A agonia de Portugal

 

 

Ângelo Novo (*)

 

 

 

No passado dia 2 de março de 2013, pelas 16 horas, perto de um milhão de portugueses saíram às ruas, em diversas cidades, em protesto contra as políticas de “austeridade” e regressão social impostas pelo governo direitista de Pedro Passos Coelho, às ordens ou em conivência com os credores internacionais e sua comissão de tutela residente, dita “troika”, por representar o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Comissão Europeia (CE) e o Banco Central Europeu (BCE).

 

A consigna destas manifestações foi “Que se lixe a troika, o povo é quem mais ordena!”. Às 18h30 em todo o país formou-se o coro alentejano de “Grândola Vila Morena”, a sublime canção de Zeca Afonso, santo e senha do movimento de libertação contra o fascismo em 25 de abril de 1974:

 

Grândola vila morena

Terra da fraternidade

O povo é quem mais ordena

Dentro de ti ò cidade (1).

 

Foram momentos de grande emoção, numa jornada que foi mais melancólica do que propriamente combativa. Convocada pela internet por um grupo de ativistas identificado com a nova cultura contestatária internacional dos indignados, a jornada ressentiu-se dos seus próprios dogmas espontaneístas e inorgânicos, resultando em alguma manifesta descoordenação, que deu pretexto para uma polémica sobre o número de participantes e diversos exercícios de relativização. O caráter marcadamente pequeno-burguês do evento era indisfarçável, situando-se os motivos de revolta sobretudo na anulação de perspetivas de ascenção social. Em relação a anteriores iniciativas deste grupo (em particular as grandes manifestações de 25 de setembro de 2012), notava-se agora também, no entanto, a presença dos reformados, brutalmente agredidos e espoliados pelo governo.

 

Torna-se indispensável chamar agora às ruas as grandes massas populares, aquelas mesmas que “não percebem nada de política”. Só a sua presença e energia de luta persistente poderá desequilibrar decisivamente as forças em contenda, ditando efetivamente quem mais ordena como na canção. Tão importante como isso, e para nos começarmos a mover nessa direção, será indispensável um grande amadurecimento tático e estratégico deste movimento internacional indignado/occupy. É preciso pensar que mundo é este que temos, qual o que queremos e como vamos lá chegar. Depois, organizar as nossas forças em função das conclusões. Tudo isso será um processo lento, que requererá ainda muitos choques, muito atrito e a consequente aprendizagem. Mas, para começar, é preciso tomar consciência de que é preciso pensar. Porque até isso parece faltar, havendo mesmo uma certa resistência “de princípio” a que se tome essa consciência.

 

As três entidades desta troika firmaram conjuntamente, em maio de 2011, ainda com o anterior governo do Partido Socialista (PS) encabeçado por José Sócrates, sob a ameaça de bancarrota nacional, um “Programa de Assistência Económica e Financeira”, em inglês, que lhes dão amplos poderes para impor e supervisionar a aplicação de determinadas políticas, detalhadas num “memorando” (2), contendo objetivos a atingir escalonadamente no âmbito fiscal e orçamental, naturalmente, mas também para a economia em geral, para os diversos setores da administração pública, com exigências muito específicas de privatizações, descendo ao pormenor da regulação do sector bancário, das relações laborais, do mercado imobiliário, etc.. A dita “assistência” consiste num empréstimo total de 78 mil milhões de euros, divididos em partes iguais pelos três membros da troika, a uma “módica” taxa de juro variável entre 5 a 5,7% ao ano, concedido em diversas tranches, condicionadas estas ao resultado positivo das sucessivas “avaliações” do cumprimento dos objetivos fixados.

 

Para que o problema do endividamento nacional se começasse a resolver, seria logicamente necessário um crescimento económico igual ou superior ao juro da nova dívida contraída. Mas o resultado das políticas impostas tem sido, como inevitável, uma depressão profunda, com uma contração do PIB de 2,3% prevista para 2013, que acresce ao recuo de 3,2% já registado em 2012. Caem a pique o investimento, a procura interna, o consumo público e privado. O desemprego avizinha-se dos 20% em números oficiais (40% dos jovens). De toda a evidência, os “assistidos” aqui são os credores, que vão assim discretamente fazendo o turn-over destas aplicações de risco, por isso mesmo altamente lucrativas.

