Europa: qual o programa de urgência para enfrenter a crise?

 

 

Damien Millet e Eric Toussaint (*)

 

 

 

De acordo com as exigências do FMI, os governos dos países europeus resolveram impor aos seus povos, políticas rigorosas de austeridade, com cortes na despesa pública: despedimentos na função pública, congelamento ou redução de salários, limitação do acesso a determinados serviços públicos essenciais à protecção social, aumento da idade da reforma... Aumenta o custo dos serviços públicos (transportes, água, saúde, educação...). Sobem os impostos indirectos de forma particularmente injusta, em especial o IVA. As empresas públicas mais competitivas são privatizadas em massa. As políticas de austeridade implementadas atingiram um nível que não era visto desde a Segunda Guerra Mundial. Os efeitos da crise são potenciados pela aplicação dos denominados placebos, que visam, sobretudo, proteger os interesses dos donos do capital. A austeridade agrava a crise económica, de forma significativa, e desencadeia o efeito bola de neve: devido ao baixo crescimento, quando existe, a dívida pública cresce de forma mecânica. Como escreveu Jean-Marie Harribey, o tríptico Austeridade salarial + Austeridade monetária + Austeridade orçamental dá a fórmula do triplo A.

 

Mas as pessoas suportam cada vez menos a injustiça dessas reformas caracterizadas por um retrocesso social de grande amplitude. Em termos relativos, são os trabalhadores por conta de outrém, os desempregados e as famílias de baixos rendimentos que mais contribuem para que os Estados continuem a enriquecer os credores. E entre a população mais afectada, as mulheres são as mais atingidas, porque a forma como a economia está hoje organizada e a sociedade patriarcal fazem recair sobre as mulheres os efeitos desastrosos da precariedade laboral, do trabalho a tempo parcial e dos baixos salários (1). Afectadas pela deterioração dos serviços sociais públicos, pagam um preço elevado. A luta pela imposição de uma lógica diferente é inseparável da luta pelo respeito absoluto dos direitos das mulheres. Tracemos os contornos do que queremos que seja essa outra lógica.

 

A redução do défice não é um fim em si mesmo. Em determinadas circunstâncias, a redução pode ser utilizada para estimular a actividade económica, o investimento e para melhorar as condições de vida das vítimas da crise. Depois de relançada a actividade económica, a diminuição do défice público não deve ser feita através da redução dos gastos sociais, mas através do aumento das receitas fiscais, da luta contra a grande evasão fiscal e de uma maior tributação sobre o capital, sobre as transações financeiras, sobre o património e sobre os rendimentos dos mais ricos. Para reduzir o défice, é preciso também reduzir, de forma radical, as despesas relativas à amortização da dívida pública e anular a parte da dívida que é ilegítima.

 

Os cortes na despesa devem também incidir sobre o orçamento militar e sobre outras despesas socialmente inúteis e perigosas para o ambiente. No entanto, é fundamental aumentar as despesas sociais, nomeadamente para atenuar os efeitos da recessão económica. É necessário fazer crescer o investimento nas energias renováveis e nalgumas infra-estruturas tais como os transportes, as escolas, os centros de saúde públicos. Uma política de relançamento económico, através do aumento da procura pública e do consumo privado, permite uma cobrança de impostos mais eficaz. Mas, para além disso, a crise deveria ser uma oportunidade para romper com a lógica capitalista e para provocar uma mudança radical na sociedade. A nova lógica a construir deverá virar as costas ao produtivismo, integrar a questão ecológica, erradicar as diversas formas de opressão (racial, patriarcal ...) e promover os bens públicos.

 

Para tal, é preciso construir uma ampla frente anti-crise, tanto a nível europeu como a nível local, com o objectivo de reunir energias no sentido de criar uma relação de forças favorável ao desenvolvimento de soluções radicais centradas na justiça social e climática.

 

1. Travar os planos de auteridade que são injustos e que aprofundam a crise

 

É uma prioridade acabar com as medidas de austeridade anti-sociais. Através da mobilização nas ruas, nos locais públicos, através da greve, da recusa dos impostos impopulares, é preciso forçar os governos a desobedecer às autoridades europeias e a revogar os planos de austeridade.

