|
A actualíssima questão do Estado Social
Miguel Judas (*)
Nos debates políticos travados actualmente em Portugal, a questão do Estado-Social ocupa um lugar central. Esses debates encontram-se, porém, contaminados tanto por claras mentiras como por menos claros equívocos.
Do lado da Mentira encontra-se o actual Governo e uma série de sectores políticos e sociais que o apoiam; do lado dos Equívocos encontra-se um grande número dos outros.
A diferença entre uns (os da Mentira) e os outros (os dos Equívocos) é que os primeiros conhecem a Verdade, deliberadamente mentem ou, no mínimo, omitem, enquanto os segundos, por estarem equivocados, são levados, em maior ou menor grau, a se deixarem enganar.
Os Equivocados identificam o Estado-Social como um conjunto concreto de serviços públicos colocados à disposição dos cidadãos pelo Estado, que lhes permitem a sobrevivência e um mínimo de dignidade de vida: educação, saúde, previdência social, acesso e condições mínimas de dignidade do trabalho, formação profissional, habitação condigna, qualidade urbana e ambiental, acesso e igualdade perante a Justiça, etc., sem entenderem que tais serviços resultaram, em circunstâncias históricas bem definidas, fundamentalmente, de um Compromisso Político entre o Capital e o Trabalho segundo o qual o Capitalismo poderia ser um jogo de soma positiva de onde ambas as partes, mesmo que em proporções diferenciadas, sairiam “ganhadoras”.
Num artigo anterior já abordei sucintamente as circunstâncias históricas e as motivações que possibilitaram esse Compromisso Político, designadamente:
a) O exemplo das extraordinárias conquistas sociais dos trabalhadores durante o período ascendente da URSS, caracterizado pelo acesso generalizado e gratuito à educação, à saúde, à habitação e à segurança social e, também, pelo pleno emprego e a participação directa dos trabalhadores na gestão económica, conquistas essas que suscitavam o maior interesse e adesão dos trabalhadores e explorados de todo o mundo.
b) A existência de amplas zonas (e povos) do mundo ainda submetidos a relações de dominação e exploração colonial ou a mecanismos de “troca (extremamente) desigual”, das quais provinham rendimentos extraordinários para o “centro”, uma parte dos quais poderia ser “redistribuída” (através de prestações públicas) pelos respectivos cidadãos.
Com uma correlação de forças cada vez mais desfavorável ao Capital, decorrente da “atractividade soviética” e da intensificação das lutas dos trabalhadores dos países centrais e das lutas de libertação nacional por todo o “terceiro mundo”, o Capital foi constrangido a adoptar uma postura de Compromisso, segundo a qual poderia partilhar o Poder Político com os sectores mais dialogantes do mundo do Trabalho, isto é, com os partidos e organizações social-democratas, com base em dois princípios: manutenção do Capitalismo como sistema económico hegemónico e “melhor distribuição da riqueza”.
Foi desse Compromisso Político que nasceu o moderno conceito do Estado-Social, isto é, um conceito e uma prática de Estado em que este assumiu uma intervenção na Economia, regulando a sua dinâmica no sentido do bem-estar social e extraindo dela recursos suficientes para, pela redistribuição, assegurar melhores condições de Igualdade Cidadã.
O “Estado-Social” e toda a panóplia de serviços públicos que lhe foram associados, procurava mostrar às grandes massas trabalhadoras que o Capital também teria “ética e consciência social” e que, por consequência, também poderiam aspirar a uma vida digna e beneficiar de largas conquistas sociais no quadro do Capitalismo, não sendo, por isso, necessária qualquer revolução social de inspiração “comunista”.
O Estado-Social constituiu um grande sucesso na Europa Ocidental e tornou-se uma referência para muitos povos do mundo, tendo passado a ser considerado como um modelo civilizacional.
Porém, as sociedades e os processos políticos e económicos não são estáticos e algumas circunstâncias vieram alterar as premissas básicas do Compromisso Político que estava subjacente ao Estado-Social. Essas novas circunstâncias foram, designadamente:
- A progressiva degenerescência, enfraquecimento e posterior implosão da URSS;
- A abertura da China ao investimento capitalista e a sua progressiva transformação em “fábrica do mundo” com base em baixos salários e reduzidas condições de trabalho;
- A significativa redução da base de exploração colonial directa e neo-colonial de vastas zonas do mundo, decorrente das lutas de libertação nacional e da crescente imposição de melhorias nas condições de troca entre os “centros” e as “periferias”;
- A instituição generalizada da “livre circulação de capitais” e a criação de numerosas “off-shore”, tornando o Capital Financeiro e as Transnacionais “livres” do controlo dos Estados Nacionais;
- Os novos desenvolvimentos tecnológicos, designadamente das TIC, e a profunda reorganização dos processos produtivos através da fragmentação dos grandes grupos económicos verticalmente integrados, do que resultou não só a pulverização das grandes concentrações proletárias como a possibilidade de deslocalização geográfica de numerosas actividades;
- A crescente supremacia do Capital Financeiro e das Transnacionais sobre todos os processos económicos mundiais, designadamente sobre todas as actividades directamente produtivas (industriais, agrícolas, etc.), bem como sobre a Política;
O “Neoliberalismo” e a “Globalização”, consagrados no Consenso de Washington, são as palavras que traduzem, em roupagem intelectual, a nova estratégia global do Capital Financeiro e das Transnacionais, a qual incluía a instituição de um novo Modelo Económico Internacional, centralmente dirigido por instâncias privadas (“os Mercados”), a dissolução das “Economias Nacionais” e a fragilização dos Poderes Democráticos dos Estados e das Soberanias Nacionais e, consequentemente, o rasgar do Compromisso Político com o Trabalho e a anulação do Estado-Social.
Nestas novas circunstâncias veio a criar-se uma nova correlação global de forças entre o Capital e o Trabalho que, na perspectiva do Capital Financeiro e das Transnacionais, justificavam o rompimento do anterior Compromisso Político de que resultou o Estado-Social e o desencadeamento de uma ofensiva à escala global contra o Trabalho. Nesta perspectiva Warren Buffet terá afirmado que “está em curso uma luta de classes e a minha classe está a ganhar”.
O Projecto Político do Capital Financeiro e Transnacionais, ou dos “Mercados”
O Projecto Político do Grande Capital Internacional consiste na constituição de um qualquer Governo Mundial de carácter privado, através das grandes corporações internacionais integradoras de processos mundiais. Segundo essa Utopia, os indivíduos seriam “libertos” dos “constrangimentos” dos Governos Nacionais e todas as necessidades sociais seriam “resolvidas pelo Mercado”.
Este, supostamente livre e manejado por indivíduos supostamente racionais e dotados de elevada consciência social, tenderia permanentemente para o equilíbrio no jogo dinâmico entre a oferta e a procura, tornando a Política desnecessária, numa espécie de democracia espontânea e informal, a “democracia de mercado” realizada através de “consumidores” igualmente racionais. Seria o “Fim da História”.
Porém, como decorrência natural do “código genético” do Capital e da sua incessante procura da máxima reprodução, a realização dessa Utopia da criação de um mercado global “livre e auto-regulado” redundou num mundo caracterizado pelas maiores desigualdades sociais no seio de cada país e entre os diversos países, no estabelecimento de relações internacionais baseadas na “lei do mais forte” e numa acelerada desarticulação social.
O resultado prático desse projecto está à vista no quotidiano dos povos do mundo. O que não está tanto à vista é o facto de entre todos os bens públicos que já foram “mercadorizados” o primeiro foi o “Poder Político”. Assim, quem teve dinheiro para comprar o Poder fê-lo, reorganizou-o, redistribuiu-o pelas sedes que entendeu, camuflou-o, transmutou-o enfim, de modo que o “Poder Democrático dos Povos” ficou reduzido às dimensões de uma simples aparência. Os Governos Nacionais perderam (ou estão ainda a perder (em alguns casos) as suas funções económicas e de promoção social, encontrando-se as suas funções coercivas (Justiça, Segurança e Defesa...) devidamente enquadradas por sistemas normativos e alianças orgânicas supranacionais dependentes do Capital Financeiro e das Transnacionais.
Todo este processo de tomada do Poder Global tem sido conduzido fundamentalmente através do exercício do “soft power”, isto é, o Poder Mediático (Ideológico-Informacional) e do Poder Económico e Financeiro (incentivando ou “punindo” a acção dos Governos através dos “apoios”, das pressões, chantagens e sanções) exercidos fora do controlo dos Estados Nacionais, e, sempre que necessário, através do “hard power” das ameaças, desestabilização ou intervenções militares directas levadas a cabo através dos sistemas políticos dos países de residência dos principais conglomerados Económico-Financeiros mundiais, os EUA e alguns países europeus, arrastando com eles os Estados satelizados.
Assim, as Democracias Representativas que caracterizaram a afirmação dos ideais do Liberalismo encontram-se em processo de transmutação em “Democracias Orgânicas” dos principais conglomerados Económico-Financeiros-Militares, e o Sistema de Relações Internacionais a ser substituído por uma Nova Ordem Mundial dirigida centralmente por instâncias privadas caracterizada por dependências em cascata, no sentido de um Neo-Feudalismo Global, do ressurgimento do Antigo Regime e da constituição de um Leviatã hobbesiano.
Da questão Política à abordagem Económica
Apesar de desmantelados os dois grandes pólos de poder que haviam obrigado o Capital ao Compromisso Político do Estado-Social, o “campo socialista” e as grandes concentrações industriais dos países centrais, os Povos Europeus continuaram, globalmente, a considerar o Estado-Social nas suas diversas vertentes, política, económica, social e cultural, como uma aquisição civilizacional. Daí a subsistência, até à actualidade, das conquistas sociais que lhe são inerentes e a grande resistência popular ao seu desmantelamento.
Porém, o novo Modelo Económico Internacional traçado no Consenso de Washington (neoliberalismo, globalização e predominância absoluta do capital financeiro na economia) é incompatível com a subsistência do Estado-Social e das Soberanias Nacionais.
Metaforicamente, o Capital Financeiro e as Transnacionais movem-se e operam no mundo como nuvens de gafanhotos, não reconhecendo fronteiras nem culturas humanas, em função das suas necessidades de máxima reprodução. Nesse sentido, conectam países (ou partes deles) e desconectam-nos, findo o repasto, com a mesma ligeireza com que pousaram. Para trás ficam regiões e populações devastadas.
