![]() |
|||||
|
Os fundamentos de uma estratégia ecossocialista
Daniel Tanuro (*)
Ao contrário do que sugere a metáfora falsa, mas muito popular, da Ilha de Páscoa, proposta por Jared Diamond (1), a degradação ambiental que vemos hoje não é de modo algum comparável à que ocorreu em outros períodos históricos. As diferenças são não apenas quantitativas (a gravidade e globalização dos problemas ambientais), mas também e principalmente qualitativas: enquanto que todas as crises ambientais do passado resultaram de tendências sociais para a subprodução crónica, portanto, do medo da escassez, os problemas atuais têm suas raízes na tendência oposta à sobreprodução e excesso de consumo, que é específica da produção generalizada de mercadorias. Portanto, a expressão "crise ecológica" é imprópria. Não é a natureza que está em crise, mas sim uma relação historicamente determinada entre a humanidade e o seu meio ambiente. Esta crise não é devida às características intrínsecas da raça humana, mas ao modo de produção que se tornou dominante há cerca de dois séculos atrás - o capitalismo - e aos padrões de consumo e de mobilidade que dele resultaram. Sérios atentados aos ecossistemas (alterações climáticas, poluição química, rápido declínio da biodiversidade, degradação dos solos, destruição da floresta tropical, etc.) constituem uma dimensão da crise sistémica global. Juntos, eles expressam a incompatibilidade entre o capitalismo e o respeito pelos limites naturais. Produtivismo ilimitado A razão fundamental para esta incompatibilidade é simples: sob o chicote da concorrência, qualquer proprietário de capital estará sempre procurando substituir o trabalho vivo por trabalho morto, ou seja, trabalhadores por máquinas mais produtivas, pois estas fornecem-lhe um lucro superior ao lucro médio. Escusado será dizer que esta operação não fará sentido para o capitalista se não for acompanhada por uma tentativa de eliminar os concorrentes mais fracos, aumentando a massa das mercadorias colocadas no mercado a baixo preço. A inovação, neste modo de produção, não está ao serviço de alívio da carga de trabalho, mas da acumulação incessante de capital. Portanto, sua constante busca por novas áreas de valorização faz com que se produza uma quantidade cada vez maior de bens inúteis e prejudiciais, cuja mais-valia, para ser realizada, implica que estejam constantemente a ser criadas vias de escoamento e necessidades, cada vez mais artificiais. O “produtivismo” - produzir por produzir – implica obrigatoriamente também "consumir por consumir", fazendo parte do código genético deste modo de produção, tal como o fetichismo da mercadoria. "O capitalismo, não só nunca está estacionário, como nunca poderia passar a está-lo", disse Schumpeter (2). Na verdade, para que um capitalismo pudesse permanecer estacionário, seria necessário eliminar a concorrência entre os muitos capitais que compõem o Capital, o que é obviamente absurdo. Sim, mas - objetar-nos-ão - se a eficiência na utilização dos recursos for crescendo mais rapidamente do que a massa dos bens produzidos, a reprodução ampliada do capital não será acompanhada por uma punção maior sobre os recursos naturais. O capitalismo seria então ecologicamente sustentável. Com efeito. Essa é a tese da dissociação entre o crescimento do PIB e o impacto ambiental. É ilustrada pela curva em sino dita de "Kuznets", segundo a qual o impacto ambiental de uma dada sociedade aumentaria até um pico, diminuindo depois em função da sua riqueza, ou seja, do desenvolvimento de suas forças produtivas. É verdade que, de todos os modos de produção que existiram na história, o capitalismo é o que mais espetacularmente aumentou a produtividade do trabalho, logo também a eficiência na utilização dos recursos. Isto é assim porque a busca do lucro extra que impulsiona a mecanização promove ao mesmo tempo uma crescente economia no uso dos recursos naturais. No entanto, esta observação não põe em causa o caráter ecocida do sistema e a curva de Kuznets é falsa. Com efeito, por um lado, o aumento da eficiência é necessariamente uma assíntota, não uma função linear do aumento de capital fixo - caso contrário chegaríamos à conclusão de que o movimento perpétuo é possível, uma vez que, no limite, o trabalho poderia ser feito sem perda de energia (este erro grosseiro foi cometido pelos especialistas que avaliaram a parcela do consumo europeu de electricidade que poderia ser coberta pelo projeto Desertec de exploração da radiação solar no deserto do assíntota) (3). Por outro lado, constata-se empiricamente que o aumento do volume de produção mais do que compensa o aumento da eficiência, que é, por conseguinte, apenas relativo. O caso do automóvel é impressionante: a sobriedade de consumo dos motores aumenta, mas as necessidades globais de hidrocarbonetos e as emissões de gases com efeito estufa pelas atividades transportadoras explodem, devido ao crescimento incessante do número de veículos. Bulímico, o crescimento capitalista