A liberdade do espírito

 

 

Paul Valéry (*)

 

 

É um sinal dos tempos e não é um muito bom sinal, que seja hoje necessário e mesmo urgente, interessar os espíritos na sorte do Espírito, ou seja, na sua própria sorte.

 

Esta necessidade impõe-se, pelo menos, aos homens de uma certa idade (uma certa idade é infelizmente um idade demasiadamente certa), homens que conheceram uma época diferente, que viveram uma vida diferente, que acolheram, padeceram e observaram os males e os bens da existência, num outro meio, num mundo muito diverso.

 

Admiraram coisas que deixaram de ser admiradas, viram bem vivas, verdades que estão hoje quase mortas; apostaram, em suma, em valores cuja baixa ou afundamento é actualmente tão claro, tão manifesto e tão ruinoso para as suas esperanças e para as suas crenças, como a quebra ou o naufrágio dos títulos e das moedas que antes haviam visto, como toda a gente, como valores inquebrantáveis.

 

Assistiram, assim, à ruína da confiança que depositavam no espírito, confiança que fora, para eles, o fundamento e, de algum modo, o postulado da sua vida.

 

Tinham confiança no espírito, mas que coisa é o espírito, que deve realmente entender-se por esta palavra?

 

A palavra é inominável porque evoca a fonte e o valor de todas a outras. Mas os homens a que me refiro atribuíam-lhe um significado particular: entendiam, porventura, por espírito esta actividade pessoal, mas universal, actividade, nem interna nem externa - que confere à vida, às próprias forças da vida e do mundo, um interesse e o desenvolvimento de um esforço e um empenhamento na acção, completamente diferentes dos que são adaptados ao funcionamento normal da vida comum e à mera conservação dos indivíduos.

 

Para bem compreender este ponto, é preciso entender pela palavra “espírito”, a possibilidade, a necessidade e a energia, de valorizar pensamentos e actos que não são necessários para o funcionamento do nosso organismo, nem tendem a melhorar a economia deste funcionamento.

 

Porque o nosso ser vivo, como todos os seres vivos, possui um poder, uma potência de transformação que aplica às coisas que nos rodeiam enquanto, se e na medida em que as representamos.

 

Esta potência de transformação dedica-se à resolução dos problemas vitais que nos impõem o nosso organismo e o nosso meio ambiente.

 

Um ser vivo é, antes de mais, uma potência de transformação, mais ou menos complexa (segundo a espécie animal) já que tudo o que vive é obrigado a dar e a receber a vida, como troca de modificações entre o ser vivo e o seu meio.

 

Todavia, uma vez satisfeita esta necessidade vital, uma espécie que é a nossa, espécie positivamente bizarra, julgou dever inventar outras necessidades e outras tarefas, para lá daquelas indispensáveis à conservação da vida: outras trocas a preocupam, outras transformações a solicitam.

 

Seja qual for a origem, seja qual for a causa deste estranho desvio, a espécie humana comprometeu-se numa imensa aventura… Aventura cujo termo ignora, e cuja finalidade e limites desconhece.

 

A nossa espécie empenhou-se numa aventura e aquilo a que chamo espírito forneceu-lhe, ao mesmo tempo, a direcção instantânea, o aguilhão, o ferrão, o impulso, como os pretextos e as ilusões que são necessárias para a acção. Estes pretextos e estas ilusões, variaram, aliás, de época para época. A perspectiva da aventura espiritual não é imutável…

 

Eis, pois, aproximativamente, aquilo que quis dar a entender com as minhas primeiras palavras.

 

Mas quero demorar-me ainda mais um pouco sobre este ponto para mostrar, com um pouco mais de precisão, como esta potência humana se distingue – embora não inteiramente – da potência animal que se aplica à conservação da vida e se especializou no cumprimento do ciclo habitual das funções fisiológicas.

 

Distingue-se, mas assemelha-se-lhe e é-lhe estreitamente aparentada. É um facto importante que esta similitude, que se impõe à nossa reflexão, seja singularmente fecunda nas suas consequências.

 

O ponto fundamental não é difícil de entender: não devemos esquecer que seja o que for que façamos, seja qual for o objecto da nossa acção, sejam quais forem as impressões que recebamos do mundo que nos rodeia, e sejam quais forem as nossas reacções, é sempre o mesmo organismo que é chamado a desempenhar esta missão, é sempre o mesmo aparelho de relações que é utilizado para o desempenho das duas funções que atrás distingui, tanto o útil, como o inútil, tanto o indispensável, como o arbitrário.

 

São os mesmos sentidos, os mesmos músculos, os mesmos membros, os mesmos tipos de sinais, os mesmos instrumentos de troca, a mesma linguagem, os mesmos modos lógicos que cooperam nos actos mais indispensáveis à nossa vida, e figuram nos actos mais gratuitos, mais convencionais ou mais sumptuários.

 

Em suma, o homem não dispõe de duas aparelhagens; tem apenas uma e este equipamento tanto lhe serve para conservar a vida e o seu ritmo fisiológico, como pode ser utilizado ao serviço dos trabalhos da nossa grande aventura.

 

Aconteceu-me muitas vezes, a propósito de alguma questão especial, ter que comparar diferentes tipos de acções e constatar que os mesmos orgãos, os mesmos músculos, os mesmos nervos, são usados tanto na marcha, como na dança, exactamente como a nossa capacidade de linguagem, tanto nos serve para exprimir as nossas ideias mais banais, como para produzir um poema sublime. Nos dois casos, um mesmo mecanismo é utilizado para dois fins completamente diferentes.

 

É por isso natural, quando falamos de coisas espirituais (chamando espiritual tudo o que é ciência, filosofia….) e também de coisas de ordem prática, que possamos constatar um notável paralelismo, e deduzir daí alguns ensinamentos.