 

A contestação à austeridade em Portugal tem sido caraterizada no plano social por uma via dupla, de muito difícil articulação. Por um lado, os trabalhadores organizados na central sindical maioritária – Central Geral dos Trabalhadores Portugueses / Intersindical Nacional (CGTP/IN) (3) – com as suas manifestações caraterizadas pelo rigoroso enquadramento, palavras de ordem compassadas, palcos com intervenientes bem perfilados e implacável serviço de ordem. Deve-se-lhe também a realização com relativo sucesso de duas greves gerais, a 24 de novembro de 2011 e a 14 de novembro de 2012 (esta última coincidindo com greve geral em Espanha), para além de inúmeras paralisações setoriais. Por outro lado, temos os indignados, com o seu voluntariado anónimo, sua criatividade desbordante, suas intervenções em megafone a partir do passeio público (ali “quem quiser pode falar”) e alguns episódios esparsos de violência, como destruição de montras de bancos e escaramuças com a polícia de choque, em particular em Lisboa, na base das escadarias de acesso à Assembleia da República.

 

Com alguma margem de permutabilidade, esta distinção tem correspondência, no plano político, com os dois partidos opostos ao “memorando” da troika: o Partido Comunista Português (PCP) e o Bloco de Esquerda (BE). Também entre estes tem sido impossível concertar posições para uma oposição estratégica consequente a esta política de ruína, submissão e aviltamento nacional, que, com variantes de pormenor, goza de consenso entre todo o arco da respeitável “governabilidade” constitucional, reunindo cerca de 90% dos deputados eleitos à Assembleia da República.

 

Esta lamentável falta de entendimento à esquerda do PS significa que não será nunca presente ao eleitorado uma plataforma alargada, credível e bem articulada de recusa e alternativa a esta política de austeridade ditada pela troika. A isto acresce ainda o facto inexplicável de o reconhecido e respeitado economista Francisco Louçã (4) (que podia, com óbvias vantagens, ser o Alexis Tsipras português) ter escolhido precisamente finais do ano passado (2012) para abandonar a “coordenação” do BE. Deixou-a entregue a uma liderança bicéfala (João Semedo e Catarina Martins), por si próprio apontada, equilibrada em questão de género, por ser o politicamente correto, mas absolutamente inexpressiva. Quanto ao PCP, sob a liderança do ex-metalúrgico Jerónimo de Sousa, o seu apego granítico a uma identidade formada numa outra era deixa-lhe uma margem de progressão muitíssimo limitada (5).

 

Por efeito desta sua cultura própria inconfundível, eivada de um messianismo histórico completamente deslocado, o PCP é incapaz de conceber participar numa qualquer frente ou aliança em que não tenha a iniciativa e a hegemonia estratégica. Mas não lhe cabe a responsabilidade exclusiva da falta de convergência à esquerda. Tão grandes ou maiores responsabilidades ainda têm de ser assacadas a uma manobra completamente falhada, por parte do BE de Francisco Louçã, de envolvimento e diluição do PCP num movimento “cívico” de grande amplitude, que abrangeria ainda setores independentes e da esquerda do PS, impulsionado por uma candidatura à presidência da república do poeta Manuel Alegre. A ideia era tão oportunista que acabou facilmente dominada pelo PS, que se revelou um bloco incindível. O resultado desta luta sem quartel à esquerda da governabilidade burguesa corrente é um amargo equilíbrio de impotências, suspeita, paralisia e ressentimento.

 

Mas também há divergências estratégicas reais bastante marcadas, com o BE sempre muito mais “europeísta” e o PCP mais “nacionalista”. O BE não encara sequer a opção da saída de Portugal do euro, apostando tudo na emergência de um movimento social paneuropeu capaz de enfrentar e derrotar o “austeritarismo”. Sobre esta matéria, Francisco Louçã deu mesmo à estampa estas palavras incríveis:

 

evitemos a ambiguidade do romantismo: se uma decisão fosse tomada por um governo que determinasse que Portugal saísse do euro, esse governo seria o da Alemanha, que é quem neste momento manda na União Europeia. Não há nenhuma outra força social ou política que tenha a capacidade de tomar essa decisão(6).