significa, inevitavelmente, um aumento do consumo de recursos, incompatível com a finitude destes e com o seu ritmo natural de renovação. Face à angustiante multiplicação dos problemas ambientais graves, somos levados a nos perguntar: quais são os limites teóricos do crescimento capitalista e, portanto, da degradação capitalista do ambiente? Responder a isto implica que se compreenda bem que o capital não é uma coisa: é uma relação social de exploração, cujo desenvolvimento foi historicamente possível mediante a prévia apropriação dos recursos naturais (terra, água, florestas ...) pelas classes dominantes, em nome do lucro. Isso, por sua vez, levou à apropriação da força de trabalho, transformada em mercadoria salarial. Pilhagem de recursos e exploração do trabalho - considerada esta do ponto de vista social - são, portanto, dois lados da mesma moeda. Mas, deixando de lado a sua componente social (a cooperação e as suas formas), a força de trabalho humana pode também ser considerada, sob o ângulo da termodinâmica, como um recurso natural entre outros (o corpo humano é um conversor de energia). Nesse caso, pilhagem e exploração serão realmente um mesmo e único processo de destruição, podendo o sobretrabalho ser descrito como uma quantidade de energia apropriada pelo patronato. Dito isso, poderemos responder à pergunta sobre os limites teóricos do capital. Por um lado, a expropriação dos produtores e produtoras diretos, a sua alienação em relação à Terra úbere, criou uma classe social cujo único meio de subsistência é a venda da sua força de trabalho por um salário. Por outro lado, o trabalhador ou a trabalhadora contratados como assalariados encontram já prontos, disponibilizados pelo empregador, os elementos necessários à sua atividade produtiva - ferramentas, edifícios e energia – decorrentes, direta ou indiretamente, de recursos recolhidos na natureza pelo trabalho ou transformados por ele. Neste contexto, e tendo em conta que o aumento da eficiência é apenas relativo, é óbvio que a busca incessante de lucros acrescidos pelo produtivismo capitalista pesa sobre ambas as frações - variável e constante - do capital, de modo que este deve inevitavelmente consumir uma quantidade cada vez maior de força de trabalho e de recursos naturais, mesmo que procure a sua economia relativa. Fica assim esclarecida a formulação enigmática de Marx quando diz que o capital não tem outro limite senão o próprio capital: isso significa simplesmente que este modo de produção não se vai deter, por si só, senão depois de esgotar as duas únicas fontes de "toda a riqueza: a terra e o trabalhador" (4). Esta conclusão deixa tão pouco espaço para o otimismo que alguns se apegam, a qualquer custo, à idéia de que um mecanismo endógeno ainda não identificada poderia travar o sistema, antes que este atinja esse limite teórico. Mas devemos, ainda aqui, resignar-nos a constatar que não existe e não pode existir nada de parecido. A razão, uma vez mais, é simples e remete para as leis fundamentais do capitalismo: este modo de produção baseado unicamente na lei do valor-trabalho tem por único propósito a produção de valores de troca e não de valores uso. No entanto, sendo o valor determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário para produzir, é evidente que o capital não tem meios através dos quais possa espontaneamente tomar em conta o estado das riquezas que a natureza põe gratuitamente à disposição da humanidade. Símbolo e essência do valor, a forma dinheiro, por sua própria abstração e por causa da completa inversão de perspectiva que engendra (o dinheiro parece conferir valor às mercadoria, quando são estas que dão o seu valor ao dinheiro) cria a ilusão de que uma acumulação material ilimitada seria possível. Deve precisar-se que o capital, embora conte e meça tudo, é incapaz de tomar em conta as riquezas naturais, não só qualitativamente mas também quantitativamente. Assim o tem mostrado a ligeireza e falta de cuidado com que destrói irreversivelmente as existências de muitos recursos, apesar dos avisos recebidos de todos os tipos. Esta loucura encontrou mesmo os seus teóricos, na pessoa dos ultra-liberais que defendem, contra toda as evidências, a absurda tese de substituibilidade integral dos recursos naturais por produtos da atividade humana... Uma resposta política? É certo que há capitais investidos massivamente no setor verde da economia, porque os lucros são aí atraentes, graças aos subsídios públicos. Mas o "capitalismo verde", como tal, é um oxímoro. A única questão interessante seria perguntar em que medida a cegueira ecológica do modo de produção mercantil poderia ser compensada por medidas políticas, exógenas à esfera econômica em si. Dado o que foi dito acima, a resposta é óbvia: a eficácia das políticas ambientais depende inteiramente da determinação com que aqueles que as defendem ousem cercear as liberdades do capital e, portanto, da construção de relações de forças no terreno social necessárias à sua imposição (o que implica, por sua