A arte de reduzir as cabeças

 

 

Dany-Robert Dufour e João Esteves da Silva (*)

 

 

 

Um dos grandes paradoxos - entre muitos - da pós-modernidade é o que resulta, da enorme influência do que poderia chamar-se o axioma fulcral da sociologia de Pierre Bourdieu: “todo o acto cultural é um acto de domínio de uma classe social sobre outra(1), com uma condição subsidiária que, aliás, o próprio Bourdieu, talvez em homenagem a Marx, tem o cuidado de assinalar, “é necessário que isso passe desapercebido”. De facto, a cultura dominante impor-se-á com tanto maior facilidade, quanto menos se note a arbitrariedade do seu domínio.

 

Desde os anos 1960, este novo axioma veio a a usurpar o lugar do paradigma das Luzes, o qual poderia ser sintetizado no axioma exactamente oposto: “é preciso combater a ignorância”, ou na versão mais incisiva e mais concisa de Jean-Claude Milner, “não há nenhuma ignorância útil”, o que constitui o mais eficaz contraponto, que conheço, da afirmação, hoje, constantemente repetida da inutilidade dos saberes sem aplicação prática imediata.

 

Isto significa que, enquanto o paradigma das Luzes se baseava na força emancipadora do acesso de todos ao saber e à cultura, como objectivo que se deveria almejar, a cultura veio a transmutar-se, através de uma inversão verdadeiramente extraordinária, naquilo de que deve ser encarado com a maior das desconfianças. Aquilo que, anteriormente, era compreendido como um instrumento de redenção de todos e, mais particularmente, dos mais oprimidos, transformou-se num instrumento de poder e de alienação. Nos anos1960-70, o slogan quese ouvia por toda a parte, era “saber = poder”; deste modo os trabalhos de Michel Foucault – que simpatizava com este slogan, embora nunca o tivesse verdadeiramente adoptado - vieram a conferir uma caução histórica e filosófica aos estudos sociológicos de Bourdieu. Ainda hoje não se deu conta de todos os efeitos devastadores que a sua tese reducionista veio a provocar sobre a cultura geral e sobre a escola, no decurso dos últimos quarenta anos.

 

A redução, em bloco, de toda a cultura à única relação dominantes/dominados não poderia deixar de ter os efeitos mais perniciosos porque ignora ou finge ignorar aquilo que é ontologicamente a cultura, a cultura em si mesma, com os seus níveis específicos de consistência simbólica e estética.

 

Lacan que tinha uma concepção do simbólico assaz diferente da de Bourdieu, dissera nos seus Écrits, Paris, p. 468 que “o homem é, desde antes do seu nascimento, e para lá da sua morte, um ser apanhado na cadeia simbólica”. E como que para dissipar todas as dúvidas sobre aquilo que isto significa acrescentava, na p. 459, que “o sujeito é servo da linguagem e, mais ainda, servo do discurso”. Servidão simbólica, eis precisamente do que se trata: nada permite escapar a este domínio radical do homem pela linguagem, sob pena de perder a sua humanidade e mergulhar na barbárie.

 

Só depois se ter tomado consciência deste domínio (ontológico) do simbólico é que se pode pôr em evidência, como fez Marx, o facto indiscutível da dominação na sua vertente sociopolítica. E o próprio Marx permite compreender quão complexo e subtil é este domínio sociopolítico, já que se apresenta como uma realidade que se afirma sempre sob a forma da dissimulação. De facto, este domínio é não só o conjunto dos meios através dos quais certos grupos de indivíduos exercem um controlo económico, político e/ou cultural sobre outros grupos, como também o conjunto de todas as formas pelas quais o grupo dominante consegue fazer passar os seus interesses particulares por interesses universais. No entanto, esta segunda dominação (secundária) tem a particularidade de ser, não ontológica, mas contingente, e só poder funcionar enquanto os dominados são enganados ou se deixam enganar. No momento em que um grupo humano deixa de ser mistificado pela dissimulação dos dominantes e verifica que o rei está nu, deixa de se deixar enganar de modo permanente, e revolta-se, o que também pode vir a saldar-se pela entrada em cena de uma nova forma de domínio.

