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As dívidas ilegítimas Quando os bancos se apoderam das políticas públicas
François Chesnais (*)
_____________________ François Chesnais, redator da revista ‘Carré Rouge’, acaba de publicar um livro importante, intitulado ‘Les dettes illégitimes. Quand les banques font main basse sur les politiques publiques’ (Edições Raisons d’agir, 2011). Um livro pedagógico revelando os mecanismos financeiros e bancários na origem da dívida dita soberana. Ele indica também a actualidade de uma batalha europeia pela anulação das dívidas ilegítimas. No momento em que o afrontamento sócio-político na Grécia atingiu um novo estádio, em que a mesma questão se coloca no imediato em Portugal e em perspectiva na Espanha, a leitura deste livro de François Chesnais permite captar as múltiplas facetas da chamada “crise da dívida soberana” e traçar as vias de um movimento europeu e internacional contra uma das máquinas capitalistas de destruição social e ambiental. François Chesnais, no artigo abaixo, coloca em evidência os traços mais salientes do tema que ele trata na sua obra. A leitura deste artigo vai suscitar a vontade e a necessidade de ler o seu livro (Redacção da revista suíça ‘A l’encontre’, que publicou este artigo a 15 de Junho de 2011). _____________________
Na Primavera de 2010, os grandes bancos europeus, em primeiro lugar os bancos alemães e franceses, convenceram a União Europeia e o Banco Central Europeu de que o risco de falta de pagamento da dívida pública da Grécia colocava em perigo o seu orçamento global. Eles pediram para serem postos ao abrigo das consequências da gestão das referidas instituições.
Os grandes bancos europeus foram fortemente ajudados no Outono de 2008, no momento em que a falência do banco Lehman Brothers em Nova Iorque conduziu a crise financeira ao paroxismo. Após o seu salvamento, eles não depuraram todos os activos tóxicos das suas contas. Continuaram, no entanto, a fazer colocações financeiras de alto risco. Para certos bancos, a mínima falta de pagamento significaria a falência. Em Maio de 2010, um plano de salvamento foi montado, com uma vertente financeira e uma vertente de austeridade orçamental drástica e de privatização acelerada: fortes baixas nas despesas sociais, diminuição dos salários dos funcionários públicos e redução do seu número; novos ataques ao sistema de pensões, sejam elas por repartição ou por capitalização. Os primeiros países a aplicar tais medidas, como a Grécia e Portugal, foram presos numa espiral infernal onde as camadas populares e os jovens são as vítimas imediatas. A cada mês um número mais importante de países na Europa ocidental e mediterrânea é envolvido, após ter sido provocada uma devastação nos países bálticos e balcânicos.
É aos trabalhadores, à juventude e às camadas populares mais vulneráveis que é imposto o custo do salvamento do sistema financeiro europeu e portanto do sistema mundial.
Precisamos dos bancos na sua forma actual? Será preciso continuar a salvá-los?
Duas séries de ideias estreitamente interligadas nos são veiculadas, com poucas nuances, pelo governo, pelos dirigentes da UMP, do Partido Socialista e pelos partidos ditos centristas.
As primeiras dizem respeito à dívida pública, as segundas aos bancos. Os “sacrifícios” pedidos no plano das pensões, no congelamento dos salários na Função Pública, nos novos cortes drásticos no orçamento da educação, etc., seriam necessários, segundo eles, afim de que a “dívida da França seja honrada”. Seria preciso também evitar que a França perca a nota AAA que lhe atribuem as agências de notação, e que ela não seja obrigada a pagar juros sobre a dívida pública mais elevados do aqueles que paga actualmente.
No que diz respeito aos bancos, segundo o governo, eles tem funções indispensáveis que exercem bem, ou, em todo caso, suficientemente bem, pelo que é necessário e legítimo socorrê-los de cada vez que o solicitem.
A dita obrigação de “honrar a dívida”, como a de “socorrer os bancos”, repousa sobre a ideia de que somas representando o fruto de uma poupança pacientemente realizada, através de um árduo trabalho, teriam sido emprestadas.