vez, ligar a solução da questão ecológica aos combates dos explorados: a luta contra o desemprego, a pobreza, a desigualdade social, as discriminações e a degradação das condições de trabalho). É aqui que está o busílis. Tim Jackson, por exemplo, é provavelmente um dos escritores não-marxistas que melhor entende a lógica produtivista capitalista como a causa fundamental da degradação ambiental. No seu livro ‘Prospérité sans croissance’ (Prosperidade sem crescimento), virando as costas às explicações superficiais, ele escreve pertinentemente que "esta sociedade que lança tudo ao lixo não é tanto uma conseqüência da gula dos consumidores como uma condição de sobrevivência do sistema", porque este precisa "vender mais bens, inovar continuamente" (5). Mas Jackson esquiva-se à conclusão decorrente de sua própria análise: ao invés de contestar o modo de produção, desvia-se para colocar em causa um suposto "desejo de novidade e de consumo", que relevaria, assim o diz, da natureza humana. De repente, a montanha dá assim à luz um rato: - No lado ambiental, ‘Prospérité sans croissance’ apela a que o poder político estabeleça limites rigorosos para o uso dos recursos, com base exclusivamente em restrições ambientais. Isso é realmente o que deveria ser feito... No entanto, não podemos, sob pena de impotência, fingir ignorar, como o faz Jackson, que o mundo dos negócios se opôe com sucesso a qualquer regulamentação ambiental drástica, mesmo nos casos em que a sua necessidade é menos controvertida; - No plano social, Jackson tem o mérito para pleitear pela redução do tempo de trabalho, mas essa medida é subordinada à manutenção da competitividade das empresas, pelo que não é quantificada. Para ele, a redução do tempo de trabalho é na verdade uma forma de flexibilidade, não uma resposta coletiva imediata para o desemprego, ou uma ferramenta de redistribuição da riqueza produzida (pela manutenção de salários). É também encarada como um último recurso, para o caso em que a conversão dos economistas a um novo "modelo macroeconômico" não seja suficiente para "mover simplesmente o ponto focal da atividade econômica do setor produtivo de valor para o dos serviços imateriais" (6). Em geral, todas as propostas apresentadas para remediar politicamente a natureza eco-suicida do capital tropeçam sobre os mesmos obstáculos: a lógica do lucro e a natureza de classe das instituições (7). A miragem da internalização Einstein disse uma vez: "Nós não podemos resolver um problema com o tipo de pensamento que nos levou ao problema". Este teorema se aplica perfeitamente à idéia de que o capitalismo poderia tomar o caminho da sustentabilidade, se as autoridades políticas atribuíssem um preço aos recursos naturais. Uma vez que a crise ecológica é uma conseqüência da produção generalizada de mercadorias, não é "mercantilizando" a água, o ar, o carbono, os genes ou toda a riqueza natural, que a destruição do meio ambiente pode ser travada. Esta "internalização das externalidades" não só não nos traz mais perto de uma solução, como nos afasta ainda mais dela. Na verdade, é óbvio que a transformação dos recursos naturais em mercadorias envolve a sua apropriação pelo capital. A matéria ficará assim definida, pois que o capital, submetendo essas riquezas à lei do valor-trabalho, tende a subtraí-las, ao mesmo tempo, a qualquer outro critério de gestão que não seja o lucro. De qualquer forma, independentemente destas considerações, mais fundamental ainda é que tentar colocar um preço sobre os recursos naturais enfrenta uma dificuldade teórica intransponível: como avaliar em termos monetários bens cuja produção não é mensurável em horas, que portanto não têm valor, e cuja destruição é, para além disso, diferida no tempo? Para responder a este quebra-cabeças, os economistas liberais disputam entre si a taxa de conversão e interrogam-se sobre a disponibilidade dos consumidores em pagar o ambiente ou aceitar a sua degradação. O preço dos recursos naturais variaria então, consoante os entrevistados fossem ricos ou pobres... Levado ao limite, este método revela claramente o seu absurdo: que valor mercantil seria de atribuir à luz solar, sabendo que toda a vida na Terra depende dela? O impasse do cálculo mercantil é evidente na proposta de um imposto sobre o carbono para tornar os combustíveis fósseis mais caros do que as energias renováveis e reduzir, em consequência, as emissões de gás carbónico. Como sabemos, para termos uma hipótese razoável de não ultrapassar em muito os 2° C de elevação de temperatura média mundial, em relação ao período pré-industrial, devem reduzir-se estas emissões, até 2050, entre 80 a 95%, nos países capitalistas desenvolvidos, e de 50 a 85% em todo o mundo, devendo o ponto de inflexão ser localizado, o mais tardar, em 2015 (8). Estes intervalos de números, que seria prudente seguir próximo dos seus limites superiores, implicam abandonar os combustíveis fósseis em duas gerações. Ora, estes combustíveis cobrem presentemente 80% das nossas