Nota sobre Paul Valéry

 

 

João Esteves da Silva (*)

 

 

 

Em 1919, Paul Valéry abre o seu texto sobre a crise do espírito com esta frase que começa com uma entoação castelhana

 

Nous autres (em Espanha dir-se-ia nosotros), civilizações, sabemos doravante que somos mortais” (1).

 

Ao comentar esta frase, no início do seu magnífico ensaio ‘O que faz com que a vida valha a pena ser vivida’, Bernard Stiegler passa por cima do sabor castelhano da frase e escreve “Nous mêmes (em português, nós mesmos) terráqueos do século XXI, sabemos hoje que podemos auto destruir-nos”. Esta perspectiva apocalíptica que actualmente nos assombra e que, antigamente, só era pensável como consequência da cólera divina, dispensa, hoje qualquer referência religiosa.

 

Como observa Stiegler, o que explica a generalização deste pessimismo planetário é a expansão de uma guerra económica sem tréguas, um conflito que parece surdo à custa de uma insondável hipocrisia, uma luta esgotante tanto para a Terra como para os seus habitantes, animais e humanos, que lança milhares deles numa miséria abominável, que arruína irreversivelmente o mundo, numa luta sem descanso, uma guerra disfarçada de paz, em cujo desfecho, só poderá haver perdedores.

 

Esta guerra onde as tecnologias industriais se tornaram armas de destruição massiva dos ecossistemas, das estruturas sociais e dos aparelhos psíquicos, chama-se mundialização. Actualmente, após a devastadora crise de 2007-2008, ninguém ignora, apesar de existir muita gente que finge não saber, que é impossível prosseguir esta guerra económica mundial, que só o psico-poder do marketing permite ainda disfarçar de paz consumista e conformista.

 

Mas, por outro lado, ninguém sabe como será possível reencontrar a via de um crescimento e de um desenvolvimento pacíficos.

 

O que provoca precisamente o sentimento apocalíptico geral de que algo está a chegar ao seu termo é precisamente a combinação deste saber e deste não-saber.

 

Na sua análise de 1919 daquilo que qualifica como uma crise do espírito, Valéry não deixa de sublinhar uma ambiguidade fundamental deste espírito, o que não pode deixar de agradar a Bernard Stiegler, já que tal ambiguidade se relaciona obviamente com aquilo a que ele chama a natureza farmacológica do espírito e de tudo o que ele faz ou deixa de fazer: a razão, a ciência, o saber e até a própria elevação moral, que tornaram possíveis tantas ruínas, mortes e devastações que jamais qualquer outra época da História teria podido sequer imaginar. Nas palavras de Valéry:

 

“Tantos horrores não teriam sido possíveis sem tantas virtudes. Foi preciso muita ciência para matar tantos homens, dissipar tantos bens, aniquilar tantas cidades, em tão pouco tempo; mas foram necessárias não menos qualidades morais. Saber e Dever, sois, portanto, igualmente suspeitos”.

 

Como comenta Stiegler, Valéry, tal como Husserl, poucos anos após, e muitos outros pensadores do período de entre as duas guerras mundiais, compreenderam que a Primeira Guerra Mundial havia revelado que o espírito, como Janus, comporta sempre duas faces contrárias: o espírito é uma espécie de pharmakon - ao mesmo tempo um bem e um mal, ao mesmo tempo, um remédio e um veneno, como Platão dizia da escrita, que é a tecnologia do espírito racional.

 

A evidência desta farmacologia, desta ambiguidade, desta fragilidade do espírito impôs-se a Valéry e aos seus contemporâneos através de uma imbricação de crises – militar, económica e espiritual – onde a ciência perdeu a sua honra:

 

“todas as coisas essenciais deste mundo foram afectadas pela guerra e entre todas estas coisas atingidas, está o Espírito. O Espírito foi na verdade, cruelmente atingido; chora-se no coração dos homens de espírito e julga-se a si mesmo com tristeza. Duvida profundamente de si mesmo” (2).

 

Desaseis anos após Valéry, Husserl, vem, por seu turno, falar de uma crise da ciência. Esta crise provém de uma viragem que terá ocorrido, por volta da mudança do século, que teve que ver “com o modo de considerar as ciências” e visa

 

aquilo que a ciência em geral tinha significado e pode significar para a espécie humana. A forma exclusiva como a visão geral do Mundo que caracteriza o homem moderno se deixou determinar e ofuscar, na segunda metade do século XIX, pelas ciências positivas e pela “prosperidade” que se lhes deveu, significou que ela voltava as costas, com indiferença, às questões que para uma humanidade autêntica são as mais decisivas. Simples ciências de facto formam uma simples humanidade de facto(3).