Por isso, levantaram voo dos EUA e da Europa, onde as “colheitas” têm sido partilhadas com os respectivos povos (por efeito do Estado-Social, nos seus diferentes modos de formulação prática) e transferiram o grosso das suas actividades para outros continentes, designadamente para o Oriente, onde existem recursos humanos baratos (que partilham pouco da colheita) aptos a manejar as respectivas tecnologias modernas.
Esta movimentação dos capitais e das actividades das Transnacionais em busca da mais intensa acumulação de capital e à margem dos anteriores enquadramentos estatais, veio a alterar profundamente o quadro das Economias Nacionais dos países centrais entretanto desindustrializados e “terciarizados” (com insuficientes economias produtivas), reduzindo fortemente a base tributária dos respectivos Estados Nacionais e, consequentemente, a pôr em causa a capacidade financeira destes para prosseguir a “redistribuição” característica do Estado-Social.
A alternativa encontrada por muitos países para manterem a estabilidade social foi caírem na armadilha do endividamento e ficarem vulneráveis a, oportunamente, serem atacados pela via financeira e económica e terem de declarar a “rendição” política, económica e social perante o Capital Financeiro e as Transnacionais, ficado assim “avassalados” por estes.
No entanto, tanto quanto a recursos naturais como quanto a recursos humanos (do mais elevado nível de formação), os EUA e a Europa continuarão a ser apetecíveis para a exploração predatória na condição de que aos respectivos trabalhadores sejam negadas todas as suas conquistas sociais anteriores e sejam reduzidos a mão-de-obra precária e servil.
Na realidade, segundo o Modelo Económico Internacional prevalecente, caracterizado pelo “neoliberalismo” e a “globalização”, todos os países europeus, cada um a seu tempo, irão perdendo a respectiva “competitividade internacional” face a outros países tecnologicamente hábeis e com mão-de-obra “mais barata” disponível. Esse fenómeno também incluirá a Alemanha quando os países emergentes, designadamente do Oriente, já não necessitarem de lhe comprar os produtos tecnicamente sofisticados da sua actual indústria.
Segundo esse Modelo, dirigido pelo Capital Financeiro e as Transnacionais, o “nivelamento” das condições de vida dos povos não será feito “por cima” mas sim “por baixo”. Por isso, a não ser que a Europa se dissocie desse Modelo e adopte outro, “alternativo”, o Estado-Social, tal como o conhecemos hoje, estará condenado a ser extinto em todo o seu território.
A prosseguir-se no mesmo caminho, não é somente o Estado-Social que está em jogo, mas sim a própria Democracia Política, na medida em que os Povos Europeus não irão aceitar tal regressão civilizacional, tornando-se “necessário” submetê-los pelo medo, pela repressão e formas variadas de Ditadura. Poder-se-ia dizer mais tarde, parafraseando José Mário Branco, “... foi um sonho lindo que acabou. Houve aqui alguém que se enganou!”.
É um erro, portanto, pensar-se que, passadas as presente dificuldades, tudo poderá voltar a ser “como dantes”.
Dado que não existem na UE (e ainda menos na Zona Euro) “economias nacionais” autónomas, os países que não disponham de uma base produtiva sólida e “internacionalmente competitiva” rapidamente deixarão de ter uma base tributária própria para manter os custos dos serviços inerentes ao Estado-Social.
É o caso, hoje, de Portugal e alguns outros países europeus e será assim, no futuro, para a generalidade deles se se mantiver a hegemonia do Modelo Económico Internacional predador actualmente prevalecente.
Porém, em vez de se apontar como a causa dos actuais problemas financeiros o próprio Modelo Económico Internacional e, consequentemente, mobilizar os povos para o enfrentar, derrotar e substituir, as forças críticas à actual situação têm continuado invariavelmente a difundir ilusões sobre as populações, fazendo crer, equivocadamente, que, passado o actual “sobressalto”, tudo poderá voltar a ser como dantes.
Por outro lado, os dirigentes nacionais ao serviço do Capital Financeiro e das Transnacionais não se cansam de apregoar o “despesismo” da população, a “irracionalidade” da gestão dos serviços públicos decorrentes do Estado-Social e de apresentar como “única solução” para o seu “salvamento”, a aplicação exacta do programa estratégico “dos Mercados”, numa estratégia gradualista e de factos consumados que tende a deixar as populações paralisadas.
Enquanto este Modelo subsistir como hegemónico, isto é, enquanto o Capital Financeiro Internacional e as Transnacionais não se encontrarem subordinados ao Poder Democrático dos Povos de modo a serem inseridos num Projecto Democrático de Desenvolvimento da Humanidade, a única alternativa para a manutenção dos padrões civilizacionais que caracterizaram o período do Estado-Social será a retomada da plena Soberania por cada povo, a progressiva desvinculação dos respectivos países desse Modelo e a sua aliança mútua para a construção de Sociedades Alternativas.
Existem hoje exemplos bem claros e de sucesso comprovado de como a dissociação do Modelo Económico Internacional determinado pelo Consenso de Washington e a ousadia de procurar vias Alternativas veio permitir conquistas sociais semelhantes ao Estado-Social europeu, não necessariamente segundo os mesmos modelos institucionais que aqui se verificaram. Numerosos países do Oriente e da América Latina testemunham esse facto.
Os Equivocados
Pelo facto de se encontrar directamente na linha de confrontação com a URSS, foi na Europa que o Estado-Social se entranhou mais profundamente na consciência social, levando a social-democracia europeia a considerá-lo como uma “conquista irreversível”, a adormecer sobre “os desvios temporários” à sua lógica decorrentes de “comportamentos desonestos de alguns banqueiros e operadores financeiros” e, finalmente, à ilusão de que através de algumas “cedências temporárias ao neoliberalismo” (3ª Via, etc.) a anterior situação poderia ser globalmente recuperada. Recordem-se, a propósito, as inúmeras declarações de vitória de muitos líderes social-democratas europeus e portugueses perante a crise de 2007-2008, considerando esta como a “derrota definitiva do neoliberalismo”, como uma espécie de “queda do muro de Berlim” mas “do outro extremo”.
Esta falsa suposição de que a actual crise europeia e portuguesa é passível de ser revertida sem uma profunda alteração do Modelo Económico prevalecente no mundo, isto é, sem uma forte regressão da “globalização” e a destituição do neoliberalismo como política económica, pelo menos no espaço europeu, sem a subordinação do Capital Financeiro e das actividades das Transnacionais a Instâncias Políticas Democráticas, incluindo a eliminação das “off-shore”, tem conduzido, de facto, ao aprofundamento da crise e ao surgimento de crescentes perversões do sistema democrático através da directa ou indirecta subordinação dos órgãos de soberania de diversos países (Grécia, Portugal, Irlanda, Itália e o mais que se seguirá) a “comissões administrativas” do Capital Financeiro Internacional.
A prolongada convivência e a interferência dos interesses do Capital Financeiro nos partidos e organizações social-democratas e em outros sectores humanistas ao longo de muitos anos têm contribuído para a manutenção de uma política de cedências sucessivas do tipo “de derrota em derrota até à vitória final”...
Em Portugal a situação encontra-se especialmente agravada e “antecipada” pelo facto de o país ter sido dirigido durante largas décadas por elites políticas e económicas globalmente parasitárias, de mentalidade rentista, segundo as velhas tradições culturais aristocrático-medievais e colonialistas, que viu nos “Fundos” da Europa a velha “pimenta da Índia” e o “ouro do Brasil”, delapidou essas riquezas em “catedrais” (ou “elefantes brancos” de diverso tipo) e na mera e corrupta ostentação, deixando o povo e o país entregue a si próprio, iludido num baixo consumismo, e colocando-os à disposição da exploração estrangeira.
Ao longo dessas décadas, o país não só não ganhou mas perdeu “competitividade internacional” e competências técnicas e de gestão para produzir os mais elementares bens de necessidade nacional, designadamente nos domínios da agricultura, da pesca e das indústrias.
Desprovido de Economia Nacional produtiva e da correspondente base tributária (ainda por cima corrompida), seria expectável que o Estado viesse a entrar em ruptura financeira e, dentro da linha habitual de servilismo neoliberal, a por em causa, em primeiro lugar, os serviços públicos e as condições de trabalho característicos do Estado-Social.
Apesar de este facto ser conhecido, alguns ainda alimentam a vã esperança de que a “solidariedade europeia” venha em nosso socorro, sem compreenderam que a “Europa” de hoje está numa situação estratégica bem diferente de há 40 anos e que, daqui para a frente a tendência para o “salve-se quem puder” será preponderante.
Outros, mais “radicalmente neoliberais”, não se importariam de transformar Portugal numa “pequena China na Europa”...”altamente competitiva”, isto é, com relações de trabalho desde há muito ultrapassadas e socialmente inaceitáveis. É nesse sentido que aponta, o recente Acordo Tripartido (Governo, Patronato e UGT), o qual, para além de consagrar mais um passo na desmontagem do Estado-Social ao nível das relações laborais, traduz a obsessão alargada (Governo+PS) pelas exportações, no plano do “desenvolvimento económico”, não compreendendo que, não tendo Portugal nenhuma “Marca” (de produto acabado), as exportações correspondem à fabricação de “partes e peças” para as transnacionais integradoras de processos produtivos e comerciais à escala internacional pelo mínimo custo para estas, a expensas das reservas de crédito, de “facilidades” fiscais e de outros recursos nacionais colocados à sua disposição, agravando ainda mais o desequilíbrio estratégico da economia nacional.
Qualquer estudo, académico ou institucional, sobre a evolução das exportações portuguesas mostra a constante perda de quotas de mercado das exportações portuguesas para os principais países destinatários em favor de diversos países “em desenvolvimento” do Oriente, Turquia, etc., obrigando a manutenção da dita “competitividade” extraordinários sacrifícios sociais e outros custos públicos. Ao mesmo tempo, aceitam-se limites (quotas) às produções nacionais e não se faz qualquer esforço para “levantar” aquelas para que temos recursos e condições de produção e escancaram-se as portas à importação de todo o tipo de produtos, necessários e desnecessários ao bem-estar geral da nação.