 

Há, portanto, que distinguir dois tipos de dominação de natureza muito diferente: um dos domínios (o do simbólico) é originário e não ultrapassável, o outro é secundário, e pode ser desfeito sob certas condições. O problema reside em que na vida prática, estas duas formas de domínio, apesar de diferentes, estão ligadas e é fácil confundir uma com a outra. Ou se valoriza exclusivamente a dependência ontológica e se esquece o domínio sociopolítico, e se cai nos altos voos metafísicos sobre o Ser, tão pouco atentos à realidade da dominação sociopolítica que podem vir a traduzir-se na cegueira perante as piores de entre elas, como aconteceu a Heidegger face ao nazismo, ou se toma em conta apenas a dominação sociopolítica, e não se apercebe ou, inclusivamente, é negada toda a especificidade da cultura.

 

Só a tomada de consciência da ligação íntima destes dois tipos de dominação e da sua delicada e subtil montagem, torna possível entender como certos grupos tiram partido da dominação ontológica (necessária) para estabelecer e consolidar o seu domínio sociopolítico (contingente). Este prodígio só é possível, exercendo um controlo tão estrito quanto for possível, sobre tudo o que comanda o acesso ao sentido. A estratégia das classes dominantes consiste invariavelmente na tomada do controlo do acesso à função simbólica, não por preocupação filantrópica, mas por execução do seu projecto de domínio. Se a língua e os sistemas simbólicos estão à disposição de todo o sujeito falante, isto não impede que possam estar sujeitos a um severo controlo. As sociedades da modernidade eram, neste sentido, sociedades disciplinares, como Foucault mostrou, nos anos 1960, nos seus trabalhos sobre o asilo e a prisão e nos anos 1970, sobre o biopolítico (quando a vida começou a ser objecto de decisões políticas).

 

Mas esta tomada de controlo da vida pelo poder não significa que as duas formas de domínio possam ser confundidas. O domínio ontológico nunca é inteiramente solúvel no domínio sociopolítico. Nada pode travar a procura do sentido. Pelo simples facto de ser homem, cada um de nós, seja qual for o seu estatuto, tem um direito absoluto e inalienável à palavra. É isso o que mais preocupa os governantes e os dominantes, mas, por muito que lhes custe, terão sempre que conformar-se com este facto.

 

O grande erro é o de confundir as duas dominações. Esse é precisamente o erro que cometem todos os que encaram os actos de dessimbolização como actos de resistência ao domínio, quando o produto desses actos não pode deixar de ser precisamente a destruição da função simbólica, como foi evidente no Camboja com o famigerado regime de Pol-Pot. A violência nua jamais pode quebrar a mola mais íntima da humanidade do homem, cujo núcleo primordial reside da dependência simbólica.

 

A ideia peregrina de que é atacando este núcleo primordial que podemos libertar-nos da dominação sociopolítica, é um trágico contrassenso que tem contribuído para a completa desorientação da esquerda europeia.

 

Este contrassenso é de tal ordem que quando a esquerda que se intitula radical pensa obter as suas maiores vitórias, lutando para abolir todas as discriminações e todas as desigualdades, está, na prática, a contribuir para a destruição das últimas barreiras que ainda obstruíam o domínio total da mercadoria e a contribuir para a vitória dos seus adversários.

 

A evolução deste nosso mundo, nos últimos 40 anos, constitui a mais evidente demonstração desta verdade. Com efeito, a novidade do ultraliberalismo que está hoje em vias de destruir tudo o que resta da nossa comum humanidade, é a de que, ao contrário do que se passava com as formas anteriores do domínio sociopolítico, que funcionavam com base na repressão e do controlo institucional, o novo capitalismo funciona com base na desinstitucionalização. O seu objectivo principal é o de levar a cabo a destruição sistemática de todas as instituições e de todas as referências culturais e simbólicas que possam entravar a livre circulação das mercadorias.

 

Os brilhantes estudos de Michel Foucault, que acima referimos, sobre as sociedades disciplinares apesar de todo o seu brilhantismo e da sua hábil fundamentação, não deixaram de dar lugar a imensos mal entendidos. No preciso momento histórico em que Foucault apontava os hospitais psiquiátricos, as prisões e a escola, como os expoentes da repressão capitalista que era preciso atacar e inclusivamente destruir, a vanguarda capitalista (note-se que, ao contrário do que muitas vezes se supõe, uma vanguarda não é necessariamente de esquerda; também há vanguardas de direita, que, nos últimos tempos têm estado muito mais activas do que as de esquerda) dava início à execução do seu programa de destruição metódica de todas as instituições. Foi isso que terá escapado à perspicácia de Foucault; quando publicou as suas notáveis análises das sociedades disciplinares, já estas tinham entrado em decadência.