 

É de saudar vivamente o surgimento de uma nova movimentação social e da sua reivindicação participativa de cidadania, que não se via nas ruas a praças portuguesas há décadas. Os governantes portugueses, em suas visitas oficiais, são sistematicamente interpelados com acrimónia, vaiados, insultados em escritos exibidos e de viva voz. Não confiando plenamente na polícia, rodearam-se de seguranças privados de comportamento rufião, aberta e ostensivamente à margem da lei. Em certas ocasiões (particularmente em auditórios académicos), é-lhes impedido o uso da palavra por manifestações ruidosas e intratáveis. Em certos períodos, a sucessão quotidiana destes incidentes parece quase a ponto de criar uma dinâmica imparável.

 

É de registar ainda, pela sua atipicidade, o enorme fosso de absoluta e intratável inimizade que se cavou entre o governo e as forças armadas. Dos soldados às mais altas patentes, dos meios democráticos à extrema-direita, é unânime o repúdio e o desprezo por este governo, manifestado já por diversas vezes nas ruas (com presença fardada ou não), em reuniões, documentos públicos, artigos de opinião, etc.. Para além de tripudiar de forma escandalosa a soberania nacional, o governo é odiado também por albergar a secreta ambição de reduzir as forças armadas a um mínimo simbólico, com esse fito acumulando os cortes orçamentais com provocações e descortesias as mais diversas. Um golpe militar está fora de questão (embora já se tenham ouvido apelos públicos nesse sentido), mas o governo não poderá contar com as forças armadas do país para exercer tarefas de repressão sobre o movimento social.

 

Pese embora toda esta efeverscência, o certo é que se vive uma luta muito dura e difícil. O governo das direitas coligadas – Partido Social Democrata (PSD) e Centro Democrático Social (CDS) -, formado por um pessoal político de muito escassa formação, inteletual e moralmente desacreditado, mas persistente, aguerrido e sem escrúpulos, no seu serviço incondicional à oligarquia económica e social instalada, está apostado em aproveitar a ocasião proporcionada pela tutela imposta pelo estrangeiro para, à sua sombra, indo sempre mais fundo e mais além, praticar por sua própria conta e risco uma guerra social de amplo movimento. Salários diretos e pensões, na função pública e no setor privado, sofreram cortes brutais, mediando à volta dos 10%, com mais ameaças no horizonte. Impostos diretos e indiretos, em particular sobre o consumo, sofreram aumentos tão desmesurados que são abertamente qualificados de “confiscatórios” pelos especialistas, falando-se também em lançamento de “napalm” fiscal.

 

Pretende-se ainda destruir por completo os ténues esboços de um Estado Providência (Serviço Nacional de Saúde, Segurança Social, Escola Pública), construídos já após a revolução de abril de 1974; empobrecer e fragilizar continuamente todas as camadas profissionais e trabalhadoras; concentrar ainda mais o poder económico nos grandes monopólios rentistas e parasitários; arruinar dezenas de milhares de pequenos empresários, dizimando-os por completo no setor da hotelaria e restauração; privatizar empresas, infraestruturas e mesmo serviços públicos essenciais (aeroportos, transportadora aérea, transportes urbanos, televisão e rádio, rede elétrica nacional, distribuição de energia, combustíveis, água, correios, etc.) num oceano pantagruélico de corrupção; limitar as liberdades públicas e esboroar por completo o sentido e a vivência democráticos das instituições representativas. Até este momento, continua a pertencer ao agressor a iniciativa nesta luta.

 

É possível que este governo de Passos Coelho (PSD) possa ainda ser travado na prossecução de alguma parte dos seus propósitos mais extremistas. Trata-se de um executivo tão impreparado, por um lado, e tão ideologicamente fanatizado, por outro, que suscita grandes reservas ou mesmo a aberta oposição de amplos setores da direita mais tradicional e conservadora, como também das próprias organizações representativas do patronato, que se vêm ridicularizadas como timoratas pelo primeiro-ministro no exercício do seu poder tutelar sobre a... “concertação social”. Notam-se também graves desinteligências na coligação governamental, com o partido minoritário (CDS), teoricamente mais à direita, a exigir constantemente mais ponderação, mais sentido nacional e mais decência.