 

2. Anular a dívida ilegítima

 

A realização de uma auditoria à dívida pública, feita sob controlo cidadão, combinada, em determinados casos, com a suspensão unilateral e soberana do seu pagamento, permitirá uma anulação/repúdio da parte ilegítima da dívida e a redução da dívida remanescente.

 

É que não é possível apoiar a redução da dívida decidida pelos credores, sobretudo, devido às pesadas contrapartidas que exige. O plano de redução de parte da dívida grega, implementado desde Março de 2012, está relacionado com a aplicação de uma dose suplementar de medidas que violam os direitos económicos e sociais da população grega e a soberania do país (2). De acordo com um estudo realizado pela Troika, mesmo tendo em conta a redução de dívida concedida pelos credores privados, a dívida pública da Grécia atingirá os 164% do PIB em 2013 (3) ! Deve-se, portanto, denunciar a forma como foi conduzida a operação de redução de dívida grega e propôr uma alternativa: a anulação da dívida, isto é, o seu repúdio pelo país devedor, que é um acto soberano, unilateral e poderoso.

 

Porque razão o Estado endividado deve reduzir radicalmente a dívida pública, cancelando as dívidas ilegítimas? Primeiro, por razões de justiça social, mas também por razões económicas, que todos podemos entender e defender. Para sair da crise por cima, não se pode simplesmente relançar a actividade económica através do aumento da procura pública e do consumo privado. Porque se nos contentássemos com uma tal política de relançamento económico, combinada com uma reforma fical redistributiva, a receita fiscal adicional seria em grande parte desviada para pagamento da dívida pública. As contribuições, a impor aos mais ricos e às grandes empresas privadas, seriam amplamente compensadas pelo rendimento que recebem proveniente de títulos do Estado de que são, de longe, os principais detentores e beneficiários (por esse motivo não querem ouvir falar na anulação da dívida). Devido a tal, é preciso anular uma grande parte da dívida pública. A amplitude dessa anulação dependerá do nível de consciência que a população, que é vítima dessa dívida, tiver (a esse nível, a auditoria cidadã desempenha um papel crucial), da evolução da crise económica e política e, sobretudo, da correlação de forças conseguida na rua, nos locais públicos e nos locais de trabalho através da mobilização presente e futura. Nalguns países, como a Grécia, Portugal, Irlanda, Espanha e Hungria, o tema da anulação da dívida é já um assunto de grande actualidade. Em Itália, França e Bélgica está em vias de se tornar. E muito em breve, será um tema central no debate político europeu.

 

Para as nações que estão já sob chantagem dos especuladores, do FMI e de outros organismos, como a Comissão Europeia, deve ser utilizada uma moratória unilateral para reembolso da dívida pública. Esta solução começa a tornar-se popular nos países mais afetados pela crise. A moratória unilateral deve ser conjugada com a realização de uma auditoria cidadã à dívida pública, que visa fornecer, à opinião pública, as provas e os argumentos necessários para o repúdio de parte da dívida considerada ilegítima. Como tem sido demonstrado pelo CADTM, em várias publicações, o direito internacional e o direito interno dos Estados possuem a base jurídica necessária para levar a cabo tal acção unilateral e soberana.

 

A auditoria deve também identificar responsabilidades no processo de endividamento e exigir que os responsáveis nacionais e internacionais sejam apresentados à justiça. Nos casos mais relevantes, é legítimo que as instituições privadas e os indivíduos com elevados rendimentos, detentores de títulos de dívida, suportem o ónus da anulação da dívida soberana ilegítima, porque eles são, em grande parte, responsáveis pela crise, que lhes tem permitido obter grandes benefícios. Suportarem esse encargo é apenas uma forma de se conseguir mais justiça social. Portanto, é importante construir um registo dos detentores de títulos com o objectivo de, através deles, indemnizar os cidadãos e cidadãs com baixos e médios rendimentos.

