Pequena nota sobre o pleonexo (1) pósmoderno

 

 

João Esteves da Silva (*)

 

 

Na sua grande obra “A Política”, Aristóteles havia traçado, nestes termos, o retrato do Sociopata que punha em perigo a existência da polis:

 

Há quem seja conduzido a pensar que o que confere sentido às suas vidas é o aumento ilimitado da sua riqueza. A origem deste modo de pensar reside em que se preocupam apenas com viver e não com viver bem, e porque verificam que os seus desejos são ilimitados, querem que os meios de que dispõem para os satisfazer sejam tão ilimitados como eles”.

 

Sabemos que esta ideia, aqui exposta por Aristóteles, foi constantemente reafirmada pela cultura grega. Já fora expressa pelo poeta Teógnis, no século V A.C. de um modo assaz radical: “No homem, a riqueza (ta cremata) torna-se loucura (aphrosune)”. Esta máxima é comentada por Jean-Pierre Vernant, nestes termos: “Koros (a arrogância orgulhosa), hubris (o delírio das grandezas, a ambição sem limites) e pleonexia (o desejo de possuir cada vez mais) são as formas desta irrazão… que só pode gerar injustiça e opressão, dusnomia (afundamento das regras da vida colectiva)”.

 

É curioso verificar que o pleonexo pós-moderno assume, hoje em dia, todos os traços do sociopata que Aristóteles desenhara no século IV A.C., mas sob forma magnificada como numa caricatura: quanto mais liberto se sente de toda e qualquer regra, e desenvolve esta inteligência prática, quase animal, típica do espertalhão, mais se mostra grandiloquente e arrogante, enquanto triunfa, lastimável e pungente no momento em que a realidade o apanha - quando “cai na real, como dizem no Brasil” - e naufraga nos seus próprios sofismas.

 

Este funcionamento sofístico é imediatamente detectável na denegação da realidade, designadamente a da própria existência da economia real e na arrogância com que são esquecidas ou ocultadas as mais elementares leis do seu funcionamento.

 

Atente-se este simples dado cuja apreensão tem o efeito de um murro no estômago, para usar a linguagem castigada do nosso Primeiro-Ministro, e é mencionado no livro de François Morin, antigo membro do Conselho Geral do Banco de França e do Conselho de Análise Económica, ”Le Nouveau Mur de l’Argent. Essai sur la Finance globalisée”: a economia real representa, hoje (o livro é de 2006) apenas 2,2% da totalidade das transações interbancárias do planeta, todo o resto, ou seja, quase 97% releva da economia virtual, ou imaginária (constituída essencialmente por bolhas especulativas) habitualmente chamada economia financeira.

 

Desde que ocorreu a tomada do poder, à escala mundial, pelo Mercado (o Divino Mercado como diz Dany-Robert Dufour (2) ) a relação entre estas duas economias inverteu-se radicalmente, visto que, no início dos anos 1980, as transações sobre produtos financeiros derivados representavam menos de 1000 biliões de dólares e atingiram, em 2005, 1 406 000 biliões, ou seja um pequeno incremento de 1400%. Estamos, de facto, perante uma economia imaginária já que foi preciso que se atingissem taxas de rendibilidade dos investimentos da ordem dos 15 a 20% - o que faz de tais investimentos verdadeiros mecanismos usurários. Vivemos hoje num mundo onde o empréstimo usurário, ou o seu equivalente pós-moderno, tomou o lugar do velho funcionamento comercial normal. O que tem como resultado que a economia mundial, doente e hipertrofiada, caminha, ou oscila sobre a cabeça, como se fosse uma pirâmide invertida, deixando-nos à mercê de uma mega bolha que pode rebentar de um dia para o outro.

 

Foi esta inversão que permitiu o aparecimento de uma nova casta de pleonexos que se criou, apropriando-se de uma porção verdadeiramente desporcionada – passe o oximoro, tanto ao gosto dos novos sofistas (3) - a partir da desmultiplicação virtual da economia real. Isto funciona (estamos cada vez mais esquecidos do velho senso comum que nos dizia que nem tudo o que funciona é bom) a partir a apropriação, da expropriação, do encroaching, diria o velho Hobbes - a designação não importa – multiplicando, por exemplo, as técnicas que permitem aquisição de bens com um desembolso insignificante relação à expectativa de ganho (o leverage (4) que possibilita, graças ao empréstimo, adquirir activos com um mínimo de fundos próprios) ou vendê-los sem os deter (o short selling consiste em vender, a contado, títulos que não são nossos, esperando comprá-los depois a um preço mais baixo). Vale tudo para satisfazer a paixão: sempre mais, ilimitadamente! O que o pleonexo almeja é a riqueza infinita. E, em termos práticos, obteve-a. Desde que o princípio pleonexo trinfou, a partir dos anos 1980, chegámos a uma situação em que trezentas pessoas, habitantes desta Terra, possuem, no seu conjunto, um património igual ao de… três biliões de seus semelhantes! Note-se que para que tal seja possível, basta que, em média, cada uma destas trezentas pessoas detenha bens numa quantidade dez milhões de vezes superior a cada uma destas três biliões de almas.

