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Crise no neoliberalismo ou crise do neoliberalismo? (1)
Alfredo Saad Filho (*)
A crise financeira domina o processo de reprodução econômica global desde 2007. A identificação de suas origens e de seu caráter social, político e econômico tem enorme importância teórica e prática: por um lado, o estudo da instabilidade sistêmica permite identificar os principais aspectos da reprodução do sistema de acumulação dominante na atualidade (ou seja, a etapa atual do capitalismo), o neoliberalismo (2). Por outro, a crise ilumina as vulnerabilidades desse sistema de acumulação e permite a elaboração de plataformas políticas de confronto ao e transcendência do neoliberalismo. As análises marxistas da crise, partindo de uma abordagem sistêmica das relações de classe sob o neoliberalismo, sugerem que a crise atual é uma crise sistêmica no capitalismo neoliberal. Entretanto, ela não é, pelo menos por enquanto, uma crise do capitalismo neoliberal.
Neoliberalismo e Financeirização
O neoliberalismo é o modo de existência do capitalismo contemporâneo. Esse sistema de acumulação emergiu gradualmente, desde meados dos anos 1970, em resposta às transformações das condições de acumulação que acompanharam a desarticulação do consenso Keynesiano-social-democrático, a paralisia do desenvolvimentismo e a implosão do Bloco Soviético. Em essência, o neoliberalismo é baseado no uso sistemático do poder do Estado, sob o véu ideológico da ‘não-intervenção’, para impor um projeto hegemônico de recomposição da ordem capitalista em cinco níveis: a alocação de recursos domésticos, a integração econômica internacional, a reprodução do Estado, a ideologia e a reprodução da classe trabalhadora. Esses níveis são descritos brevemente abaixo, para permitir a demarcação das contradições que culminaram na crise atual.
Sob o neoliberalismo, a capacidade estatal de alocar recursos intertemporalmente (ou seja, a relação entre investimento e consumo), intersetorialmente (a composição do produto e do investimento) e internacionalmente (a articulação da produção capitalista através das fronteiras nacionais) foi sistematicamente transferida para um sistema financeiro cada vez mais globalizado e no qual instituições norte-americanas têm um papel dominante (3). O controle sobre a alocação de recursos deu às instituições financeiras uma influência determinante sobre o nível e a composição do investimento, produto e emprego, a estrutura da demanda, o financiamento do Estado, a taxa de câmbio e os padrões de especialização internacional da maioria dos países. A influência do setor financeiro levou ao desenvolvimento de uma gama de novos instrumentos, à rápida expansão de atividades puramente especulativas e, inevitavelmente, ao crescimento explosivo das remunerações dos grandes financistas (4).
A financeirização e a reestruturação da produção foram apoiadas pela transnacionalização dos circuitos da acumulação, a qual é comumente chamada de ‘globalização’. Esses desenvolvimentos recompuseram os anteriores sistemas de produção ‘nacionais’, elevando-os a níveis de produtividade mais elevados relativamente às firmas sobreviventes, criaram novas cadeias produtivas, modificaram as modalidades de integração dos países na economia mundial e facilitaram a introdução de novas tecnologias e processos de trabalho, bem como a compressão dos salários reais (5). Por fim, a financeirização também apoiou a retomada do imperialismo americano (6).
A financeirização é uma característica estrutural da acumulação e da reprodução social sob o neoliberalismo. Nesse sentido, as ‘finanças’ incluem não apenas os bancos e instituições de investimento (fundos de pensão, fundos mútuos, bolsas de valores, seguradoras e outras firmas lidando principalmente com o capital portador de juro), mas também o braço financeiro do capital industrial, cuja lucratividade depende cada vez mais da engenharia financeira. O papel constitutivo das finanças na relação capital sob o neoliberalismo permite a elas apropriarem-se de uma parcela crescente dos lucros extraídos pelo setor não-financeiro. Esse processo teve um papel significativo na polarização dos rendimentos no neoliberalismo (7).