 

Podem simplificar-se algumas questões assaz difíceis, pondo em evidência a partir do exame dos nossos órgãos de acção e relação, a semelhança que existe entre a actividade a que pode chamar-se superior e a actividade que pode chamar-se prática ou pragmática.

 

De um e outro lado, visto que são utilizados os mesmos orgãos, existe uma analogia de funcionamento, e uma correspondência de fases e de condições dinâmicas; tudo isto é muito profundo e substancial porque é o próprio organismo que o impõe.

 

Há instantes, dizia-vos até que ponto os homens da minha idade são tristemente afectados pela época que se substitui de modo tão rápido e tão brutal, aos tempos que conheceram, e a propósito pronunciei a palavra valor.

 

Referi a baixa e naufrágio que se verifica, debaixo dos nossos olhos, nos valores da nossa vida e sob esta palavra “valor “ subsumia ou envolvia numa mesma expressão, sob o mesmo signo, os valores de ordem material e os valores de ordem espiritual.

 

Disse realmente “valor” e é exactamente disso que quero falar; é esse o ponto capital sobre o qual gostaria de captar a vossa atenção.

 

Estamos hoje em presença de uma verdadeira e gigantesca transmutação de valores (para empregar a excelente expressão de Nietzsche) e ao intitular esta conferência “Liberdade do Espírito” pretendi simplesmente aludir a um destes valores essenciais que parece seguir a sorte dos valores materiais.

 

Disse por isso “valor” e disse que há um valor chamado “espírito”, como há um valor petróleo, trigo ou ouro.

 

Disse valor porque há apreciação, juízo de importância e há igualmente discussão sobre o preço que se está disposto a pagar por este valor: o espírito.

 

Podem fazer-se apostas sobre este valor; podemos segui-lo, como dizem os homens da Bolsa, podemos observar as suas flutuações, ter uma ideia sobre qual é a opinião geral, sobre a sua cotação.

 

Podemos ver cotações, inscritas nas páginas dos jornais, como ele compete com outros valores concorrentes.

 

Porque há valores concorrentes. Será, por exemplo, o poder público, que nem sempre concorda com o valor espírito, o valor segurança social, ou o valor organização do Estado.

 

Todos estes valores que sobem e descem constituem o grande mercado dos negócios humanos. Entre eles, o infeliz valor “espírito” não para de baixar.

 

Como todos os outros valores, o valor espírito classifica os homens segundo a confiança que depositam nele.

 

Há homens que apostaram tudo nele, todas as suas esperanças, todas as economias da sua vida, de coração e de fé.

 

Há outros que o consideram medíocre; para esses é um investimento sem grande interesse e as suas flutuações não têm muita importância.

 

É há quem se preocupe extremamente pouco com ele: é um valor em que não apostariam; pelo que contribuem alegremente para o fazer baixar.

 

Recorro aqui à linguagem da Bolsa. Esta linguagem pode parecer estranha quando é aplicada às coisas espirituais, mas penso que não há outra melhor para exprimir relações desta espécie, porque, se reflectimos, a economia espiritual tal como a material, se resume também a um conflito de avaliações.

 

Fico muitas vezes impressionado com as analogias que espontaneamente aparecem entre a vida do espírito e as suas manifestações, e o que se passa na vida económica.

 

Quando se apercebe esta similitude é quase impossível não a explorar até aos seus limites.

 

Num e noutro caso, tanto na vida espiritual como na vida económica, encontramos as mesmas noções de produção e consumo.

 

Na vida espiritual, o produtor é um escritor, um artista, um filósofo, um sábio; o consumidor é um leitor ou ouvinte, um espectador.

 

Em ambas as ordens, podemos encontrar a noção de valor que tenho vindo a referir, bem como a noção de troca ou de oferta e procura.

 

Tudo isto é simples e facilmente explicável; são termos que tanto têm sentido no mercado da interioridade (onde cada espírito discute, negoceia ou transige, com o espírito dos outros) como no universo dos interesses materiais.

 

Aliás, em ambos os planos vamos igualmente encontrar o trabalho e o capital; uma civilização é um capital cujo desenvolvimento pode prosseguir durante séculos, como acontece com os capitais investidos que beneficiam, a longo prazo, de juros compostos.

 

Este paralelismo é realmente impressionante e quando se reflete sobre ele, afigura-se perfeitamente natural. Irei mesmo até a ponto de ver aqui uma verdadeira identidade e vou apresentar-vos o seu racional: em primeiro lugar, disse-vos que é o mesmo organismo que intervém, em ambos os planos, sob os termos de produção e recepção – produção e recepção que são inseparáveis das trocas – mas, além disso, tudo o que é social, tudo o que resulta de relações entre um grande número de indivíduos, tudo o que se passa no vasto sistema dos seres vivos e pensantes (mais ou menos pensantes) onde cada um é, ao mesmo tempo, solidário de todos os outros, e único, no que respeita a si mesmo, indiscernível, e como inexistente no seio dos outros.

 

Este é o ponto essencial. É observável tanto na ordem prática como na ordem espiritual. De um lado, o indivíduo, do outro a quantidade indistinta das coisas, pelo que a forma geral das suas relações recíprocas não pode ser muito diferente, quer se trate de produção, de trocas ou de consumo no domínio do espírito, quer se trate do domínio dos produtos materiais.

 

Como poderia ser de outro modo? O problema é sempre o mesmo, é sempre o indivíduo e uma quantidade indistinta de indivíduos que entram em relação, directa ou indirecta, porque, na maioria dos casos, é indirectamente que sofremos a pressão exterior, tanto no domínio económico como no espiritual e, reciprocamente, que exercemos uma acção externa sobre uma quantidade indeterminada de ouvintes ou espectadores.