 

O generoso militantismo dos anos 1970, sempre bem-intencionado, e, muitas vezes, violento, não viu que as instituições que tomavam por alvo eram precisamente os alvos que os seus arqui-inimigos procuravam destruir. Por exemplo, a obra de E. Goffman, Asilos, traduzida em França em 1968, foi saudada como um estudo libertador sem se ter compreendido que ela se inseria num projecto de desinstitucionalização que já fora executado, em 1966, na Califórnia, por um certo Governador chamado Ronald Reagan.

 

O novo capitalismo ultraliberal já havia descortinado um modo menos violento e muito menos oneroso de garantir o seu triunfo; o seu objectivo não é o de produzir sujeitos submissos pelo uso de métodos coercivos, mas procurar reforçar o seu domínio destruindo todas as instituições que interpunham entre os indivíduos e o mercado, as referências culturais e morais que o capitalismo procura destruir, porque já não precisa de súbditos submissos e almeja produzir indivíduos flexíveis, precários, móveis abertos a todas as modas e variações do mercado.

 

Desde o final dos anos 1960 e começo dos anos 1970, a vanguarda da direita deu início à sua Revolução neoliberal. Não há que ter medo das palavras, é realmente de uma revolução que se trata – como dizia o Príncipe do Gattopardo “é preciso que tudo mude, para que tudo fique na mesma” – e uma revolução, no seu sentido etimológico é uma reviravolta de 360 graus, ou seja, o regresso ao ponto de partida, como acontece com os astros que orbitam em torno de uma estrela.

 

O ponto de partida, hoje, como no tempo de Marx, é a circulação da mercadoria e o que o liberalismo nos promete é o imperativo de “transgressão de todos os interditos”, o que confere ao seu discurso um perfume libertário baseado na autonomia pessoal e na extensão indefinida da tolerância. Não se trata apenas de reivindicar “menos Estado”, trata-se de uma luta sem quartel contra tudo o que possa entravar livre circulação das mercadorias. Este discurso não é muito diferente do da esquerda radical que proclama a “luta contra todas as discriminações” esquecendo com a maior das naturalidades que pensar é “discriminar”, distinguir, categorizar, pelo que proibir todas as discriminações equivale a procurar destruir o espírito crítico que consegue ver diferenças onde parece haver apenas “semelhanças de família”. Por isso, Wittgenstein, na sua luta spinozista contra todos os ídolos e todas as superstições, dizia “I will teach you differences”.

 

O projecto do neoliberalismo é o da completa dessimbolização dos sujeitos e quando o sentido se desfaz é sempre em detrimento daquilo que é o próprio da humanidade, a discursividade, a palavra, o logos, em favor das relações de força. O seu alvo principal é precisamente a dependência simbólica do homem.

 

Acreditar que estes indivíduos, dessimbolizados, precários, flexíveis, móveis, possam vir a ser os novos resistentes só pode ser o sintoma de uma total cegueira e uma completa desorientação, que pode provir, ou de uma compaixão pelos miseráveis muito politicamente correcta, em voga na social-democracia liberal, ou de um fascínio romântico pelas passagens ao limite, muito do agrado dos filhos de burgueses em busca de revolta radical contra o meio de que provém.

 