 

No momento em que Husserl escrevia estas linhas, fazia dois anos que Hitler se havia tornado chanceler, e um ano que fora plebiscitado como Führer por 92% dos eleitores alemães.

 

“Esta inversão na forma de avaliar publicamente as ciências era particularmente inevitável no pós-guerra e, como sabemos, veio a descambar, pouco a pouco, no seio das jovens gerações, num sentimento de hostilidade. O que se ouve dizer por toda a parte é que, no âmbito da miséria da nossa vida miserável, esta ciência nada tem a dizer-nos. As questões que ela exclui, por princípio, são precisamente as mais escaldantes desta época infeliz para uma humanidade abandonada às áleas do destino: as questões que têm que ver com o sentido, ou com a ausência de sentido, de toda esta existência humana” (4).

 

Quando lemos estas linhas em 2013, é impossível deixar de pensar que este mal-estar perante a ciência regressou hoje, ainda com maior força. Como escrevia Husserl em 1935, é como se o Espírito das Luzes se tivesse extinguido.

 

“Este clarão, este abanão em direcção da cultura, este zelo por uma reforma filosófica da educação e do conjunto das formas sociais e políticas da humanidade que caracterizaram a época da Aufklärung, uma época tão digna de ser honrada e, hoje, tantas vezes, depreciada” (5).

 

Ao tornarem-se “ciências positivas” e “simples ciências de facto”, apenas capazes de formar um “humanidade de facto”, as Luzes converteram-se em Trevas. Um imperecível testemunho deste espírito, temo-lo no magnífico hino “À Alegria” que devemos a Beethoven e Schiller. Acontece que este Hino se tornou hoje o hino da União Europeia, e, como escrevia Husserl em 1935

 

“É hoje difícil de ouvir sem que nos venham as lágrimas aos olhos. É difícil imaginar um contraste maior entre a situação do tempo das Luzes e a do nosso presente” (6).

 

Nas vésperas da eclosão da Segunda Guerra Mundial, quatro anos após a aparição da “Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental”, Valéry regressa no seu texto ‘La Liberté de l’esprit’ ao estado da Krisis do Espírito, lamentando ser forçado a fazê-lo

 

“é um sinal dos tempos e é um mau sinal, que seja hoje necessário, e mais ainda, urgente, interessar os espíritos à sorte do Espírito, ou seja á sua própria sorte” (7).

 

Voltar à questão do Espírito, em 1939, é uma nova tentativa, ainda mais necessária e mais urgente, de interessar os espíritos à sua própria sorte e à sorte do Espírito, mas sublinhando, em primeiro lugar, que este dá origem a uma economia espiritual (8) que não é possível isolar da economia material; são duas economias que podem distinguir-se como a do útil e do inútil, mas que jamais podem separar-se, porque são produzidas pelos mesmos orgãos.

 

Hoje, setenta anos após Valéry, isto é, setenta anos após a eclosão da Segunda Guerra Mundial que conduziu o horror até um ponto que Valéry jamais teria podido imaginar, nem em 1919, nem em 1939, há que tirar as consequências do facto que Valéry já evidencia de que estas duas economias inseparáveis e no entanto contraditórias, põem em acção os mesmos orgãos: solicitam uma organologia que seja igualmente uma farmacologia:

 

“São os mesmos sentidos, os mesmos músculos, os mesmos membros; mais, os mesmos tipos de signos, os mesmos instrumentos de troca, as mesmas linguagens, os mesmos modos lógicos que participam nos actos mais indispensáveis à vida, como figuram nos actos mais gratuitos, mais convencionais ou mais sumptuários” (9).

 

Como acrescenta Stiegler, estas economias inseparáveis, estão sempre numa relação de conflito quanto ao valor, porque a espécie humana vive sempre sobre dois planos ao mesmo tempo, que têm escalas de valor diferentes: o plano da conservação, que é o de todos os seres vivos e o plano da superação desta conservação:

 

“O homem não tem duas caixas de ferramentas, tem só uma e estas ferramentas tanto lhe servem para a conservação da existência e do seu ritmo fisiológico; como lhe servem para suportar as despesas das ilusões e os trabalhos da nossa grande aventura.

 

O mesmo navio, a mesma barca, transportava as mercadorias e os deuses, as ideias e os processos” (10).