 

Há uma relação dupla que sempre se estabelece. Desde que haja troca, por um lado, e, por outro, uma diversidade de necessidades e de indivíduos singulares, cujos gostos são incomunicáveis, quando os seus saber-fazer, os seus talentos e as suas ideologias pessoais se defrontam num mercado, quer se trate de ideias, de matérias-primas, ou de objectos manufaturados, a concorrência recíproca destes diversos bens compõem um equilíbrio, móvel e instável, que é determinado pelos valores vigentes em cada momento.

 

Tal como uma mercadoria vale, hoje, um tanto qualquer, durante algumas horas, mas está sujeita a variações bruscas, ou lentas, mas contínuas, de valor, o mesmo se passa com os valores em matéria de gosto, de doutrinas, de estilo, de ideais, etc..

 

Só que a economia do espírito apresenta fenómenos bem mais difíceis de definir, porque, em geral, não são mensuráveis nem são verificados por orgãos ou instituições especializadas para o efeito.

 

Uma vez que estamos a considerar o indivíduo, em relação com os seus semelhantes, bem podemos recordar o ditado dos antigos que afirma que os gostos e as cores não se discutem. Mas de facto, é o contrário que acontece; não fazemos outra coisa.

 

Passamos toda a nossa vida a discutir os gostos e as cores. Fazêmo-lo na Bolsa, em inúmeros júris de concursos, nas Academias, e não pode ser de outra maneira; em todos os casos em que o indivíduo, o colectivo, o singular e o plural se afrontam e procuram entender-se ou reduzir-se reciprocamente ao silêncio, tudo é discutível, tudo é negociável, ou sujeito a regateio.

 

Neste caso a analogia que temos vindo acompanhar é tão impressiva que se aproxima da identidade.

 

Quando falo de espírito, tenho em vista um aspecto e uma propriedade da vida colectiva que é tão real como a vida material e, por vezes, tão precária como ela. Tenho em vista uma produção, uma avaliação, uma economia que pode ser mais ou menos próspera, mais ou menos estável, exactamente como acontece com o que se chama economia real, que se desenvolve ou se mostra periclitante, possui forças universais, tem as suas leis próprias e também os seus mistérios.

 

Não deve supor-se que me deleito aqui numa operação de comparação, mais ou menos poética, e que navego da ideia da economia material para a economia espiritual, por simples artifícios de retórica.

 

Se bem refletirmos é precisamente o contrário que se passa. Foi o espírito que deu início ao processo, e não poderia ter sido de outro modo.

 

O comércio dos espíritos foi necessariamente o primeiro comércio do mundo, aquele que esteve na origem de toda a história humana, aquele que foi necessariamente inicial, porque antes de trocar coisas, é preciso que se troquem signos e para isso instituí-los.

 

Não há mercado, não há trocas, sem a linguagem; o primeiro instrumento de qualquer tráfico é a linguagem, pelo que podemos voltar a proferir (conferindo às palavras um sentido convenientemente alterado) o famoso versículo: No começo era o Verbo. Foi obviamente preciso que o verbo precedesse o próprio acto do tráfico.

 

Mas o verbo não é mais do que um dos nomes mas rigorosos daquilo a que chamei Espírito. O espírito e o verbo são quase sinónimos em grande parte dos seus empregos. O termo que, na Vulgata, traduz a palavra verbo é termo grego “logos” que significa ao mesmo tempo, raciocínio, cálculo, palavra, discurso, conhecimento.

 

Ao dizer que o verbo coincide com o espírito, dificilmente poderei ser acusado de heresia, mesmo no domínio linguístico.

 

Aliás, a mais breve reflexão torna evidente que, em todo o comércio, é preciso que haja algo sobre que encetar a conversação, há que designar o objecto que se pretende trocar, aquilo de que se necessita; é preciso que exista algo de sensível, que tenha também algo de inteligível e este algo é aquilo a que chamamos, em geral, o verbo.

 

O comércio dos espíritos, precede, portanto, o comércio das coisas. Irei mostrar que também o acompanha muito de perto.

 

Não só é logicamente necessário que seja assim, como este facto poder ser historicamente estabelecido. Podeis encontrar esta prova no facto notável de que as regiões do globo que tiveram o comércio mais desenvolvido, mais activo, mais longamente estabelecido, foram igualmente as regiões do mundo onde a produção de obras do espírito e de toda a espécie de obras de arte foi mais precoce, mais fecunda e mais diversificada.

 

Observamos também que foram estas regiões aquelas onde foi mais largamente acordada a chamada liberdade do espírito, e pode acrescentar-se que não poderia ter sido de outro modo.

 

Desde que as relações entre os homens são mais frequentes, mais diversificadas e mais activas, torna-se impossível manter entre eles grandes diferenças, não de castas ou de estatuto, que podem subsistir longamente, mas de compreensão.

 

A conversação, mesmo entre superiores e inferiores ganha uma familiaridade e uma facilidade que não se verificam nas regiões onde as relações são muito menos frequentes; é conhecido, por exemplo, que na antiguidade e particularmente em Roma, o escravo e o seu dono tinham relações de alguma familiaridade, apesar da dureza e da disciplina, e das atrocidades que poderiam igualmente acontecer.

 

Afirmava, pois, que a liberdade de espírito e o próprio espírito se desenvolveram mais intensamente onde também se desenvolveu o comércio entre os homens. Em todas as épocas, sem excepção, existe uma correlação entre a produção intensa da arte, das ideias e dos valores espirituais e a intensidade da actividade económica que aí se observa. É conhecido que a bacia mediterrânica nos oferece, sob este aspecto, o exemplo mais notável e mais demonstrativo.