Não há nada de bom a esperar das revoltas dos precários. Aliás, não precisamos de investigações muito aprofundadas para perceber que se existe uma realidade social à qual o capitalismo, consente sem reservas, ao mesmo tempo que destrói tantas outras, é a da existência de mafias de toda a espécie, que usam com o maior descaramento, os métodos mais expeditivos. O facto não é novo, desde sempre o capitalismo se acomodou perfeitamente ao que Marx chamava o Lumpenproletariat e sobre o qual não alimentava qualquer ilusão. Já no Manifesto Comunista pode ler-se “Quanto ao Lumpenproletariat, elementos desclassificados, bandidos, mendigos, ladrões, etc., é incapaz de conduzir uma luta organizada; a sua instabilidade moral a sua inclinação para a aventura permanente, permite que a burguesia utilize os seus elementos como furadores de greves, agentes provocadores, membros de gang, autores de pogrom”. E no 18 do Brumário de Louis Bonaparte, onde Marx analisa o golpe de Estado, organizado pela “Sociedade do 18 de Dezembro”, refere-se à “massa confusa, decomposta, flutuante”, constituída pelo “Lumpenproletariat parisiense organizado em secções secretas”. Nos nossos dias, o Lumpenproletariat perdeu o seu estatuto de curiosidade local e marginal, para se expandir em certas formas sociais bem caracterizadas. Está, hoje, bem estabelecida uma continuidade tangível entre alguns pequenos bandos que traficam nos subúrbios, vampirizando as populações mais pobres, impedindo o funcionamento normal das poucas instituições republicanas que ainda não foram totalmente destruídas (as escolas públicas e os transportes urbanos, por exemplo), as pequenas e médias mafias que produzem o dinheiro sujo (com a droga, a prostituição e o tráfico de armas e de influências) e as redes financeiras que reciclam aquele dinheiro, sem estados de alma, através dos paraísos fiscais onde os negócios e as mafias convivem alegremente.

 

Face a estes fenómenos a solução não reside nem na “tolerância zero” cujos aguerridos adeptos toleram com grande facilidade a grande corrupção política e negocial e pretendem sobretudo proteger a tranquilidade dos bairros de luxo, nem na “tolerância indefinidamente alargada” dos radicais da esquerda compassiva; a única solução passa por uma ressimbolização e pela recuperação da dignidade humana do novo sujeito precário.

 

A dessimbolização não é mais do que é a consequência directa do pragmatismo, do utilitarismo e do “realismo” contemporâneos, que pretendem “desengordurar” as trocas (que presumem integralmente funcionais) da sobrecarga simbólica que as envolvem. É o processo que visa desembaraçar as trocas mercantis de tudo aquilo que as excede, e as institui: o seu fundamento. Sejam quais forem as economias humanas (económica, psíquica, semântica, social, política…) em que ocorrem, todas as trocas se inserem num conjunto de regras cujo princípio não é algo de realmente existente, mas que reenvia a valores postulados. Dizer que estes valores não são reais significa que não são parte do plano das existências, antes relevam do que Bernard Stiegler chama o plano das consistências ou idealidades. Os valores são parte de uma cultura (depositária de princípios morais, cânones estéticos, modelos de verdade) que não existem, mas consistem, como o ponto geométrico, ou a ideia de justiça. Ora, o novo espírito do capitalismo, que prossegue um ideal de fluidez e transparência, não é compatível com o peso histórico dos valores culturais. Neste sentido o adjectivo “liberal” deixou de ter qualquer ligação com a liberdade, e significa apenas a total desvinculação da esfera dos valores. Os valores morais não têm qualquer valor mercantil, pelo que, num universo integralmente mercantil não têm nenhum cabimento.

 