 

Durante muito tempo, séculos, senão milénios, houve

 

“um paralelismo entre os desenvolvimentos intelectuais e o desenvolvimento comercial, bancário e industrial das regiões mediterrânea e renana”

 

Hoje, as coisas já não se passam assim

 

“Cultura, variedades de cultura, valor das coisas do espírito, avaliação das suas produções, lugar que lhes é atribuído na hierarquia das necessidades humanas, sabe-se hoje como com a facilidade da multiplicação das trocas de toda a espécie, tudo isso de baralha, e se torna, por outro lado, estranhamente precário”

 

Por isso, em 1939, Valéry afirma partilhar com muitos dos seus contemporâneos

 

“O sentimento de uma diminuição do espírito, de uma ameaça para a cultura, de um crepúsculo das mais puras divindades (…) sensação que se impõe cada dia mais fortemente a todos aqueles que podem ainda ter a experiência de alguma coisa na ordem dos valores superiores de que falamos (sob o nome de espírito)”.

 

Este devir (sem porvir) que conduz a uma “baixa do valor espírito” (11) procede de uma tendência suicidária

 

“Há algo de suicidário nesta forma ardente e superficial de existência do mundo civilizado” (12).

 

Já que atribuí a este texto o título de ‘Nota sobre Paul Valéry’, não será despropositado citar com maior pormenor o início do texto a que me tenho referido por várias vezes, ‘La liberté de l’esprit’ onde Valéry procura explanar aquilo que entende por Espírito.

 

Julgo que as duas primeiras páginas merecem ser citadas quase integralmente:

 

“É um sinal dos tempos e não é um bom sinal que seja hoje necessário e mais ainda, urgente, interessar os espíritos na sorte do Espírito, ou seja, na sua própria história.

 

Esta necessidade aparece, pelo menos, aos homens de uma certa idade (uma certa idade é, aliás, uma idade infelizmente certa demais para toda a gente), que conheceram uma outra época, que viveram uma vida diferente, que acolheram, sofreram e observaram os males e os bens da existência, num ambiente diverso, num mundo muito diferente.

 

Admiraram coisas que hoje já não são admiradas, viram, ainda bem vivas, verdades que actualmente estão mortas; especularam, em suma sobre valores cuja baixa ou naufrágio é tão claro como o naufrágio dos títulos e das moedas que, como toda a gente, consideravam como valores inquestionáveis.

 

Assistiram à ruina da confiança que depositaram no espírito, confiança que fora, para eles, o fundamento e, de algum modo, o postulado da sua vida.

 

Tiveram confiança no espírito, mas que espírito, que coisa entendiam por esta palavra?

 

Tal palavra não é calculável, já que evoca a fonte do valor de todas as outras. Mas, os homens de que falo atribuíam-lhe um significação particular: entendiam, porventura, por espírito, esta actividade pessoal mas universal, actividade interior e exterior – capaz de dar vida às próprias forças da vida e às reacções que o mundo provoca em nós – de lhe dar vigor, um sentido e um uso, uma aplicação e um desenvolvimento de esforço, diferentes daqueles que são adaptados ao funcionamento normal da vida ordinária, ou seja, à simples conservação do indivíduo.

 

Para compreender adequadamente este ponto, deve entender-se pela palavra “espírito” a possibilidade, a necessidade e a energia de desenvolver os pensamentos e os actos que não são necessários ao funcionamento do nosso organismo, ou não tendem á melhoria deste funcionamento.

 

Porque o nosso ser vivo, como todos os seres vivos, exige a posse de uma potência, uma potência de transformação que se aplique às coisas que nos rodeiam na medida em que a representamos.

 

Este poder de transformação dedica-se à resolução dos problemas vitais que nos impõe o nosso organismo e o nosso meio.

 

Nós somos, antes de mais, uma organização de transformação mais ou menos complexa (segundo a espécie animal) visto que tudo o que vive é obrigado a dispensar e receber a vida, havendo uma troca de modificações entre o ser vivo e o seu meio.

 

Todavia, uma vez satisfeita esta necessidade vital, há uma espécie que é a nossa, espécie positivamente estranha, que julga dever criar outras necessidades para além daquelas que estão ligadas à conservação da vida: outras trocas a preocupam, outras transformações a solicitam.

 

Seja qual for a sua origem, seja qual for a causa deste curioso desvio em relação às outras espécies, a espécie humana comprometeu-se numa imensa aventura… Aventura cuja finalidade e termo ignora e cujos limites julga ignorar.