 

Esta bacia foi, com efeito, um lugar, de algum modo, privilegiado, predestinado, providencialmente marcado, para que se produzisse nas suas margens um comércio de grande intensidade.

 

Está localizada na zona mais temperada do globo: oferece particulares facilidades à navegação, banha três partes do mundo muito diferentes e atrai até si as raças mais diversas; põe em contacto e em competição, em acordo ou em conflito, e suscita trocas de toda a espécie. Esta bacia tem a particularidade notável de permitir que, de um ponto ao outro do seu contorno, se possa viajar, por via terrestre, ao longo do seu litoral, ou atravessando o mar, pelo que foi, durante séculos, teatro de misturas e de contactos entre famílias diferentes da espécie humana, que se enriqueceram umas às outras através de experiências de toda a ordem.

 

Aí se produziu um incitamento à troca e a toda a forma de competição, concorrência de forças, concorrência de alianças, de influências, de religiões, de produtos, de matérias-primas e de valores espirituais, de forma indistinta.

 

O mesmo navio, a mesma embarcação transportava as mercadorias e os deuses; as ideias e os processos.

 

Quantas coisas se desenvolveram nas margens do Mediterrâneo por contágio ou por irradiação! Assim se constituiu este tesouro, ao qual a nossa cultura deve quase tudo, pelo menos nas suas origens; pode dizer-se que o Mediterrâneo foi uma verdadeira máquina de fabricar civilização.

 

Tudo isto criava necessariamente a liberdade do espírito, ao mesmo tempo que as trocas se desenvolviam.

 

Nas margens do Mediterrâneo, encontramos estritamente associados: Espírito, cultura e comércio.

 

Mas eis um outro exemplo menos banal do que aquele que referi. Considerai a linha do Reno, esta grande linha de água que vai de Basileia até ao mar e observai a vida que se desenvolveu nas margens desta grande via fluvial, desde os primeiros séculos até à guerra dos Trinta Anos. Todo um sistema de cidades semelhantes entre si se estabeleceu ao longo deste rio que desempenhou, como o Mediterrâneo, o papel de um condutor e de um colector. Trate-se de Estrasburgo, de Colónia ou de outras cidades que se sucedem ao longo das suas margens até a mar, todas esta aglomerações apresentam uma semelhança notável no seu espírito, nas suas instituições, nas suas funções e na sua actividade, tanto material como intelectual.

 

Trata-se de cidades onde cedo surgiu a prosperidade, cidades de comerciantes e de banqueiros, cujo sistema se estendeu até ao mar, ligando as cidades industriais da Flandres e os portos da Liga Hanseática do Nordeste.

 

Aí, a riqueza material, a riqueza espiritual e intelectual e a liberdade, sob forma municipal, estabeleceram-se, consolidaram-se e fortaleceram-se ao longo de vários séculos. Foram praças financeiramente poderosas e foram potências estratégicas do espírito. Aí se concentrou a indústria que exige técnicos, a banca que exige calculadores, e diplomatas especialmente dedicados às trocas materiais, mas também uma vitalidade artística e uma curiosidade erudita, uma produção de pintura, de música e de literatura, uma criação de valores artísticos paralela à actividade económica desses centros.

 

Foi aí que nasceu o mundo da imprensa donde irradiou para todo o mundo. Foi nas margens deste rio e como elemento do comércio por ele engendrado, que se desenvolveu a indústria do Livro que veio a alargar-se a todo o mundo civilizado.

 

Todas estas cidades apresentam notáveis semelhanças no seu espírito, nos seus costumes e na sua organização interna, e adquirem ou compram uma forma de autonomia.

 

A riqueza material e o gosto do amador e do conhecedor desenvolvem-se em paralelo: o espírito está bem vivo e incarna-se em pintores, escritores, pois encontra aí um ambiente dos mais favoráveis.

 

É um terreno fértil para a cultura que requer liberdade e recursos materiais.

 

Assim, este conjunto de cidades criadas ao longo do Reno numa larga banda que se prolonga até ao mar, contrasta com os territórios do interior que continuaram a ser durante muito tempo regiões agrícolas de tipo feudal.

 

É óbvio que vos apresentei aqui uma exposição muito sumária e para tornar mais preciso o esboço que acabo de apresentar, seria necessário consultar muitas obras e recompor toda a minha exposição da época e dos lugares. Mas aquilo que disse deve servir para fundamentar a minha opinião sobre o paralelismo entre os desenvolvimentos intelectuais e o desenvolvimento comercial, bancário e industrial das regiões mediterrânicas e renanas.

 

Aquilo a que se chamou a Idade Média transformou-se no mundo moderno por acção das trocas que elevaram até um ponto muito alto a temperatura de espírito. Não que a Idade Média tenha sido um período obscuro, como por vezes se pensa. Existem os seus testemunhos e são de pedra. E este monumentos, estas catedrais, estas obras incomparáveis que os seus arquitectos ergueram constituem, para nós, verdadeiros enigmas e ainda não conhecemos todos os segredos da sua construção.

 

Não possuímos nenhum documento que nos informe sobre a verdadeira cultura destes mestres-de-obra que deveriam, sem dúvida, deter uma ciência assaz desenvolvida para construir obras desta dimensão e desta extrema ousadia. Não nos deixaram tratados de geometria, nem de mecânica, nem de arquitectura, nem de resistência dos materiais, ou de perspectiva, ou de planos, nem algum indício que nos permita alguma clareza sobre o que sabiam.