Mesmo antes da crise atual, a noção de que as finanças mobilizam e alocam recursos de maneira eficiente, reduzem os riscos sistêmicos e trazem ganhos de produtividade significativos para a economia como um todo era implausível (8). A esperada aceleração do crescimento através da liberalização financeira e dos fluxos de capital não se materializou na maioria dos países; ao invés disso, as crises financeiras tornaram-se mais freqüentes (9). Reciprocamente, as acelerações do crescimento na idade do neoliberalismo geralmente não se relacionam com as mudanças nas regulamentações financeiras ou com a liberalização da conta de capital. Uma interpretação alternativa é mais plausível: apesar de ser desestabilizadora e não levar ao crescimento acelerado, a financeirização tem um papel central no capitalismo contemporâneo porque ela sustenta a transnacionalização da produção, facilita a concentração de renda e riqueza e apóia a hegemonia política do neoliberalismo por meio de ameaças contínuas de fuga de capital. O poder do setor financeiro tornou-se especialmente evidente durante a crise atual, quando vários governos foram compelidos a resgatar grandes instituições financeiras e, em vários casos, sistemas financeiros inteiros, a um custo elevadíssimo para a sociedade. Ainda mais chocante é o fato dessas mesmas instituições imediatamente passarem a demandar cortes dos gastos públicos supostamente devido à ‘insustentável’ situação fiscal de Estados que, nominalmente, são os donos dessas mesmas instituições. Nunca na história econômica tanto gasto e tanto trabalho foram recompensados com tamanha arrogância.
Financeirização e Disciplina Social
A financeirização neoliberal impôs modalidades específicas de disciplina sobre os agentes sociais mais importantes. Eles incluem o Estado (através da necessidade de impor políticas sociais restritivas e políticas monetárias e fiscais contracionistas, sob a ameaça contínua de crises fiscais, financeiras, cambiais ou de balanço de pagamentos), o capital industrial (através da concorrência global promovida pelo Estado e apoiada pelo setor financeiro), e o próprio setor financeiro (através de uma integração internacional competitiva sob um guarda-chuva regulatório centrado nos EUA). Entretanto, não há dúvida que as formas mais duras de disciplina foram impostas sobre a classe trabalhadora.
Centenas de milhões de trabalhadores foram forçosamente incorporados aos circuitos transnacionais da acumulação nas últimas três décadas, aumentando enormemente a concorrência entre os capitais individuais e entre (e dentro de) as classes trabalhadoras nacionais. A reestruturação global da produção, acompanhada por mudanças legais, regulatórias e políticas regressivas, transformou os padrões de emprego na maioria dos países e facilitou a imposição de restrições aos salários, subsídios, benefícios, direitos sociais e outras proteções extra-mercado introduzidas sob os sistemas de acumulação anteriores. Essas transformações tecnológicas, econômicas, legais e políticas reduziram drasticamente o espaço para a resistência contra o capitalismo neoliberal.
Analisando por outro nível, a disciplina social foi imposta por meio da financeirização da reprodução da classe trabalhadora, especialmente através do boom imobiliário e da expansão do crédito pessoal nas últimas duas décadas. Em circunstâncias de compressão salarial, em parte devidas à eliminação (ou à exportação) de milhões de empregos qualificados relativamente bem pagos e sua substituição por empregos precários e, em parte, devido ao recuo do Estado de Bem- Estar, muitos trabalhadores foram atraídos pela lógica do endividamento pessoal e da busca de ganhos de capital através de repetidas hipotecas residenciais, de modo a atender suas necessidades de reprodução (10). Muitas famílias responderam às reformas neoliberais usando seus cartões de crédito até o limite e transformando suas casas e fundos de pensão em caixas eletrônicos virtuais para contornar a estagnação dos salários e o recuo da seguridade social (11). Não é de surpreender que a financeirização tenha apoiado um aumento substancial na taxa de exploração, que se tornou evidente através da queda da fatia dos salários na renda nacional na maioria dos países entre 1980 e 2000 (12).