 

A nossa espécie comprometeu-se numa aventura e aquilo a que chamo espírito conferiu-lhe ao mesmo tempo, a direcção, o aguilhão, o impulso, bem como todos os pretextos e as ilusões que são necessários para a acção. Estes pretextos e estas ilusões têm, aliás, variado de uma época para outra. A perspectiva da aventura intelectual é mutável” (13).

 

É na sequência desta explanação luminosa sobre o que se deve entender pelo espírito que Valéry acentua o modo como se relaciona esta potência humana com a potência animal que é especializada na conservação da nossa vida e no cumprimento normal do nosso funcionamento fisiológico. Há que fazer uma distinção entre estas potências, mas elas são, em todo o caso, aparentadas.

 

Não pode esquecer-se que, seja qual for o objectivo da nossa acção, seja qual for o sistema de impressões que recebamos do mundo que nos rodeia, sejam quais forem as nossas reacções, é o mesmo organismo que assume essa missão, o mesmo aparelho de relações que se envolve nas duas funções que se indicaram, o útil e inútil, o indispensável e o arbitrário.

 

É isso que permite que Bernard Stiegler possa rever-se no texto de Valéry e descortinar no seu texto sobre a liberdade do espírito um apelo a uma organologia e a uma farmacologia do espírito como anteriormente se assinalou.

 

Cinco anos depois da publicação do texto de Valéry, Adorno e Horkheimer publicam a Dialectique de la Raison onde assinalam o modo como uma distorção - ou uma inversão – que se traduziu na conversão do projecto da Aufklärung em racionalização, pôde engendrar o oposto do que os iluministas concebiam essencialmente como emancipação dos espíritos: uma conquista da maioridade e uma luta contra a menoridade.

 

Quando a racionalidade se assume como racionalização, no sentido de Max Weber, isto é, generalizando o reino da calculabilidade, ela produz o contrário da maioridade concebida como a formação individual e colectiva da inteligência e do saber, como Bildung: a racionalização aparece como o desvio técnico da razão científica, capaz de dar origem a uma imensa irracionalidade social e psíquica e a uma alienação massiva dos espíritos.

 

Eis como a “baixa de valor do espírito” é vista, da América, em 1944, por dois alemães que haviam emigrado para New York para instalarem nessa cidade, o Instituto de Investigação Social que tinham criado em Frankfurt, em 1932.

 

O que esta análise precisamente ignora é o carácter farmacológico da técnica, em geral, e das psicotecnologias postas em prática, em particular, pelas indústrias culturais. É este o ponto crítico em que Adorno e Walter Benjamin, que se havia suicidado em 1940 perto da fronteira franco-espanhola, divergem profundamente. Enquanto, para Benjamin, a técnica industrial abre uma nova questão política, impondo à filosofia uma nova tarefa, novos critérios de discernimento, uma nova crítica e uma nova analítica capaz de dar conta da transformação da percepção tonada possível pela viragem organológica que são as novas tecnologias da reprodutibilidade do sensível, Adorno e os seus continuadores da teoria crítica encaram este facto essencialmente e exclusivamente como uma regressão.

 

Mais tarde, Jürgen Habermas virá a extrair todas as consequências desta posição, definindo essencialmente a razão racionalizante como “actividade racional em relação a um fim”, onde a racionalidade tecnológica aparece como o meio de tal fim, o que a opõe à linguagem como actividade comunicacional. Posição que é muito diferente da de Valéry.

 

No fundo, ao ignorarem a natureza farmacológica do logos, os pensadores da teoria crítica procedem em relação à imaginação kantiana, precisamente como Platão procede com a questão da anamnese na sua relação à hipomnese.

 

A sua crítica das indústrias culturais consiste em denunciar o domínio de Hollywood – e os seus prolongamentos, através da televisão - nesse tempo ainda por chegar - uma nova teratologia onde aquilo que era a imaginação como tal, a saber, o que Kant conceptualiza como esquematismo da imaginação transcendental, se vê maquinalmente expropriado pelo mecanismo de produção e projecção cinematográfica, por uma imaginação artificial que extenua e atrofia a imaginação transcendental, tal como a hipomnese curto-circuita e aniquila a anamnese que, para Platão, é o pensamento propriamente dito.

 

Ora, tal como o farmakon literal é a condição da sua própria crítica – o seu próprio remédio – a imaginação e os seus esquemas necessitaram sempre já um cinema das suas projecções fundado sobre uma reprodutibilidade do que Kant chamava a síntese especiosa, ou seja, a capacidade de figuração.