 

Para se ter uma noção mais precisa do que esta situação representa, note-se que, em 2008, noventa cinco mil pessoas – mais ou menos a capacidade do estádio de futebol do Maracanã – possuíam a quarta parte de toda a riqueza produzida no mundo. Mas, para que o escândalo – aquilo em que se tropeça como o Evangelho chamava a atenção – seja mais visível, note-se que, mesmo depois da baixa, para metade, do valor das acções da Microsoft, existe uma pessoa que possui um património igual ou superior ao do produto interno bruto de 140 países do Mundo, num total de 226. Para quem lhe pareça que estes números não são suficientemente impressivos, pode acrescentar-se que um operário que receba o salário mínimo teria que trabalhar uns quatro milhões de anos, sem comer, nem beber e sem teto para a família, para reunir este pecúlio, o que são absolutamente nada, se os compararmos aos sessenta e cinco milhões de anos que seriam necessários para conseguir o mesmo feito, aos três biliões de seres humanos que ganham cerca de dois dólares por dia.

 

Estas pequenas torpezas não impedem os defensores do princípio pleonéxico de afirmar, como consumados sofistas, que a pobreza do mundo tem recuado significativamente. De acordo com a moral, totalmente amoral, do consequencialismo (5), os privilégios acordados aos pleonexos, segundo o princípio de ilimitação, são justos, uma vez que houve um efeito benéfico para o maior número. Mas erram, pelo menos, por duas vezes. A primeira, quando sustentam que o aumento do rendimento diário dos mais pobres de um para dois dólares, representa um progresso extraordinário. É óbvio que se trata de um aumento de 100%; mas o problema é o de que se fica tão pobre com dois dólares como se era com um. Mas erram pela segunda vez porque se baseiam numa mensuração da pobreza e da riqueza em termos absolutos, quando a pobreza e a riqueza são sempre relativas. É verdade que a pobreza absoluta diminui - o que é um mínimo, neste contexto de ilimitação - mas a pobreza relativa a agrava-se.

 

Mas a loucura destes novos sofistas não se mede apenas pela incrível enfatuação e arrogância destes pleonexos que usam, em relação a si mesmos, uma retórica da competência: se são mais bem pagos, é porque são mais competentes, o que se afigura simplesmente óbvio uma vez que a competência é reduzida à capacidade de fazer dinheiro. Foi assim que a nossa época pós-moderna assistiu ao desenvolvimento de uma siderante retórica da competência reduzida a esta forma prostituicional cara aos pleonexos. Quando se assiste a declarações de gestores e CEO que definem a sua missão como a criação de valor para o accionista, a caracterização desta retórica como prostituicional deixa de ser surpreendente.

 

A história humana virá certamente um dia recordar estes sofistas que se designavam a si mesmos como hipercompetentes no preciso momento em que produziam uma catástrofe económica com poucos paralelos na nossa vida de terráqueos: um “Pearl Harbour económico”, na expressão do multimilionário americano Warren Buffet. Este desastre sem precedentes só pode explicar-se por um completo naufrágio intelectual.

 

Ne pensez plus, depensez!”. Eis o slogan que - só funciona em francês – foi inventado por Dufour para caracterizar este naufrágio.

 

Há um outro que também só funciona em francês que é quase tão bom como este. Tem que ver com o abençoado, mas tão mal compreendido e assumido, fim do Patriarcado; de facto, a época pós-moderna terá passado do “Père au pire!”.

 

 

 

 

 

 

(*) João Esteves da Silva (n. 1936) é um filósofo e ensaísta independente português, autor de ‘Para uma Teoria da História – de Althusser a Marx’ (Diabril, Lisboa, 1975-76) para além de diversas outras obras, dispersos e inéditos.

 

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NOTAS:

 

(1) A pleonexia é uma categoria do pensamento platónico que aparece pela primeira vez no Górgias e é amplamente desenvolvida na República. Vide sobre este tema o brilhante artigo do filósofo espanhol Nemrod Carrasco, “Pleonexia: o centro ausente da República de Platão”, publicado Revista da Filosofia. nº 45, 2008, p. 71-83.

 

(2) Vide entre outras obras deste ensaísta francês, “A arte de reduzir cabeças”, “O Divino Mercado”, “A Cidade Perversa” e "O indivíduo que virá… após o capitalismo”, de que me servi abundantemente na redacção desta nota.

 

(3) Repare-se bem no último, de ontem, do nosso simpático Primeiro-Ministro: “Eu também sou contra o aumento de impostos!”

 

(4) Por vezes vertido para a língua pátria, pelo uso de um palavrão inacreditável, alavancagem.

 

(5) O consequencialismo é uma variante ou ramo do utilitarismo, doutrina pretensamente moral para a qual não existe nenhuma dignidade ou sacralidade da vida ou do indivíduo. Em termos, muito simplificados, para o consequencialismo, uma acção é justificada se as suas consequências forem boas.