal como a divisão de poderes sofrem entorses consideráveis. Desapareceram os checks and balances. Não existe imprensa livre nem jornalismo de investigação digno desse nome. Há, sim, uma verdade oficial sobre os acontecimentos correntes, que todo o ser pensante reconhece como mentira mas que não pode ser desafiada, por qualquer forma, nos meios comunicação de massas. A liberdade académica é seriamente cerceada, em favor da mercantilização e do “pensamento único”. O que vigora efetivamente, de forma cada vez mais crua, evidente e sem peias, é a ditadura do capital, uma ordem totalitária imposta pela classe proprietária.

 

A falência completa do Estado de Direito constata-se a toda a hora, em episódios como as execuções sumárias internacionais (drones); o sequestro, tortura, e detenção ilegal por tempo indeterminado, em locais secretos, de milhares de cidadãos; o trânsito aéreo clandestino de detidos e sequestrados; a perseguição judicial internacional a Julian Assange, com acusações instrumentais forjadas e hipócritas; a detenção de David Miranda, companheiro de Glenn Greenwald, no aeroporto de Heathrow (Londres), com base em ridículas suspeitas de “terrorismo”. A multiplicação destes episódios dá crescente credibilidade às acusações de perseguição política abusiva e legitima a concessão de asilo político ou humanitário, por parte de países da periferia, a foragidos do mundo ocidental, em contracorrente do que era até aqui habitual.

 

Naturalmente, como Marx ensinou, as instituições e a ideologia de uma sociedade de classe são sempre as da classe dominante. O que se passa, porém, é que ocorre um estreitamento notório do bloco social no poder, em torno das grandes oligarquias monopolistas, financeiras e rentistas. A crise de 2008 resultou, para já, numa consolidação do seu poder exclusivo, imposto pelo terror. Com a acentuação da polarização social (rarefação das “classes médias”), a democracia burguesa reforça o seu caráter estruturalmente censitário. Com isso se conjuga um brutal restringimento do leque de opções políticas julgadas aceitáveis e que, como tal, depois de cuidadosamante escrutinadas, são admitidas a sujeitar-se ao sufrágio eleitoral. Concomitantemente, existe um fechamento dos espaços de debate e uma compressão da possibilidade de expressão de visões sociais alternativas. Todas as questões de relevância pública estão sujeitas a tratamento com “língua de pau”. Daí resulta - porque o espírito humano é teimoso e, como queria Dylan Thomas, se recusa a entrar gentilmente nessa boa noite – a ocorrência deste surto de dissidentes: Bradley (agora Chelsea) Manning, Julian Assange, Edward Snowden e Glenn Greenwald são as estrelas, mas existe um exército incontável na sombra. Inclusive, homens e mulheres que já pagaram com a vida a sua ousadia inconformista e de quem, provavelmente, pouco ouviremos falar (8).

 

Naturalmente, estes jovens (e alguns não tão jovens) contestatários não têm ainda um pensamento crítico aprofundado. Mas é interessante verificar como estão armados, pelo menos, por um certo sentido de decência e pela consciência de uma irrecusável e incomprimível dignidade essencial no ser humano. Quem utilizou, durante anos a fio, os serviços de Edward Snowden como mago dos computadores, jamais pensou, certamente, que neste jovem e prodigioso hacker pudesse habitar afinal uma consciência. Pois bem, enganou-se. O processo de insignificação geral incluído na espiral acelerada da mercantilização da vida social não está assim votado a um sucesso assegurado.

 

Esta admirável história de coragem ao serviço de princípios ficará, sem dúvida, como um dos momentos definidores da nossa época, por diversas razões.

 

Na sua Carta Aberta ao Povo do Brasil, Snowden afirma, a dado passo:

 

Existe uma diferença enorme entre programas legais, espionagem legítima, atuação policial legítima – em que indivíduos são vigiados com base em suspeitas razoáveis, individualizadas – e esses programas de vigilância em massa para a formação de uma rede de informações, que colocam populações inteiras sob observação onipresente e salvam cópias de tudo para sempre.

 

Esses programas nunca foram motivados pela luta contra o terrorismo: são motivados por espionagem econômica, controle social e manipulação diplomática. Pela busca de poder (sublinhado nosso, AN) (9).

 

Esta síntese resultou certamente de uma longa e extensa observação casuística, sendo bastante operativa, ainda que Snowden não disponha de instrumentos conceituais apurados para uma análise social verdadeiramente profícua. Vale a pena, ainda assim, determo-nos um pouco nela.