 

Esta figuração pode sempre apresentar-se como uma desfiguração pois, por exemplo, um conceito geométrico não é reconduzível a uma figura que é sempre empírica (factual): só é geométrica a figura que sustenta um raciocínio que nela se projecta, que a sublima e idealiza projectando aí uma idealidade matemática.

 

Ora, Kant afirma que a idealidade precede, como conceito, a sua projecção na figura, pelo que pode ser dita a priori, enquanto o uso a posteriori é sempre possível, sem um saber geométrico e posto ao serviço de um saber técnico, isto é, cego.

 

Realmente, um pedreiro pode utilizar uma regra geométrica, que não pensou por si mesmo e não compreende sequer. Mas é precisamente isso que permite, como mostrou Husserl, uma tecnicização das intuições científicas e uma automatização do cálculo, de tal modo que as ciências europeias entram em crise quando perdem as suas “intuições originárias”. A valorização destas intuições é aquilo que separa Husserl de Kant e o aproxima de Platão.

 

De facto, Kant não permite pensar a condição originariamente farmacológica da imaginação que, contrariamente às suas análises, pressupõe sempre a sua exteriorização técnica numa imagem-objecto que é aquilo a que Stiegler chama uma retenção terciária.

 

Quer se trate da crítica da logografia sofística, segundo Platão, ou da crítica da imaginação artificial hollywoodiana segundo Adorno e Horkheimer, o que está em jogo é sempre a relação ao farmakon, isto é, à técnica.

 

A questão farmacológica foi aberta por Jacques Derrida que abriu caminho ao reconhecimento de que a hipomnese é a condição da anamnese.

 

Toda a obra de Stiegler tem por objectivo estabelecer como os movimentos noéticos através dos quais uma alma se transforma, são sempre articulações de protensões e retenções primárias e secundárias, articulações que são, por sua vez, condicionadas por retenções terciárias, ou seja, dispositivos hipomnésicos. Resulta de todos esses trabalhos que tudo o que se traduza numa oposição entre anamnese e hipomnese, quer seja como memória transcendental ou como imaginação transcendental, conduz a um beco sem saída.

 

Como observa o próprio Stiegler, é certo que há uma necessidade histórica e política que está na origem desta oposição: Platão luta contra a sofística que pôs em crise o espírito e a cidade gregas por um mau uso do farmakon, curto circuitando o pensamento, ou seja, anamnese, privando as almas noéticas do saber que funda toda a cidadania (toda a autonomia). Sob este aspecto, o farmakon constitui um factor de proletarização do espírito (de perda de saber), tal como a máquina ferramenta virá proletarizar os corpos dos operários, privando-os do seu saber-fazer. De modo idêntico, é uma proletarização do espírito que Adorno e Horkheimer denunciam na maquinaria hollywoodiana que afecta a imaginação do cidadão transformado em consumidor (algo que evidentemente eles não analisam como tal).

 

Nas palavras de Stiegler, nada é mais legítimo do que estes combates filosóficos contra aquilo que, na técnica, ou na tecnologia, é tóxico para a vida do espírito. Acontece, porém, que perante aquilo que no farmakon representa a possibilidade de um enfraquecimento do espírito, estas lutas escolhem ignorar a constituição originária farmacológica do próprio espírito. Ao ignorar a farmacologia do espírito, elas fazem do farmakon em geral, o bode expiatório: os das práticas sacrificiais da Grécia antiga politeísta que encontramos também na Judeia onde este farmakon, carrega, como o Cristo, todas a faltas que ele transportará para “uma região inacessível”.

 

Como observa Stiegler, a regressão consiste aqui na ideia de que a retenção terciária é um veneno que destrói a interioridade, quando a verdade é que jamais houve interioridade – se entendermos, por isso, uma fonte originariamente virgem de toda a afecção.

A interioridade é o que se constitui pela interiorização de uma exterioridade transicional que a precede, sendo que o que é verdadeiro em relação á antropogénese, é-o também em relação à psicogénese infantil: o objecto transicional constitui o estádio infantil da farmacologia do espírito, matriz onde se forma o espaço transicional numa relação transdutiva à boa mãe, a mãe que provê os cuidados.

 

Como resulta da obra de Donald Winnicott, esta relação de cuidado constituída pelo primeiro farmakon, o objecto transicional, forma a base daquilo que virá a ser, como espaço transicional, uma área intermédia de experiência onde se formarão os objecto de cultura, das artes, da religião e da ciência.