necessidades energéticas e o “ouro negro” é a matéria-prima de toda a indústria petroquímica. De facto, a magnitude das reduções a serem alcançadas, de forma urgente, e a diferença de custo entre fósseis e energias renováveis, são tais, que mesmo um imposto de US$600 dólares por tonelada seria insuficiente (permitiria apenas reduzir as emissões globais pela metade até 2050, de acordo com a Agência Internacional de Energia) (9). Sabendo que a combustão de mil litros de gasóleo produz 2,7 toneladas de CO2, entenderemos que, na prática, isso seria socialmente inviável: os empregadores não poderiam resignar-se a tal a não ser que esse custo fosse integralmente transferido para os consumidores finais, enquanto a maioria das pessoas, exasperadas já com a austeridade que dura há trinta anos, obviamente se oporia a uma tal deterioração das suas condições de vida. Portanto, na prática, e apesar de todas as teorias sofisticadas da economia ecológica, as propostas políticas de internalização dos custos da poluição são não só ambientalmente insuficientes, como socialmente intoleráveis. Admitindo mesmo que os obstáculos teóricos e práticos pudessem ser superados, a eficiência da internalização permaneceria aliás aleatória, porque o preço é um indicador puramente quantitativo, incapaz de compreender as diferenças qualitativas entre as toneladas de CO2 evitadas por meios tão diferentes como o isolamento térmico de uma habitação, a instalação de painéis fotovoltaicos, uma plantação de árvores ou a anulação de um grande prémio de fórmula um. Quantitativamente, não há nenhuma diferença entre uma tonelada de CO2 e uma outra. No entanto, as diferenças qualitativas são cruciais para o desenvolvimento de estratégias adequadas de defesa do meio ambiente, em que os meios utilizados sejam consistentes com a finalidade em vista - a passagem sem rotura social a um sistema energético sóbrio e descentralizado, baseado unicamente em fontes renováveis. Gestão racional do metabolismo e luta de classes O caráter ecocida do capital concretizou-se desde o início do presente modo de produção. No século XIX, o fundador da química do solo, Justus Liebig, já fez soar o alarme: devido à urbanização capitalista, os excrementos humanos já não retornavam mais aos campos e essa rotura no ciclo dos nutrientes ameaçava causar uma severa degradação do solo. Ciente destes trabalhos, Marx elevou o problema ao plano conceitual, colocando a necessidade geral de uma "regulação racional das trocas materiais (ou metabolismo) entre a humanidade e a natureza" (10). De seguida, armado com este conceito ecológico antes do seu tempo, voltou à questão dos solos para avançar uma perspectiva programática radical: a abolição da separação entre a cidade e o campo, complemento essencial, aos seus olhos, para o desaparecimento gradual da separação entre trabalho manual e intelectual. Enfatizemos: o termo "gestão racional" não deve aqui dar lugar a confusão. A natureza, para Marx, é "o corpo inorgânico do homem". O metabolismo adequado não passa por uma burocracia de tecnocratas verdes, mas pela supressão das classes sociais. Na verdade, a divisão da sociedade faz com que seja impossível qualquer controle consciente e organizado das trocas materiais com o meio ambiente. Não só porque a corrida aos lucros compele os patrões a saquear os recursos naturais, mas também porque a sua apropriação capitalista faz com que esses recursos se perfilem perante @s explorad@s como forças hostis, das quais ele(a)s se sentem alienad@s. Acresce a isto que a competição entre assalariad@s e o medo do desemprego incitam cada um(a), individualmente, a desejar o bom funcionamento da "sua" empresa e a colaborar assim, involuntariamente, com o produtivismo. Finalmente, a partir de um certo nível de desenvolvimento do capital, o consumo de mercadorias fornece aos trabalhadores e trabalhadoras uma série de miseráveis compensações para a alienação da produção. Todos esses mecanismos não podem ser quebrados senão pelo desenvolvimento cada vez mais amplo da solidariedade de classe. É por isso que, para Marx, a gestão racional do metabolismo humanidade-natureza só pode ser conseguida pelos “produtores associados". Marx precisou que é nisso mesmo que reside "a única liberdade possível". Embora Lenin lhe tenha feito referência, em algumas tomadas de posição políticas sobre a questão da terra (11), e Bukharin tenha feito dele uma apresentação inteligente, no seu manual sobre materialismo histórico (12), o conceito marxiano de regulação racional das trocas materiais caiu de seguida no esquecimento. Nenhum pensador marxista lhe deu a importância que merece, e mais, nenhum deles viu interesse em referir-se-lhe, quando a questão ecológica se tornou um problema societal, desde os anos 60 do século passado. Este não é o lugar para nos questionarmos sobre as razões para esta quebra no marxismo revolucionário (13). Basta colocar o leitor de sobreaviso contra interpretações simplistas: o estalinismo não é a única causa, embora tenha