“A maioria dos economistas - escreve um especialista do crédito que trabalha nos Estados Unidos - considera que os bancos são simples intermediários entre os depositantes e os que solicitam empréstimo. Uma outra maneira de exprimir esta crença amplamente aceite é a de dizer que os bancos recolhem a poupança e financiam o investimento. A partir daí é fácil concluir que um montante dado de poupança deve ser constituído antes que um investimento possa se realizar” (1).
A realidade no entanto, é outra, muito diferente. Os empréstimos dos bancos não tem nenhuma relação com o montante de depósitos e de pequenas poupanças que lhes foi confiado. Eles nunca foram simples intermediários. Desde a sua transformação em grupos financeiros diversificados, realizando operações transnacionais, isto tornou-se ainda mais evidente.
Os lucros dos bancos provém das suas operações de criação de crédito. A sua origem se encontra no fluxo de riqueza (valor e mais-valia) proveniente das actividades de produção. O caminho seguido variará conforme o tomador de empréstimos. No caso de um Estado, ele passa pelo imposto e pelo serviço de juros da dívida pública. No caso de uma empresa, trata-se de uma fracção do lucro. No caso de famílias e particulares, é uma parte dos seus salários ou das suas pensões que é absorvida pelos juros que pagam sobre os seus créditos hipotecários ou pela movimentação dos seus cartões de crédito. Quanto mais um banco empresta, mais os seus lucros são elevados.
Durante as últimas duas décadas, eles conceberam meios que, teoricamente, lhes permitiriam desenvolver amplamente esse processo. As “inovações financeiras” deram origem a uma rede muito densa de transacções interbancárias. É a partir destas inovações que os bancos puderam accionar aquilo que é nomeado “o efeito de alavanca”, ou seja, um ratio entre os empréstimos e os seus capitais próprios e activos financeiros disponíveis, cuja altura (até mais de 30%) os coloca, permanentemente, em situação de grande fragilidade. Os bancos sabem disso mas contam com os governos para lhes assegurar em todas as circunstâncias, e qualquer que seja o custo social, uma rede de segurança e, em casos extremos, a socialização das suas perdas.
O FMI publica todos os seis meses, mais ou menos simultaneamente, dois grandes relatórios: um sobre as perspectivas da economia mundial e outro sobre o estado do sistema financeiro mundial. O primeiro atrai a atenção de todos os economistas. O FMI apresenta aí as suas projecções macroeconómicas. O segundo é apenas lido por aqueles que atribuem (no quadro da globalização comercial e financeira) grande importância à finança e às crises financeiras. Em Janeiro de 2011, o FMI já estimava que uma das grandes incertezas da situação económica mundial vinha do facto de que na Europa “a interacção entre os riscos soberano e bancário se intensifica” (2).
O primeiro capítulo do novo relatório sobre a situação do sistema financeiro mundial confirma essa apreciação. Ele acentua a vulnerabilidade dos bancos, em particular dos bancos europeus (3). A apreciação do director de departamento dos mercados financeiros e monetários do FMI é a seguinte: “Cerca de 4 anos após o início da crise financeira, a confiança na estabilidade do sistema bancário global necessita ainda ser inteiramente restaurada”. E ainda, no que respeita aos bancos europeus, “certos bancos têm ainda um “ratio” de efeito de alavanca demasiado importante, têm capitais próprios insuficientes, tendo-se em linha de conta a incerteza sobre a qualidade dos seus activos. Estes fracos níveis de fundos próprios colocam certos bancos alemães, bem como as caixas de poupança italianas, portuguesa e espanholas em dificuldade, vulneráveis a novos choques” (4).
O papel dos bancos é o de fornecer crédito comercial a curto prazo e empréstimos a longo prazo às empresas para os seus investimentos. Este papel é indispensável ao funcionamento do capitalismo. Ele seria também indispensável para toda forma de organização económica fundada sobre modalidades descentralizadas de propriedade social dos meios de produção, pressupondo o recurso à troca.
O balanço de três décadas de liberalização financeira e de quatro anos de crise coloca na realidade a questão da utilidade dos bancos na sua forma actual. Transformados em conglomerados financeiros, os bancos terão direito ao suporte dos governos e dos contribuintes a cada vez que os seus balanços económicos aparecem ameaçados devido às suas próprias decisões de gestão? Muitos cidadãos começam a ter sérias dúvidas… Eles o exprimem por vezes, como o fez Eric Cantona (futebolista francês que teve a sua hora de glória, no seu país e também na Inglaterra, e que havia feito um apelo a uma retirada dos depósitos bancários, em Dezembro de 2010), de uma maneira que os “media” não puderam ignorar. Não destruir os bancos, mas capturá-los a fim de que eles devam preencher as funções essenciais que, em princípio, lhes pertencem, é esta a resposta que eu dou juntamente com outros, como Fréderic Lordon (5).