O crédito pessoal também se tornou uma importante ferramenta de política macroeconômica. Todas as vezes que as economias americana e britânica desaceleravam seus Bancos Centrais reduziam as taxas de juro e encorajavam novas hipotecas e a acumulação de dívida pessoal para sustentar a demanda agregada. Essas políticas foram chamadas de ‘Keynesianismo dos preços dos ativos’ (13) porque, em certa medida, os déficits privados assumiram o papel dos déficits públicos na estabilização macroeconômica. Essas políticas tiveram um sucesso temporário e a demanda induzida pela extração de valor das residências acrescentou cerca de 1,5% à taxa de crescimento anual do PIB norte-americano entre 2002 e 2007.
A análise acima implica que a crise foi o resultado de um processo insustentável de financeirização neoliberal, mudanças perversas nas estruturas dos mercados de trabalho e modificações regressivas na provisão dos meios de subsistência, apoiadas por ferramentas macroeconômicas limitadas e por argumentos ideológicos sobre a ‘concorrência’ e a ‘escolha individual’. A crise também mostrou que é impossível eliminar a pobreza emprestando dinheiro aos pobres: a pobreza tem muitas causas, mas a insuficiência de acesso ao crédito não é uma delas. Por fim, a crise demonstrou que é impossível estabilizar economias complexas por longos períodos através da manipulação do crédito pessoal. Ao contrário do Estado ou dos bancos, a classe trabalhadora não pode empregar a si mesma, desvalorizar as próprias dívidas, ou criar moeda. Esses limites da sua capacidade de pagamento restringem as possibilidades de endividamento dos trabalhadores. Portanto, em circunstâncias extremas as dívidas pessoais podem ter que ser nacionalizadas, inflacionadas ou abolidas por lei. Mas isso ocorre apenas excepcionalmente: em circunstâncias normais, o endividamento leva apenas à penúria individual e à degradação social.
Contradições Neoliberais
O sistema de acumulação neoliberal é estruturalmente instável em cinco níveis. Primeiro, o crescente peso das finanças na economia, devido à liberalização regulatória e a desenvolvimentos tecnológicos e inovações financeiras, implica que a acumulação sob o neoliberalismo tome a forma de ciclos financeiros, ou bolhas, que eventualmente entram em colapso, necessitando de um resgate estatal. Esses ciclos incluem a crise da dívida externa no início dos anos 80, a crise das Savings & Loans nos EUA nos anos 80, os colapsos das bolsas de valores nos anos 80 e 90, a crise japonesa do final dos anos 80, as crises em vários países de renda média no final do século vinte e as bolhas da internet, financeiras e habitacionais dos anos 2000, culminando com a catástrofe atual. É também notável que o modelo de negócios das empresas de ponta no neoliberalismo, freqüentemente, se baseia na fraude e na espoliação, como nos casos da Enron e da Bernard L. Madoff Investment Securities. Apesar dessas crises demonstrarem a irracionalidade da acumulação no neoliberalismo, a ilusão da prosperidade foi apoiada pela aparente capacidade do Fed [Federal Reserve] de coordenar as operações de resgate e, ao mesmo tempo, sustentar o crescimento no centro dinâmico da economia mundial.
Segundo, o último ciclo se baseou num apetite aparentemente ilimitado por crédito pelas famílias e os Estados, que gerou demanda para as mercadorias e o capital fictício produzido pelas corporações multinacionais. Entretanto, o aumento do consumo das famílias era sustentável apenas enquanto o crescimento dos preços das residências gerasse a riqueza imobiliária que poderia ser mobilizada através de novos empréstimos e hipotecas (14). É evidente que, em algum momento, se tornaria impossível pagar o serviço de dívidas crescentes com salários estagnados – especialmente se as taxas de juro tivessem que subir para conter bolhas de ativos ou segurar a inflação. Por sua vez, o aumento do preço das casas também dependia do fluxo de créditos hipotecários pelas instituições financeiras (15). Esses empréstimos foram fatiados e transacionados entre essas mesmas instituições, gerando enormes fortunas (16). Entretanto, quando perdas crescentes ameaçaram a estabilidade o setor financeiro, os governos rapidamente coletivizaram os riscos, nacionalizaram as instituições em perigo e estabilizaram as contas do setor financeiro com um volume quase infinito de dinheiro novo.