significado, também nesta área, uma terrível regressão teórica (14). Colocaremos antes o acento no facto de que a "ecologia de Marx" merece tomar de urgência um lugar central no pensamento teórico e na elaboração programática dos marxistas. A questão do aquecimento global ilustra esta necessidade. Na verdade, a saturação da atmosfera em CO2, causada principalmente pela queima de combustíveis fósseis - isto é, um curto-circuito no ciclo longo do carbono - constitui um caso flagrante de gestão irracional das trocas materiais, e essa irracionalidade coloca a humanidade perante um terrível dilema: - Por um lado, três mil milhões de pessoas vivem em condições miseráveis. Satisfazer as suas necessidades legítimas só é possível aumentando a produção material. Portanto, transformando recursos recolhidos na natureza. Portanto, consumindo energia, que é hoje em 80% de origem fóssil, ou seja, fonte de emissão de gases com efeito de estufa; - No outro lado, o sistema climático está à beira de um enfarte. Evitar catástrofes irreversíveis (cujas vítimas se contarão sobretudo entre os três mil milhões de pessoas que aspiram a uma existência digna) exige reduzir radicalmente as emissões de gases com efeito de estufa. Reduzir, portanto, o consumo de combustíveis fósseis, necessário hoje para a transformação de recursos recolhidos na natureza. Reduzir, portanto, a produção material. No curto intervalo de tempo de 40 anos que nos é atribuído, de acordo com o Painel Intergovernamental sobre as Mudanças Climáticas (PIMC), a menos que ocorra uma extraordinária revolução científica no campo da energia, este sistema de equações simplesmente não consegue encontrar uma solução capitalista aceitável. De facto, um sistema baseado na concorrência para o lucro é absolutamente incapaz de atender necessidades humanas maciças não solventes, reduzindo ao mesmo tempo, de forma sustentável, o consumo de energia e a produção material. Alcançar uma qualquer dessas metas separadamente já seria incompatível com a lógica do capital. O que dizer então de alcançá-las a todas juntas? A impossibilidade da coisa resulta clara da análise de cenários climáticos propostos pelos governos e instituições internacionais. O cenário Mapa Azul da Agência Internacional de Energia, por exemplo, visa reduzir as emissões globais em 50% até 2050 (15). Por um lado, este objectivo é, provavelmente, insuficiente; em segundo lugar, seria alcançado apenas através do uso maciço da energia nuclear, dos agrocombustíveis e do chamado "carvão limpo" (CCS) (para não mencionar o gás de xisto e as areias betuminosas). O Mapa Azul implicaria construir todos os anos, durante mais de 40 anos, 32 centrais nucleares de 1.000 MW, bem como 45 novas centrais de carvão de 500 MW equipadas com CCS. É escusado continuar: a terrível catástrofe de Fukushima, no Japão, é suficiente para mostrar a aberração de tais projetos. A escolha estratégica é, deste modo, a seguinte: - Ou nos retiramos do capitalismo, restringindo radicalmente a esfera e o volume da produção capitalista, sendo assim possível minimizar os danos do aquecimento global, garantindo um desenvolvimento humano de qualidade, baseado exclusivamente em energias renováveis na perspectiva de uma sociedade baseada numa outra economia do tempo; - Ou continuamos na lógica capitalista de acumulação, com as perturbações climáticas a restringir radicalmente o direito à existência de centenas de milhões de seres humanos, sendo as gerações futuras condenadas a lidar com os problemas legados pela fuga em frente na via das tecnologias perigosas. Nós, obviamente, escolhemos a primeira solução, mas deve ser enfatizado que o constrangimento ambiental submete a transição para o socialismo a condições inéditas. A escala do desafio não pode ser subestimada. Na União Europeia, por exemplo, para reduzir as emissões em 60% (quando deveriam ser reduzidas em 95%!), sem recorrer ao atómico, seria necessário suprimir cerca de 40% da procura final de energia (16). Não é fácil medir as implicações em cascata sobre a produção material e os transportes, mas parece claro que o objetivo não será alcançado apenas pela eliminação de produções desnecessárias e prejudiciais (armamentos, publicidade, iates de luxo, aviões particulares, etc.), lutando contra a obsolescência planejada dos produtos, ou suprimindo os consumos ostentatórios das camadas mais ricas da classe dominante... Medidas mais radicais são necessárias, que afetarão toda a população, pelo menos nos países capitalistas desenvolvidos. Por outras palavras, a transição para o socialismo deve ser feita em condições muito diferentes das do século XX. Uma indicação nos é dada pela estimativa da participação do agronegócio no total das emissões de gases com efeito estufa. De acordo com a campanha "Não coma o mundo" (Ne mange pas le monde), de 44% a 57% das emissões de gases com efeito estufa devem-se ao atual modelo de produção, distribuição e consumo de produtos agrícolas e florestais. Este valor é obtido pela soma das