 

Se a auditoria demonstrar a existência de delitos relacionados com a dívida ilegítima, os responsáveis deverão ser severamente condenados a pagar indemnizações e não devem escapar à aplicação de penas de prisão, tendo em conta a gravidade dos seus actos. É preciso levar a tribunal as individualidades que concederam empréstimos ilegítimos.

 

Em relação às dívidas que, de acordo com a auditoria, não são ilegítimas, deve ser exigido, aos credores, a redução de montantes e de taxas de juros e solicitado o alargamento do período de reembolso. Também aqui, será necessário proceder à discriminação positiva dos pequenos detentores de títulos de dívida pública, que devem ser ressarcidos normalmente. Por outro lado, a parcela do Orçamento de Estado, destinada ao pagamento da dívida, deverá ser reescalonada em função da saúde económica do país, da capacidade de reembolso dos poderes públicos e da incompressibilidade das despesas sociais.

 

Devem-se tirar lições do caso alemão, pós Segunda Guerra Mundial: o Acordo de Londres de 1953, que previa uma redução de 62% do stock da dívida alemã, referia que o valor dos montantes, afectos ao serviço da dívida, não poderia ser superior a 5% do valor das exportações (4). Pode-se definir uma relação desse tipo: a soma destinada ao pagamento da dívida não pode exceder 5% das receitas do Estado. Deve-se também definir o enquadramento jurídico que impeça a repetição da crise que teve início em 2007-2008: proibição da nacionalização da dívida privada; obrigação de organizar uma auditoria permanente à política de endividamento público com participação cidadã; fazer com que as infrações relacionadas com o endividamento ilegítimo sejam imprescindíveis; prever a nulidade das dívidas ilegítimas; adoptar uma regra de ouro que garanta que os direitos humanos fundamentais são invioláveis e têm precedência sobre as despesas relativas ao pagamento da dívida... Não faltam soluções alternativas.

 

3. Para uma justa redistribuição da riqueza

 

Desde 1980, os impostos directos sobre os rendimentos mais elevados e sobre as grandes empresas têm diminuído. Centenas de milhares de euros de benefícios fiscais foram orientados para a especulação e para a acumulação de riqueza dos mais abastados.

 

É preciso conciliar uma profunda reforma fiscal, que vise a justiça social (reduzindo o rendimento e o património dos mais ricos e aumentando o rendimento e o património da maioria da população), com a harmonização fiscal a nível europeu, para evitar o dumping fiscal (5). O objetivo é o aumento da receita pública, nomeadamente através da aplicação do imposto progressivo sobre o rendimento das pessoas mais ricas (a taxa marginal do imposto sobre o rendimento pode chegar aos 90% (6) ), do imposto sobre o património a partir de um determinado montante e do imposto sobre as empresas. O aumento da receita deve ser acompanhado da baixa imediata dos preços dos bens e serviços de primeira necessidade (alimentos-base, água, electricidade, aquecimento, transportes públicos, material escolar...), nomeadamente através da redução acentuada e focalizada do IVA sobre esses bens e serviços básicos. É preciso também adoptar uma política fiscal que favoreça a protecção do ambiente, taxando, de forma dissuasora, as indústrias poluentes.

 

Os países podem-se associar para adoptarem um imposto sobre as transações financeiras, inclusive sobre os mercados cambiais, com vista a aumentar a arrecadação de receita, a limitar a especulação e a favorecer a estabilidade das taxas de câmbio.

 

4. Lutar contra os paraísos fiscais

 

As várias cimeiras do G20 têm recusado, apesar das suas declarações de intenções, tratar, de modo eficaz, os paraísos jurídicos e fiscais. Uma medida simples para lutar contra os paraísos fiscais (que fazem perder, todos os anos, aos países do Norte, mas também aos do Sul, recursos vitais para o desenvolvimento das populações) é o Parlamento proibir todos os indivíduos e todas as empresas, no seu território, de realizarem transações, por intermédio, dos paraísos fiscais, sob pena de terem de pagar multa de montante equivalente. É preciso erradicar esses buracos negros das finanças, o tráfico criminoso, a corrupção, o crime de colarinho branco. As grandes potências, que os apoiam há anos, possuem os meios necessários.