Poderia dizer-se que, muito paradoxalmente, a força do capitalismo neoliberal reside na fraqueza dos seus governos. O governo, ou melhor a gouvernance, neoliberal é uma vontade de não governo, de acordo com a ideia peregrina de que a um mínimo de governo político corresponde um máximo de rendimento económico. Daqui resulta um efeito perverso que não escapou à presciência de Hannah Arendt que, no seu texto Da mentira à violência, escreveu esta frase lapidar: “todo o enfraquecimento do poder é um convite à violência”. O “poder” só pode funcionar de modo efectivo como expressão de um “querer”, de uma vontade; ora o poder dos nossos dias já não quer nada, a não ser a adaptação a uma conjuntura e a uma evolução que o ultrapassa. A modernização (das empresas, da escola, das instituições) apresenta-se como um gigantesco tropismo à escala planetária, uma espécie de lei natural, uma maré irrepressível da evolução. Há como que uma submissão à “força das coisas” (que como, hoje, toda a gente acredita, falam inglês) e exigem uma submissão e uma adaptação quase biológica, pelo que não existe verdadeiro governo, como instituição cuja legitimidade teria que ser alheia aos interesses económicos. Este enfraquecimento dos governos está muito longe de anunciar a extinção do domínio sociopolítico, pois é apenas a transição para uma nova forma de dominação, onde o poder real se torna anónimo, informe e inlocalizável, uma “tirania sem tirano”, como diagnosticava já Hannah Arendt. Trata-se da promoção da anomia, do levantamento de todos os interditos e de tudo o que possa opor-se à pura impetuosidade dos apetites. A cidadania é reconduzida e achatada na sociedade civil que, como explicava Hegel nos seus Princípios da Filosofia do Direito, é constituída pelo conjunto conflitual dos interesses particulares que nela se defrontam, o que destrói toda a indispensável dialéctica entre o corpo social e a sua representação política. O triunfo da economia liberal, cujo lema de “laissez-faire” já pressagiava a total ausência de princípios, instaura um novo espaço social completamente deslaçado, prosaico, trivial, niilista, embebido de darwinismo social – que nada tem que ver com Darwin – onde o único novo valor passa de mão em mão sem nenhuma forma de processo ou de cerimónia, em que os “mais aptos” podem aproveitar como podem, e os “menos aptos” são votados ou ao abandono ou à extinção pura e simples. É uma profunda reviravolta civilizacional que se avizinha, já que o que é posto em causa é o princípio fundamental que atribui a todo o Estado o encargo e a tarefa de proteger a sua população.

 

A pós-modernidade não se resume ao enfraquecimento dos ideais do eu ou a um levantamento contra os ídolos da tribo. Quem quer continuar a acreditar que vivemos uma época de lucidez dolorosa mas salvífica, bem pode preparar-se para perder todas as ilusões. O que está a preparar-se, ao abrigo de uma ideologia tão guerreira como as das grandes narrativas comunista e nazis do século passado, mas porventura mais eficaz, é “a fabricação de um homem novo”, um sujeito acrítico e psicótico, dessimbolizado, imune à culpa e à responsabilidade, um indivíduo desligado de todo o vínculo simbólico, unissexo e “inengendrado”, liberto das suas amarrações reais: a diferença sexual e a diferença geracional. Eliminada toda a referência simbólica, capaz de garantir as trocas de todo o tipo entre os humanos, restam apenas as mercadorias que mudam de mãos num pano de fundo de venalidade e niilismo generalizado. O capitalismo não só alarga o reino da mercadoria até aos confins do mundo – é o que se chama a mundialização feliz – onde tudo se torna mercadoria (a água, o ar, o genoma, as espécies vivas, a saúde, os orgãos, os museus, as crianças…), como está em vias de recuperar o domínio da vida privada que ainda se mantinha à disposição de cada um de nós (subjectivação, personalização, sexualidade…) para a fazer entrar na órbita mercantil.

 

Estamos a viver um ponto de viragem, porque se a forma sujeito, construída depois de árduas lutas, é atingida, já não são apenas as instituições que temos em comum que ficam em perigo, mas também, e sobretudo, aquilo que somos. Não é apenas o nosso património cultural que periga, é o nosso ser. O que é muito mais grave, porque se a perda dos nossos haveres mais preciosos pode ser remediável, a perda do nosso ser, é praticamente sem remédio. É neste ponto que se joga o futuro da nossa espécie e todas as grandes batalhas que se aproximam: se a forma sujeito se fracturar, nada pode barrar o alastramento do capitalismo total, o seu estádio último, onde tudo, até ao nosso próprio ser, terá entrado na órbita da mercadoria.

 

Entramos hoje na época da morte anunciada e prometida do sujeito moderno. O homem carece ser protegido como uma espécie ameaçada, até que possam surgir dias melhores. Entretanto, face às solicitações pós-modernas só há que dizer como o famoso Bartleby da novela de Melville: “I would prefere not to… (preferiria que não…)”.

 

Mas talvez que esta trágica destruição do homem seja uma oportunidade inaudita para quem abraçou o ofício de pensar. Quando tudo está de pantanas, há que procurar reconstruir e retomar a rota de uma nova inteligência crítica.