emissões provenientes de atividades agropecuárias em sentido estrito (11 a 15%), desflorestação (15 a 18%), manuseio, transporte e armazenamento de alimentos (15 a 20%) e resíduos orgânicos (3 a 4%) (17). A luta pela estabilização do clima no melhor nível possível, não pode portanto ser limitada à expropriação dos expropriadores-poluidores-desperdiçadores: a mudança das relações de propriedade é apenas uma condição necessária - mas não suficiente - para uma mudança social extremamente profunda, envolvendo mudanças substanciais nos padrões sociais de consumo e mobilidade. Estas mudanças – deslocar-se de outro modo, comer menos carne e consumir vegetais sazonais, por exemplo - devem ser colocadas em perspetiva desde já, porque são urgentes e têm implicações imediatas. Podem sê-lo, porque elas movimentam processos culturais e ideológicos que têm alguma autonomia em relação à base produtiva da sociedade. Embora não transportem consigo nenhuma mudança estrutural, devemos considerá-las como parte integrante da alternativa anticapitalista. Na medida em que elas levam a práticas coletivas, podem promover a conscientização e a organização. Um novo período O ‘Programa de Transição’ que Leon Trotsky escreveu em 1938 começa com a afirmação de que "a premissa econômica da revolução proletária chegou há muito tempo ao ponto mais alto que pode ser alcançado sob o capitalismo", concluindo que "as condições objetivas [...] não estão apenas maduras, começaram mesmo já a apodrecer. Sem uma revolução socialista, e isso no próximo período histórico, toda a civilização humana está em risco de ser levada a uma catástrofe." É certo que o fundador do Exército Vermelho se refere, principalmente, ao contexto histórico da época: a vitória do fascismo e do nazismo, o esmagamento da revolução espanhola e a guerra mundial iminente. O seu juízo sobre a putrefação das condições objetivas parece, no entanto, ter um significado histórico mais amplo. Este tema reaparece nos escritos de Ernest Mandel: "De facto, a partir de um certo nível, o crescimento das forças produtivas e o crescimento das relações mercantis-monetárias pode desviar a sociedade do seu objectivo socialista, em lugar de a aproximar" (18). Citação notável esta, cujas implicações estratégicas merecem ser exploradas. Pois essa é, de facto, a situação sem precedentes com que nos confrontamos: ao nível dos países desenvolvidos, o capitalismo foi longe demais no crescimento das forças produtivas materiais, de modo que uma alternativa socialista digna já não passa por um avanço, mas por uma espécie de recuo. (Falamos aqui, é claro, das forças materiais, pois que o desenvolvimento dos conhecimentos e da cooperação entre produtores não está, obviamente, em causa.) É esta nova situação histórica que se expressa na imperativa necessidade de produzir e transportar menos, a fim de reduzir radicalmente o consumo de energia e suprimir completamente as emissões de CO2 fóssil até o final do século. O facto de o desenvolvimento das forças produtivas materiais ter começado a se afastar do objetivo de uma alternativa socialista é o facto principal que fundamenta e justifica o novo conceito de ecossocialismo. Longe de ser apenas um novo rótulo na garrafa, este conceito introduziu, pelo menos, cinco novidades, conforme salientei no meu livro ‘L’impossible capitalisme vert’ (O impossível capitalismo verde), e aqui vou recordar brevemente (19): 1° O conceito de "controlo humano sobre a natureza" deve ser abandonado. A complexidade, os desconhecidos e o caráter evolutivo da biosfera implicam um certo grau de incerteza irredutível. A interpenetração das questões sociais e ambientais deve ser pensada como um processo em constante movimento, como um produto da natureza. 2° A definição clássica do socialismo deve ser completada. O único socialismo possível agora é aquele que satisfaz as necessidades humanas reais (desembaraçadas da alienação mercantil), determinadas democraticamente pelas próprias pessoas, dentro dos limites impostos pelos recursos existentes e inquirindo cuidadosamente sobre o impacto ambiental destas necessidades e da maneira como elas são satisfeitas. 3° É preciso ultrapassar a visão compartimentada, linear e utilitarista da natureza como a plataforma física a partir da qual a humanidade opera, como a loja onde ela recolhe os recursos necessários para a produção de sua existência social e como o aterro onde ela deposita os seus resíduos. A natureza é, ao mesmo tempo, a plataforma, a loja, o aterro e o conjunto de todos os processos vitais que, graças à contribuição da energia solar, fazem circular a matéria entre esses pólos, reorganizando-a constantemente. Os resíduos e o seu modo de depósito devem ser compatíveis, em quantidade e qualidade, com as capacidades e ritmos da reciclagem dos ecossistemas. Isto quer dizer que o bom funcionamento do conjunto depende da biodiversidade, que deve ser protegida. 