Terceiro, o ciclo requereu um fluxo contínuo de recursos financeiros aos EUA e ao Reino Unido para a compra de ações, títulos do Tesouro, ativos baseados em hipotecas e imóveis. Esses recursos foram convertidos em ativos financeiros transacionáveis, permitindo aos intermediários estender crédito na economia doméstica. Entretanto, essas transferências eram insustentáveis porque os EUA e o Reino Unido não poderiam esperar ser permanentemente subsidiados por crédito barato e por recursos financeiros baratos fornecidos pelo resto do mundo. Entretanto, a performance relativamente favorável desses países nos anos anteriores à crise ajudou a legitimar o neoliberalismo e a disfarçar o fato da chamada ‘Grande Moderação’ ter sido baseada em um endividamento crescente apoiado por taxas de câmbio desalinhadas (17).
Quarto, a estabilidade macroeconômica, as políticas ‘previsíveis’ dos Bancos Centrais e a regulamentação financeira liberal criaram incentivos para o aumento do endividamento das instituições financeiras e para sua dependência no financiamento no atacado, ao invés dos depósitos captados no varejo. O endividamento financeiro e a criação de liquidez através da transformação de dívida em papéis transacionáveis criaram uma dinâmica que encorajou o endividamento adicional, em um tipo de esquema Ponzi. Reciprocamente, quando a liquidez caiu subitamente as instituições altamente endividadas tiveram que cortar seus balanços rapidamente, aumentando a severidade da crise.
Quinto, esperava-se que a securitização reduzisse a volatilidade da acumulação ao transferir riscos aos agentes melhor situados para mantê-los. Na realidade, as instituições financeiras perderam o incentivo para avaliar os riscos porque seus papéis eram transacionados imediatamente, enquanto os compradores usavam avaliações de crédito desprovidas de sentido para disfarçar sua ignorância (18). A resultante avalanche de papéis desestabilizou silenciosamente as finanças internacionais. Em resumo, apesar do detonador da crise ter sido o colapso do mercado de hipotecas subprime nos EUA, havia vários elos fracos na mesma cadeia: a reciclagem dos déficits correntes dos EUA e do Reino Unido, a taxa de acumulação de dívidas pessoais, a relação entre o consumo e a taxa de juro, a fragilidade do balanço das grandes instituições financeiras, a necessidade estrutural de inflação baixa e de mudanças previsíveis das taxas de juro e assim por diante.
Nesse sentido, a crise expôs os limites da financeirização como motor da acumulação global. As contradições subjacentes à crise indicam que essa é uma crise sistêmica no neoliberalismo, mas ela não é uma crise do neoliberalismo porque, apesar da reprodução do sistema de acumulação ter sido abalada, ela não é ameaçada por nenhuma alternativa sistêmica.
Caminhando Para Trás
Durante algumas semanas em 2008 o capitalismo global parecia sangrar incontrolavelmente, com perdas financeiras atingindo US$40 trilhões, ou 45% da riqueza mundial (19). Vários governos nacionalizaram grandes instituições financeiras, garantiram depósitos e investimentos financeiros, cortaram drasticamente as taxas de juro, e introduziram políticas fiscais expansionistas e, mais tarde, a chamada quantitative easing para apoiar o setor financeiro, a demanda agregada e o nível de emprego. É impossível calcular o custo dessas iniciativas. Elas incluíram compras de ativos financeiros temporariamente sem valor pelos Bancos Centrais, mas aqueles ganharam valor mais tarde, conforme a economia global atingiu certa estabilidade (e perderam valor quando a situação se reverteu novamente); iniciativas ‘Keynesianas’ para proteger o emprego, as quais em parte se auto-financiam por meio do pagamento de impostos sobre a renda adicional e pela redução das transferências e benefícios pagos pelo governo; e um grande aumento do endividamento público para financiar os gastos correntes do governo, que se tornou necessário devido à queda dos tributos em conseqüência da crise. Essas medidas eram esperadas: elas refletem, por um lado, o consenso pós-Grande Depressão de que políticas expansionistas agressivas podem evitar uma espiral deflacionária, e, por outro, o argumento neoliberal de que a estabilidade do setor financeiro é essencial.