 

Contudo, o que dá um caráter verdadeiramente dramático à situação do país é que toda esta ofensiva terrorista de uma gravidade inaudita é acompanhada com completa displicência e calculismo oportunista pela oposição oficial, a cargo do PS. A cumprirem-se as regras costumeiras da alternância governativa entre o mal e o pior, o próximo governo, de “esquerda responsável”, para além de manter na íntegra a submissão à tutela externa (aliás, por si chamada e subscrita), nada fará para reverter qualquer um dos resultados práticos da política de terra queimada lançada pela direita. Tratará apenas de os consolidar, com uma certa aura de respeitabilidade democrática, lançando depois ainda e sempre novas iniciativas de “modernização” neoliberal, embora certamente a um ritmo mais repousado. Tudo isto significa que, a menos que ocorra nos próximos anos uma completa ruptura política, baseada numa revolução social – para a qual temos ainda que descobrir forças, organização e estratégia – caminhamos, a passos largos, para nada menos que a completa destruição da república portuguesa.

 

O gravíssimo momento histórico que se vive em Portugal resulta da confluência de várias crises.

 

Em primeiro lugar, temos a crise estrutural do capitalismo ocidental. O aumento da produtividade do trabalho, procurado por cada capitalista individual, por razões de sobrevivência, conduz, para o conjunto da produção capitalista, à substituição do trabalho vivo por uma maquinaria cada vez mais extensa e complexa. É a tendência para o aumento da composição orgânica do capital, ou seja, o aumento do peso relativo do capital constante (cc) em relação ao capital variável (cv). Como, porém, só este último é produtor de mais-valia, os capitalistas devem aumentar cc mais do que proporcionalmente à diminuição de cv, o que se torna cada vez mais difícil de fazer de forma rentável. Consequentemente, uma larga parte dos lucros não é reinvestida em investigação e em máquinas novas, mas antes empregue no resgate de ações, compras, fusões e distribuição de dividendos.

 

A crise de valorização do capital é ainda agravada pelo desperdício de uma parte sempre crescente da mais-valia no improdutivo, no supérfluo, no destrutivo. É o caso das indústrias de luxo e lazer, de armamentos, das despesas comerciais, do imobiliário e finança, etc., etc.. Todos estes capitalistas, ainda que atuando em ramos improdutivos, exigem apropriar-se da “sua parte” da mais-valia social, o que resulta numa diminuição da taxa de lucro para todos. Por fim, o aparato administrativo e repressivo do Estado, que em nada diminui, antes pelo contrário, exige também a sua punção na riqueza socialmente produzida (7).

 

Procurou-se a via do aumento da intensidade do trabalho e/ou diminuição dos salários (diretos e indiretos), o que conduziu à instabilidade social e a dificuldades na realização da mais-valia (sobreprodução/subconsumo). A hiper-expansão do crédito, ocorrida desde o início dos anos 1980, com a concomitante deslocação de poder a favor da facção financeira da burguesia, foi a maneira achada pela classe capitalista, no seu conjunto, para tentar tornear o crescente impasse no processo de valorização do capital. À retração salarial, segue-se o crédito ao consumo. Assim se colocaram as traves mestras da revolução conservadora do neoliberalismo.

 

Com a liberalização e desregulamentação dos mercados financeiros, grandes massas de capital-dinheiro – de grandes bancos, seguradoras, fundos de pensões e fundos de investimentos (hedge funds) – passaram a deambular livremente pelo mundo em busca de oportunidades de valorização. São estes os novos senhores do mundo “globalizado”, que mantêm como reféns governos supostamente representativos. São pudicamente denominados de “mercados” por políticos e economistas, num assomo de sublimação mística. Na verdade, são centros oligárquicos de poder muito concretos, embora embarquem frequentemente em “corridas” desenfreadas, uns contra os outros e sempre contra os povos. Enquanto o ciclo básico da valorização D-M-D’ estagnava, estas manadas enlouquecidas precipitam-se para o ciclo encurtado D-D’, tributário do que Marx denominou de “fetichismo do dinheiro”.

 

Crédito sobre crédito e mais crédito, foi a resposta dos capitalistas, embarcados numa voragem alucinada de criação de capital fictício, em antecipação de lucros produtivos futuros que tardavam cada vez mais ao encontro. Entram em cena os produtos financeiros "derivados", as “alavancagens”, etc.. As vigarices contabilísticas, esquemas piramidais e os créditos incobráveis acumulam-se. Todavia, os bancos são considerados “grandes demais para falirem”. Os Estados resgatam o seu passivo incondicionalmente, transmitindo-o aos trabalhadores, a quem o cobram sob a forma de imposto e diminuição do salário direto e indireto. Entretanto, são os próprios Estados que assim ficam endividados perante instituições financeiras privadas (por vezes os própros bancos resgatados) às quais haviam antes perdoado impostos ou tolerado a fraude fiscal.