 

Neste recuo de homens destruídos, dispomos hoje de uma liberdade absoluta. Tal como Descartes, em 1631, na cidade de Amsterdão, quando escrevia “Nesta grande cidade, não havendo ninguém excepto eu mesmo, que não exerça a mercadoria, cada um está tão atento ao seu lucro que poderia passar toda a vida sem ser visto por ninguém…”. Hoje que Amsterdão conquistou o Mundo, não é só cada um, nesta enorme aldeia planetária, que exerce a mercadoria, como é exercido e moldado por ela, e por isso, ainda há quem possa sentir, como Descartes, que “goza de uma inteira liberdade”. Já ninguém repara nesta velha espécie humana, em vias de extinção, o que não admira já que não valemos nada… Há que aproveitar!

 

Sabemos hoje que sob os seus ademanes democráticos, o novo pensamento único pode, com toda a probabilidade, vir a revelar-se tanto ou mais virulento do que as ideologias que devastaram o século XX; não é impossível que, após o inferno do nazismo e do terror do comunismo, uma nova catástrofe histórica se perfile no horizonte. Tal como os seus avatares anteriores, o que o neoliberalismo se propõe, é a construção do homem novo, um ser destituído da faculdade de julgar e capaz de gozar sem desejar.

 

A referência que fiz, no parágrafo anterior, a ademanes democráticos não significa que pretenda pôr em causa a democracia, significa, isso sim, que, nos nossos tempos pós-modernos, a democracia está em vias de perder a sua efectividade. Como observa Marcel Gauchet num pequeno livro que proveio de uma conferência dada em 8 de Junho de 2006 em Angers (2), vivemos hoje num regime de democracia mínima. De forma muito reveladora, o modo como compreendemos, hoje, o sentido da palavra democracia, mostra que ela designa algo bem diverso daquilo que anteriormente queria significar: a palavra democracia designava o poder colectivo e a capacidade de autogoverno; hoje reenvia apenas às liberdades individuais; julga-se que é democrático tudo o que vai no sentido de aumentar as prerrogativas do indivíduo. Uma visão liberal da democracia sobrepôs-se à noção clássica. A pedra de toque, em matéria de democracia, já não é a soberania do povo, mas a soberania do indivíduo, definida inclusivamente, em última análise, pela possibilidade de se opor ao poder da comunidade. Pelo que, por aproximações sucessivas, a promoção do direito democrático traduz-se na incapacitação política da democracia. Como diz, lapidarmente, Marcel Gauchet, “quanto mais a democracia reina, menos governa”.

 

Assistimos hoje como que a uma perversão da “democracia liberal”. Como o seu nome indica, uma democracia liberal comporta duas faces associadas mas distintas: defende os direitos fundamentais das pessoas e as liberdades públicas que os prolongam, e consiste no exercício do poder colectivo, isto é, na conversão das liberdades de cada um, no autogoverno do conjunto. Governo que só pode ser exercido no estrito respeito das liberdades, já que é concebido para as exprimir, mas que representa um poder distinto e superior onde as liberdades podem ter a sua realização integral, enquanto acedem, não só à dignidade de partes de um todo, mas à responsabilidade do destino comum. O problema constitutivo e permanente da democracia liberal é o de conseguir a hibridação equilibrada destas duas ordens de exigências. Hoje em dia, é esta dimensão do poder de todos que se encontra como que apagada em proveito da liberdade individual. A simples ideia de governar e dirigir a colectividade tende a ser recusada pela sua exterioridade autoritária. O comando geral da lei chega a aparecer como inimigo da irredutibilidade dos direitos. Deu-se um movimento de báscula que nos fez passar de uma democracia do público a uma democracia do privado. Neste quadro, um maior número de direitos para cada um, equivale a menos poder para todos. De facto, quando se pretende atingir a plenitude dos direitos para cada um, o resultado é o de deixa de haver qualquer poder de todos.

 