Para uma definição de ilegitimidade das dívidas públicas
A noção de dívida odiosa foi aplicada desde os anos 1980 à dívida dos países do Terceiro Mundo. Sua possível aplicação no caso da dívida da Grécia foi discutida. Trata-se de uma noção que vem do período intermédio entre as duas guerras mundiais. A primeira definição pertence a Alexander Sack, jurista russo e professor de direito internacional em Paris: “dívida contraída por um regime despótico (nós diríamos hoje ditadura ou regime autoritário), para objectivos estranhos aos interesses da Nação, aos interesses dos cidadãos” (6). O “Center for International Sustainable Development” da universidade McGill de Montreal deu uma definição bastante parecida no princípio dos anos 2000, mas já mais ligada à financeirização contemporânea. Segundo esta definição, as dívidas odiosas são “aquelas que foram contraídas contra os interesses da população de um Estado, sem o seu consentimento e com todo o conhecimento de causa por parte dos credores” (7).
Esta definição se aplica perfeitamente à dívida específica que incide em França sobre as municipalidades, concelhos regionais e mesmo sobre certos hospitais, cujos eleitos ou directores acabam de se constituir em associação para desencadear acções judiciárias colectivas contra os bancos (8). Eles foram incitados por estes bancos a comprar “produtos estruturados”, que eram supostos facilitar, pelo seu rendimento elevado, o financiamento de projectos de investimentos importantes, num contexto de transferência de despesas do Estado para as regiões. Estes títulos financeiros opacos, transformados em “activos tóxicos” com a crise do Outono de 2008, sobrecarregam os orçamentos. O facto de que eles tenham sido comprados, ilustra obviamente o facto de que o fetichismo do dinheiro não é apenas próprio dos negociantes pois ele influencia as opções dos eleitos e dos administradores locais. Mas os bancos sabiam perfeitamente os riscos que estas compras faziam correr, o jogo de casino no qual faziam entrar os compradores. O suplemento de endividamento contraído pelas municipalidades pela compra de títulos podres, releva das “dívidas odiosas”.
A noção mais ampla de dívida ilegítima me parece corresponder de perto à dívida dos países capitalistas avançados, nomeadamente os da Europa. É esta a posição dos militantes do Comité pela Anulação das Dívidas do Terceiro Mundo (CADTM) (9). Os argumentos que são avançados mais frequentemente como constitutivos deste conceito dizem respeito às condições que levaram um país a acumular uma dívida elevada e a se colocar nas mãos dos mercados financeiros. Aqui a ilegitimidade tem a sua origem em três mecanismos: despesas elevadas com a característica de “presentes” feitos ao capital; um nível baixo da fiscalidade directa (impostos sobre o rendimento, o capital e o lucro das empresas) e a sua muito fraca progressividade; uma evasão fiscal importante. Encontramos esses três factores tanto no caso da Grécia como no caso da França, da mesma forma que em todos os países hoje atacados pelos fundos especulativos e pelos bancos.
No que diz respeito à França, a dívida nasceu, a partir de 1982, do “presente” feito ao capital financeiro aquando das nacionalizações do governo da União da Esquerda. O seu crescimento ligou-se, de seguida, ao movimento da liberalização financeira, sendo que a sua primeira fase, nos anos 1980, foi marcada por taxas de juros reais muito elevadas. O endividamento do Estado tem a sua origem na debilidade da fiscalidade directa (imposto sobre o rendimento e imposto sobre as empresas) e na evasão fiscal. Em vez de enfrentar os grupos sociais que são beneficiados e que recorrem a esses processos, os governos, tanto do Partido Socialista como do RPR-UMP, “contornaram” o problema da maneira mais favorável ao capital e às fortunas. Eles solicitaram empréstimos àqueles a quem renunciaram a cobrar impostos.