 

No entanto, o passivo bancário renova-se, ainda assim, constantemente, como água no convés de um navio em naufrágio. A “austeridade” é assim este processo incessante de bombagem dos passivos financeiros, transferindo o custo da eliminação de ativos fictícios para os trabalhadores e os povos que, subitamente o descobrimos, “viviam acima dos seus meios”. Por outras palavras, trata-se de um processo diferido de regressão social generalizada ocasionado pelo esgotamento histórico do modo de produção capitalista.

 

Em segundo lugar, há a crise específica da União Europeia. É que sobre este pano de fundo geral da crise estrutural capitalista no mundo ocidental, há ainda a considerar as particularidades e contradições próprias da “construção” europeia. Na sequência da criação do euro, a Alemanha reunificada, sob a direção do “social-democrata” Gerhard Schroeder e com o beneplácito dos sindicatos, entrou numa espiral de regressão salarial generalizada, fazendo dumping social sobre todos os seus parceiros europeus. Melhorou assim a sua competitividade industrial e desenvolveu enormes excedentes comerciais. Estes excedentes são, em grande parte, os défices dos países da periferia europeia, que os foram financiando com recurso a um crédito fácil oferecido insistentemente pela banca franco-germânica.

 

A situação tornou-se insustentável sob o aguilhão da crise bancária transmitida por contágio do outro lado do atlântico com o colapso dos créditos hipotecários subprime. Estas dívidas dos países europeus periféricos (públicas, mas sobretudo privadas) tiveram de ser cobradas para saneamento de balanços bancários perigosamente a descoberto. Os juros exigidos pelos “mercados” para refinanciamanto da dívida pública destes países (Grécia, Irlanda, Portugal, depois a Espanha e a Itália) dispararam para valores escandalosos. Apareceram os “programas de assistência financeira” ou de “resgate”. O refinanciamento das dívidas dos países intervencionados é agora feito com dinheiros públicos de instâncias internacionais, com juros altos mas garantidos. Enquanto isso, discretamente, os bancos privados credores (os verdadeiros “resgatados”) vão-se desfazendo, pelo seu valor facial, dos títulos de dívida destes países, protegendo-se assim das consequências do seu default descontrolado ou de uma decisão soberana de suspender pagamentos, auditar a dívida e questionar a sua legitimidade.

 

A crise das dívidas soberanas europeias veio pôr a descoberto fragilidades e inconsistências evidentes do processo de construção da União Económica e Monetária, formalizado pelo Tratado de Maastricht de 1992. Torna-se evidente que não pode continuar a haver livre circulação de mercadorias e moeda única no espaço europeu, sem que haja algum mecanismo de mutualização e de corresponsabilização europeia pela dívida soberana dos países “perdedores” no processo acelerado de concentração industrial que daí necessariamante resultará. Mas, no estado atual da sua consciência, isso é completamente inaceitável para as classes dirigentes nos países “ganhadores”, à cabeça dos quais se encontra a Alemanha. Sob o aperto inclemente dos “mercados” e perante a indecisão quanto a aspetos essenciais na definição do seu futuro, a União Europeia vive uma hora de graves perigos. Não há lideranças capazes de conduzirem uma federalização política efetiva, enquanto que a integração económica gera tensões insuportáveis no sentido de um perfilamento hierarquizado dos Estados-Nações integrantes. A tentação neo-bismarckiana da chanceler Angela Merkel pode bem conduzir a uma ruptura catastrófica de que resultará, certamente, a acentuação do declínio histórico deste continente no xadrez mundial.

 

Por último, estamos, aqui em definitivo, perante o estertor final da burguesia portuguesa enquanto portadora de um projeto político nacional. Portugal é das mais antigas unidades políticas em existência contínua no mundo, tendo desempenhado um papel de relevo em diversos períodos da história universal. Foi sacudido por uma revolução proto-burguesa vitoriosa em finais do século XIV e foi pioneiro no longo ciclo de expansão europeia que criou o mundo moderno. Todavia, o génio do capitalismo não brotou aqui espontaneamente e, uma vez enxertado a partir do exterior, nunca vicejou de forma assinalável. As elites sociais portuguesas foram sempre estranhas ao seu ethos peculiar. Nunca completaram a transição da rapina colonial e do mercantilismo para a acumulação auto-centrada de capital produtivo.