Os gastos públicos excepcionalmente elevados e a socialização das perdas e riscos contiveram a hemorragia de capital dos bancos e adiaram o colapso de alguns grandes conglomerados manufatureiros, especialmente as antigas indústrias automobilísticas norte-americanas. Entretanto, eles não reativaram o crédito bancário e seus custos extremamente elevados geraram graves problemas fiscais nos EUA, no Reino Unido, na Zona do Euro e nas economias mais frágeis do Golfo Pérsico.
Apesar da sua competência tática, aparecendo instantaneamente com trilhões de dólares para apoiar os bancos e sustentar a economia global, as burguesias neoliberais e seus economistas demonstraram uma enorme falta de imaginação estratégica. Mesmo os cenários mais promissores oferecem apenas crescimento lento, uma década de austeridade e uma onda de desemprego que pode durar uma geração. O consenso neoliberal é que o sistema pode ser ajustado com um pouco de regulação financeira, ajustes marginais nas taxas de câmbio, um pouco mais de consumo na Ásia oriental e na Alemanha e aperto nos cintos nos demais países em crise. Entretanto, essas mudanças cosméticas serão incapazes de rebalancear a economia global, ou de permitir aos Estados neoliberais gerenciar as mudanças tectônicas do processo de acumulação global. O seu simplismo é sintomático da compreensão superficial da crise por parte da ortodoxia e da paralisia do processo político sob o neoliberalismo. Elas apontam para uma recuperação lenta e hesitante, com crises financeiras, fiscais, cambiais e de desemprego num país depois do outro.
A maioria dos planos de recuperação ignora a necessidade de um mecanismo alternativo de integração social, não reconhece que a manipulação das dívidas pessoais será insuficiente para estabilizar a demanda e o emprego e ignora o fato de que a contração do crédito, salários e aposentadorias, e as restrições fiscais, comprometerão o crescimento da demanda no longo prazo. Apesar dos gastos públicos terem sustentado as economias no pico da crise, eles não podem ser mantidos sem mudanças significativas dos sistemas tributários e da distribuição de renda, mas essas não estão sendo consideradas (20). As estratégias de recuperação presumem que políticas fiscais contracionistas são essenciais para proteger a credibilidade dos Estados no curto prazo e evitar a inflação no longo prazo e antecipam que, após o retorno das condições ‘normais’, a manipulação das taxas de juro deve voltar a ser a ferramenta mais importante de política econômica. Ou seja, o campo neoliberal essencialmente espera que o sistema de acumulação global irá retornar a seu estado pré-crise (com ajustes marginais) após um período prolongado e custoso de instabilidade.
É alarmante perceber que, apesar de várias propostas terem sido feitas para tratar da crise e impedir sua repetição, quatro anos após seu início e três anos após o colapso da Lehman Brothers muito pouco aconteceu de fato e as instituições financeiras têm pressionado contra qualquer tentativa de restringir suas operações. Os ajustes macroeconômicos têm sido limitados por vários desafios. O primeiro são as pressões conflitantes sobre o dólar (ele tem que cair para ajudar a corrigir o déficit corrente dos EUA, mas a moeda tende a subir quando há incerteza em outras regiões, especialmente a Zona do Euro). O segundo é a resistência chinesa em permitir a apreciação do yuan. O terceiro são as contradições estruturais na Zona do Euro entre países deficitários e superavitários, entre o conservadorismo monetário e a necessidade de políticas expansionistas para combater a crise nos países periféricos e entre a unificação monetária e a fragmentação fiscal. O quarto é o aparato de política monetária extremamente rígido introduzido globalmente para manter a inflação baixa (21). A sua rigidez é complicada pelas diferenças entre as políticas monetárias nos EUA, Japão, Reino Unido e na Zona do Euro. Por exemplo, os dois primeiros não têm metas de inflação a flexibilizar, o Reino Unido não pode agir isoladamente e o BCE [Banco Central Europeu] foi montado para assegurar o controle da inflação e sua estrutura institucional torna difícil mudar de curso. Complicações de outra ordem surgiriam se a inflação subisse rapidamente em alguns países, porque seus governos seriam compelidos a limitar os estímulos fiscais e elevar as taxas de juro, segurando a recuperação da economia.