 

Uma coisa, no entanto, é conhecida: estes arquitectos eram nómadas; construíam de cidade em cidade. Parece que não transmitiam a qualquer um, os seus processos teóricos e as suas técnicas de construção. Estes operários e os seus chefes e contramestres formavam sociedades de companheiros, que transmitiam os seus métodos de corte de pedra, de serralharia e de carpintaria. Mas nenhum documento escrito sobre estas técnicas chegou até nós. O célebre caderno de Villard de Hornnecourt é um documento muito insuficiente a este respeito.

Todos estes viajantes-construtores, estes transportadores de métodos e de receitas da sua arte foram instrumentos de troca, mas primitivos, anónimos, ciosos dos seus truques e dos seus segredos. Faziam segredo daquilo que as épocas de intensa cultura divulgam o mais possível e porventura demasiadamente.

 

Havia também uma certa vida intelectual nos mosteiros. Foi à sombra dos claustros que pôde nascer o estudo da antiguidade, da literatura e as língua antigas puderam ser estudadas e as civilizações antigas preservadas e cultivadas durante alguns tristes séculos.

 

Mas, a vida do espírito foi terrivelmente pobre desde o século V ao século IX. Mesmo no tempo das primeiras cruzadas, não era comparável com o que se verificava em Bizâncio e no Islão, desde Bagdad a Granada, na ordem das artes, das ciências e dos costumes. Pelos seus gostos e pela sua cultura, Saladino era certamente muito superior a Ricardo, Coração-de-Leão.

 

Esta visão da Alta Idade Média, não deveria regressar no nosso tempo? Cultura, variações de cultura, valor das coisas do espírito, avaliação das suas produções, lugar que se lhes atribui, importância que tem na hierarquia das necessidades dos homens, sabemos agora que tudo isso está em relação, por um lado, com a multiplicidade de toda a espécie de trocas, e, por outro lado, é extremamente precário. Tudo aquilo que se passa hoje deve relacionar-se com estes dois pontos. O que constatamos, hoje, ficou resumido nas minhas primeiras linhas.

 

Dizia-vos que convocar os espíritos a interessar-se à vida do Espírito era um sinal dos tempos. Tal ideia não poderia ter-me assomado ao espírito, se todo um conjunto de impressões não fosse suficientemente significativo e poderoso para me fazer reflectir e fazê-lo em acto. E este acto que consiste em exprimir-me perante vós, não teria tido lugar se não tivesse pressentido que as minhas impressões eram também as de muitas outras pessoas, que a sensação de uma diminuição do espírito, de uma ameaça para a cultura, de um crepúsculo das divindades mais puras, era um sentimento que se impunha cada vez mais fortemente a todos aqueles que ainda são capazes de sentir alguma coisa em relação aos valores superiores de que falamos.

 

Cultura e civilização são nomes suficientemente vagos para que possamos entreter-nos a diferenciá-los, opô-los ou conjugá-los. Não vou perder tempo com este tipo de exercícios. Para mim, como vos disse, trata-se de um capital que se acumula, se aplica, se conserva, cresce ou diminui ou vacila, como todos os capitais imagináveis. Dos quais, o mais conhecido é aquele a que chamamos o nosso corpo.

 

De que é composto este capital a que chamamos Cultura ou Civilização? Em primeiro lugar, é constituído por coisas, objectos materiais – livros, quadros, instrumentos, etc., que têm a sua durabilidade, maior ou menor, a sua fragilidade, a sua precariedade de coisas. Mas este material não basta. Tal como um lingote de ouro, um bom pedaço de terra ou uma máquina, não são capitais, se não existirem homens que deles careçam ou saibam servir-se dele.

 

Tende em conta estas duas considerações. Para que o material da cultura seja um capital é igualmente necessária a existência de homens que necessitam dele e os utilizem – homens que tenham sede de saber e de poder de transformação dentro de si, sede de desenvolvimento da sua sensibilidade e saibam, por outro lado, adquirir e exercer hábitos, disciplinas intelectuais, convenções e práticas para utilização de documentos e instrumentos, acumulados por vários séculos de história.

 

Digo que o capital da nossa cultura está em perigo. E sob diversos aspectos. E de forma brutal. E de diversos modos. Insidiosamente atacado, dissipado, desprezado, aviltado, são evidentes os progressos desta desagregação. De tal modo que as trocas tornam-se febris e a vida devém devoradora de vida.

 

Abanões perpétuos, novidades permanentes, uma instabilidade e nervosismo generalizados e amplificados por todos os meios, que o próprio espírito criou. Pode dizer-se que há algo de suicidário nesta forma ardente e superficial de existência do mundo moderno.

 

Como conceber o futuro da cultura quando a idade que já atingimos permite comparar aquilo que existiu outrora com o nosso presente? Eis um simples facto que proponho às vossas reflexões, tal como se impôs às minhas.

 

Assisti ao desenvolvimento, sem preço, de seres que deram um impulso memorável para a formação do nosso capital ideal, tão precioso como os seus criadores. Vi desaparecer, um a um, estes conhecedores, estes amadores inapreciáveis que não criavam as próprias obras, mas criavam o seu verdadeiro valor e eram juízes apaixonados, e incorruptíveis, com os quais ou contra os quais, era delicioso trabalhar. Sabiam ler; virtude que hoje se perdeu. Sabiam ouvir e até escutar. Sabiam ver. E aquilo que sugeriam ler, ou reler, ver ou voltar a ver, ganhava, por este retorno, um valor sólido. O capital universal acumulava-se.

 

Não digo que estejam todos mortos e que jamais nasçam outros. Mas verifico, com mágoa, esta extrema rarefação. Tinham por profissão, serem eles mesmos, e gozar, com toda a independência, da sua faculdade de julgar, que nenhuma publicidade poderia atingir.

 

A vida intelectual, mais ardente e mais desinteressada era a sua razão de viver.