A comunidade política deixa de se governar e torna-se, em sentido estrito, uma sociedade política de mercado; não apenas uma sociedade onde os mercados económicos dominam as escolhas políticas, mas onde o próprio funcionamento político toma de empréstimo à economia o modelo geral do mercado. A função governativa é, então, profundamente metamorfoseada. Os governos só existem para assegurar o respeito da regra do jogo e garantir a boa marcha dos negócios. É esta radical metamorfose que é hoje exprimida pelo termo de “gouvernance”. É como se estivéssemos perante uma política sem poder, ou seja, um oximoro. De onde resulta uma oligarquização crescente dos nossos regimes. Esta oligarquização pode parecer, à primeira vista um pouco paradoxal, como nota Gauchet, já que ela se move no seio de uma efervescência protestatária alimentada pela defesa incansável de todo o tipo de causas particulares: há um activismo inscrito no seio da renúncia, mas cuja mobilização longe de ameaçar a oligarquia reinante, reforça-a, porque num contexto de mundialização verifica-se uma convergência de escolhas segregada pela conivência dos diferentes governos. De tal modo que este universo de sociedades ingovernáveis, aparece afinal muito bem comandado por um feixe de escolhas que comprometem as comunidades políticas e o seu futuro, de uma forma que escapa à deliberação pública e à imputação de responsabilidades. Eis como um aparente progresso das democracias pode saldar-se pelo seu completo esvaziamento.

 

Estamos perante um processo de corrosão das bases de funcionamento da democracia. A democracia está, neste momento, a atravessar um processo de autodestruição suave que respeitando o seu princípio, o priva de efectividade.

 

O universalismo abstracto que fundamenta a democracia liberal arrasta-a para a dissociar do quadro histórico e político no seio do qual se forjou – que é justamente o do Estado-nação – ou de qualquer outro quadro institucional, que tem que ser, por definição, limitado. Idealmente, a democracia querer-se-ia sem território e sem passado. A pura obediência à lógica do direito, recusa tanto a sua inscrição num espaço cujos limites são uma injúria à universalidade dos princípios de que se reclama, como numa história que a coloca na dependência de uma particularidade igualmente insuportável. A democracia dos direitos é conduzida à posição de não poder assumir as condições que lhe deram origem. No limite, a mera ideia de que a democracia tenha podido surgir é categoricamente rejeitada. Como tem a pretensão de se assumir como uma evidência natural, perante a qual a geografia e a história só podem aparecer como um escândalo incompreensível, todo o passado humano, com toda a sua diversidade civilizacional, é reenviado à uniformidade de uma barbárie incompreensível. Este desenraizamento faz com que a democracia viva a sua genealogia como uma realidade que não só quer ignorar, como não tem qualquer interesse em transmitir às gerações seguintes.

 

Paradoxo dos paradoxos, a democracia pós-moderna faz-se antipolítica. Historicamente, as democracias modernas constituíram-se sobre o projecto de uma apropriação do poder público pelos membros do corpo político, a que se chamava cidadãos, e hoje se chama utentes ou até clientes. Este projecto supôs a formação de um Estado de tipo inédito, em que a comunidade dos cidadãos podia reconhecer-se e projectar-se, colocando ao seu serviço um poder legítimo. Em lugar disto, temos hoje o ideal de neutralização do poder, seja ele qual for, de modo a colocar a soberania dos indivíduos ao abrigo do menor atentado. Aqui reside a razão mais profunda da erosão dos Estados e do princípio da sua autoridade nas democracias actuais. Quando hoje se fala da “refundação” do Estado social, está a supor-se implicitamente que possa haver um Estado associal. Estamos perante o cúmulo da imbecilidade (os franceses diriam de “la bêtise”). Isto só pode significar que para o espírito do nosso tempo (ou para a ausência dele) há como que um nevoeiro e uma desorientação que obscurece completamente a simples noção do que é um Estado. Quando se perde a percepção dos vectores operatórios do governo de uma comunidade, a sua acção só pode ter uma legitimidade difusa porque manchada por uma suspeita estrutural de arbitrariedade.

 

A democracia é hoje atingida por uma crise das suas fundações, em sentido arquitectónico. O regime da liberdade, já esquecido das tragédias dos anos trinta, tornou-se, de novo, problemático, tornando a autonomia potencialmente ingovernável. Segundo a interpretação de Marcel Gauchet com a qual tendo a concordar, a mola real desta crise das fundações da democracia resulta do facto de se ter dado uma primazia absoluta aos seus fundamentos jurídicos, contra as suas fundações históricas e políticas. É essa a origem do marasmo que afecta os nossos regimes políticos, divididos entre a segurança dos princípios que os guiam e uma incerteza total sobre a sua execução. Há um total desequilíbrio entre os três vectores da autonomia, uma vez que o direito foi colocado na posição dominante e motora, desqualificando o político e o social-histórico. É sob a égide do direito que a economia impõe a sua lei, reduzindo a ideia democrática à simples protecção das liberdades do individuo privado. O completo cepticismo em relação do poder público, une-se ao total dogmatismo em relação às prerrogativas pessoais.