4° As fontes energéticas e os métodos de conversão utilizados não são socialmente neutros. O socialismo, portanto, não pode ser definido, à maneira de Lênin, como "os sovietes mais a eletricidade". O sistema energético capitalista é centralizado, anárquico, perdulário, ineficiente, intensivo em trabalho morto, baseado em fontes não-renováveis e orientado para a acumulação. Uma transformação socialista digna desse nome exige a sua substituição gradual por um sistema descentralizado, planejado, econômico, eficiente, intensivo em trabalho vivo, baseado exclusivamente em fontes renováveis e orientado para a produção de valores de uso duráveis, recicláveis e reutilizáveis. Isto não diz respeito apenas à produção de energia em sentido estrito, mas ao conjunto do aparelho industrial, à agricultura, aos transportes, ao lazer e ao ordenamento do território. Esta transformação extremamente profunda só poderá consumar-se ao nível global. 5º A ultrapassagem do limite a partir do qual o crescimento das forças produtivas materiais dificulta a transição para o socialismo implica uma atitude crítica em relação ao aumento da produtividade do trabalho. Em uma série de áreas, a implementação de uma alternativa anticapitalista que respeite os equilíbrios ecológicos exige a substituição do trabalho morto por trabalho vivo. Este é, claramente, o caso da agricultura, onde o sistema ultra-mecanizado do agronegócio, grande consumidor de insumos energéticos fósseis, deve ceder o lugar a um outro modo de exploração, mais intensivo em trabalho humano. O mesmo vale para o setor da energia, pois que a produção descentralizada com base em fontes renováveis vai exigir muito trabalho, nomeadamente de manutenção. De um modo geral, a quantidade de trabalho vivo deve aumentar dramaticamente em todas as áreas diretamente relacionadas com o ambiente. Um paralelo pode ser feito aqui com os cuidados pessoais, a educação e outras áreas onde a esquerda vê já como auto-evidente que é preciso desenvolver o emprego público: a inteligência e a emoção humanas, combinadas dentro de uma cultura do "cuidado", são realmente necessárias em todas as matérias relevando diretamente da interação com a biosfera. Espíritos dogmáticos temerão que estas reflexões abram a porta a uma revisão do marxismo revolucionário, na forma de concessões à ofensiva de austeridade em curso contra a classe trabalhadora nos países desenvolvidos. Não é o caso. Está fora de questão ceder a mínima parcela de terreno aos discursos culpabilizantes que usam a crise ecológica para tentar desarmar o mundo do trabalho e seus representantes. Uma linha de demarcação clara entre o ecossocialismo, de um lado, e a ecologia política ou o decrescimento, do outro lado, será a sua atitude em relação à luta de classes. Continuamos firmemente convencidos de que os explorados aprendem com a experiência das lutas coletivas, que começam com a defesa do salário, do emprego e das condições de trabalho. Toda a luta dos trabalhadores e das trabalhadoras, mesmo a mais imediatista, deve ser apoiada, sendo vista como uma oportunidade de aumentar o nível de consciência para a orientar rumo a uma perspectiva socialista. Dentro deste quadro estratégico, a constatação de que a transição para o socialismo deve agora operar sob os constrangimentos ambientais não enfraquece as convicções anticapitalistas: pelo contrário, fortalece-as. Entretanto, somente a verdade é revolucionária. Não podemos esconder o facto de que a transformação socialista implicará muito provavelmente renunciar a determinados bens, serviços e práticas que impregnam profundamente a vida cotidiana de largos segmentos da população, pelo menos nos países capitalistas desenvolvidos. É necessário, portanto, visar objetivos que possam compensar essa perda por uma melhoria substancial na qualidade de vida. Duas pistas nos parecem dever ser privilegiadas: 1ª a gratuidade dos bens básicos (água, energia, mobilidade) até um volume social médio (o que envolve a expansão do setor público), 2ª uma redução radical (50%) do horário de trabalho sem perda de salário, com novas contratações em proporção e com suavização das cadências. "Qualquer economia, em última análise, se resume a uma economia de tempo", disse Marx. Afirmar a necessidade de produzir e consumir menos, é reivindicar o tempo de viver, e de viver melhor. É abrir um debate fundamental sobre o controlo do tempo social, sobre o que é necessário, para quem, porquê e em que quantidades. É despertar o desejo coletivo de um mundo sem guerras, onde as pessoas trabalham menos e de outro modo, onde se polui menos, onde se desenvolvem as relações sociais, onde se melhora substancialmente o bem-estar, a saúde pública, a educação e a participação democrática. Um mundo onde os produtores associados reaprendem a "dialogar” coletivamente com a natureza. Esse mundo não será menos rico do que o mundo de hoje, como diz a direita. Nem será, sequer, "igualmente rico para a maioria da população", como diz uma certa esquerda. Será um mundo infinitamente menos frívolo, menos ansioso, menos apressado - em uma palavra: mais rico.