 

Nas palavras de Winnicott,

 

“De todo o indivíduo que atingiu o estádio em que constitui uma unidade, com uma membrana que delimita um fora e um dentro, pode dizer-se que tem uma realidade interior (…) mas será isto, tudo que há a dizer?

 

Na vida de todo o ser humano, há uma terceira parte que não se pode ignorar, é a área intermédia da experiência para qual contribuem simultaneamente a realidade interior e vida exterior” (14).

 

O espírito é uma interiorização a posteriori desta não-interioridade a que Winnicott chama também “espaço potencial” e esta interiorização supõe uma relação de cuidado, uma aprendizagem pela qual se cultiva uma arte de interiorização – uma arte de viver – a que Winnicott chama a criatividade.

 

Neste espaço potencial, que é o lugar onde pode formar-se esta criatividade, onde os farmaka formam objectos transicionais de todos os géneros, a autonomia não é o que se opõe à heteronomia, mas o que a adopta como o defeito que faz falta (le défaut qu’il faut) e que

 

“Confere ao indivíduo o sentimento de que a vida vale a pena ser vivida” (15).

 

Comentando a obra já citada de Winnicott, Stiegler acrescenta: Aquilo a que Winnicott chama o “si” (o interior) é constituído a partir do defeito primordial de interioridade, como adopção (como forma de individuação) do espaço transicional, interiorização que é uma co-individuação deste mesmo espaço.

 

Farmacológico, o espaço transicional torna-se tóxico (na linguagem de Winnicott, doentio) quando se instala

 

“uma relação de complacência, de submissão perante a realidade exterior: o mundo e todos os seus elementos são então reconhecidos como aquilo é preciso ajustar-se e adaptar-se. Esta submissão provoca, no indivíduo, um sentimento de futilidade, associado á ideia de que nada tem importância” (16).

 

O pensar a não-interioridade foi, sem dúvida, o que caracterizou, de mil maneiras, o pensamento filosófico do século XX, tanto na Europa como na América, mas também uma boa parte essencial da psicopatologia. Ninguém duvida que esse é o fundo comum da “french theory”. Mas, como observa Stiegler, o que foi, no pior dos casos, simplesmente ignorado, na melhor hipótese, um filão ainda por explorar, foi a questão farmacológica e terapêutica que representa o espaço transicional dos objectos transicionais que são os farmaka.

 

Se a “teoria crítica” não é satisfatória é precisamente neste ponto onde falha aquilo que constitui a condição de toda a crítica (de que a anamnese é, para Platão, o modelo), precisamente o farmakon que torna igualmente possível o curto-circuito de toda a crítica.

 

Proceder à análise dos limites desta teoria pode ser perder-se e tatear na sombra: naquilo que as Luzes devem à sombra, já que se o luminoso é o que traz uma luz, também é verdade que não há luz sem sombra, a não ser sob a forma de ofuscação ou cegueira. Mas é uma tarefa que hoje se impõe mais do que nunca, como reabertura da questão da razão, no momento em que a racionalização e o domínio do irracional que dela emerge, produzem uma imbecilidade sistémica que esteve no âmago do que se acreditou, de início, poder pensar-se e circunscrever a uma crise sistémica da finança mundial.

 

A imbecilidade sistémica é engendrada por uma proletarização generalizada, à qual não escapa nenhum actor do sistema industrial consumista, já que esta proletarização é precisamente um desenvolvimento farmacológico em que o farmakon curto-circuita todos os que ele inscreve no circuito da produção, do consumo e da especulação, destruindo toda a forma de investimento, isto é, a projecção desejante da imaginação.

 

O que tem que ser questionado, não é, como acreditavam Adorno e Horkheimer, a exteriorização da imaginação que jamais teve lugar sem as imagens-objecto que constituem as retenções terciárias de todos os géneros, mas o disfuncionamento da economia libidinal, que supõe a razão de onde provém e que a constitui tanto como projecção de luzes como de sombras – de potências do inconsciente que representam a profundidade do campo da consciência.

 

Revisitar as questões da teoria crítica requer uma nova crítica que tenha em conta a situação originariamente farmacológica do espírito – uma crítica farmacológica do inconsciente. Se a metafísica sempre opôs a razão á paixão, ao pathos, equiparados ao afecto e ao desejo, o certo é que Platão faz do desejo a condição e o defeito que é necessário à filosofia (le défaut qu’il faut), enquanto Aristóteles cujo Peri Psukhés está no horizonte da ética spinozista, faz do desejo (como movimento na direcção do primeiro motor imóvel, objecto de todos os desejos) a condição de toda a forma de vida: vegetativa, sensitiva ou noética.