Por fim, outro conjunto de dificuldades se deve aos acordos legislativos e internacionais sobre a taxação do setor financeiro, a imposição de regras de capitalização e a política frente a instituições que são grandes demais para falir (e, portanto, que têm incentivos para se comportar de maneira irresponsável), bem como a modificação dos incentivos no mercado financeiro (por exemplo, os bônus são altos demais nos bons tempos e absurdos quando o setor se recusa a emprestar mesmo sendo sustentado pelo Estado).
Saída pela Esquerda
Apesar da esquerda ter sido severamente enfraquecida pelo ataque neoliberal, ela deve intervir nos debates correntes oferecendo alternativas de política econômica defendendo empregos, salários, aposentadorias e a seguridade social, melhorando a qualidade do investimento, protegendo o meio-ambiente e buscando transformar a crise no neoliberalismo em uma crise do neoliberalismo. Essas propostas podem ser estruturadas em torno de dois eixos.
Primeiro, nenhuma concessão sobre empregos, aposentadorias ou o bem-estar social. Aqueles que se beneficiaram desproporcionalmente nos bons tempos, e cuja cobiça causou a crise, devem pagar por ela. Além disso, oferecer concessões para proteger empregadores ou países individuais apenas intensificará a corrida rumo ao fundo do poço no neoliberalismo.
Segundo, a estatização do sistema financeiro e sua transformação num serviço de utilidade pública. Isso pode ser justificado em dois níveis. Por um lado, o argumento econômico para a existência dos lucros é que eles encorajam os capitalistas a investir sabiamente para multiplicar seu capital. Porém, se o setor financeiro é improdutivo e se suas perdas precisam ser socializadas, especialmente quando são grandes, não há justificativa para a existência de lucros nesse setor. Por outro lado, os governos transferiram somas imensas para os bancos recentemente, mas eles continuam se recusando a emprestar, porque precisam reconstituir suas reservas. Esse gargalo tem perpetuado a crise, mas ele é inevitável dada a estrutura institucional do setor financeiro, os imperativos da concorrência e as dificuldades impostas pela crise.
A nacionalização sem compensação adicional eliminará essa dificuldade. Idealmente, ela deveria ser suplementada pelo fechamento dos fundos de investimento e outras instituições que transacionam apenas entre si e que não têm função produtiva na economia, o enquadramento das remunerações dos financistas nos planos de salário dos servidores públicos, a imposição de controles de capitais, a centralização das transações em divisas, a abolição dos mercados secundários de títulos públicos e a criação de uma estrutura gerencial democrática para o setor financeiro. Se o Estado gerir os bancos conforme os objetivos das políticas públicas não será necessário acomodar a lucratividade de curto prazo, os bancos não se envolverão em atividades socialmente destrutivas e a sociedade poderá ter mais certeza de que não haverá grandes crises financeiras ou operações de salvamento no futuro. Estrategicamente, a nacionalização é importante porque a propriedade dos ativos financeiros está no cerne da reprodução do capitalismo atual. Paradoxalmente, essa é a relação social mais frágil tanto econômica quanto ideologicamente hoje, e uma campanha de massas para nacionalizar as finanças poderia desestabilizar as relações de classe no neoliberalismo.