 

Não havia espectáculo, exposição, livro a que não dedicassem uma atenção escrupulosa. Eram chamados homens de gosto, por vezes com alguma ironia, mas a espécie tornou-se tão rara que a própria designação se transformou num voto ou num desejo. Trata-se de uma perda considerável porque nada é mais precioso para um criador do que aqueles que são capazes de julgar a sua obra, e, sobretudo, conferir ao cuidado do trabalho, ao valor do trabalho, esta validade de que há pouco falava, e que fixa, fora das modas do dia, a autoridade de uma obra e de um nome.

 

Hoje, as coisas passam demasiado depressa e desvanecem-se com igual rapidez. Nada se faz para durar, não há nada de estável.

 

Como é possível que um artista possa não se aperceber que, por debaixo das aparências de promoção das artes e da generalização do seu ensino, subjaz toda a futilidade da época, a confusão reinante de todos os valores que nela se produz e o facilitismo que ela favorece?

 

Se um artista empresta ao seu trabalho todo o tempo e todo o cuidado de que é capaz, dá-os com a esperança de que alguma coisa desde trabalho venha a impor-se ao espírito de quem o lê; espera que se lhe dedique uma certa qualidade e intensidade da atenção, uma pequena parcela do sofrimento que ele teve ao escrever essa página.

 

Há que confessar que hoje se paga muito mal esse penar; não por nossa falta pessoal, somos submersos por livros e, sobretudo, assediados por leituras de interesse imediato e violento. Há nos jornais, uma tal intensidade de notícias, uma tal diversidade uma tal incoerência (sobretudo em alguns dias) que o tempo que somos capazes de dedicar-lhes é absolutamente insuficiente e deixa-nos os nossos espíritos sobre-excitados, agitados e perturbados.

 

Um homem que tem o seu emprego, que ganha a sua vida, e só pode dedicar-se à leitura, no metro, no eléctrico ou no comboio, vê esta preciosa hora gasta na leitura de relatos de crimes, de imbecilidades incoerentes e “fait-divers” dos mais diversos cuja misturada, abundância e incoerência parecem feitas para adormecer e simplificar grosseiramente os espíritos.

 

Este homem está perdido para o livro. É algo de fatal e não há nada a fazer.

 

Tudo isto tem como consequência uma diminuição real da cultura; e em segundo lugar, uma diminuição real da liberdade do espírito, já que esta liberdade exige um desprendimento, uma recusa de todas as sensações, incoerentes e desconexas, que na idade moderna vivemos a todo o momento.

 

Acabo de falar da liberdade… Existe a liberdade “tout court” e a liberdade dos espíritos.

 

Isto sai um pouco do nosso tema, mas devo, no entanto, demorar aqui algum tempo. A liberdade é um tema imenso - que a política tem utilizado largamente mas que hoje proscreve, aqui e ali, desde há alguns anos. A liberdade foi um ideal, um mito; foi uma palavra cheia de promessas, para uns, uma obscenidade cheia de ameaças, para outros! Uma palavra que agitou os homens e levantou pedras da calçada. Uma palavra que era o grito dos que pareciam mais fracos e se sentiam mais fortes, contra aqueles que pareciam mais fortes e não se sentiam os mais fracos.

 

Esta liberdade política é dificilmente separável da noção de igualdade e de soberania, mas é dificilmente compatível com a noção de ordem e, por vezes, com a ideia de justiça.

 

Mas, não é esse o meu tema.

 

Vou regressar ao espírito. Quando se examinam, um pouco mais de perto, as liberdades políticas, rapidamente desembocamos na liberdade de pensamento.

 

A liberdade de pensamento é muitas vezes confundida com a liberdade de publicar, o que não é a mesma coisa.

 

Nunca ninguém foi impedido de pensar como lhe aprouver. Seria difícil, a menos que se dispusesse de uma aparelhagem para despistar os pensamentos nos cérebros. Lá se chegará certamente, mas ainda não estamos aí, nem desejamos tal descoberta; enquanto esperamos, existe ainda a liberdade de pensar… enquanto não é limitada pelo próprio pensamento.

 

É bonito ter liberdade de pensar, mas, em todo o caso, é preciso que haja algo que pensar!

 

Mas no emprego corrente, quando se diz liberdade de pensar, quer dizer-se liberdade de publicar ou liberdade de ensinar.

 

Esta liberdade dá lugar a problemas graves: suscita sempre alguma dificuldade; umas vezes, a Nação, outras o Estado, às vezes a Igreja, ou a Escola, ou a Família, acharam terem algo a redizer relativamente à liberdade de pensar, publicando, de pensar publicamente ou de ensinar.

 

São poderes fácticos, mais ou menos ciosos das manifestações exteriores do indivíduo pensante.

 

Não tenciono ocupar-me aqui do fundo desta questão. Há que ver as coisas caso a caso. É certo que, em alguns casos, é aconselhável que a liberdade de publicar seja vigiada e restringida.

 

Mas a questão torna-se bicuda quando se raciocina em termos gerais. Por exemplo, é óbvio que, durante uma guerra, é impossível deixar publicar tudo. É não só imprudente deixar publicar notícias sobre a condução das operações, coisa que toda a gente entende, mas há também coisas que a proteção da ordem pública não permite que se publiquem.

 

Mas, não é tudo. A liberdade de publicar que é uma parte essencial do comércio do espírito, encontra-se, hoje, em certos casos, em certas regiões, severamente restringida e mesmo suprimida de facto.

