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Notas sobre trabalho, tecnologias e sociedade
Ivonaldo Leite (*)
No universo da sociabilidade produtora de mercadorias, cuja finalidade básica é a criação de valores de troca, o valor de uso das coisas é minimizado, reduzido e submetido ao seu valor de troca, mantendo-se apenas como condição necessária para a integralização do processo de valorização do capital, do sistema produtor de mercadorias. Donde decorre que a dimensão concreta do trabalho é também completamente subordinada à sua dimensão abstracta.
Como bem afirma István Mészáros (1), o capital não trata valor de uso (que corresponde directamente à necessidade) e valor de troca meramente como dimensões separadas, mas de uma maneira que subordina radicalmente o primeiro ao último. Devidamente situado no tempo e no espaço, isto representa uma inovação radical, que abre horizontes anteriormente inimagináveis para o desenvolvimento económico. Uma inovação baseada na constatação prática de que qualquer mercadoria pode estar constantemente em uso, num extremo da escala, ou ainda nunca ser usada, no outro extremo das possíveis taxas de uso, sem perder por isso sua utilidade no que tange às exigências expansionistas do modo de produção capitalista.
Dessa forma, superar a lógica da sociedade do trabalho abstrato significa uma rejeição ao trabalho fetichizado e não efetivador da actividade humana autónoma. Tal superação reconhece que, na contemporaneidade, há uma centralidade do trabalho assalariado, com as classes e grupos que vivem do trabalho encontrando-se fragmentados e heterogenizados, tendo-se que a superação desse quadro encontra fundamentos no trabalho concreto, supondo “a redução da jornada de trabalho e ampliação do tempo livre, ao mesmo tempo que supõe também uma transformação do trabalho estranhado em um trabalho social que seja fonte e base para a emancipação humana, para uma consciência omnilateral. Em outras palavras, a recusa do trabalho abstrato não deve levar à recusa da possibilidade de conceber o trabalho concreto como dimensão primária, originária, ponto de partida para a realização das necessidades humanas e sociais” (2).
Quer dizer, trata-se de assumir a redução da jornada de trabalho e a busca do ‘tempo livre’, referida por André Gorz, mas associadas a uma acção que busque a superação do trabalho abstracto com a adopção/utilização criativa do tempo disponível funcionando como princípio orientador da reprodução societária.
Nos dias actuais, todavia, discutir a superação da lógica do trabalho abstracto requer que se tenha em linha de conta as tecnologias, o modo como elas são concebidas e utilizadas.
Na teoria social clássica, o debate sobre as tecnologias emergiu relacionado ao conceito de ‘racionalidade’ para definir a maneira da actividade económica capitalista, o tráfico social regido pelo direito burguês e a dominação burocrática (3). Ou seja, a racionalização daí resultante significa a ampliação das esferas sociais, sendo estas submetidas aos critérios de decisão racional, ao que corresponde a industrialização do trabalho social, tendo como consequência a penetração dos critérios de acção instrumental em outros âmbitos da vida, a exemplo da urbanização das formas de existência, da tecnização do tráfego e da comunicação. Contudo, isto não se atinge sem a institucionalização do progresso científico e técnico, o que leva estes a invadirem as esferas institucionais da sociedade, transformando instituições e fazendo desmoronar antigas legitimações.
Mais adiante, no âmbito da Escola de Frankfurt, afirmou-se que a instrumentalização da tecnologia é, ela própria, uma forma de dominação, que, controlando objectos, viola sua integridade, suprimindo-os, destruindo-os, pelo que a tecnologia não é neutra. Na perspectiva marcuseana (4), a racionalização não implanta a racionalidade como tal, mas, sim, em nome dela, uma forma determinada de dominação política oculta. Daí o que se tem é que o conceito de razão técnica é talvez também, em si mesmo, ideologia, na medida em que não só a sua aplicação, mas já a própria técnica é dominação metódica, científica, calculada e calculante sobre a natureza e sobre o ser humano. Isto é, determinados fins e interesses da dominação não são outorgados à técnica apenas posteriormente e a partir de fora; eles estão já inseridos na própria construção do aparelho técnico, sendo a técnica, em cada caso, um projecto histórico-social, nele se projectando o que uma sociedade e os interesses nela dominantes pensam fazer com os homens, as mulheres e as coisas.
Assim, a tecnologia desempenha um papel cimeiro naquilo que foi chamado de ‘sociedades capitalistas avançadas’. Ela contribui para que a dominação tenda a perder o seu carácter explorador e opressor, tornando-se ‘racional’, sem que por isso se desvaneça a dominação política; ou seja, em sentido marcuseano, a racionalidade da dominação mede-se pela manutenção de um sistema que pode permitir-se converter em fundamento da sua legitimação o incremento das forças produtivas associado ao progresso técnico-científico. Paradoxalmente, todavia, esta repressão desvanece-se na consciência da população, pois a legitimação da dominação assume um novo carácter.