Não é necessário lembrar que a propriedade estatal do setor financeiro não implica a abolição do capitalismo. O Estado tinha o controle ou a propriedade do setor financeiro na França e na Islândia até poucos anos e no Brasil e na Coréia do Sul sob ditaduras militares. A propriedade legal pode ajudar, mas o que realmente importa são os objetivos das políticas públicas e quais interesses são servidos pelas instituições financeiras. A coordenação estatal da atividade econômica é potencialmente mais vantajosa para a classe trabalhadora do que a liderança das instituições financeiras porque o Estado é a única instituição social que é pelo menos potencialmente sujeita ao controle democrático e que pode influenciar os padrões de emprego, de produção e de distribuição de bens e serviços e a distribuição de renda e riqueza socialmente.
A mobilização da esquerda não será bem recebida pela elite neoliberal. A esquerda não deve ter ilusões de que há uma relação antagônica entre a produção e as finanças sob o neoliberalismo apenas porque os ganhos financeiros são, por definição, deduções da mais-valia extraída pelo capital industrial. Esse princípio é abstrato demais para sustentar uma aliança política entre a esquerda e a burguesia industrial (ou a burguesia nacional). O capital industrial está materialmente comprometido com a reprodução do neoliberalismo e a expectativa de que esses capitalistas subitamente decidirão seguir políticas Keynesianas, desenvolvimentistas ou democráticas sugere um equívoco profundo acerca da natureza do capitalismo atual.
Em resumo, o neoliberalismo é uma forma material de reprodução social incluindo a estrutura da acumulação, as trocas internacionais, o Estado, a ideologia e a reprodução da classe trabalhadora e que é compatível com uma grande variedade de políticas sob um manto de ‘livre mercado’. Essa totalidade foi abalada pela crise e o consenso neoliberal tem tentado restaurar o status quo ante. Em contraste, a desestabilização do neoliberalismo é um projeto da esquerda radical e o espectro de alianças no topo é muito limitado. Por sua vez, a possibilidade de estabelecer alianças na base da sociedade global é, potencialmente, muito grande. Uma estratégia de esquerda para transcender o neoliberalismo deve se basear em movimentos políticos de massa transformando o Estado e os processos de reprodução socio-econômica e de representação política – ou seja, impondo um novo sistema de acumulação, incluindo uma nova configuração da economia e distribuições menos desiguais de renda, riqueza e poder.
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(*) Alfredo Saad Filho é um economista brasileiro, graduado na Universidade de Brasília e tendo já ensinado em universidades no Brasil, Moçambique e Inglaterra. É membro Conference of Socialist Economists, e editor da sua revista Capital & Class. Ensina atualmente no Departamento de Estudos do Desenvolvimento da School of Oriental and African Studies (SOAS), na Universidade de Londres. Os seus interesses de pesquisa incluem a economia política do desenvolvimento, a política industrial, a América Latina, inflação e estabilização económica, a teoria do valor-trabalho e suas aplicações. Entre os livros que publicou destacamos: ‘Economic Transitions to Neoliberalism in Middle-Income Countries: Policy Dilemmas, Economic Crises, Forms of Resistance’, London: Routledge, 2009 (editor com G. Yalman); ‘Political Economy of Brazil: Recent Economic Performance’. London: Palgrave-Macmillan, 2007 (editor, com P. Arestis). ‘Neoliberalism: A Critical Reader’, London: Pluto Press, 2005 (editor, com D. Johnston). ‘Marx’s Capital’, 4ª edição, London: Pluto Press, 2004 (com Ben Fine); ‘Anti-Capitalism: A Marxist Introduction’, London: Pluto Press, 2003 (editor); ‘The Value of Marx: Political Economy for Contemporary Capitalism’, London: Routledge, 2002. Este artigo foi originalmente publicado em ‘Crítica e Sociedade: revista de cultura política’, v. 1, n.º 3, Edição Especial - Dossiê: A crise atual do capitalismo, dez. 2011.
_____________ NOTAS:
(1) Esse artigo é uma versão atualizada de Saad Filho (2009, 2011).
(2) Para uma análise do neoliberalismo, ver Saad Filho (2003), Saad Filho e Johnston (2005) e Saad Filho e Yalman (2010).
(3) Ver, por exemplo, Panitch e Gindin (2004), Panitch e Konings (2009) e Rude (2005).