 

A grande evasão fiscal priva a comunidade de meios consideráveis e prejudica o emprego. Devem ser concedidos meios substanciais aos serviços de Finanças para lutar, de forma eficaz, contra a fraude organizada pelas grandes empresas e pelos mais ricos. Os resultados devem ser tornados públicos e os autores punidos severamente.

 

5. É preciso puxar as rédeas aos mercados financeiros

 

A especulação, à escala mundial, representa várias vezes a riqueza produzida no planeta. A forma sofisticada como é concebida torna-a totalmente incontrolável. A engrenagem que suscita desestrutura a economia real. A opacidade das operações financeiras é a regra. Para taxar os credores na fonte, é preciso identificá-los. A ditadura dos mercados financeiros deve acabar. É necessário proibir a especulação sobre os títulos de dívida pública, sobre a moeda, sobre os alimentos (7). As vendas a descoberto (8) e os Credit Default Swaps (CDS) também devem ser banidos. É preciso acabar com os mercados de balcão de produtos derivados, que são autênticos buracos negros, escapando a toda a regulamentação e supervisão.

 

As agências de notação devem também ser reformadas e regulamentadas. Devem ser proibidas de dar notas aos Estados. Longe de serem ferramentas de avaliação científica objectiva, essas agências são parte interessada na globalização neoliberal e têm provocado, várias vezes, catástrofes sociais. Na verdade, a degradação da nota de um país pode provocar o aumento das taxas de juros, que o Estado deve pagar para se financiar nos mercados financeiros. Como consequência, a situação económica do país deteriora-se.

 

O comportamento em rebanho dos especuladores multiplica as dificuldades que vão sobrecarregar ainda mais as pessoas. A submissão das agências de rating aos meios financeiros faz dessas agências actores de grande relevância a nível internacional, cuja responsabilidade, no desencadear e na evolução das crises, não é denunciada suficientemente pelos meios de comunicação social. A estabilidade económica dos países europeus foi entregue nas suas mãos, sem salvaguardas, sem meios sérios de controlo por parte dos poderes públicos. Por isso, é preciso proibi-los de continuarem a provocar estragos.

 

Para proibir outras manobras de desestabilização dos Estados, deve-se implementar o controlo rigoroso dos movimentos de capitais.

 

6. Transferir os bancos e as companhias de seguro para o sector público, sob controlo cidadão

 

Por causa das escolhas que fizeram, a maioria dos bancos enfrentam situações de insolvência em vez de crises temporárias de liquidez. A decisão dos bancos centrais de lhes permitirem o acesso ilimitado ao crédito, sem impor a mudança das regras de jogo, agrava o problema.

 

É necessário regressar ao básico. Os bancos devem ser considerados serviços públicos, devido, precisamente, à sua importância e ao efeito devastador que a sua má gestão pode ter sobre a economia. O negócio da banca é demasiado sério para ser entregue a banqueiros privados. Utilizando dinheiro público, a banca beneficia de garantias por parte do Estado e presta um serviço fundamental à sociedade, por esse motivo, deve ser considerada um serviço público.

 

Os Estados devem recuperar a sua capacidade de controlar e orientar a actividade económica e financeira. Devem também dispor de instrumentos para realizar investimentos e financiar as despesas públicas, reduzindo ao mínimo os empréstimos junto de instituições privadas. Para tal, deve-se expropriar os bancos sem indemnização, nacionalizá-los e transferi-los para o sector público sob controlo cidadão.

 

Em certos casos, a expropriação dos bancos privados pode representar um custo para o Estado por causa das dívidas acumuladas e dos produtos tóxicos que possuem. As despesas em causa devem ser recuperadas através do património dos grandes accionistas. Na verdade, as empresas privadas, que são accionistas dos bancos e que os conduziram ao abismo, beneficiando de lucros avultados, detêm parte do seu património noutros sectores da economia. É preciso analisar o património dos accionistas. O objectivo é evitar ao máximo transferir os prejuízos para a sociedade. O exemplo irlandês é emblemático. O modo como foi nacionalizado o Irish Allied Bank é inaceitável, porque foi feito à custa da população.