(*) Daniel Tanuro é um engenheiro agrónomo e ambientalista belga, membro da ONG ‘Climat et justice social’ e colaborador habitual da revista ‘Le Monde Diplomatique’. É autor do livro ‘L’impossible capitalisme vert’, La Découverte, Paris, 2010 e co-autor de ‘Pistes pour un anticapitalisme vert’, Syllèpse, Paris, 2010. Foi também autor do longo ‘Relatório sobre mudanças climáticas’ adotado para servir de base à resolução que seria tomada sobre o assunto no 16º Congresso Mundial da IV Internacional (Secretariado Unificado) em março de 2010. Este artigo foi escrito para a revista canadiana ‘Nouveaux cahiers du socialisme’, aí tendo sido publicado em setembro de 2011. Tradução de Ângelo Novo. ____________ NOTAS: (1) Jared Diamond, Collapse. How Societies Choose to Fail or Survive, London, Penguin Books, 2005. Críticas à tese de Diamond são formuladas principalmente por Benny Peiser, ‘From ecocide to genocide: the rape of Rapa Nui’, Energy and Environment, Vol. 16, No. 3-4 (2005), por Terry L. Hunt, ‘Rethinking Easter Island’s ecological catastrophe’, Journal of Archaeological Science, nº 34 (2007), p. 485-502, e por Daniel Tanuro, ‘Catastrophes écologiques d’hier et d’aujourd’hui: la fausse métaphore de l’île de Pâques’, Critique Communiste, n º 185, Dezembro de 2007. (2) Joseph Schumpeter, Capitalisme, socialisme et démocracie, Paris, Payot, Petite Bibliothèque, 1942. (3) L. Possoz e H. Jeanmart, Comments on the electricity demand scenario in two studies from the DLR: MED-CSP & TRANS-CSP , ORMEE & MITEC engineering consultancy. (4) Karl Marx, Le Capital, Paris, Editions Sociales, Livro I, Volume II, 1973 [1867], p. 181-182. Enfatizado por Marx. (5) Tim Jackson, Prospérité sans croissance, Bruxelas, Etopia, 2010. (6) Daniel Tanuro, ‘Prospérité sans croissance’: un ouvrage sous tension . (7) Isto é assim, particularmente, na proposta de indicadores alternativos ou complementares para o PIB. Que o PIB não mede a qualidade do ambiente é óbvio, não é esse o seu propósito, nem o do capitalismo. O PIB mede a acumulação de capital... Está, portanto, perfeitamente adequado ao capitalismo. Tentar fazer-nos acreditar que seria suficiente alterar o instrumento de medida para que o sistema mudasse a sua lógica é uma ingenuidade ou uma fraude inteletual. (8) Painel Intergovernamental sobre as Mudanças Climáticas (PIMC), Contribuição do Grupo de Trabalho III ao relatório de 2007 . (9) IEA, Perspectives des technologies de l’énergie. Au service du plan d’action du G8. Scénarios et stratégies à l’horizon 2050, 2006. (10) Karl Marx, Le Capital, Moscou, Éditions du Progrès, 1984 [1867], p. 855. (11) Vladimir I. Lenin, La question agraire et les critiques de Marx, Moscou, Éditions du Progrès, 1973, chapitre IV. (12) Nicholas Bukharin, La théorie du matérialisme historique. Manuel de sociologie marxiste, Paris, Anthropos, 1967. (13) Daniel Tanuro, ‘Marxism, energy, and ecology: The moment of truth’, Capitalism, Nature, Socialism, Vol. 21, nº 4, dezembro de 2010, p. 89-101. (14) Daniel Tanuro, Écologie: le lourd héritage de Léon Trotsky . (15) IEA, op. cit. (16) Wolfram Krevitt, Uwe Klann, Stefan Kronshage, ‘Energy Revolution. A Sustainable Pathway to a Clean Energy Future for Europe’, Stuttgart, Instituto de Termodinâmica Técnica e Greenpeace, setembro de 2005. (17) Relatado por Esther Vivas, ‘Ne mange pas le monde’: Une autre agriculture pour un autre climat , tradução francesa de um artigo publicado no diário catalão ‘Público’. (18) Ernest Mandel, Ten Theses on the Social and Economic Laws Governing the Society Transitional Between Capitalism and Socialism . (19) Daniel Tanuro, L’impossible capitalisme vert, Paris, La Découverte, 2010.
|
||||
|
|||||
![]() |