(4) Para uma análise detalhada da financeirização nos EUA, ver Krippner (2005).
(5) Ver Kotz (2009) e Watkins (2010).
(6) Ver os números especiais do Socialist Register (2004, 2005).
(7) Por exemplo, e incluindo apenas um subconjunto do que se definiu acima como ‘finanças’: "Em 2002, o setor [financeiro restrito] gerou estonteantes 41 por cento dos lucros empresariais domésticos nos EUA... As remunerações médias no setor subiram de aproximadamente a média para todas os setores entre 1948 e 1982 para 181 por cento da média em 2007", in Martin Wolf, ‘Cutting Back Financial Capitalism is America’s Big Test’. Ver também Bellamy Foster e Holleman (2010) e Kotz (2009).
(8) Essas conclusões são inegáveis. Por exemplo, "[É] difícil argumentar que o novo sistema [financeiro] trouxe benefícios excepcionais para a economia como um todo. O crescimento econômico e a produtividade nos últimos 25 anos foram comparáveis aos dos anos 50 e 60, mas nos anos anteriores a prosperidade foi compartilhada mais amplamente" (Volcker 2010).
(9) Ver Reinhard e Rogoff (2010) e Stiglitz (2010).
(10) Ver Montgomerie (2009).
(11) ‘Em 2002 ‘[....]os ativos totais extraídos do setor residencial nos EUA] saltaram a cerca de 8 por cento da renda pessoal disponível, e em 2004-06 eles chegaram a 9-10 por cento da renda pessoal disponível. Essas enormes extrações dos ativos residenciais, que não teriam sido possíveis sem um rápido crescimento dos preços das casas, representaram recursos adicionais para gastos além da renda disponível das famílias’ (Kotz, 2009:312).
(12) Ver Collini (2010) e Kotz (2009).
(13) Ver, por exemplo, Marazzi (2010:34-35).
(14) ‘Na altura do verão de 2007 os preços das casas tinham subido em 70 por cento, corrigidos pela inflação, desde 1995. No seu pico em 2007, a bolha residencial criou uma riqueza adicional estimada em US$8 trilhões, a partir de uma riqueza residencial total de US$20 trilhões, ou 40 por cento do valor das residencias’ (Kotz, 2009:311).
(15) Para uma resenha do apoio ideológico de Alan Greenspan à bolha imobiliária, ver 'Geenspan's View' .
(16) Para uma análise detalhada das remunerações no setor financeiro, ver Bebchuk, Cohen e Spamann (2009).
(17) Para uma visão idealizada da ‘Grande Moderação’, ver Bernanke (2004). Para uma resenha da experiência norte-americana, ver Panitch e Gindin (2009).
(18) “A proposição de que as modernas finanças sofisticadas poderia transferir os riscos àqueles mais capacitados para gerenciá-los falhou. O paradigma era, ao invés disso, que o risco seria transferido àqueles menos capazes de entendê-lo” (Wolf, 2009).
(19) Ver Greenspan (2009) e Tett (2009).
(20) ‘Os transtornos econômicos atuais demonstram que o acesso ao crédito não substitui o crescimento dos salários reais e a proteção social adequada. Portanto, as intervenções políticas para conter a crise financeira corrente precisam tratar os problemas crônicos de liquidez e, iminentemente, de solvência das famílias ... [devido] ao enorme estoque de dívidas sem garantias que precisam ser pagos ao mesmo tempo em que os preços dos ativos estão caindo ... Além disso, essas famílias podem não mais ser capazes de continuar financiando seu consumo através do endividamento se o crédito ao consumo secar. Ademais, sem dúvida as famílias terão que pagar a conta pelas múltiplas operações de salvamento de bancos montadas pelo governo dos EUA ... Seja através do aumento dos impostos ou cortes adicionais dos serviços públicos, as famílias supostamente devem enfrentar sua própria adversidade ao mesmo tempo em que se espera que elas possam dar uma arrancada na economia (Montgomerie, 2009, pp.18-19).
(21) Ver Saad Filho (2007).
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