 

A opção que defendemos implica a eliminação do sector bancário capitalista, tanto a nível do crédito e da poupança (bancos de depósitos), como a nível do investimento (bancos comerciais ou de investimento). Assim sendo, haveria apenas dois tipos de bancos: os bancos públicos, com estatuto de serviço público (sob controlo dos cidadãos), e os bancos cooperativos de tamanho moderado.

 

Embora o seu estado de saúde não seja tão mediatizado, o sector segurador encontra-se também no centro da crise actual. Os grandes grupos seguradores têm realizado operações tão arriscadas como os bancos privados, com os quais, muitos deles, mantêm ligações estreitas. Uma grande parte dos seus activos é composta por títulos de dívida soberana e por derivados. Em busca do lucro imediato, especularam, de forma perigosa, com os prémios pagos pelos segurados e com as poupanças, obtidas sob a forma de seguro de vida ou de cotizações voluntárias, com vista a complementos de reforma. A expropriação das seguradoras vai evitar um colapso no sector e proteger os depositantes e tomadores de seguros. A expropriação das seguradoras deve ser acompanhada da consolidação do sistema de reformas.

 

7. Nacionalizar as empresas privatizadas desde 1980

 

Uma característica dos últimos trinta anos tem sido a privatização de muitas empresas e serviços públicos. Bancos, indústria, correios, telecomunicações, energia e transportes, os governos entregaram aos privados sectores inteiros da economia, perdendo a capacidade de a regular. Esses bens públicos, resultantes do trabalho colectivo, devem voltar para domínio público. Assim, criar-se-ão novas empresas públicas e adaptar-se-ão os serviços públicos às necessidades da população, por exemplo, para dar resposta ao problema das alterações climáticas, através da criação de um serviço público de isolamento de casas.

 

8. Reduzir radicalmente as horas de trabalho para garantir o pleno emprego e adoptar uma política de distribuição da riqueza com vista à justiça social

 

Redistribuir de outra forma a riqueza é a melhor resposta para a crise. A parte da riqueza produzida, destinada aos trabalhadores por conta de outrém, diminuiu significativamente há várias décadas, ao mesmo tempo que os credores e as empresas aumentaram os seus lucros destinados à especulação. Aumentando os salários, permite-se uma vida mais digna às pessoas e reforçam-se os meios utilizados para financiar a protecção social e o sistema de reformas e pensões.

 

Ao reduzir o horário de trabalho, sem perda de salário, cria-se emprego, melhora-se a qualidade de vida dos trabalhadores, dá-se trabalho a quem precisa. A redução radical do horário de trabalho permite ter outro ritmo de vida e possibilita uma maneira diferente de viver em sociedade, longe do consumismo. O aumento dos tempos de lazer vai permitir uma maior participação das pessoas na vida política, o reforço da solidariedade, do voluntariado e da participação cultural.

 

Devem ser também aumentados, de forma significativa, o salário mínimo, os salários médios e os benefícios sociais. No entanto, devem-se estabelecer limites às remunerações dos executivos das empresas, quer sejam privadas ou públicas, salários que atingem montantes absolutamente inaceitáveis. O objectivo é proibir bónus, stock options, reformas abusivas e outras vantagens injustificadas. Deve-se estabelecer um limite ao rendimento máximo. Recomendamos que o nível dos rendimentos varie no máximo entre um e quatro (como aconselhava Platão há cerca de 2.400 anos), tributando na totalidade os rendimentos individuais das pessoas.

 

9. Empréstimos públicos favoráveis à melhoria das condições de vida, à promoção dos bens comuns, rompendo com a lógica da destruição ambiental

 

O Estado deve pedir empréstimos com o objectivo de melhorar as condições de vida das populações, por exemplo, através da realização de obras públicas e do investimento em energias renováveis. Alguns desses trabalhos podem ser financiados pelo orçamento através das opções políticas assumidas, mas os empréstimos públicos possibilitam trabalhos de maior envergadura, por exemplo, substituir o automóvel desenvolvendo uma rede consistente de transportes públicos, desactivar as centrais nucleares e substituí-las por energias renováveis, melhorar a qualidade da habitação, criar ou reabrir linhas férreas de proximidade sobre todo o território nacional, começando pelo território urbano e semi-urbano, renovar, reabilitar ou construir edifícios públicos e habitação social, reduzindo o consumo de energia e construindo alojamento de qualidade.