 

A espionagem económica é um dos objetivos centrais da teia global de vigilância, como ficou patente de forma esclarecedora com a denúncia das escutas à Petrobrás, esse já antigo engulho do imperialismo yankee. Na era que Samir Amin caraterizou como de capitalismo monopolista generalizado (10) não podia deixar de ser assim. A vigilância eletrónica serve para manter na dependência e subalternidade fornecedores, subcontratados e todos os demais atores subsidiários na cadeia hierárquica predatória da apropriação da mais-valia. Do mesmo modo que se intensifica a dominação sobre o trabalho, também se aperta o anel compressor sobre os capitalistas menores, em favor dos grandes monopólios e, finalmente, da alta finança.

 

Outro campo em que se expande de uma forma exponencial a espionagem económica é na captura, tratamento, compilação e venda de informações pessoais com valor comercial. Género, idade, nível de rendimentos, história bancária, hábitos de consumo, preferências culturais, pesquisas feitas em motores de busca, vida social, padrões de contatos e deslocações, tudo isso são dados sequiosamente procurados por grandes empresas para poderem fazer campanhas cada vez dirigidas e agressivas. Este é, naturalmente, um campo em que a espionagem económica pode ter uso dual, servindo também para controlo social. Autoridades securitárias e policiais poderão naturalmente vasculhar todos esses dados, aos quais têm discricionário acesso, pelas “portas traseiras” que lhes são intencional e discretamente franqueadas, em permanência.

 

Há ainda um segundo campo de espionagem económica, este de recorte mais horizontal, onde o conflito se dá entre pares. Onde ainda existe, nos dias de hoje, alguma concorrência no mundo capitalista, é entre monopólios de diferente base territorial, em busca da hegemonia regional ou global, em mercados por vezes estagnados ou mesmo em retração. Passa-se isso na indústria automóvel, na indústria aero-espacial, nos armamentos, nas telecomunicações, na eletrónica, na pesquisa de materiais, nas biotecnologias, máquinas-ferramentas, na produção de energia, etc.. É o mundo em roda livre da competitive intelligence. A espionagem origina e suporta a apropriação de segredos industriais e comerciais, a diplomacia, a sabotagem, a chantagem e a corrupção, em processos paralelos e muito bem imbricados. Tudo isso se dá com o pleno apoio dos Estados imperialistas em que se sediam os monopólios ditos campeões nacionais. Recursos e agentes públicos e privados entrecruzam-se aqui numa total promiscuidade. Um campo privilegiado de ação é o ciberataque. Estimava-se em 2010 que 50.000 corporações são alvo de ataques conduzidos pela internet todos os dias, com a frequência destas ocorrências duplicando a cada ano que passa (11). A mobilização de recursos e informações privilegiadas, bem como caráter organizado destas operações, só estarão ao alcance dos Estados mais poderosos, sendo aqui reconhecidos como grandes protagonistas a China e os E.U.A., estes dispondo já de um Ciber-Comando nas suas Forças Armadas (12).

 

Neste momento, depois de alguns anos de estagnação das conversações multilaterais arbitradas pela Organização Mundial do Comércio (OMC), temos novamente em curso grandes ofensivas de diplomacia comercial promovidas pelos E.U.A., numa lógica de bilateralismo inter-regional, com os processos extraordinariamente ambiciosos e agressivos do Transatlantic Trade and Investment Partnership (T-TIP) e do Trans-Pacific Partnership (TPP). Se estes acordos vierem a ser aprovados e ratificados, conforme estão presentemente esboçados, entraremos numa era em que a democracia (ainda que formal) e a soberania nacional (ainda que limitada) darão lugar ao domínio global irrestrito dos grandes monopólios, que passará a constituir o embrião de um Estado mundial, configurado sem qualquer apoio visível na tradição do pensamento político ocidental (13).

 

A manipulação diplomática, terceira das grandes finalidades apontadas por Snowden para os programas de vigilância em massa, decorre assim naturalmente, pelo menos em parte, da própria espionagem económica. Mas é provável que ele aqui se quisesse referir especificamente à diplomacia política em sentido estrito.

 

As revelações de Bradley Manning à Wikileaks que vieram a público em 2010-2011, com 251.287 despachos de embaixadas e consulados norte-americanos ao State Department já nos possibilitaram um vislumbre fascinante sobre os bastidores da diplomacia imperial de Washington (14). Em certo sentido, Manning e Assange atuaram aqui no mesmo espírito com que Leon Trotsky, a 22 de novembro de 1917, comissário do povo dos negócios estrangeiros da jovem república soviética, fez publicar os documentos diplomáticos secretos dos arquivos czaristas (15).