 

Como ultrapassar esta situação que a curto prazo se afigura desesperada? Como mostrar aos indivíduos que a sua liberdade só pode adquirir um sentido real no quadro de um governo comum consciente das suas tarefas e portador de um projecto de futuro? Como inscrever no plano central da deliberação pública o controlo reflectido de uma história que se vai fazendo?

 

Não são necessárias profundas investigações para que nos apercebamos das terríveis frustrações que a situação presente implica para os indivíduos que se supunha deverem ser os seus grandes beneficiários. De que serve ser entronizado como actor do seu destino, se é para perder a sua identidade, tal como a história do mundo a havia moldado e ver-se abandonado á precariedade, arrastado por um devir sem rumo, cuja direcção é incompreensível e de que não se vê forma de inflectir. A actual situação de total impotência colectiva é muito difícil de suportar, mesmo para os mais convictos individualistas. Mas o paradoxo de uma liberdade impotente é insustentável a longo prazo, e só pode reconduzir, mais tarde ou mais cedo, à velha ideia de que só um governo em comum pode conferir sentido à independência individual.

 

Simplesmente, não podemos ainda saber quanto tempo será preciso para que esta ideia moderna penetre definitivamente nas exauridas cabeças pós-modernas. Uma coisa é certa: nas condições actuais, a crise só pode agravar-se e não existem quaisquer razões para acalentar um optimismo de curto prazo. Parece óbvio que ainda estamos longe do termo da decomposição dos velhos equilíbrios que permitiram a fundação da democracia e que ela mesma parece ter esquecido, ao ponto de nem sequer compreender como surgiu, tal é a amnésia actual da geografia e da história. Pelo contrário, aquilo que tem que ser tem muita força e, exactamente como os homens foram capazes de sobreviver aos totalitarismos que devastaram o século XX, também saberão recompor-se e combater, com êxito, os novos empreendimentos de invenção do homem novo.

 

Por isso, após a catástrofe que se avizinha, mas há que evitar, precisamente porque vemos a sua aproximação, longa vida ao homem velho, frágil e mortal, e morte rápida, fulminante e dolorosa aos que, mil vezes mais infantis do que as crianças, sonham com imortalidades clonadas.

 

 

 

 

 

(*) “Este texto não é propriamente uma tradução, nem um comentário; é como que uma apropriação, ou seja, uma espécie de plágio, ornamentado com diversos acrescentos e alterações da minha lavra” (João Esteves da Silva). O texto de que se partiu é o último capítulo de L'Art de réduire les têtes. Sur la nouvelle servitude de l'homme libéré à l'ère du capitalisme total, de Dany-Robert Dufour, éditions Denoël, Paris, 2003.

Dany-Robert Dufour (n. 1947) é um filósofo francês, professor de Ciências da Educação na Universidade de Paris VIII e director de programa no Collège international de philosophie. Tem já publicada uma extensa bibliografia – p. ex., ultimamente, On achève bien les hommes (2005), Le divin marché (2007) – situando-se o seu trabalho na área dos processos simbólicos, na junção entre a filosofia da linguagem, a psicanálise e a filosofia política. João Esteves da Silva (n. 1936), nosso prezado colaborador permanente, é um filósofo e ensaísta independente português, autor de ‘Para uma Teoria da História – de Althusser a Marx’ (Diabril, Lisboa, 1975-76) para além de diversas outras obras, dispersos e inéditos.

 

 

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NOTAS:

 

(1) Nas palavras, que têm pelo menos o mérito da clareza, dos autores da obra de culto de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, La Réproduction, Élements pour une théorie du systéme d’enseignement, Paris, Éd. Minuit, 1970, p. 19: ”Toda a acção pedagógica é, objectivamente, uma violência simbólica, como imposição de um arbitrário cultural, por parte de um poder arbitrário”. Repare-se na utilização do advérbio “objectivamente“ de óbvia conotação estalinista.

 

(2) Vide Marcel Gauchet, La Démocratie, d’une crise á l’autre, Nantes, Éditions Cécile Défaut, 2007.