 

Sentis, certamente, como esta questão é escaldante e como se coloca um pouco por toda a parte. Quero dizer, em toda a parte onde se pode ainda suscitar uma questão qualquer. Não sou das pessoas com maior inclinação para publicar o meu pensamento. Podemos perfeitamente não publicar, o que é que vos obriga? Que diabo! Publicar para quê? Podemos muito bem guardar as nossas ideias. Para quê exteriorizá-las? Elas podem ser belas no fundo de uma gaveta ou dentro da nossa cabeça!

 

Mas há pessoas que gostam de publicar, que gostam de inculcar as suas ideias aos outros, que só pensam para escrever. Essas pessoas aventuram-se no espaço político e aqui pode desenhar-se o conflito.

 

A política, forçada a falsificar todos os valores que o espírito tem por missão controlar, admite todas as falsificações ou todas as reticências que lhe convém ou estão de acordo com ela, repudiando violentamente, ou proibindo, todas as que se lhe opõem.

 

Em suma, o que é a política? A política consiste na vontade de conquista e de conservação do poder; exige, por consequência uma acção de constrangimento ou de ilusão sobre os espíritos que constituem a matéria de todo o poder.

 

Todo o poder sonha necessariamente em impedir a publicação das coisas que não convém ao seu exercício. Entrega-se a essa tarefa com o maior zelo. O espírito político acaba sempre por ser forçado à falsificação; ele introduz, na circulação e no comércio das ideias, uma falsa moeda intelectual; introduz noções históricas falsificadas; constrói raciocínios especiosos; em resumo, permite-se tudo o que precisa para conservar a sua autoridade a que, não sei porquê, chama moral.

 

Há que confessar que, em todos os casos possíveis, política e liberdade de espírito se excluem. Esta é a inimiga essencial dos partidos, como de toda a doutrina que detenha o poder.

 

Foi, por isso, que quis insistir em certos matizes que estas expressões podem adquirir na língua francesa.

 

A liberdade é uma noção que figura em expressões contraditórias, visto que empregamo-la, algumas vezes, para dizer que podemos fazer aquilo que queremos e, outras vezes, para dizer que podemos fazer aquilo que não queremos, o que, segundo alguns, é o máximo da liberdade.

 

Isto vale por dizer que existam vários seres em nós e como estes diversos homens, que estão em nós, só dispõem de uma só e mesma linguagem, acontece que a mesma palavra (como a liberdade) é empregue para diferentes necessidades de expressão, muito diversas. É uma palavra que serve para tudo.

 

Tanto somos livres porque nada se opõe àquilo que se nos oferece e nos seduz, ou nos achamos superiormente livres porque nos sentimos libertos de uma sedução ou de uma tentação e somos capazes de agir contra a nossa inclinação: e isso seria o máximo da liberdade.

 

Observemos, pois, esta expressão fugidia nos seus usos espontâneos. Verificamos, desde logo, que esta ideia de liberdade não é primária em nós, jamais é invocada se não for provocada, o que significa que é sempre uma resposta.

 

Nunca pensamos que somos livres quando nada nos mostra que não o somos ou que podemos não o ser. A ideia de liberdade é uma resposta a qualquer sensação de alguma hipótese de perturbação, de impedimento ou de resistência que se opõe a um impulso do nosso ser, a um desejo dos nossos sentidos, a uma necessidade, ou ao exercício da nossa vontade refletida.

 

Só sou livre quando me sinto livre, mas só me sinto constrangido quando me ponho a imaginar um estado que contrasta com o meu estado presente.

 

A liberdade só é sentida, só é concebida, só é desejada, por efeito de um contraste.

 

Se o meu corpo encontra um obstáculo aos seus movimentos naturais, às suas reflexões; se o meu pensamento é perturbado nas suas operações, seja por uma dor física, seja por qualquer obsessão, ou pelo mundo exterior, um ruído por exemplo, pelo calor excessivo ou pelo frio, pela trepidação da música que tocam os vizinhos, aspiro a uma mudança de estado, a uma libertação, a uma liberdade. Quero readquirir o pleno uso das minhas faculdades; tendo a negar o estado que as recusa.

 

Vede, pois, que há uma negação neste termo de liberdade, quando se procura o seu sentido original, em estado nascente.

 

Eis a consequência que retiro disto: dado que a necessidade e a ideia de liberdade não se produzem em nós a não ser que sejamos sujeitos a perturbações ou constrangimentos, quanto menores forem estas restrições, menos se produzirá o termo e o reflexo da liberdade.

 

Um ser pouco atento às perturbações à liberdade do espírito, aos constrangimentos impostos pelos poderes públicos, ou pelas circunstâncias exteriores, sejam elas quais forem, será pouco sensível a estas restrições. Não terá sobressaltos de revolta contra a autoridade que o perturba. Pelo contrário, pode até sentir-se aliviado de uma pesada responsabilidade. A sua liberdade consiste em sentir-se desincumbido da preocupação de pensar, de decidir, de querer.

 

Entendei as consequências enormes que resultam daqui: nos homens cuja sensibilidade às coisas do espírito é tão fraca que as pressões que se exercem sobre a produção das obras do espírito lhes são imperfectíveis, não provocando reacções, pelo menos exteriores.

 

Sabeis que esta consequência se verifica bem perto de nós: vede os efeitos mais visíveis desta pressão sobre o espírito e as reacções que isso provoca. É um facto, infelizmente demasiado evidente. Aquilo que se ouve é: não quero julgar, não me compete julgar. Quem pode julgar os homens? Não será isso fazer-se mais do que um homem?

 

Se falo disto, se o assinalo, é porque não existe nenhum tema mais importante. Já que não sabemos o que o futuro nos reserva. A nós, aos que chamei homens de espírito.

 

Julgo, ao mesmo tempo, necessário e inquietante ser obrigado hoje a invocar, não os direitos do espírito, isso são apenas palavras! Não há direitos se não houver força. Mas há interesse, para todos, na preservação e apoio dos valores do espírito.