 

Foi revelado que foram espiadas as comunicações privadas de participantes em cimeiras do G8, do G20 e sobre mudanças climáticas. Angela Merkel tem o seu telefone portátil pessoal permanentemente sob escuta há mais de dez anos, desde os tempos em que era ainda dirigente da oposição. Longe de estarmos aqui perante casos anedóticos, tudo indica que este tipo de operações é conduzido sistematicamente, pelos serviços secretos de todos os países imperialistas de algum relevo. Porque não é crível que grandes dirigentes políticos quotidianamente escutados e espiados há anos não estivessem conscientes desse facto, resta concluir que a diplomacia internacional é hoje conduzida de uma forma muito diferente do que o era até há uma vintena de anos atrás. Presentemente, nada que seja transmitido por meios eletrónicos é off-the-record, devendo presumir-se estar a ser escutado. A contra-inteligência começa assim nas próprias comunicações pseudo-privadas. Consequentemente, a verdadeira definição de posições e estratégias políticas que se querem manter secretas será doravante feita em espaços eletronicamente asseptizados, o que certamente não é ignorado por quem espia.

 

Naturalmente, o campo de eleição para esta novíssima grande espionagem global e total será o controlo, prevenção e repressão de toda a contestação social. É aqui que deparamos com o mais bem guardado segredo das secretas ocidentais: os tão temidos “terroristas”, sobre quem ouvimos tão alarmantes esconjuros e anátemas, tão ominosos avisos, tão severas admoestações, são afinal... os nossos próprios filhos. Aqueles com quem tomamos o pequeno-almoço, a quem avisamos para ter sempre cuidado com estranhos. Pois são esses mesmos os terroristas que trazem as autoridades em tão grande cuidado. Jovens filhos das classes trabalhadoras, citadinos pobres ou mal remediados, imigrantes de segunda e terceira gerações, etnicamente minoritários, estudantes rebeldes e solidários, desempregados, precários, informais, desafetos e descontentes. São eles os protagonistas dos motins suburbanos em França no inverno de 2005-2006, das pilhagens e incêndios em Londres de 6 a 11 de agosto de 2011; os autores de imaginários arrastões e dos festivos “rolezinhos”; os participantes de movidas, festas de rua e outras manifestações de suspeita alegria, com muito “botellón” e hip-hop à mistura.

 

Eis as novas classes perigosas, a quem a burguesia verdadeiramente teme. Sabedora de que a crise de lucratividade do sistema cria abismos sociais cada vez mais profundos e uma marginalidade económica crescente, na contramão das feéricas expetativas de desbragado consumo mercantil difundidas pelos mass-media, é nestes jovens relativamente educados que ela teme venham a criar-se forças organizadas de ruptura. São estas camadas sociais que ela pretende assim manter sob vigilância permanente, controlando as suas reuniões, as suas convocatórias em linha, os seus rituais gregários e celebratórios, as suas manifestações culturais, as suas criações ideológicas e políticas embrionárias, infiltrando elementos provocadores, criando dissídios, espalhando calúnias, disseminando mal-entendidos, etc. (16). Em última instância, entrará naturalmente em campo a violência repressiva, devidamente preparada e instruída.

 

Não surpreenderá ninguém que sejam alvo privilegiado de vigilância as organizações laborais com orientação de confronto de classe, os partidos políticos da esquerda revolucionária e os movimentos sociais inconformistas, em especial quando da sua articulação e conjugação de esforços nascem grandes lutas e grandes manifestações de massas. Foi o caso do movimento de contestação às grandes cimeiras económicas inter-imperialistas na viragem do milénio, as grandes greves estudantis desde então, o movimento indignado/occupy, o combate nas ruas às constantes medidas de destruição de serviços públicos e do Estado-Providência, às privatizações e à regressão social austeritária. O objetivo estratégico do aparato repressivo estatal é aqui conter e derrotar sucessivamente estes movimentos e, assim fazendo, impedi-los de se articularem de uma forma mais consolidada (organizativa e teoricamente) e de mergulharem mais profunda e duradouramente as suas raízes na cultura difusa de contestação juvenil.

 

As denúncias públicas de Edward Snowden marcam uma fronteira de época. Haverá um antes e um depois. Com este golpe rude e certeiro, depois deste impiedoso rasgão no nosso ameno info-sonambolismo, começamos agora a ter uma consciência radicalmente diferente do mundo em que vivemos e do declive acentuado em que nos encontramos rumo à barbárie. É tempo de passar da consciência à recusa, traçar uma linha de demarcação e de luta, para finalmente podermos passar da resistência à reconquista da nossa humanidade aviltada. Uma parte muito importante dessa luta será conduzida no campo das comunicações. A luta por uma reserva mínima de privacidade, que é no fundo a luta pela liberdade de autodeterminação pessoal (17), terá de ser travada também contra os grandes monopólios, o enclausuramento proprietário dos saberes técnicos e a mercantilização total da vida social. Será uma e a mesma luta. Preservar a pessoa humana e o espaço próprio para o seu desenvolvimento e individuação, é alargar o campo da comunhão e da partilha criativa livre. Mas só a experiência da própria luta permitirá alargar sucessivamente a consciência que ela terá de si própria.