Contudo, não só todos os partidos parlamentares, da direita à esquerda, por afirmação explícita ou omissão deliberada, como muitos críticos do actual rumo das coisas espargem sobre a população a ilusão sobre a possibilidade de reversão da actual situação, gerando conformismo e apatia social da qual resultarão grandes frustrações e nada de bom.
Assim, a palavra de ordem que hoje se avança de “defesa do Estado-Social” é uma palavra de ordem Equivocada visto sugerir que será possível voltar a restabelecer o Compromisso Político que os núcleos dominantes do Capital já rasgaram fragorosamente há mais de 20 anos e que, como a vida demonstra, não estão dispostos a, voluntariamente, ressuscitar.
Por isso, a manutenção das conquistas sociais (educação, saúde, segurança social, políticas de emprego, o papel “regulador” do Estado na economia, etc.) que os trabalhadores alcançaram no período do “Estado-Social (do Compromisso Político entre Capital e Trabalho) só será possível no quadro de um reagrupamento de todas as forças do Trabalho e de uma intensa luta de classes contra o Capital e pela derrota do seu núcleo dirigente, o Capital Financeiro.
Sem colocar a defesa das conquistas sociais alcançadas no período do Compromisso no quadro de uma “sublevação popular democrática” por uma Sociedade Alternativa, onde as forças do Trabalho se sobreponham decisivamente às forças do Capital, a “defesa do Estado-Social” torna-se uma palavra vã, um mero e indigno lamento, perante o Capital predador de povos.
Significa isto que se abandonem ou subestimem as lutas concretas e amplas pela defesa dessas conquistas, em favor da exclusiva acção política? Certamente que não pois, sem elas, a acção política não poderia tornar-se abrangente e vitoriosa. No entanto, sem uma acção política esclarecida quanto ao Programa Alternativo e quanto à reunificação das forças do Trabalho, essas lutas, por si próprias, estariam votadas ao fracasso.
Os agentes nacionais do Capital Financeiro e das Transnacionais, acompanhados por toda uma campanha mediática levada a cabo por comentadores e “especialistas” ao seu serviço, procuram camuflar as medidas de gradual eliminação do “Estado-Social” como se fossem medidas de rectificação e racionalização da respectiva gestão face a “abusos e distorções” no seu funcionamento.
A fim de desmascarar esta actuação e revelar os verdadeiros “abusos e distorções” existentes, decorrentes dos múltiplos negócios montados entre as corruptas administrações estatais e sectores privados (outsourcing, “parcerias”, etc.) e do enquistamento de interesses corporativos particulares, as forças democráticas e patrióticas deveriam lançar uma grande contra-ofensiva que não só denunciasse esses elementos de sabotagem e fragilização do Estado-Social mas que, simultaneamente, apresentassem alternativas para o saneamento e melhor eficiência da sua gestão.
Os Mentirosos
Os Mentirosos, por outro lado, sabem muito bem o que se está a passar e, como verdadeiros agentes locais do Capital Financeiro Internacional (dos Mercados, como lhe chamam) executam diligentemente as tarefas “superiormente definidas” de que estão incumbidos, isto é, submeter Portugal como colónia ou protectorado da Nova Ordem Internacional Privada através do endividamento galopante para pagar a credores e para justificar a venda de patrimónios nacionais, do empobrecimento acelerado da população, do desmantelamento das componentes não repressivas do Estado e a desmontagem gradual das conquistas sociais do Estado-Social, da “orientalização” das condições de trabalho, do desprezo pela “concertação social”, etc., segundo a mesma receita já antes utilizada em outras partes do mundo.
Os partidos do “actual arco do poder” (PSD e CDS) vêem-se na contingência de mentir ao país e de ludibriar as suas próprias bases de apoio eleitoral, simpatizantes com a ideia do Estado-Social ou da soberania nacional, a fim de não suscitarem uma brusca reacção que os isolaria socialmente. Acobertam, por isso, as suas acções com duas palavras simultaneamente alti-sonantes e mistificadoras: o “equilíbrio financeiro” e a “competitividade”.
O “equilíbrio financeiro” esconde o asseguramento dos lucros do Sistema Financeiro Internacional à custa do desequilíbrio financeiro do Estado (em função das suas obrigações perante os cidadãos e da promoção económica nacional), e do desequilíbrio financeiro das famílias e dos cidadãos (em função das suas necessidades básicas). A consequência do “equilíbrio financeiro” é a Austeridade sem limites imposta ao país, a venda do património nacional, a liquidação gradual da “concertação social” e da Constituição da República, no caminho de uma “Democracia” tão mitigada quanto necessário.
A “competitividade” esconde a entrega dos recursos nacionais e dos portugueses como plataforma e como servos disponíveis para a exploração do grande capital transnacional (na medida em que este os deseje utilizar, tanto no interior do país como enquanto emigrantes), fazendo crer que Portugal não terá hipóteses de ter uma economia nacional dotada de suficiente autonomia, baseada na melhor utilização de todos os recursos nacionais (humanos, naturais, infraestruturais, tecnológicos, financeiros, etc.).
Tal como no passado o Estado-Social correspondeu a um Compromisso Político e à materialização desse Compromisso, hoje o seu desmantelamento corresponde à decisão do Capital Financeiro de levar a luta de classes até aos seus limites, isto é, à mais completa desarticulação e aniquilamento dos movimentos dos trabalhadores e à imposição de uma Ditadura do Capital sobre o Trabalho, no quadro de um novo pacto social, já reivindicado por alguns em Portugal, de todos contra todos, isto é, “a lei do mais forte”.
O que está em curso não é, pois, uma crise financeira e económica susceptível de ser ultrapassada com medidas técnicas e de política democrática, mas sim uma profunda Ofensiva Política Global Anti-Democrática com incidências nacionais, europeias e mundiais que vão muito para além da questão do Estado-Social.
A actual ofensiva do Capital (tendo como ponta de lança o Capital Financeiro) contra o Trabalho à escala global é, por isso, acompanhada por uma forte ofensiva contra as expressões nacionais dos Povos, os seus respectivos Estados, principalmente se estes forem Democráticos e reflectirem as reais aspirações dos Povos.
Segundo a Nova Ordem Internacional, aos Estados Nacionais estarão simplesmente cometidas tarefas de “capataz”, de controlo e repressão, de modo a assegurar a “competitividade”, isto é, nos Estados europeus, a assegurar a “orientalização” das condições de trabalho e de vida das respectivas populações e a mobilização dos seus recursos para, ao lado do Capital Financeiro, submeter todo o mundo.
Neste sentido, o destino dos portugueses (e de outros europeus) seria servir de “carne para canhão” em futuros conflitos bélicos globais, tal como os italianos e romenos integrados na Wehrmacht alemã na 2ª Guerra Mundial ou os Gurkhas ao serviço dos ingleses na guerra das Malvinas...
É nesta perspectiva que deverá ser considerada a missão e o papel do actual Governo a mando do Capital Financeiro e das Transnacionais. Restará saber se nele residirá ainda alguma ponta de patriotismo ou de sensibilidade perante as suas próprias bases eleitorais que possam inibi-lo de levar aquele plano até à ruptura completa com a população portuguesa.
Para uma Sociedade Alternativa (de Comunidades Solidárias)
As forças democráticas e patrióticas portuguesas deverão entender, em primeiro lugar, a natureza da “crise” actualmente em curso dado que só com base nesse entendimento (não equivocado) poderão convergir de modo consequente para resistir, travar e inverter a actual correlação de forças.
A (Sociedade) Alternativa, tanto nacional como a nível europeu e mundial terá de se situar fora da hegemonia do Capital Financeiro e das Transnacionais, virada para a Felicidade Humana e a Harmonia com a Natureza, assente na Liberdade, numa Nova Democracia fortemente participativa, na Responsabilidade, na Igualdade, na Reconstrução Comunitária, na Cooperação, na Solidariedade e na Paz.
Como será evidente, no quadro da Alternativa os povos terão tanto ou mais acesso às condições, bens e serviços promotores da Igualdade Cidadã que caracterizaram o período do Estado-Social, eventualmente em modos distintos do “modelo estatista redistribuidor” que caracterizou este, e serão dotados de Economias Nacionais abertas e cooperativas assentes na exploração óptima de todos os seus recursos e em adequados níveis de autonomia e segurança alimentar, energética, tecnológica, financeira e de defesa, base insubstituível das respectivas soberanias.
Por esta razão, afigura-se que a palavra de ordem de “luta pela defesa do Estado-Social” (equívoca nas condições actuais) seja substituída pela de “luta pela defesa das conquistas sociais e políticas dos povos e por uma Sociedade Alternativa, uma Sociedade de Comunidades Solidárias”.
Cada país, com base na sua realidade concreta, fisico-geográfica e sociológico-cultural, terá de encontrar os métodos e as vias concretas para a realização desse superior objectivo.
É isso que teremos de fazer em Portugal, de modo amplo e inclusivo, ao mesmo tempo que nos temperamos nas lutas de resistência ao actual projecto de regressão global da Civilização Humana conduzido pelo Capital Financeiro Internacional.
Em Portugal como em muitos outros países hoje flagelados pela ofensiva de poder do Grande Capital Internacional, não são só os trabalhadores proletários (activos ou compelidos à inactividade laboral), independentemente das respectivas sensibilidades políticas, que estão interessados na defesa das conquistas civilizacionais da Democracia e Dignidade da Vida; muitos outros cidadãos com diferentes enquadramentos profissionais e posicionamentos face aos meios de produção, incluindo sectores capitalistas ligados à produção material, poderão, por razões económicas, éticas ou patrióticas, estar interessados a contribuir para a formulação e prossecução do Projecto Alternativo.
Enquanto as forças políticas e sociais democráticas não entenderem que o Capital Financeiro Internacional não é um simples “adversário” político mas sim um Inimigo da Humanidade, será difícil gerar um Projecto verdadeiramente Alternativo ao actual estado de coisas.
As Conquistas Sociais dos Portugueses no quadro de uma Sociedade de Comunidades Solidárias
As conquistas sociais dos portugueses presumidas antes da deflagração da actual crise nacional, não só serão mantidas como poderão ser substancialmente aumentadas no quadro de uma Sociedade Alternativa, não sendo viável a sua manutenção no quadro do actual Modelo de Sociedade caracterizado
- pela hegemonia do Estado sobre a Sociedade (estatismo);
- por uma “democracia representativa” personificada por partidos políticos capturados por pequenos grupos dirigentes ao serviço de meros interesses particulares ou corporativos;
- pela não subordinação da economia e dos instrumentos de comunicação social à vontade democrática do Povo;
- pela subordinação dos instrumentos de Justiça, Defesa e Segurança directamente a interesses privados;
- pela inibição ou marginalização sistemática de todas as formas de expressão e participação popular autónomas;
- por uma dirigida fragmentação e atomização social e a redução da cidadania a um conjunto segmentado de “tribos” de “consumidores”;
- pela diluição da identidade portuguesa num pseudo-cosmopolitismo serventuário e “rústico”.