 

O trabalho hercúleo que se abre diante de nós no que se refere à razão, que tem que entender-se como motivo, como a modalidade mais elevada do desejo (isto é, do movimento – da e-moção) consistirá em identificar o papel dos farmaka na formação do desejo em geral e na formação da razão em particular – na formação da consciência como atenção, nos dois sentidos da palavra: atenção psíquica e atenção social, isto é, consciência moral – como terapêutica desta farmacologia.

 

Não pode esquecer-se que o farmakon, sob todas as suas formas, é antes de tudo o mais, o suporte de projecção de fantasmas, ou seja, uma espécie de fetiche. Como tal, é sempre susceptível de fazer regredir o desejo ao estado pulsional.

 

O fogo é o farmakon por excelência. Civilizador, emblema da civilização, constitui também um risco de incendiá-la. Emblema comum da técnica e do desejo, ele articula uma dupla lógica défaut qu’il faut.

 

A técnica que constitui farmacologicamente o defeito que forma o horizonte do desejo abre simultaneamente duas vias antagónicas e inseparáveis: a das pulsões e a da sublimação.

 

As duas tendências do farmakon são as duas tendências da economia libidinal: tanto pode produzir circuitos longos onde se coloca ao serviço de uma líbido orientada para a sublimação, como pode curto circuitar a sublimação, em favor da pulsionalidade.

 

É o jogo de Eros e Tanatos que instaura esta farmacologia. O ser protético e farmacológico é permanentemente lúdico e melancólico: Como se fosse “feito de bílis”. Como narra a história de Prometeu: o seu fígado, que uma ave de rapina devora indefinidamente e volta a crescer como um aperfeiçoamento orgânico sem fim, conecta a técnica não apenas ao desejo, como à morte e à sua antecipação. É entre Eros e Tanatos que se situa aquilo a que Hesíodo chama a elpis (a expectativa ou atenção, preocupação, protensão, ao mesmo tempo como esperança e angústia).

 

E como a melancolia está ligada à dependência, como Freud assinalou no seu texto Deuil et melancolie, o farmakon torna-se tóxico quando provoca a dependência, a heteronomia. Como Platão diz no Fedro, quando a memória é atrofiada pelo escrito, deixa de poder dispensar o seu hipomnématon. Mas a verdade é que não pode haver autonomia sem a adopção de uma heteronomia.

 

Tal como não pode haver liberdade que não seja uma libertação.

 

Já que iniciámos esta nota evocando Paul Valéry, e comentando o seu texto ‘A liberdade do espírito’, não será desapropriado encerrá-lo com algumas suas considerações sobre a liberdade que fazem parte do mesmo escrito.

 

Ao abordar este tema, Valéry começa por observar que a liberdade é uma noção que figura em expressões totalmente contraditórias, já que “a empregamos tanto para dizer que fazemos aquilo que queremos, como para dizer que podemos fazer aquilo que não queremos, o que é, segundo alguns, a máxima expressão da liberdade”. É como se, em cada um de nós, pudessem habitar seres diferentes, que dispondo apenas de uma só linguagem, podem usar a mesma palavra para necessidades de expressão muito diversas. Liberdade é uma palavra que serve para tudo.

 

E Valéry prossegue:

 

“Tanto dizemos que somos livres porque nada se opõe ao que se nos oferece e nos seduz, como nos sentimos superiormente livres porque conseguimos libertarmo-nos de uma sedução ou de uma tentação e agimos contra a nossa inclinação: e vemos aí o máximo grau de liberdade.

 

Observemos, pois, com maior demora, esta noção tão fugidia nos seus usos correntes espontâneos. Vejo, desde logo, que a ideia de liberdade não é, em nós, uma ideia primária. Não é jamais evocada se não for provocada: quero dizer que ela é sempre uma resposta.

 

Nunca pensamos que somos livres a não ser que algo nos mostre que não o somos ou que podemos deixar de sê-lo. A ideia de liberdade é uma resposta a qualquer sensação ou alguma hipótese de perturbação, de impedimento, de resistência, que se opõe seja a um impulso do nosso ser, um desejo dos nossos sentidos, à satisfação de uma necessidade ou ao exercício da nossa vontade reflectida.

 

Não sou livre quando não me sinto livre, mas só não me sinto livre quando me penso constrangido, quando imagino um estado que contrasta com o meu estado presente.

 

A liberdade não se sente, não é concebida, a não ser por um efeito de contraste.