 

A corte de Lisboa viveu momentos de esplendor ostentatório, com os sucessivos ciclos da pimenta da Índia, dos escravos africanos, do ouro do Brasil. Mas as riquezas fabulosas desses tráficos tinham fugaz e estéril passagem por terras lusitanas, sendo finalmente metodicamente entesouradas por mercadores, banqueiros e industriais da Europa central. O fluxo contínuo destes réditos coloniais teve, pelo contrário, o efeito de paralisar a estrutura agrária senhorial do país, impedindo a libertação do trabalho para empreendimentos de novo tipo (8).

 

O primeiro surto industrial dá-se em Portugal já em finais de século XVIII, por iniciativa centralista de um déspota esclarecido, o Marquês de Pombal. Por essa altura, já o país tinha o seu desenvolvimento económico e a própria soberania hipotecados pela subalternização à Inglaterra, ao custo da qual recuperou a independência em relação coroa filipina de Madrid, em 1640. A implantação do liberalismo em 1820 trouxe a separação forçada do Brasil (imposição inglesa), um longo ciclo de guerras civis e o adiamento da reforma agrária. Quando o capitalismo toma finalmente firmes raízes no país, já na segunda metade do século XIX, é à custa de concessões, monopólios, garantias e avales, contratos, preços tabelados, subsídios, pauta aduaneira colonial, condicionamentos industriais, repressão social e favores diversos obtidos diretamente do Estado. Esta caraterística cortesã, rentista, parasitária e avessa ao risco marcará a classe capitalista portuguesa para sempre (9).

 

A economia portuguesa foi sempre estruturalmente deficitária. Nos últimos cento e cinquenta anos, os únicos saldos positivos na balança comercial registaram-se em 1941 e 1943, nas condições especiais da ditadura salazarista e da guerra mundial. Este défice crónico foi sendo colmatado com diversos expedientes de recurso: remessas de emigrantes, turismo, ultimamente os fundos estruturais europeus e, desde sempre, o crédito externo. Deste modo, a presente crise da dívida pública portuguesa é apenas a última de um longo ciclo que remonta a quinhentos anos atràs (10). O paralelo com a bancarrota da monarquia constitucional em 1892-1902 é, deste ponto de vista, particularmente instrutivo, mas não pode aqui ser desenvolvido.

 

Depois da larvar guerra social que imperou durante toda a I República (1910-1926), a viabilidade do capitalismo português procurou afirmar-se por intermédio do fascismo e seu império colonial africano. Ao longo de toda a guerra colonial (1961-1974), sempre se afirmou em Lisboa que a perda das “províncias ultramarinas” seria o fim de Portugal como nação independente. Perdida esta guerra, de volta a um regime político de liberdades públicas, o impetuoso avanço das lutas populares, entre 11 de março de 1974 e 25 de novembro 1975, sob a proteção da ala radical do Movimento das Forças Armadas (MFA), produziu a mais importante transformação nas estruturas capitalistas e avanço em direção ao socialismo jamais registados num país da Europa ocidental. Passado este susto, consumado o thermidor de novembro, a “integração europeia” foi a alternativa histórica e a aposta estratégica da burguesia triunfante, como aliás já se desenhava, no estertor do fascismo, a partir da sua “ala liberal”. A adesão consumou-se em 1986 e serviu de trampolim para uma completa reconstituição da oligarquia capitalista tradicional (Mello, Champalimaud, Espírito Santo, clube a que acederam também Belmiro de Azevedo e Américo Amorim), com a escandalosa onda de privatizações que se lhe seguiu. Passadas algumas décadas de contínua venda de ilusões, desindustrialização pactuada e corrupção galopante, o resultado é o que temos perante nós: uma débacle histórica de proporções aparentemente insuperáveis, dentro do atual modelo de organização social.