 

É preciso definir, com urgência, uma política transparente de endividamento público. A proposta que fazemos é a seguinte: 1. O endividamento público deve assegurar melhores condições de vida, rompendo com a lógica da destruição ambiental; 2. O endividamento público deve contribuir para o desenvolvimento de políticas redistributivas com vista à redução das desigualdades. Propomos, portanto, que as instituições financeiras, as grandes empresas privadas e os mais ricos sejam obrigados, por lei, a comprar, num montante proporcional ao seu património e rendimentos, obrigações do tesouro a uma taxa de 0%, não indexada à inflação. O resto da população poderá adquirir obrigações do Estado de forma voluntária, que garantirão um rendimento real positivo (por exemplo, 3%) superior à inflação. Sendo a inflação anual de 3%, a taxa de juro efectiva paga pelo Estado, correspondente a esse ano, será de 6%. Esta medida de discriminação positiva (comparável às medidas adoptadas na luta contra o racismo nos Estado Unidos, contra as castas na Índia ou contra a desigualdade de género) promoverá a justiça fiscal e uma distribuição menos desigual da riqueza.

 

10. Questionar o euro

 

O debate sobre a saída do euro, que se coloca para uma série de países como a Grécia, é muito necessário. É evidente que o euro é uma camisa de forças para a Grécia, Portugal ou Espanha. Se não lhe dedicamos tanta atenção como dedicamos a outras temáticas alternativas, é porque o debate atravessa e divide os movimentos sociais e os partidos de esquerda. A nossa preocupação central é mobilizar em torno do tema da dívida que é vital, pondo temporariamente de lado o que nos divide.

 

11. Uma outra União Europeia construída na solidariedade

 

Várias disposições dos tratados que regem a União Europeia, a Zona Euro e o BCE devem ser revogadas. Por exemplo, devem ser excluídas as secções 63 e 125 do Tratado de Lisboa, que proíbem o controlo sobre os movimentos de capitais e a assistência aos Estados em dificuldades. Também deve ser abandonado o Pacto de Estabilidade e Crescimento. O MEE (mecanismo europeu de estabilidade) deve ser eliminado. Devem-se substituir os tratados existentes por novos tratados, no âmbito de um processo constituinte e democrático, no sentido de alcançar um pacto de solidariedade entre os povos pelo emprego e pelo ambiente.

 

É preciso fazer uma revisão completa da política monetária, do estatuto e da actividade do BCE. A incapacidade de o poder político impôr a criação de moeda é uma deficiência grave. Ao criar um BCE, que paira sobre os governos e os povos, a UE fez uma escolha desastrosa, a de submeter o Homem à Finança, e não o contrário.

 

Numa altura em que os movimentos sociais denunciavam a rigidez e a inadequação profunda dos seus estatutos, o BCE viu-se obrigado a mudar de tom, no auge da crise, alterando, de urgência, o papel que lhe tinha sido outrogado. Infelizmente, fê-lo pelas piores razões: não para que os interesses pos povos fossem tidos em conta, mas para que os interesses dos credores fossem salvaguardados. Essa é a prova de que os tratados têm que ser reformulados: o BCE e os bancos centrais devem ser capazes de financiar directamente os Estados que pretendam desenvolver factores sociais e ambientais, que satisfaçam as necessidades fundamentais das populações.

 

Hoje em dia, actividades económicas diversas, tais como o investimento na construção de um hospital ou um investimento especulativo, são financiadas de forma semelhante. O poder político deve impor custos diferentes a uns e a outros: as taxas mais baixas devem ser reservadas para os investimentos socialmente justos e ecologicamente sustentáveis, as taxas mais elevadas, ou mesmo proibitivas, quando a situação o exigir, devem ser aplicadas às operações especulativas, que convém, pura e simplesmente, proibir em determinadas áreas.