Pelo contrário, a Sociedade de Comunidades Solidárias deverá caracterizar-se, sucintamente, por:
- Pela hegemonia da Sociedade sobre o Estado, mediante o incentivo a todas as formas de expressão e manifestação social autónoma e unitária, aos processos de auto-organização social em redes e à contínua descentralização e socialização do Estado e da sua gestão, no respeito pelo princípio da subsidiariedade quanto à distribuição das competências entre os diversos níveis de gestão social e pública;
- Uma Democracia realmente Representativa e amplamente Participativa, baseada no princípio da representação delegada, submetida ao controlo social e revogável por iniciativa popular;
- Uma Democracia Integral, na qual todas as esfera da vida social, política, económica, cultural-comunicacional e ambiental, estejam submetidas à vontade soberana do Povo;
- Por Comunidades estruturadas, dinâmicas, plurais e versáteis, de carácter sócio-territorial, laboral-produtivas, culturais e educacionais, ambientais, etc., nas quais os cidadãos se insiram de modo livre e através das quais se realizem plenamente;
- Pela mais profunda Igualdade entre todos os Cidadãos, baseada no reconhecimento dos seus direitos inalienáveis (políticos, económicos, sociais, culturais e ambientais) e no mais amplo e responsável acesso a todos os recursos necessários a essa realização (meios de vida e de produção, de comunicação e de conhecimento);
- Pela Solidariedade Social estruturada a partir das próprias Comunidades e das respectivas redes inter-comunitárias;
- Pela mais ampla Liberdade de pensamento, expressão e iniciativa de todos os cidadãos no quadro das Comunidades onde se incorporem e pela plena Responsabilidade de cada um na condução da sua vida;
- Por uma Cultura individual e social baseada no ser e não no ter, baseada na Cooperação, na Responsabilidade de todos em contribuir para o esforço e a eficiência produtiva social e num Consumo Óptimo e Responsável;
- Pelo reconhecimento dos direitos de todas as formas de vida natural e na utilização sustentável dos recursos naturais;
- Pela instituição da Felicidade Humana como critério fundamental de toda a vida social.
A Sociedade de Comunidades Solidárias deverá, pois, integrar no seu seio, de forma harmoniosa e não excludente, tanto os Valores Comunitários ancestrais como os Valores dos pais fundadores do Liberalismo quanto à Liberdade e à Responsabilidade individual, os Valores do Socialismo no que respeita à progressiva socialização dos meios de produção e à libertação das forças produtivas sociais, bem como uma perspectiva de respeito e harmonia com os processos naturais da Terra e de toda a Biosfera.
A Sociedade de Comunidades Solidárias aqui proposta para Portugal deverá entender a propriedade dos meios de produção não como um valor absoluto (como na sociedade actual se considera relativamente à propriedade privada a expensas da propriedade colectiva, pública e comunitária), mas sim como um critério que determina historicamente o melhor sistema de gestão da produção e da distribuição tendo em vista, em cada fase, momento e sector, o desenvolvimento geral da sociedade e as maiores eficiências social, económica, cultural e ambiental da produção social.
Nesse sentido, o modelo de Sociedade aqui proposto deverá:
- Promover a socialização (posse e gestão democrática/participada) dos meios de produção e sistemas organizacionais (empresas e instituições) relativos aos recursos naturais, aos sectores estratégicos e de interesse geral – nos planos nacional e regional – bem como os recursos e actividades produtivas ou de serviços que, pela sua natureza e impacto na vida das comunidades, possam ser prosseguidas - com vantagem social, económica, cultural e ambiental - no âmbito da economia social e comunitária;
- Incorporar em si e apoiar os modos de produção capitalista e privado/familiar, nos sectores e actividades onde eles se revelem como instrumentos não perniciosos ou mais vantajosos quanto à eficiência, à responsabilidade e ao Desenvolvimento, no quadro geral dos valores e objectivos gerais da nova Sociedade.
Neste “modelo” de Sociedade Livre, Democrática, Pacífica e Cooperativa, orientada para a Felicidade Humana, as “conquistas sociais” tão arduamente alcançadas no modelo de Sociedade actualmente vigente, fundada na obtenção do lucro, na acumulação de capital, na mais acérrima competição e na exploração, passarão a constituir, com novos conteúdos e com uma gestão radicalmente diferente, o fundamento e a finalidade de toda a actividade social.
Não bastará, pois, na actual fase da discussão pública sobre o “Estado-Social”, ater-se a aspectos “técnicos”, “metodológicos” ou “correctivos” do modelo que vigorou durante uma fase específica do desenvolvimento do Capitalismo, mas ter a ousadia e a ambição de conceber a realização e ampliação das conquistas sociais que o caracterizaram de forma radicalmente nova.
Com base nessa nova concepção, nos princípios e valores da Sociedade de Comunidades Solidárias, haverá então que, a par da resistência à actual ofensiva do Capital Financeiro Internacional e das Transnacionais, e da luta política pela instituição da nova Sociedade, estruturar uma estratégia, tácticas e acções conducentes à reforma radical dos instrumentos de realização das “conquistas sociais”, das respectivos sistemas operativos e dos seus modelos de gestão.
Essa reforma radical terá, como ponto de partida, como não podia deixar de ser, a actual situação institucional do país, caracterizada por uma tremenda distorção estatista e centralista; como perspectiva, terá uma sociedade estruturada segundo uma vasta e versátil rede de comunidades cooperativas e desenvolver-se-á segundo um vasto, democrático, participado e prolongado processo de reengenharia institucional, social e cultural, de acordo com as experiências, as circunstâncias e as potencialidades avaliadas a todo o momento.
Estratégia Geral de Transição
Considera-se aqui como adquirido:
1º - Que o Poder Político se encontra já conformado por um conjunto de forças políticas e sociais hegemónicas mobilizadas para a construção democrática da Sociedade de Comunidades Solidárias proposta;
2º - Que, como resultado da luta do povo português, se encontram reunidas as condições internacionais mínimas para que Portugal reerga uma “economia nacional” viável, aberta e autónoma, com base no melhor aproveitamento dos recursos endógenos e numa adequada integração internacional.
As três grandes alavancas do processo de transformação social serão conformadas por:
1º - Um Estado Central em processo de socialização e de descentralização e, por outro lado, de reforço das suas capacidades de intervenção estratégica nacional (planeamento democrático, integridade, coesão e segurança nacional, cooperação internacional, desenvolvimento económico-produtivo, controlo global do sistema financeiro nacional, gestão eficiente de infraestruturas e outros sistemas nacionais estruturantes – segurança alimentar e energética, sistemas globais de transporte, etc.);
2º - Autarquias Locais readquirindo as suas funções de Poder Local (de desenvolvimento social, cultural e económico e não de mera “administração local”), em processo de socialização e de transferência gradual de competências para as comunidades auto-organizadas e, simultaneamente, de associação inter-municipal para o tratamento conjunto e cooperativo de vastos assuntos de interesse regional, configurando estruturas cooperativas de governação/administração regional.
3º - Grande desenvolvimento do processo de auto-organização comunitária em todos os domínios (socio-territorial, laboral-produtivo, cultural-educativo-comunicacional, ambiental, etc.) suportado por amplos mecanismos públicos de estímulo, apoio técnico, assistência financeira e controlo-auditoria-responsabilização, de modo a criar as melhores condições para a absorção eficiente e transparente das competências que serão desestatizadas (do Estado central e dos Municípios) e devolvidas à Sociedade através das Comunidades.
Se as “alavancas” acima indicadas incidem essencialmente no domínio institucional da Sociedade e indiciam uma profunda reestruturação dos sistemas organizacionais e operativos que asseguram as actividades comumente consideradas do “Estado Social”, por si próprias não evidenciam os novos conteúdos que esses “temas” poderão revelar no decurso do processo de transformação da Sociedade. Tão pouco será possível, no âmbito deste trabalho, “definir” ou perspectivar o que poderão vir a constituir tais conteúdos, o que só poderá resultar da dinâmica democrática da Sociedade. Assim, limitar-nos-emos a formular algumas reflexões, intencionalmente “contra-a-corrente”, para debate.
a) Emprego e Condições de Trabalho
Tais categorias tenderão a desaparecer na Sociedade Alternativa proposta orientada para a Felicidade Humana. Assim, a primeira transmutar-se-á em “actividade social produtiva” (material e cultural), como uma necessidade vital para todos os indivíduos enfim tornados cidadãos plenos e homens integrais, como condição da sua própria existência pessoal e social, realizada ao longo da vida, como aliás sempre aconteceu desde o surgimento dos hominídeos (desde antes do próprio homo sapiens sapiens).
O “emprego” constitui a categoria final do breve período histórico em que indivíduos humanos foram utilizados como objectos (meras ferramentas) por outros, no quadro de relações sociais de dominação e opressão, correspondendo à fase do “trabalho assalariado”.
A condição de objecto ou ferramenta descartável e o desprezo pela vida humana por parte dos seus “utilizadores” é que determinou, da parte dos “homens-ferramenta”, uma luta constante pela melhoria das “condições de trabalho” (duração da jornada de trabalho, quantidade de meios de reprodução, higiene e segurança, etc.).
O acesso irrestrito e responsável aos meios de produção sociais e o carácter livre e vitalmente necessária da actividade social produtiva, permitindo finalmente aos indivíduos tornarem-se sujeitos das suas próprias existências, determinarão, o simples e “automático” desaparecimento daquelas categorias inúteis, geradas por uma sociedade humanamente aberrante.
Outros processos de transformação se passarão com outras categorias utilizadas na actual sociedade relativas à actividade do trabalho, tais como a profissão, o emprego fixo, a precariedade e o mercado de trabalho.