 

A prossecução de um projeto nacional português está agora inteiramente dependente da ocorrência de uma alteração radical no bloco social de poder. Haverá que suspender de imediato todos os pagamentos, auditar a dívida externa de forma pública e rigorosa, repudiar uma grande parte dela e renegociar a restante; nacionalizar a banca, os serviços públicos, os transportes axiais, todos os setores estratégicos da indústria; fazer um reforma agrária bem dimensionada; reformar o sistema político no sentido de uma real e efetiva democracia, com mandatos imperativos, fiscalizados e revogáveis a todos os níveis do Estado; fazer um planeamento democrático e participado do investimento público. Bom é de ver que, para tudo isto, é necessário encarar de frente a opção da saída do euro e da União Europeia. Será ainda necessário contar, de um momento para o outro, com centenas de milhares de quadros formados com apetrechos teóricos completamente distintos dos que se ensinam presentemente nas escolas. É muito difícil que o país consiga encontrar em si próprio energias, recursos, coragem e denodo para trilhar, por si só, este caminho, afrontando com todos os poderes instalados lá fora. Contudo, poderá ainda vir a fazê-lo, se devidamente enquadrado num movimento de profunda ruptura política e social bem mais amplo, a nível não só europeu, mas mundial.

 

Se assim não ocorrer, a alternativa, para terminar com outra canção, passará por aderir melancolicamente aos propósitos manifestados pelo jovem cantor-autor B Fachada em ‘Deus, Pátria e Família’:

 

Portugal está para acabar

É deixar o cabrão morrer

Sem a pátria para cantar

Sobra um mundo para viver.

 

 

 

 

 

 

(*) Ângelo Novo (n. 1961) é um pesquisador e ensaísta independente português, editor da revista eletrónica O Comuneiro. É autor de ‘O estranho caso da morte de Karl Marx’, Edições Mortas, Porto, 2000.

 

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NOTAS:

 

(1) A versão original da canção, na voz do seu autor, pode ser ouvida no Youtube, assim como uma versão histórica de grande raridade na voz de Amália Rodrigues.

 

(2) Há uma versão em língua portuguesa deste “Memorando de entendimento sobre as condicionalidades de política económica”, com tradução da exclusiva responsabilidade do governo português, mas em caso de divergência de interpretação vale exclusivamente a versão inglesa, aliás a única oficial.

 

(3) A CGTP/IN foi fundada em 1970, de forma clandestina, nos tempos do estertor final do regime fascista, a partir de um conjunto de direções conquistadas pelo movimento democrático nos sindicatos oficiais. A sua direção sempre foi controlada pelo PCP mas abrange setores socialistas, autogestionários, católicos, de extrema-esquerda, etc.. O seu funcionamento e a sua cultura organizativa sempre foram abertos e unitários. Com a revolução de 25 de abril de 1974 adquiriu de imediato um caráter de massas e conquistou uma hegemonia indisputada no movimento sindical português. Trata-se mesmo de um caso bastante raro, no mundo ocidental, de uma central sindical dominante a nível nacional que adopta uma postura clara de confronto de classe, com um horizonte em aberto para a ruptura social. A outra central sindical, a União Geral dos Trabalhadores (UGT), de ideologia contratualista, nunca se implantou verdadeiramente entre os trabalhadores, sobrevivendo à custa de subsídios.

 

(4) Francisco Louçã (n. 1956) foi ativo desde muito jovem na oposição à ditadura fascista e à guerra colonial por ela travada em África. Aderiu então ao trotskismo: Liga Comunista Internacionalista (LCI), depois Partido Socialista Revolucionário (PSR). Este último é um dos componentes essenciais na origem do Bloco de Esquerda (BE), juntamente com a “estalinista” União Democrática Popular (UDP). Desde a sua constituição, em 1999, sob a liderança indiscutida de Louçã, o BE teve sempre uma postura reformista e de cordato institucionalismo. Sendo um partido da “esquerda da esquerda”, federado como tal a nível europeu, está hoje claramente à direita de partidos do reformismo estrutural como são o Parti de Gauche (França) ou o Die Linke (Alemanha). Discípulo que foi de Ernest Mandel, Louçã permaneceu sempre e ainda hoje é uma referência cimeira na direção da IV Internacional (Secretariado Unificado), o que é muito pouco conhecido em Portugal. Sobre a sua vida, v. PAÇO, António Simões do. Francisco Louçã. Biografia. Lisboa: Bertrand Editora, 2009. A sua carreira académica está construída, no país e no estrangeiro, com adesão à chamada escola da “Economia Evolucionista” (de tradição schumpeteriana), tendo livros publicados em co-autoria com os já falecidos professores Mark Perlman e Christopher Freeman. Sobre este último e em que medida ele pode ser considerado um prócere do neoliberalismo, leia-se o artigo de Marcos Barbosa de Oliveira neste número de O Comuneiro. Quanto a Louçã, vai agora regressar a tempo inteiro à docência, como professor catedrático, do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) em Lisboa, onde preside à Unidade de Estudos sobre a Complexidade na Economia. Um amigo seu, também académico e fundador do BE, o Prof. Fernando Rosas, revelou recentemente à imprensa que, no seu entender, ao generoso ativismo político de Louçã se ficará a dever, porventura, o facto de ele não ter sido ainda galardoado com o Prémio Nobel da Economia.