 

Uma Europa assente na solidariedade e na cooperação deve virar costas à competição e à concorrência que “puxam para baixo". A lógica neo-liberal conduziu-nos à crise e revelou o seu fracasso. Fez descer os indicadores sociais: menor proteção social, menos emprego, menos serviços públicos. Os poucos que beneficiaram com a crise conseguiram-no à custa dos direitos da maioria. Os culpados ganharam, as vítimas pagaram! Esta lógica, subjacente a todos os textos constituintes da União Europeia, deve ser demolida. Uma outra Europa, baseada na cooperação entre os Estados e na solidariedade entre os povos, deve tornar-se a prioridade. Por essa razão, as políticas orçamentais e fiscais não devem ser uniformizadas, porque as economias europeias possuem muitas disparidades, mas coordenadas, para que finalmente tenhamos uma solução "de baixo para cima". Políticas globais, à escala europeia, por exemplo, de investimento público para a criação de emprego público em áreas-chave (serviços locais de energias renováveis, de luta contra as alterações climáticas em sectores base da sociedade), devem ser impostas. Uma outra política passa por um processo coordenado pelos povos, no sentido de adoptar uma Constituição para construir uma Europa diferente.

 

Essa outra Europa democratizada deve trabalhar para impor princípios não negociáveis: o reforço da justiça fiscal e social, opções no sentido da melhoria da qualidade de vida dos seus habitantes, o desarmamento e a redução radical dos gastos militares, opções energéticas sustentáveis sem recorrer à energia nuclear, rejeição dos organismos geneticamente modificados (OGM). Deve terminar com a política-fortaleza, de cerco aos imigrantes, tornando-se num parceiro justo e solidário para com os povos do hemisfério Sul. O primeiro passo, nesse sentido, deve ser a anulação incondicional da dívida dos países do Terceiro Mundo. A anulação da dívida é decididamente um denominador comum a todas as lutas que é urgente levar a cabo a Norte e a Sul.

 

 

 

(*) Damien Millet é professor de matemática e porta-voz do Comité pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo ( CADTM ) de França. Eric Toussaint, doutor em Ciência Política, é presidente do CADTM da Bélgica e membro do Conselho Científico da ATTAC em França. Damien Millet e Eric Toussaint coordenaram o livro colectivo ‘A Dívida ou a Vida’, Aden-CADTM de 2011, que recebeu o prémio do livro político na Feira do Livro Político de Liège em 2011. O último livro, até à data, de Damien Millet e Eric Toussaint, é ‘AAA, Audit, Annulation, Autre politique’, Le Seuil, Paris, 2012. A tradução deste artigo é de Maria da Liberdade e já foi publicada anteriormente na página em português do CADTM .

 

 

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NOTAS:

 

(1) Christiane Marty, ‘Impact de la crise et de l’austérité sur les femmes: des raisons de s’indigner et se mobiliser’.

 

(2) Ver ‘A campanha de desinformação sobre a dívida grega e o plano de salvamento dos credores privados’.

 

(3) Ver ‘Bailout can make greek debt sustainable, but risks remain: EU/IMF.

 

(4) Éric Toussaint, Banque mondiale, le coup d’Etat permanent, CADTM – Syllepse - Cetim, 2006, capítulo 4.

 

(5) Pensemos na Irlanda que aplica uma taxa de 12,5% sobre os lucros das empresas. Em França, a taxa efectiva aplicada às empresas do CAC 40 é de 8%...

 

(6) De sublinhar que esta taxa de 90% começou a ser aplicada aos mais ricos desde a presidência de Franklin Roosevelt, nos Estados Unidos, na década de 1930.

 

(7) Damien Millet et Éric Toussaint, La Crise, quelles crises?, Aden-CADTM, 2010, capítulo 6.

 

(8) As vendas a descoberto permitem especular sobre a queda de um título, vendendo esse título, a prazo, mesmo não o possuindo. As autoridades alemãs proibiram as vendas a descoberto. No entanto, as autoridades francesas e de outros países opuseram-se a essa medida.