A primeira constitui um “fóssil” que reflecte ainda a antiga divisão da sociedade por castas hereditárias e, no seu seguimento, as “ordens” e as corporações de ofícios medievais, resultantes tanto dos sistemas de dominação social como de divisão do trabalho, “marcando” tanto o lugar de cada indivíduo na sociedade como a sua própria consciência social limitada, a cultura e os traços de personalidade.
Na Sociedade de Comunidades Solidárias proposta os indivíduos, muito mais integrais, cultos e polivalentes, poderão percorrer variadíssimas actividades ao longo da sua vida, por opção pessoal soberana, não sendo mais identificados nem pelo “título” nem por uma qualquer “psicologia profissional” limitada.
O “emprego fixo”, considerado uma “bênção” quando os possuidores (dos meios de produção e das ferramentas-humanas) optam por consumir a dita ferramenta até ao limite da sua vida útil proporcionando-lhe de forma regular os necessários e mínimos meios de reprodução, constituindo embora um meio de sobrevivência, é, simultaneamente, uma amarra de dominação que não permite ao indivíduo a sua realização pessoal livre.
A dolorosa e degradante situação de “desempregado” corresponde, assim, à versão moderna dos servos de vastas zonas do oriente europeu que, há uns séculos atrás, após serem libertos, se viram “sem solução” e pediram para regressar à servidão...
Nas condições da Sociedade de Comunidades Solidárias proposta, onde nunca faltarão pontos de aplicação produtiva (os actuais “postos de trabalho”) para todos os cidadãos e os meios de vida necessários não só à sua reprodução simples mas também ampliada (biológica e cultural), o ”emprego fixo” tenderá a ser substituído por uma grande rotação e variedade de pontos de aplicação produtiva social, em conformidade com as opções de cada um e as respectivas aptidões.
O inverso se dirá para a “precariedade”, hoje justamente considerada como um flagelo, como um instrumento de dominação extrema dos indivíduos pelo Capital através da sua colocação nos limiares da subsistência e da degradação pessoal e que, na nova Sociedade, não será mais do que “uma forma de estar livre”, isto é, o reflexo das opções livres de cada um em transitar, ao longo da vida, pelas mais diversas comunidades produtivas e actividades socialmente úteis.
O “mercado de trabalho”, de facto, hoje não existe. O que existe em seu lugar é um vasto “armazém” mundial onde biliões de pobres e muitos milhões de quadros relativamente formados lutam pela sobrevivência e competem desesperadamente para obter um posto de trabalho remunerado a “preço de saldo”. É, em suma, uma imensa “praça de jorna” ou, se se quiser, um vasto “outlet de energias e inteligências de trabalho”.
Na Sociedade de Comunidades Solidárias proposta, muito para além da reconstituição de um equilibrado “mercado de trabalho”, através da “oferta” de pontos de aplicação produtiva muito mais vasta do que o sector privado capitalista poderá oferecer, baseada na mobilização de todos os meios de produção subaproveitados ou abandonados para projectos locais e comunitários devidamente apoiados técnica e financeiramente assim como no relançamento de um forte e estratégico sector público nacional e outras medidas que restabeleçam o equilíbrio dos poderes de negociação dos trabalhadores, muito para além disso haverá que assegurar o trabalho produtivo e socialmente útil como um direito humano vital, como uma condição essencial para a Liberdade, a Responsabilidade e a Felicidade pessoais e para a Igualdade entre todos os cidadãos.
Nesse sentido, mais do que um “mercado de trabalho”, haverá que edificar a condição basilar, fundacional, de uma Sociedade orientada para a Felicidade Humana: a socialização e a garantia dos meios de vida de todos os cidadãos através da sua incorporação plena no trabalho social.
b) Saúde, Bem-Estar e Desenvolvimento Físico
A seguir à vida, a saúde é o bem mais precioso que uma pessoa pode ter.
Por isso, a nova Sociedade de Comunidades Solidárias colocará a questão da Saúde, nas suas diversas dimensões e com todas as suas condicionantes, no centro de toda a actividade social, como o grande desígnio que é necessário atingir, logo antes da Felicidade e ao lado da Liberdade.
A questão da Saúde não é, portanto, para ser tratada por um sistema organizacional específico virado para “a cura” (a “reparação das avarias”) e conduzido por um grupo corporativo de “profissionais” organizados em “oficinas”, mas sim um desígnio transversal, universal, que será prosseguido democraticamente por todos os cidadãos, pelas famílias, as comunidades, todas as organizações de qualquer tipo e, também, por núcleos específicos de profissionais, de modo constante e articulado, cujo fundamental escalão será a prevenção.
Contrariamente ao que acontece na actual sociedade onde um “Ministério da Saúde” não passa de uma enorme “empresa pública” sem legitimidade democrática, que nem conseguiu estabelecer para as pessoas uma espécie de rede de “Centros de Inspecções Automóveis” (ao serviço das empresas seguradoras e não da prevenção rodoviária), na qual os activos físicos e humanos têm uma baixíssima taxa de utilização e funciona, fundamentalmente, como plataforma de transferência de recursos públicos para os sectores privados através de outsourcings e toda a espécie de “convenções” com entidades privadas, na Sociedade Alternativa o “ministério da saúde” será constituído por uma rede de redes solidárias com funções e responsabilidades (operativas, financeiras, de gestão, etc.) distribuídas segundo o princípio da subsidiariedade, desde cada indivíduo e as famílias às comunidades (de todo o tipo), às associações de comunidades e à federação global das comunidades nacionais.
A base de todo o sistema será a Educação para a Saúde, ministrada progressivamente desde tenra idade, abrangendo os comportamentos individuais e sociais desde a alimentação (nos seus aspectos quantitativos e qualitativos) e o exercício físico às condições de trabalho e a “gestão de riscos”, as tecnologias de produção e a poluição, até às condições ambientais e aos estilos de vida (consumo de certas substâncias e comportamentos), assim como todo um sistema de estímulos, positivos e negativos, tendentes ao reforço da Responsabilidade (pessoal e comunitária) para se implantar uma Sociedade Saudável, física e mentalmente.
Este enfoque da questão da Saúde é completamente diferente do enfoque prevalecente na actual sociedade. Nesta, dominada pelo Capital Financeiro e as Transnacionais, a Saúde é encarada de forma séria no que respeita à saúde dos possidentes e dos seus homens-ferramenta qualificados e como uma “dolorosa concessão temporária” relativamente às grandes massas desprovidas e menos qualificadas consideradas, no momento próprio, como “descartáveis”.
Sem dúvida que o “Serviço Nacional de Saúde”, o sistema de saúde para os “pobres”, constituiu uma grande conquista dos povos durante um determinado período, nas condições da hegemonia do grande capital. Porém, tal “Serviço”, criado nas condições das abordagens estatistas inspiradas na Revolução Russa (comunistas e sociais-democratas), estaria sempre sujeito às flutuações de Poder que se verificassem “no topo”, na direcção política da sociedade, sendo, por isso, tanto facilmente “recuperado” (como uma oportunidade de negócio para os sectores do grande capital - farmacêuticas, parcerias público-privadas, seguradoras, redes de prestações de serviços especializados, etc. - ou como instrumento de condicionamento ideológico-religioso - Misericórdias, etc.), corrompido através das formações corporativas de “profissionais” associadas a esse capital (ou pseudo-IPSS de facto privadas), ou ainda gradualmente desmontado e destruído, como está a ser promovido no presente.
Deste modo, o SNS tornou-se um processo perfeitamente reversível e o “direito à saúde” tornou-se uma palavra vazia.
Uma conquista democrática dos povos só se torna irreversível quando ela é incorporada em todo o tecido social, quando deixa de existir um “centro” a partir do qual, através de medidas políticas ou administrativas centralistas, seja possível desmontá-la ou corrompê-la. É neste sentido que o “paradigma” aqui exposto rompe radicalmente (passe a dupla radicalidade) com a anterior perspectiva. Insistir nesta seria, nas condições actuais do mundo e do país, pretender tapar com as mãos os rombos num barco furado.
c) Educação/Formação
No fundamental, as reflexões formuladas a propósito da “Saúde”, são aplicáveis no âmbito da Educação/Formação, pelo que se justifica somente referir algumas particularidades.
A primeira particularidade é que a “educação/formação” não respeita a uma fase da vida, à do aprontamento dos homens-ferramenta destinados a serem utilizados pelo capital durante a parte mais vigorosa das suas vidas, mas sim a todo o ciclo de vida das pessoas, quer como “formandos” quer como “formadores”.
A segunda particularidade reside no facto de a educação/formação não poder separar a teoria da prática, isto é, exige “aprender com a razão e fazer com as mãos” ou, por outras palavras, só ser realizável pela inter-acção entre Conhecimento e Trabalho (no sentido mais amplo).
A terceira particularidade é que a Educação/Formação que não se destine somente a produzir homens-ferramenta terá de ser, necessariamente uma educação/formação para a Vida, isto é, a englobar, para além das componentes técnico-científicas, as componentes humanísticas, cívicas, artísticas, comunicacionais e morais, constituindo, desse modo, uma autêntica Educação/Formação Cultural.
A eficiência social global, a capacidade de uma sociedade se desenvolver com o mínimo consumo de recursos (tempo de trabalho humano, recursos naturais, energéticos e financeiros) não depende somente das suas capacidades técnico-científicas mas, fundamentalmente, da eficiência e fluidez das relações sociais.
A quarta particularidade é que a educação/formação não é um processo “de fora para dentro”, como quem enche um caldeirão de água ou desbasta uma barra de metal para fazer um parafuso, mas sim, essencialmente, um processo de “auto-modelação”, de “auto-crescimento cultural”, de dentro para fora, sujeito tanto à realidade social em cada momento como aos estímulos do contexto, incluindo dos tutores/formadores.
Por estas sintéticas observações se poderá avaliar quão erradamente se encontra estruturado e orientado o sistema educativo/de formação da sociedade actual, pelo que não fará qualquer sentido “transportá-lo” para nova a Sociedade.
Naturalmente que no dia 1 após a obtenção da hegemonia política pelas forças democráticas e populares, o sistema existente é exactamente o que foi herdado. Porém, pensar que ele só precisará de umas “afinações” para se tornar adequado e eficaz é um profundo engano. Pelo contrário, desde logo se deverão desencadear decisões tendentes à sua completa reconfiguração de acordo com um conceito e um plano previamente consolidado.