 

 

28 de março de 2014

 

 

 

 

(*) Ângelo Novo (n. 1961) é um pesquisador e ensaísta independente português, editor da revista eletrónica ‘O Comuneiro’. Foi coordenador, redator e colaborador de diversas revistas culturais, literárias e de intervenção política. É autor de ‘O estranho caso da morte de Karl Marx’, Edições Mortas, Porto, 2000, para além de outras obras publicadas em poesia e ficção. Os seus escritos principais podem ler-se em linha na sua página pessoal na rede.

 

 

______________

NOTAS:

 

(1) Informações recolhidas no artigo Edward Snowden da Wikipedia em língua inglesa.

 

(2) Sobre o encontro entre Snowden, Glenn Greenwald e Laura Poitras, seus peculiares métodos de trabalho e estilo de colaboração, V. Peter Maass, Mande sua chave.

 

(3) V. HackedOff. The campaign for a free + accountable press.

 

(4) Veja-se e reveja-se a memorável entrevista de 6 de junho de 2013 conduzida por Glenn Greenwald para a câmara de Laura Poitras.

 

(5) Zeca Afonso, Coro dos Tribunais.

 

(6) V., por exemplo, o seu Testemunho e resposta a questões colocadas por deputados do Parlamento Europeu; a breve Mensagem de Natal Alternativa para a estação de televisão britânica Channel 4; excertos do o seu discurso ao receber em Moscovo o prémio Sam Adams; ou a sua entrevista por tele-robot para TED.com em Vancouver ‘Here’s how we take back the internet’.

 

(7) V. Edgardo Lander, El fin de la democracia liberal: La desigualdad en las sociedades capitalistas post-democráticas .

 

(8) Michael Hastings (1980-2013) foi um jornalista free-lancer residente em Los Angeles, colaborador da revista Rolling Stone e do sítio noticioso Buzz Feed. Os seus trabalhos sobre o general norte-americano Stanley McChrystal, comandante das forças norte-americanas no Afeganistão, conduziram à sua demissão. Tornou-se um crítico feroz da vigilância e intimidação praticadas pela administração Obama sobre jornalistas. A 18 de junho de 2013 faleceu num suspeito acidente automóvel que, tudo o indica, terá sido provocado por interferência eletrónica sobre o acelerador e travões do seu Mercedes C250 Coupé. Hastings preparava então uma “grande investigação” sobre o diretor da CIA John Brennan e acreditava estar a ser seguido permanentemente por forças de segurança, inclusive por helicóptero. V. Carl Gibson, Who killed Michael Hastings?.

 

(9) V. Nadiajda Ferreira, Edward Snowden escreve carta aberta para o povo brasileiro. Tradução de Clara Allain.

 

(10) Como introdução a este conceito, leia-se Entrevista com Samir Amin: O mundo visto do Sul.

 

(11) This is Money, Chinese hackers blamed for cyber attack wave.

 

(12) V. Statement of General Keith B. Alexander Commander United States Cyber Command before the Senate Committee on Armed Services 12 March 2013.

 

(13) A agenda negocial do T-TIP, que é um processo mais avançado, com encerramento previsto para fins de 2014 ou inícios de 2015, inclui um mecanismo de Investor-State Dispute Settlements (ISDS) que permitirá às grandes multinacionais processar Estados nacionais em tribunais arbitrais internacionais permeáveis à sua influência (isto é: corrupção), fazendo-os aí condenar a indemnizá-las, sem possibilidade de recurso, por meras expetativas de lucros cessantes, se aqueles tomarem qualquer medida soberana de proteção dos seus consumidores ou do seu ambiente natural que elas julguem potencialmente prejudicial aos seus interesses comerciais. O TPP, neste momento ainda numa fase de incerteza quanto aos países interessados, abrange também um mecanismo de resolução de litígios que não deixará certamente de seguir as mesmas soluções. O T-TIP é suposto abrir caminho doutrinalmente para outros acordos comerciais, que poderão englobar proximamente a própria China.

 

(14) V. WikiLeaks: Secret US Embassy cables.

 

(15) V. Statement by Leon Trotsky on the publication of the Secret Treaties.

 

(16) V. Glenn Greenwald, Como os governos ocidentais manipulam a internet.

 

(17) Sobre a luta pela salvaguarda da privacidade das comunicações ler-se-á com proveito Julian Assange, Jacob Appelbaum, Andy Müller-Maguhn e Jérémie Zimmermann, Cypherpunks, liberdade e o futuro da internet. Este movimento dos "maluquinhos da criptografia", do seio do qual emergiu a WikiLeaks, tem como lema “privacidade para os fracos, transparência para os poderosos”, o que não deixa de fazer ressoar um eco distante da palavra de ordem do proletariado revolucionário da Comuna de Paris “guerra aos palácios, paz às choupanas”.