 

Porquê?

 

É que a criação e a existência organizada da vida intelectual está numa relação complexa, e das mais estreitas, com a vida – sem mais – com a vida humana. Nunca ninguém jamais terá explicado de onde provém a nossa bizarria que constitui o nosso espírito. Este espírito que é, em nós, uma potência que nos comprometeu numa aventura extraordinária, que afastou a nossa espécie de todas as condições iniciais e normais da vida. Inventámos um mundo para o nosso espírito e queremos viver nesse mundo que é o nosso. O espírito quer viver na obra que é sua.

 

Tratou-se de refazer o que a natureza tinha feito e de corrigi-la e, portanto, de acabar por refazer, de algum modo, o próprio homem.

 

Refazer, na medida dos seus meios, o seu habitat, equipar a porção do planeta que habita; percorrê-lo em todos os sentidos, ir do mais alto ao mais profundo, extrair dele tudo o que contém e possa satisfazer os nossos desígnios. E não vemos o que seria o homem se não tivesse feito tudo isso, a menos que regressasse ao reino animal.

 

Não podemos esquecer que, para além dos arranjos materiais e em ligação com eles, se efetuou uma verdadeira ordenação do espírito que consistiu na criação do conhecimento especulativo e dos valores artísticos, na produção de uma imensa quantidade de obras, de um enorme capital de riqueza imaterial. Mas, materiais ou espirituais, os nossos tesouros não são imperecíveis. Já há longos anos, em 1919, escrevi que as civilizações também são mortais, como qualquer ser vivo, e não é bizarro pensar que a nossa possa igualmente desaparecer, com os seus procedimentos, as suas obras de arte, a sua filosofia, os seus monumentos, como desapareceram, ao longo dos tempos, tantas civilizações, tão facilmente como um navio que naufraga.

 

Bem pode estar equipado com os mais modernos aparelhos de navegação e de defesa contra o mar, bem pode ter orgulho nas máquinas poderosas que o animam e que tanto podem levá-lo ao porto como ao naufrágio, onde se pode afundar com tudo o que carrega, corpos e bens.

 

Tudo isso já então me havia impressionado, e hoje não me sinto mais tranquilo. É por isso que julgo apropriado recordar a precariedade de todos estes bens.

 

Porque onde não há liberdade do espírito é onde a cultura se estiola. Vemos que há importantes publicações (revistas outrora muito vivas), mesmo além-fronteiras, que estão hoje cheias de artigos eruditos insuportáveis; sente-se que a vida se retirou destas colectâneas e faz-se de conta, só para manter uma pretensa vida intelectual.

 

Estamos numa situação que relembra o que se passava quando Stendhal dizia de alguns eruditos que conhecia: o despotismo condenava-os à discussão das vírgulas num texto de Ovídio.

 

Estas misérias tinham-se tornado inconcebíveis. A sua absurdidade parecia condenada sem possibilidade de regresso… Mas eis que regressa em todo o seu esplendor.

 

Por toda a parte assistimos a ameaças ao espírito, cujas liberdades são combatidas. Tanto pelas nossas invenções e os nossos modos de vida, como pela política geral e diversas políticas particulares, de modo que não é vão, nem exagerado, soar o alarme e mostrar como corroem aquilo que nós, os homens da minha idade, considerávamos como o soberano bem.

 

Tentei dizer estas coisas noutros locais. Aconteceu-me recentemente falar na Inglaterra e verifiquei que aquilo que dizia era ouvido com grande interesse, que as minhas palavras exprimiam sentimentos e pensamentos que eram imediatamente apreendidos pelo meu auditório. Ouvi, agora, o que me resta dizer-vos.

 

Se me permitis, gostaria de formular um voto: que a França, embora presa de todas estas preocupações, se transforme no conservatório, no templo onde se preservem estas tradições da mais alta e mais fina cultura, da verdadeira grande arte, aquela que se caracteriza pela pureza da forma e o rigor do pensamento; que ela receba e acolha tudo o que se faz de mais elevado e mais livre na produção das ideias: é isso o que almejo para o meu país.

 

Talvez as circunstâncias sejam demasiado difíceis, as circunstâncias económicas, políticas, materiais, o estado das nações, dos interesses, dos nervos, tal como é tempestuosa a atmosfera que nos faz respirar a inquietação.

Mas, finalmente, acima de tudo, fiz o meu dever. Disse-o!

 

1939

 

 

 

 

 

(*) Paul Valéry (1871-1945) foi um poeta, escritor e filósofo muito célebre, “monstro sagrado” das letras francesas no período entre as duas guerras mundiais. Nascido em Sète, no sul mideterrânico, de pai corso e mãe genovesa, faz estudos em Montpellier e Marselha. Logo na sua juventude se aproxima do movimento da poesia simbolista, fazendo amizade com André Gide e entrando para o círculo mais íntimo do poeta Stéphane Mallarmé. A partir de uma crise existencial vivida numa noite em Génova, a 4-5 de outubro de 1892, deixa temporariamente a literatura para se dedicar à “vida do espírito”. Em 1894 instala-se em Paris, empregando-se como redator e secretário particular. Pelo casamento, liga-se à família do pintor Édourd Manet. Publica numerosas obras de poesia, ficção e ensaio, sendo cumulado, para seu divertimento, com todas as honrarias oficiais da república (Académie Française, Légion d’Honneur, Collège de France, etc.). As suas reflexões sobre o futuro da civilização ficaram célebres, tendo beneficiado do diálogo que manteve com cientistas e filósofos como Raymond Poincaré, Louis de Broglie, Henri Bergson et Albert Einstein. Tradução de João Esteves da Silva.