De entre as possibilidades de inovação encontra-se a constituição de Comunidades Juvenis Apoiadas como substitutos das actuais “escolas”. Essas Comunidades, dotadas de territórios e meios de produção próprios deverão, apoiadas por tutores (os actuais professores), reproduzir o mais possível a sociedade real, segundo o princípio da auto-gestão e os Valores Democráticos e Humanistas, associando a apreensão dos conhecimentos teóricos com as práticas produtiva e de gestão social, em função das aptidões e o estado de maturação dos jovens.
Do mesmo modo, deverão ser instituídas as Comunidades Universitárias e de Investigação, abertas a toda a população, intimamente associadas às actividades produtivas e à gestão Comunitária, associando a actividade teórica com a prática socialmente útil. Por outro lado, as actividades de “educação/formação” deverão deixar de ser exclusivo de um determinado tipo de “estabelecimentos” específicos para constituírem atribuições de todo o tipo de instituições, independentemente da respectiva vocação central.
Um dos grandes objectivos a atingir deverá ser a criação de um Sistema Nacional e Internacional de Conhecimento Livre, proporcionando a todos os cidadãos o acesso irrestrito e gratuito a todo o tipo de Conhecimento humano disponível.
A Khan Academy, que pode ser consultada na internet, e a conhecida Wikipedia constituem exemplos dos novos caminhos que a Educação e a disponibilização livre do Conhecimento podem trilhar no futuro.
d) Cultura e Comunicação Social
Se bem que a Cultura abranja todas as aquisições e manifestações humanas que não são de natureza estritamente biológica, consideramos aqui as componentes da Cultura mais ligadas com a Renovação Simbólica, com o Belo e com a Criatividade, normalmente associadas ao que genericamente se denomina como Artes.
É este um domínio que, deve ser deixado à actividade livre e espontânea da Sociedade, sem qualquer interferência de qualquer poder público para além da sua obrigação de lhe criar as condições infraestruturais e logísticas para o seu desenvolvimento.
Para além de pulverizar os actuais sistemas elitistas e “proprietários” de “cultura” mercadorizada que funciona como qualquer grande equipa de futebol profissional, com os seus “artistas”, “misteres” e “programadores-donos de equipamentos públicos”, fazedores de uma pseudo-cultura apologética do Poder ou de “entertainment”, a nova Sociedade de Comunidades Solidárias deverá proporcionar as condições para que o pensamento crítico, a criatividade e a inovação se desenvolvam em todo o tecido social até se transformarem numa forma de viver social. A nova Sociedade deverá ser uma sociedade de Actores e não de espectadores, de “públicos” ou de voyeurs!
Até há bem pouco tempo, designadamente até ao advento da “modernidade europeia em Portugal”, as Comunidades locais portuguesas souberam resistir a todas as tentativas estatais-fascistas para as domesticar e “enquadrar”. O Movimento Associativo Popular, designadamente o com vocação Cultural, não só conseguiu manter-se autónomo como também estabelecer com os maiores criadores portugueses uma grande simbiose através da qual mutuamente se alimentavam.
É esse “modelo”, necessariamente adaptado às novas condições, meios e necessidades, que, globalmente, importa fazer ressurgir.
Há quem defina a Sociedade, na linha da aplicação das teorias do Caos e da Complexidade aos fenómenos sociais, e não parece descabido, como um grande sistema de comunicação entre seres sociais biologicamente independentes.
Dir-se-ía, em conformidade, que a Comunicação Social é a forma de existência da Sociedade.
Deixando embora esse magno assunto para os mais entendidos, não podemos deixar de constatar que o domínio sobre os instrumentos de comunicação social de massas pelas forças do Capital Financeiro e das Transnacionais constitui uma peça central do seu sistema de poder mundial (e de sujeição nacional).
O importante, na nova Sociedade de Comunidades Solidárias, é que todos os cidadãos tenham acesso livre a toda a informação e a todo o conhecimento e que sobre essa informação e conhecimento possam formular as suas apreciações e juízos e tomar decisões responsáveis.
Do mesmo modo é fundamental que todos os cidadãos possam ter a possibilidade de reflectir, opinar e propor de forma pública.
Mais do que a mera e formal “liberdade de imprensa”, na Sociedade de Comunidades Solidárias haverá o direito à informação completa e verdadeira e a liberdade de interpelação e de proposta, realizada quer directamente quer através dos órgãos de comunicação social.
Adquiridas estas questões de princípio, todas as comunidades e grupos comunitários deverão administrar meios de comunicação social próprios, adequados a cada situação e aos “públicos” que pretendem atingir, sendo a sua gestão radicalmente democrática.
Essa administração deverá ter o cuidado de acolher com o maior interesse, como elementos dinamizadores do pensamento crítico essencial à Sociedade, as opiniões discordantes, em contra-corrente, fora do “senso comum”, as quais, frequentemente, são portadoras do “novo”, mesmo que este só esteja em fase de afloramento ao nível da consciência social.
Do mesmo modo, os meios de comunicação social deverão buscar os pontos de vista e opiniões dos cidadãos, grupos e comunidades menos “visíveis”, menos protagónicos, de modo a revelar eventuais desconformidades no funcionamento geral das comunidades e da sociedade no seu conjunto.
A “comunicação social” deverá reflectir as dinâmicas sociais e, ela própria, constituir-se como um fórum de reflexão social permanente, uma “exposição” pública de sucessos e fracassos que potencie a criatividade e a inovação social.
A “comunicação social” na Sociedade de Comunidades Solidárias terá de funcionar nos dois sentidos, isto é, do “emissor” para o “receptor” e vice-versa, num processo inter-activo que dissolva a especialização em qualquer dessas funções. Neste sentido, a “comunicação social”, entendida como todo o processo de troca de informação e conhecimento entre os cidadãos e entre as variadíssimas organizações comunitárias, constitui “o meio” de realização dos processos culturais em toda a sociedade.
As redes e instrumentos de comunicação social deverão ser estruturados racionalmente, de modo a que a sociedade não viva imersa num dilúvio informacional gerador de “adiposidade mental”, mas sim num caldo de informação e conhecimento estruturado, socialmente útil e eficiente.
e) Previdência e Solidariedade Social
No início do presente ano (2012), segundo Eugénio Rosa, haveria cerca de 3.600.000 trabalhadores por conta de outrem em Portugal. Se se considerarem 650.000 funcionários públicos, ficarão menos de 3 milhões de trabalhadores em todos os ramos de actividade económica (um grande numero dos quais de “serviços” improdutivos – limpezas, vigilâncias e outros “serviços pessoais”).
Num total de cerca de 10,5 milhões de habitantes, haverá cerca de 3.200.000 aposentados da Segurança Social e 430.000 aposentados da CGA, mais de 1 milhão de desempregados e 2,3 milhões de empresários e inactivos. Cerca de 4.100.000 portugueses têm mais de 50 anos.
Estes números, não exactos, são no entanto indicativos de uma sociedade inviável onde só 3 milhões produzem para sustentar 10,5 milhões, e que só se poderá manter o “metabolismo” actual a partir de uma permanente injecção de recursos externos (a exploração de outros povos ou as dívidas).
A lógica da sociedade capitalista actual é a de fazer recair sobre “os que estão empregados” a responsabilidade de sustentar todos aqueles que o sistema não aceita ou expele (veja-se quem pagou os custos sociais da desindustrialização e da reorganização capitalista no quadro da “globalização”) e, ainda, de sustentar a criação e formação das novas gerações de homens-ferramenta que o sistema utilizará no futuro, “prontinhos”, sem custos. Esta é a razão de fundo da actual “crise”, a qual, a manter-se o tipo de sociedade actual, só poderá agravar-se.
É legítimo que os trabalhadores aspirem a obter a sua aposentação o mais cedo possível para, assim, se libertarem do jugo da opressão e exploração, do trabalho alienado que leva uma pessoa relativamente nova a desejar chegar rapidamente à “idade da reforma”.
Porém, este modelo, historicamente limitado e hoje aceite como “normal”, é humana e socialmente aberrante, contrariando tanto a natureza social dos homens como a sustentabilidade e desenvolvimento da própria sociedade.
Em primeiro lugar porque, desde há cerca de 200.000 anos, todos os humanos, crianças, jovens, adultos e idosos, homens e mulheres, sempre partilharam o trabalho social útil, produtivo, material e cultural, em função das respectivas capacidades.
Neste sentido natural, o próprio conceito de “reforma” seria equivalente ao de “velhão”, a uma espécie de “depósito de inúteis”, o que nunca aconteceu historicamente!
Na nova Sociedade de Comunidades Solidárias todos os indivíduos deverão ter um papel social útil, desde a mais tenra idade até ao limite das suas condições físicas e mentais, em função das suas capacidades e de acordo com os próprios desejos de realização pessoal.
Do mesmo modo, todos os indivíduos contarão com a incondicional solidariedade comunitária e de toda a sociedade para vencer dificuldades e limitações em qualquer fase ou circunstância da sua vida, incluindo o direito a usufruir de um rendimento adequado e digno quando já não se sintam capazes de participar no trabalho social.
Deverá ser neste quadro geral que as questões relativas à Previdência e Solidariedade Social deverão ser perspectivadas para o futuro.
A questão da “previdência e da solidariedade social” não poderá ser abordada de modo separado do modelo económico a estabelecer na nova Sociedade, bem como das políticas de rendimentos e consumo, o que excede largamente o âmbito deste trabalho.
Considerando que em Portugal existem cerca de 1,5 milhões de crianças e jovens até aos 15 anos e 1,5 milhões de idosos com mais de 70 anos e que poderão existir cerca de 500.000 pessoas por diversas razões fora da actividade produtiva, todos os restantes 7 milhões de habitantes deverão estar integrados no trabalho socialmente útil, com relevância para as actividades produtivas.
Este seria, empiricamente, um quadro social e económico desejável para a nova Sociedade de Comunidades Solidárias.
Nota: O facto de se considerarem, nos números anteriores, os habitantes com mais de 70 anos e entre os 5 e os 15 anos, não quer dizer que esses portugueses não possam dar contributos úteis para a sociedade, tanto no âmbito familiar como em outras actividades, consoante as respectivas capacidades e disponibilidades.