Mudar as bases da ciência e da técnica requer, preliminarmente, que se considere que elas, em virtude dos métodos e conceitos, projetaram e fomentaram um universo no qual a dominação da natureza se vinculou à dominação dos humanos: a natureza, compreendida e dominada pela ciência, surge de novo no aparelho de produção e de destruição, que mantém e melhora a vida dos indivíduos e, ao mesmo tempo, os submete aos senhores do aparelho, com a hierarquia racional fundindo-se com a social. Pelo que então uma mudança na direcção do progresso, que consiga romper com esse vínculo fatal, influencia também a própria estrutura da ciência, com as suas hipóteses passando a se desenvolver num contexto experimental essencialmente diverso – de um mundo libertado -, com a ciência chegando, portanto, a conceitos distintos sobre a natureza, estabelecendo factos também diferentes.
Em síntese: a tecnologia é um meio no qual a coordenação da acção instrumental recoloca o entendimento comunicativo através de um interesse destinado a projectar. Simplesmente dito, algumas vezes a tecnologia não é condicionada; outras vezes, é politicamente influenciada; e ainda em outras é ambas as coisas. Várias abordagens críticas diferentes são necessárias, dependendo do caso. Esta posição não implica nenhum repúdio da ciência, nem uma metafísica, nem instrumentalismo, nem proclamar neutralidade.
Posto isto, é possível fazer uma conexão entre trabalho, tecnologias e ética, esta no sentido de definir e impulsionar ações de intervenção nos rumos da sociedade. Ao se ter em atenção essa conexão, impõe-se que se parta da categoria práxis, como categoria englobante.
Por práxis, exprimimos a experiência fundante da vida humana, a experiência de o ser humano ser entregue a si próprio. Não se trata apenas de uma experiência que serve de base para toda a vida teórica e prática do ser humano, mas de uma experiência que emerge no próprio processo de questionamento da vida. Em poucas palavras, a experiência originária é a experiência de uma interpretação ao constituir-se; ao conquistar-se como ser, portanto, o ser humano emerge nesta experiência fundante como contrário do ser simplesmente dado. Práxis significa, precisamente, a forma própria de um ente que cria o seu próprio ser a partir da sua realidade primeira – que constitui o ponto de partida deste processo -, em relação à qual a práxis significa uma tomada de posição e, neste sentido, efectivação de transcendência, o que caracteriza o ser humano enquanto ser humano (5).
Isto pressupõe a capacidade de projectar uma situação diferente, uma facticidade transcendente à facticidade originária, isto é, uma configuração alternativa à condição de origem. Quer dizer, se o ser humano é um ente da natureza como qualquer outro, o que o especifica é que ele se situa propriamente como humano, no para além da natureza, na esfera do por ele construída, através do que ele medeia seu próprio ser. Sendo as acções humanas e seus produtos mediação da gestação do ser humano enquanto ser humano, então “seu valor ético se decide pelo valor da pessoa humana que é sujeito e que se efectiva por sua mediação. Isto significa dizer que toda a actividade está, em última instância, a serviço da efectivação pessoal e que sua dignidade consiste, precisamente, em estar a serviço da vida humana” (6).
Se o homem é o ente da conquista de seu próprio ser, isto significa dizer que há a possibilidade de as suas actividades, ao invés de serem mediação de seu ser, poderem ser utilizadas como destruição deste ser, como opressão, como diminuição de sua dignidade, como sua violação, isto é, elas podem ser transformadas em meio de alienação do próprio homem. Quer dizer, as acções humanas podem ser utilizadas como instrumento de degradação da pessoa humana na medida em que a dignidade do seu sujeito, das mais diferentes formas, não é efectivamente reconhecida. Aqui põe-se um elemento fundamental: a questão da ética da prioridade, ou seja, dos ‘critérios racionais’ que devem determinar as acções enquanto acções humanas, a actividade humana enquanto actividade, em primeiro lugar, de um ente que, como carente, tem necessidades naturais a serem satisfeitas. Se o ser humano se experimenta a si mesmo como um ser a se construir, isto é, como ser histórico, ele se descobre como ser histórico, antes de tudo, como um ser vivo que produz e reproduz, através de sua acção, seu próprio ser. Se, então, a história é o espaço da possível efectivação do homem como ser livre, ela o é, em primeiro lugar, como espaço da possível reprodução da vida. Isto significa que a razão de ser da acção económica é, então, a satisfação, antes de mais nada, das necessidades básicas que reproduzem a vida humana, que não se reduzem às necessidades de sua reprodução material.