 

Se o meu corpo encontra obstáculos aos seus movimentos naturais, ou às suas reflexões; se o meu pensamento é perturbado nas suas operações por alguma dor física ou por qualquer obsessão, seja por algo proveniente do mundo exterior, por um ruído ou um calor excessivo, ou pelo frio ou pela trepidação da música que vêm dos meus vizinhos, ressinto a aspiração a uma mudança de estado, a uma libertação, a uma liberdade. Tentarei reconquistar o uso pleno das minhas faculdades. Tenderei a negar o estado que me recusa essa plenitude.

 

Veja-se, pois, o que há de negação neste termo liberdade quando se busca o seu papel original, no seu estado nascente.

 

Eis a consequência que retiro disto. Uma vez que a necessidade de liberdade e o desejo de liberdade só surgem naqueles que se sentem sujeitos a constrangimentos, quanto menos restrições houver, menos se produzirá o termo e o reflexo de liberdade.

 

Um ser que seja pouco sensível às perturbações da sua liberdade de espírito, aos constrangimentos que lhes impõem os poderes públicos, por exemplo, ou as circunstâncias exteriores, pouco reagirá contra estes constrangimentos. Não terá qualquer sobressalto de revolta, nenhum reflexo de rebelião contra a autoridade que não o perturba. Em muitos casos, sentir-se-á, pelo contrário, aliviado de peso de uma vaga responsabilidade. A sua libertação consistirá em sentir-se liberto do encargo de pensar, de decidir e de querer.

 

Perceber-se-ão as enormes consequências deste facto: nos homens em que a sensibilidade às coisas do espírito é muito fraca, a sensibilidade às pressões que se exercem contra a produção das obras do espírito, não provocará quaisquer reacções, pelo menos exteriores.

 

Sabeis que esta consequência se verifica bem perto de nós: observei no horizonte os efeitos visíveis desta pressão sobre os espíritos, e a pequena reacção que isso provoca. Isto é um facto por demais evidente. Quem sou eu para julgar? Quem pode julgar os homens? Não será isso, a pretensão de ser mais do que um homem?

Se falo nestes termos é porque não existe para mim nenhum tema mais interessente, e ninguém sabe o que o futuro nos reserva, a nós homens de espírito.

 

Por isso julgo ao mesmo tempo necessário e inquietante que seja obrigado a invocar hoje, não o que se chamam direitos do espírito, isso são apenas palavras! Não há direitos, se não houver a força, mas sim, invocar o interesse, para toda a gente, na preservação e sustentação dos valores do espirito”.

 

 (…) Escrevi há longo tempo, em 1919, que as civilizações são tão mortais como qualquer ser vivo e não é mais bizarro pensar que a nossa possa desaparecer, com os seus procedimentos, as suas obras de arte, a sua filosofia, os seus monumentos, como, desde as origens, desapareceram tantas civilizações, como se afunda um navio que naufraga”.

 

 

 

 

 

 

(*) João Esteves da Silva (n. 1936) é um filósofo e ensaísta português, residente em Lisboa e colaborador permanente do ‘O Comuneiro’. É autor de ‘Para uma Teoria da História – de Althusser a Marx’ (2 vols., Diabril, Lisboa, 1975-76) e de ‘Cinco ensaios sobre Wittgenstein’ (Cadernos de Filosofia das Ciências, Lisboa, 2010) para além de diversas outras obras, dispersos e inéditos.

 

 

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NOTAS:

 

(1) Paul Valéry, “La crise de l’esprit”, Variétés 1 e 2, Gallimard. 1978.

 

(2) Ibidem, p. 15.

 

(3) Edmund Husserl, La Crise des sciences européennes et la phénoménologie transcendental, Gallimard. 1976.

 

(4) Ibidem, p. 10.

 

(5) Ibidem, p. 19.

 

(6) Ibidem, p 15.

 

(7) Paul Valéry, ‘La liberté de l’esprit’, in Regards sur le monde actuel et autres essais, Gallimard. Folio, 1988, p. 207.

 

(8) “La crise de l’esprit” falava de uma física espiritual.

 

(9) Ibidem, p. 209.

 

(10) Ibidem, p. 218.

 

(11) Ibidem, p. 221.

 

(12) Ibidem, p. 223.

 

(13) Op. cit., p. 207-208.

 

(14) Donald Winnicott, Jeu et Realité, Gallimard, Folio, 2002.

 

(15) Ibidem, p 128.

 

(16) Ibidem, p. 127.