Este quantitativo de pessoas empenhadas na produção material e cultural e nos amplos e participados processos de inovação para o aumento da eficiência da utilização dos recursos disponíveis permitiria aumentar fortemente as produções nacionais e, ao mesmo tempo, reduzir progressivamente as jornadas de trabalho social no âmbito da produção material. A exploração óptima (completa e sustentável) de todos os recursos disponíveis (naturais, tecnológicos, financeiros, etc.) permitiria, de modo continuado, não só assegurar níveis de consumo dignos e responsáveis para toda a população como acumular reservas tanto para fins previdenciais como para o reinvestimento.
f) Acesso a serviços básicos gerais (Transportes públicos, água e saneamento, resíduos urbanos e industriais, energia, telecomunicações)
Na Sociedade de Comunidades Solidárias privilegiando a estruturação e o funcionamento em redes e a preservação ambiental, este conjunto de serviços, para além de serem considerados “direitos humanos” fundamentais, constituem a condição para a mais elevada eficiência produtiva e social.
Tendo o carácter de serviços públicos, deverão ser geridos de forma amplamente participada, responsável e com elevada eficiência técnica e económica pelas diversas comunidades e respectivas associações no quadro de uma estratégia de integridade nacional.
A sua disponibilização aos utilizadores pessoais deverá ser realizada pelo critério da “capitação” preferencialmente de forma gratuita, com crescentes penalizações acima dos valores de capitação estabelecidos.
A sua disponibilização aos utilizadores colectivos, designadamente produtivos, deverá ser realizada de forma diferenciada, igualmente segundo critérios que estimulem a eficiência das respectivas operações, não permitindo que as suas ineficiências internas recaiam (sejam externalizadas) sobre as comunidades.
Toda a sociedade se deverá empenhar num grande esforço de inovação quanto às formas e critérios de uso desses serviços de forma a reduzir ao máximo os respectivos custos de produção e a aumentar a sua eficiência social e ambiental.
Um dos factores determinantes da eficiência geral desses serviços reside numa correcta distribuição e estruturação das actividades humanas no território (ordenamento do território), pelo que se tornará necessário introduzir progressivamente, neste domínio, profundas alterações à actual situação.
g) Habitação, Urbanização e Ambiente Urbano
As políticas que foram prosseguidas nos anos transactos de compra generalizada das habitações, levada a cabo em favor do sistema financeiro e conduzindo a população a uma situação de serva deste, condenada a pagar-lhe uma choruda renda mensal por quase todo o resto da vida e agrilhoando-a ao território da habitação como na idade medieval, constituiu um dos maiores atentados não só à liberdade individual conhecidos nos tempos modernos como colocou uma bomba de efeito retardado na funcionalidade e competitividade da economia nacional no seu conjunto através da relativa amovibilidade geográfica da força de trabalho.
Para além dessa renda mensal, semelhante a uma talha medieval directamente apropriada pelo capital financeiro, as populações viram-se ainda sobrecarregadas, através de toda uma série de taxas e impostos, locais e centrais, com grande parte dos custos de funcionamento e manutenção dos centros urbanos, incluindo os que decorrem da implantação e funcionamento das empresas capitalistas, sistematicamente favorecidas na distribuição dos custos e riscos por elas gerados.
As políticas de urbanização acelerada nos grandes centros, levadas a cabo por muitos municípios imprevidentes ou cúmplices (através do “imobiliário instrumental”) do capital financeiro, não correspondeu a um processo normal de progressiva desruralização da população decorrente da alteração gradual do peso social das actividades agrícolas inerentes à sua empresarialização e industrialização, mas constituiu um impulso à desertificação rural e à disponibilização de grandes quantidades de terras agrícolas a serem compradas baratas pelas grandes corporações quando estas quiserem, a qual, simultaneamente, foi acompanhada por uma intensa desindustrialização e a transformação das cidades em centros economicamente moribundos, tendentes a transformarem-se em meros depósitos de mão-de-obra expectante.
Tais processos globais assemelham-se bastante com o processo de ruína dos pequenos camponeses livres e de acumulação de terras agrícolas pelos latifundiários romanos de há dois mil anos atrás, à concentração das massas plebeias expropriadas nas cidades vivendo das distribuições gratuitas de alimentos e de “circo” (os primórdios esclavagistas do “estado-social” e de “eventos” moderno), tanto mais semelhantes quanto, também em Portugal, a “economia” que foi mais acarinhada durante décadas foi, tal como na antiga Roma, a dos “melhoramentos urbanos”.
A nova Sociedade de Comunidades Solidárias tem pela frente um longo e engenhoso processo de reversão desta realidade. No entanto, a mais breve prazo, terá de desvincular os processos de urbanização dos interesses do Capital Financeiro e das Transnacionais e de introduzir uma autêntica racionalidade funcional, energética, económica e social nesses processos de edificação e transformação urbana.
Na perspectiva directamente social, a nova Sociedade vai herdar gravíssimos problemas de habitação e de inserção urbana dos guetos para onde foram enviados muitos milhares de “pobres” no âmbito dos processos de “realojamento”, muitos deles promovidos para dar lugar à valorização de terrenos segundo os interesses do capital financeiro, expulsando os estratos populares dos centros das cidades para aqui criar os seus próprios “centros de negócios”, as “manhattan” e as “city” à portuguesa.
Também no âmbito da habitação e da urbanização a nova Sociedade de Comunidades Solidárias deverá estabelecer as “capitações” em diversas vertentes (áreas habitacional, de espaços verdes, etc.) consideradas racionais para serem estabelecidas como “direito humano”, a serem asseguradas a todos os cidadãos de modo tendencialmente gratuito, desestimulando as utilizações excedentárias de espaço urbano, ao mesmo tempo que incentivará a criação de novos modelos de habitação colectiva que favoreçam a socialização e a utilização comunitária de muitos activos e equipamentos.
h) A Distribuição dos bens resultantes da produção social e o Consumo
Quanto à Distribuição:
Na nova Sociedade de Comunidades Solidárias, a produção material social destinar-se-á:
- a ser consumida pelas actividades de reprodução simples da sociedade;
- à constituição de reservas estratégicas de determinados produtos ou recursos, tanto para utilização própria da sociedade como no âmbito da solidariedade internacional;
- à criação de condições para a reprodução ampliada da sociedade (estudos, investigação, desenvolvimento, inovação, desenvolvimento cultural nas suas diversas vertentes, construção de infraestruturas, promoção dos sistemas ecológicos naturais e outros meios de produção) mediante investimentos que potenciem o desenvolvimento social futuro;
- às trocas internacionais, permitindo que a sociedade beneficie de produtos de que é deficitária ou que produz com mais custos do que os parceiros comerciais,
- à constituição de reservas financeiras gerais da sociedade.
Uma das funções estratégicas dos órgãos de gestão da nova sociedade será a definição, em cada momento, das proporções óptimas de cada uma dessas componentes tendo em vista o desenvolvimento sustentado da sociedade no seu conjunto.
Ao nível da distribuição para o consumo pelos cidadãos, a Sociedade de Comunidades Solidárias, promovendo embora a igualdade de condições de todos os cidadãos, não será uma sociedade igualitária.
A igualdade será promovida através do acesso gratuito e geral de todos os cidadãos a um vasto conjunto de bens e de serviços no âmbito alimentar, da habitação, da água e saneamento, da energia, das telecomunicações, da saúde, da segurança, da educação e formação e da cultura em geral e outros, que, em cada momento do desenvolvimento social e produtivo, possam ser considerados como “direitos vitais”, com vista a proporcionar condições gerais de igualdade para que cada cidadão, a partir do seu próprio esforço, empenhamento e sentido da responsabilidade social, se possa realizar plenamente e partilhe com a sociedade todas as suas aptidões.
Estes “direitos vitais” deverão ser imputados a cada cidadão (por capitação) consoante as suas necessidades fundamentais em cada fase do ciclo da vida e serem administrados de modo a assegurar a autonomia de decisão de cada um sobre a sua própria vida, sem relações de domínio ou dependência, competindo a cada comunidade zelar pela sua correcta concretização.
Porém, os indivíduos são diferenciados tanto nas suas aptidões e capacidades como nos contributos quantitativos e qualitativos que dão para o desenvolvimento social geral.
Por isso, o critério básico da distribuição deverá ser a quantidade de trabalho social desenvolvido por cada cidadão, valorizado por coeficientes de qualidade, de complexidade, de empenhamento pessoal, de responsabilidade social e de sentido colectivo.
No entanto, a aplicação destes critérios básicos e a eventual introdução de outros não deverá ser tratada de modo “administrativo”, devendo antes resultar de decisões colectivas, democráticas, participadas, críticas e auto-críticas, levadas a cabo pelas diversas comunidades socio-territoriais e produtivas no quadro da unidade e co-responsabilidade de toda a sociedade.
A nova sociedade deverá incorporar um adequado sistema de estímulos, de carácter moral e material, para o desempenho de actividades especialmente importantes para o seu desenvolvimento contínuo em diversos domínios, produtivo, cultural, social ou ambiental, bem como para actividades que envolvam difíceis condições de realização ou riscos especiais.
No quadro da nova sociedade existirão diversas formas de propriedade dos meios de produção (privada, pública e socio-comunitária) as quais deverão constituir factores de aceleração do desenvolvimento produtivo. Esse quadro é susceptível de gerar diferentes expectativas de distribuição dos resultados da produção e, consequentemente, desigualdades acentuadas no acesso a alguns bens e serviços.
A nova sociedade deverá utilizar diversos instrumentos (contratuais, fiscais, etc.), através dos quais sejam regulados os estímulos a esses modos de produção, incluindo a obtenção de lucros financeiros, de modo a assegurar um adequado leque de diferenciação dos rendimentos entre os cidadãos.