Assim sendo, a ‘racionalidade da acção económica’ nunca é completa quando se considera apenas o seu aspecto sistémico, isto é, por exemplo, a eficiência na produção dos bens, mas implica fundamentalmente, em primeiro lugar, a configuração racional ética das relações sociais. Quer isto dizer que a acção económica constitui um problema ético básico, qual seja, o problema do conhecimento dos sujeitos em si como parceiros de igual dignidade e o problema do ser e do valor próprio da natureza, o que se consubstancia na construção de mecanismos institucionais que tornem este reconhecimento possível. O que significa mais: colocar-se para além da racionalidade unidimensional em que se situou a economia política na modernidade e ainda se situa o pensamento econômico dos nossos dias, pois isto implica dizer que o problema da racionalidade econômica abrange duas dimensões de racionalidade: a racionalidade sistémica e a racionalidade ética.
Na primeira dimensão, o que está em jogo é o agir eficiente em relação aos recursos escassos. Racionalidade, nesta esfera, tem a ver com um controlo eficiente de bens para satisfazer às necessidades humanas; na segunda, levanta-se a pergunta pelo sentido e pela contribuição da actividade em discussão para o processo de conquista da humanidade de homens e mulheres - o que se põe como questão primeira de sua racionalização é precisamente a configuração das interacções sociais para saber se elas estão voltadas à (re)produção da vida para todos.
Dessa forma, quando as novas tecnologias são concebidas como instrumentos meramente a serviço do aperfeiçoamento da reprodução económica, atenta-se contra a dimensão ética, gerando uma lógica de desigualdade, “absolutizada quando o mercado é considerado o mecanismo exclusivo de coordenação de uma economia moderna, sem que nenhuma outra instância possa e deva determinar as metas sociais” (7).
Isto vai em sentido contrário ao potencial da actual revolução tecnológica, que torna factível o desaparecimento do trabalho físico fatigante e intelectualmente desgastante, abrindo espaço para actividades mais criativas que poderão trazer mais satisfação à vida humana e possibilitar um espaço muito maior de tempo possível de ser utilizado por homens e mulheres no enriquecimento da sua personalidade e na construção comum das diferentes esferas da convivência humana.
Entretanto, para que isso ocorra, é necessário ir além dos marcos do sistema produtor de mercadorias, com a sociedade deixando de ser então uma mera esfera dos jogos de fetiches promovidos pelo mundo mercantil mediante as deambulações do valor de troca das mercadorias. A aposta neste sentido deve ancorar-se na convicção de que a história é movimento e as ‘conjunturas de poder’, por mais que em dado se mostrem consolidadas, são fluidas ao longo do tempo, na medida em que a ‘dinâmica histórica’ cria forças discordantes, fazendo aparecer formas de conflito que põem em causa as estruturas de dominação. Desconsiderar isso significa fazer valer um dos aspectos básicos da ideologia que, apostando na perpetuidade do presente, espelha de modo inverso, e perverso, partes constitutivas da realidade.
(*) Ivonaldo Leite é doutorado em Ciências da Educação pela Universidade do Porto. É atualmente professor e investigador da Universidade Federal de Paraíba em João Pessoa (UFPB)/Brasil. Tem publicado diversos trabalhos no Brasil e em Portugal: Combatividade Sindical: as lutas do passado e os desafios do presente. 1ª. ed. João Pessoa: Idéia, 1996; Novas Tecnologias, Trabalho e Educação: Desorganizando o Consenso. 1ª. ed. Lisboa: Dinossauro Edições, 2002; Educação, Formação, Trabalho e Políticas Educativas. 1ª edição. Porto: Profedições, 2007. A sua tese de doutorado, de 2003, que ainda aguarda publicação, se intitula Sindicatos, Trabalho e Educação: Um Estudo do Posicionamento do Movimento Docente Brasileiro e Português durante a década de 1990.
_________ NOTAS:
(1) Ver MÉSZÁROS, István. Produção destrutiva e Estado capitalista. São Paulo: Ensaio, 1989.
(2) Cf. ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho?; ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 5 ed. São Paulo: Cortez, 1998, p. 80.
(3) É o que pode ser encontrado, por exemplo, no sociólogo alemão Max Weber. Ver os textos reunidos no volume da Colecção Grandes Cientistas Sociais dedicado a Max Weber (Coordenador : Florestan Fernandes) - São Paulo: Ática, 1996.
(4) Ver, dentre outros, os seguintes trabalhos de Herbert Marcuse: One-dimensional man (Boston: Beacon Press, 1964) e “Industrialization and capitalism in the work of Max Weber”, in SHAPIRO, J. Negations (Boston: Beacon Press, 1968).
(5) Cf. OLIVEIRA, Manfredo Araújo (1996). “A nova problemática do trabalho e a etica”, in OLIVEIRA, Manfredo Araújo & TEIXEIRA, Francisco J. S. (Orgs.). Neoliberalismo e reestruturação produtiva: as novas determinações do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez; Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará, 1996.
(6) Ibidem, p. 189.
(7) Ibidem, p. 193.
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