 

(5) Moldado na era estalinista, nas duras condições da luta antifascista clandestina, sob um domínio pessoal avassalador do seu carismático dirigente Álvaro Cunhal (1913-2005), o PCP foi, na Europa, o partido sempre fiel à linha ditada no momento por Moscovo. Na era do tardo-brejnevismo, apadrinhado por ideólogos como Boris Ponomariev e Mikhail Suslov, Cunhal chegou a ter um papel de algum relevo no chamado movimento comunista internacional, no combate ao “eurocomunismo”, desempenhando algumas missões discretas e intervindo em tribunas teóricas como a ‘Revista Internacional’, por exemplo. Recebeu com muitas mas ocultas reservas as reformas de Gorbatchov (glasnost, perestroika). A queda da União Soviética foi um trauma do qual nunca recuperou verdadeiramente. A certa altura o partido esboçou uma crítica aos “erros” na construção do socialismo aí intentada, mas logo a renegou, atribuindo agora o fracasso em exclusivo ao cerco e à agressão do imperialismo. Depois de rechaçar sucessivas vagas de dissidência interna, com perfil mais ou menos social-democratizante, o PCP mantém hoje exatamente a mesma definição estratégica dos partidos comunistas ao tempo da “coexistência pacífica”, passando-se em claro o irritante pequeno facto de que agora já não há qualquer “campo socialista” com o qual se possa convergir vitoriosamente, na paz. Afirmando-se embora marxista-leninista, rejeita a insurreição popular, aderindo lealmente à democracia constitucional vigente, que pretende aprofundar e fazer avançar pacificamente em direção ao socialismo, com políticas anti-monopolistas, de estatização progressiva da economia, promotoras da independência nacional. No entanto, tendo-se oposto à adesão de Portugal à então Comunidade Económica Europeia (CEE), não encara hoje a hipótese de saída da União Europeia. A opção de saída da zona euro começa a ser encarada mas não está planeada ainda, pelo PCP. Nem se vê como é que esse planeamento possa ser feito de forma efetiva sem prever a hipótese de saída da União Europeia. Esta inconsequência flagrante não pode deixar de ter os seus efeitos. Está em curso um processo lento mas aparentemente irreversível, de erosão e envelhecimento, quer do quadro de militantes, quer do eleitorado do partido. Este último, em sete eleições nacionais sucessivas, a partir de 1999, vem oscilando apenas, muito ligeiramente, em torno dos 400.000 votos, correspondentes a cerca de 7% dos escrutínios válidos.

 

(6)  Cf. LOUÇÃ, Francisco e MORTÁGUA, Mariana. A dividadura. Portugal na crise do euro. Lisboa: Bertrand, 2012, p. 19.

 

(7) Cf. THOMAS, Tom. Escolher entre a destruição do capital ou a da humanidade, O Comuneiro, nº 15, setembro de 2012. Todos os escritos de Tom Thomas estão agora disponíveis em linha na sua língua francesa original em Démystification.

 

(8) Cf. SÁ, Victor de. Repensar Portugal. Lisboa: Livros Horizonte, 1977.

 

(9) Cf. COSTA, Jorge et alii. Os donos de Portugal. Cem anos de poder económico (1910-2010). Porto: Afrontamento, 2010. Há uma interessante adaptação cinematográfica disponível em linha.

 

(10) Cf. RODRIGUES, Jorge Nascimento. Portugal na bancarrota. Cinco séculos de história da dívida soberana portuguesa. Lisboa: Centro Atlântico, 2012.