Uma distribuição optimizada dos resultados da produção material e dos serviços tem vários efeitos multiplicadores sobre toda a sociedade:
- Assegura o processo de desenvolvimento contínuo e sustentado do sistema produtivo;
- Reforça o sentimento de justiça e de identidade comunitária;
- Dá sentido à Cooperação e à Responsabilidade Social e Ambiental;
- Valoriza o esforço individual e colectivo pelo desenvolvimento cultural nas suas diversas vertentes;
- Inibe alguma tendência que possa subsistir para comportamentos anti-sociais resultantes da cultura competitiva e predatória da velha sociedade;
Por um Consumo Óptimo e Responsável:
Na maior parte das actuais sociedades humanas, subordinadas ao neoliberalismo e orientadas exclusivamente para a produção de lucros e a sua acumulação, são utilizados vários mecanismos para acelerar o funcionamento desses processos:
1ª - A guerra, traduzindo-se não só na destruição quase imediata de mercadorias recém-produzidas (os sistemas de armas e respectivas munições) como também da destruição massiva de bens, instalações e infraestruturas dos opositores, principalmente dos perdedores das guerras, criando um “vazio” de bens que deverá ser preenchido pelos “esforços de reconstrução”;
2ª – A atomização social e o consumismo, traduzidos da fragmentação das comunidades, no isolamento das famílias e na fragmentação destas em “unidades individuais de consumo” submetidas à manipulação da publicidade e às influências da “moda”, resultando daí uma imensa acumulação de bens pessoais e familiares, disponíveis mas com baixíssimas taxas de utilização;
3ª – O endividamento, traduzido no consumo imediato “a crédito”.
4ª – Tácticas industriais e empresariais deliberadas, viradas para a “substituição” em vez da “manutenção”, para a obsolescência e o “fim de vida” programados de determinados componentes de equipamentos, estímulos financeiros à “substituição” e à “destruição criativa”, não uniformização de peças equivalentes, alteração periódica de normas técnicas, descontinuidade de fabricação de componentes, estratégias comerciais dirigidas (saldos, “fidelização de clientes”, etc.).
5ª – Imposição governamental de políticas de “direitos” e de criminalização e perseguição às actividades de produção e comércio de substitutos, etc.
Como resultado dessas “políticas de estímulo ao consumo” baseadas no sucesso individual pelo ter e não pelo ser, os indivíduos, as famílias e as comunidades, dirigidas por políticos do “espectáculo e do prestígio pessoal”, não “consomem” o que seria realmente necessário para uma vida pessoal e social livre e integral, mas sim o que o sistema lhes induz.
Para além de não se dirigir à Felicidade Humana, esse “consumismo” tem fortes impactos ambientais, tanto ao nível da utilização predatória dos recursos naturais como da geração de numerosos agentes poluentes.
As políticas orientadas para o “crescimento económico”, em vez de promoverem as produções viradas para a satisfação das necessidades materiais para uma vida digna de todos os cidadãos, visam o aumento do “consumismo” dos bens cuja produção que, pelas mais-valias que geram, mais convêm aos empresários.
Na nova Sociedade, o interesse geral da sociedade e do ambiente natural coincidirão no menor dispêndio de trabalho social e de recursos naturais possível, no quadro da plena satisfação das necessidades humanas e sociais em termos de quantidade, qualidade, diversidade e oportunidade. A prevalência residirá no ser e não no ter.
Os indivíduos, as famílias, as comunidades e a sociedade deverão dispor de tudo o que precisam para a sua realização integral, para o Viver Bem, bastando-lhes não mais do que isso. Por isso, na nova Sociedade de Comunidades Solidárias, o consumo poderá caracterizar-se como Óptimo e Responsável.
i) Acesso aos meios de produção e gestão democrática das unidades económicas
Em alguns países, o compromisso relativo ao “Estado-Social” foi mais extenso do que noutros, tendo chegado mesmo a prever formas diferenciadas de participação dos trabalhadores na gestão das empresas.
Também em Portugal, na sequência da Revolução de Abril, foram reconhecidos alguns direitos de intervenção dos trabalhadores na gestão das empresas, quer públicas quer privadas, os quais foram sistematicamente obstruídos, reduzidos e de facto eliminados pelos sucessivos governos.
Há alguns anos, Strauss-Kahn, socialista francês conhecido, no seu livro A Chama e a Cinza, pôs em causa o modelo social-democrata, estatista e redistribuidor, do “Estado-Social” como um instrumento válido, nas circunstâncias actuais do mundo e da economia, para a realização das ideias do Socialismo, advogando o “regresso” da luta pelo socialismo a partir das próprias empresas, a partir de uma ampliada e responsável participação dos trabalhadores na sua gestão
Também o Papa Bento XVI na sua Carta Encíclica CARITAS IN VERITATE defende um “Novo Conceito de Empresa”, na qual participem não só a componente financeira (actualmente impropriamente designada como “Capital Social”), mas também os respectivos trabalhadores (Capital Humano), as Comunidades (em representação dos aportes gerais da sociedade - institucionais, infraestruturais, ambientais, etc. -, os consumidores/utentes e os centros de investigação/inovação.
Ganha cada dia mais corpo nas sociedades modernas o reconhecimento das limitações e distorções que a gestão meramente privada da economia introduz no desenvolvimento das sociedades, tornando-se necessário compatibilizar os objectivos de eficiência económico-financeira consubstanciada nos lucros com outros objectivos de interesse geral da sociedade, a começar pelos próprios trabalhadores, as comunidades e o ambiente natural.
Deverá, pois, nesse sentido muito mais amplo, a nova Sociedade de Comunidades Solidárias avançar na abordagem dos novos instrumentos de gestão dos meios de produção e dos processos económicos sociais, isto é, no sentido de uma profunda democratização da “esfera económica”, independentemente da propriedade dos meios de produção.
Nesta esfera, o objectivo central da nova Sociedade será a de proporcionar a todos os cidadãos o acesso aos meios de produção que permitam a cada um participar de maneira livre a activa na produção social, como sujeito, e realizar-se plenamente enquanto indivíduo social.
j) Cultura Institucional
Deliberadamente, abordámos aqui vários aspectos do que correntemente se designa por “Estado-Social” ou “conquistas sociais”, segundo uma metodologia compartimentada, como se esses diversos aspectos fossem uma espécie de “disciplinas” de um qualquer currículo de governação, cada uma tratada de forma independente por um professor/ministro.
A realidade da Vida e do Homem é, porém, uma Integralidade da qual não se podem dissociar e tratar diferenciadamente “aspectos” parcelares.
O conceito de Felicidade humana corresponde à sua Homeostase interna e externa, isto é, à manutenção do estado de equilíbrio dinâmico do seu meio interno, enquanto ser vivo com certas características organizacionais e funcionais e, enquanto organismo de uma linhagem específica, à manutenção da congruência dos respectivos acoplamentos estruturais com o meio natural e com a sociedade – conservação e desenvolvimento da cultura; sempre que esses equilíbrios dinâmicos se vêm comprometidos, o organismo entra em estado de Infelicidade: em stress, em sofrimento e, eventualmente, em processo de degradação e morte.
Resulta daqui que, quanto muito, poderiam existir três “departamentos” de gestão social destinados a proporcionar a todos e cada um dos membros da Sociedade, de forma óptima e inter-dependente, as condições que assegurem:
- A homeostase interna: saúde, alimentação, abrigo, exercício, ambiente e hábitos de vida saudáveis...;
- A congruência estrutural com a(s) sociedade(s), baseada em relações sociais de empatia, de cooperação e de solidariedade, na comunicação irrestrita, na contínua ampliação dos âmbitos cognitivos, éticos e estéticos;
- A congruência estrutural com o meio – biosfera, geologia e atmosfera – na preservação e usufruto material e espiritual da natureza e dos territórios: sintonia cósmica, correcta utilização (obtenção e transformação) dos recursos naturais, utilização racional do território e urbanização...
O primeiro e mais imediato escalão deste novo “governo” seria cada indivíduo, baseado na sua Liberdade e Auto-determinação, na sua Responsabilidade e na sua aspiração a Viver Bem.
O segundo escalão seria assumido pelas Comunidades (familiares, produtivas, socioculturais, socio-territoriais, etc.) e respectivas associações.
Finalmente, ao “governo nacional”, enquanto confederação de todas as Comunidades, caberia, de acordo com o princípio da subsidiariedade, a prestação dos serviços comuns de interesse geral para a realização dos objectivos sociais.
Os Indivíduos e as suas vidas em estado de Felicidade (Viver Bem), seriam os pontos de partida e de destino de toda a actividade social e, naturalmente, de todas as suas instituições.
A “divisão do trabalho” e o sistema de poder actualmente em vigor provocaram a separação a autonomização de funções sociais que só fazem sentido se indissoluvelmente integradas, expropriaram os indivíduos e as comunidades de grande parte das suas competências de auto-governo e auto-responsabilização, transferindo essas funções para instituições do Estado geridas de modo compartimentado (departamentalismo governativo), mantendo os indivíduos atomizados, dependentes e reduzidos ao papel intermitente de “produtores” – enquanto úteis - e ao papel permanente de “consumidores”.
Haverá por isso que, não só devolver aos indivíduos e às comunidades todas as competências (e responsabilidades) em todos os domínios susceptíveis de serem prosseguidos nesses escalões sociais, como assegurar a sua administração de modo integrado e coerente.
Nota Final:
As breves reflexões acima formuladas relativas ao modo de abordagem das “conquistas sociais” dos cidadãos na futura Sociedade de Comunidades Solidárias, mais do que pretenderem constituir “verdades” ou estabelecer ou “novo modelo”, servem, como meras “pinceladas”, para ilustrar que é possível (e necessário) desenvolver e adoptar perspectivas radicalmente diferentes das actuais quanto aos diversos temas.
O futuro não irá ser uma mera correcção de percurso relativamente aos caminhos que têm sido prosseguidos na fase histórica que está a terminar.
Esses caminhos estão no seu termo e insistir neles será uma condição para o fracasso.
Há que sair da “box” conceptual que nos mantém agarrados a conceitos caducos e a ilusões; há que “inventar” e experimentar outros caminhos, porventura mais consentâneos com a natureza e a história evolutiva dos homens e das suas sociedades.
Por isso, a luta pelas “conquistas sociais” alcançadas no passado e hoje em perigo, é indissociável da luta política patriótica contra o domínio do Capital Financeiro e das Transnacionais e os seus agentes locais, e pela instauração de uma nova hegemonia democrática e popular tendo como perspectiva uma nova Sociedade a que chamámos Sociedade de Comunidades Solidárias.
Setembro de 2012
(*) Miguel Judas é um militar de Abril, tendo integrado, como jovem oficial da Armada, a Assembleia Geral do Movimento das Forças Armadas (MFA). É atualmente membro da Associação 25 de Abril. Desenvolve intensa atividade de ensaísmo político e participou recentemente, com reflexões originais, em diversas iniciativas da sociedade civil, como o Movimento de Intervenção e Cidadania e o Forum de Cidadania pelo Estado Social.
|
||||
|
|||||