A carga fiscal sobre o capital e os altos rendimentos foi diminuída, no início de forma prudente; posteriormente, sob os governos de Jospin (1997-2002), Raffarin (2002-2005) e Villepin (2005- 2007), ela foi reduzida de maneira mais significativa com a multiplicação de “abrigos fiscais”; mais tarde Sarkozy estabeleceu, com o “escudo fiscal” (cujo primeiro passo foi dado por Villepin na sua lei das finanças de 2006), mecanismos restituindo aos mais ricos uma parte do imposto. A análise das origens da dívida francesa ajudará a perceber a noção de dívida ilegítima e, portanto, a colocar a questão da sua anulação, não somente de um ponto de vista económico, mas também como uma questão política com fundamento ético.
Mas a ilegitimidade repousa também sobre a natureza das operações de “empréstimos” que devemos “honrar”, para os quais será preciso pagar juros elevados e assegurar o reembolso. A injunção de pagar uma dívida repousa, há que repeti-lo, implicitamente, sobre essa ideia de que certas quantias, fruto de uma poupança pacientemente acumulada por um duro trabalho, teriam sido emprestadas. Ora, esse será talvez o caso da poupança das famílias ou dos fundos dos sistemas de aposentadoria por capitalização. Não é o dos bancos nem dos “Hedge Funds”. Quando estes “emprestam aos Estados”, comprando títulos do Tesouro emitidos pelos ministérios das Finanças, trata-se na realidade de somas fictícias, cuja emissão repousa sobre uma rede de relações e de transacções interbancárias. A transferência de verdadeira riqueza, aquela que nasce do trabalho, se faz no sentido oposto.
A dívida e o serviço de juros são uma componente da bomba aspiradora financeira ("la pompe à phynance"), assim chamada por Frédéric Lordon, em homenagem a Alfred Jarry e ao seu pai Ubu. A natureza económica das somas emprestadas é mais um factor a questionar a legitimidade da dívida pública.
A auditoria da dívida pública e sua anulação
O CADTM defende desde sempre a necessidade da auditoria da dívida como etapa para a sua anulação. A auditoria tem como objectivo identificar os factores que permitem caracterizar a dívida como ilegítima, bem como aqueles que justificam ou mesmo que exigem o pagamento de uma fracção da dívida a certos credores. Eu não estava ainda convencido da importância desse processo até que militantes gregos demonstraram o seu alcance.
Até hoje, o único exemplo de auditoria é a que foi realizada no Equador em 2007. Ela resultou de uma decisão governamental, tendo o presidente do Equador, Rafael Correa (2007) desejado conhecer as condições nas quais a dívida do país nasceu. A auditoria permitiu ao governo decidir a suspensão do pagamento da dívida, constituída por títulos da dívida que chegavam ao seu termo, uns em 2012, outros em 2030. Desta forma, ele forçou os banqueiros, sobretudo norte-americanos, detentores de títulos, a negociar. O Equador pôde recomprar títulos estimados em 3,2 milhares de milhões de dólares por uma soma de pouco menos de um milhar de milhão de dólares.
Um cenário semelhante àquele do Equador não é concebível na Europa. A revindicação da moratória imediata e da auditoria preparatória à anulação, deve obviamente ser dirigida aos partidos políticos no momento das campanhas eleitorais. Muitos militantes e alguns dirigentes serão sensíveis a ela. Entretanto, apenas “comités” do tipo daqueles que nasceram aquando da campanha de 2005 contra o projecto do Tratado Constitucional Europeu (ou mais recentemente sobre a questão das aposentadorias), podem ser portadores destas revindicações.
Existe um único país onde um “comité” nacional foi criado permitindo a formação de “comités” locais: trata-se da Grécia onde se criou um Comité grego contra a dívida. A seguir indicamos como ele define os seus objectivos (10).
Auditoria à dívida e exercício dos direitos democráticos
“O primeiro objectivo de uma auditoria é o de esclarecer o passado (…). Que fim levou o dinheiro de tal ou tal empréstimo, em que condições este foi concluído? Qual a soma de juros que foi paga e a que taxa, qual a parte que já foi paga? Como a dívida foi empolada sem que isto beneficiasse o povo? Que caminhos seguiram os capitais? Para que finalidade eles serviram? Que parte foi desviada, como e por quem?
E também: quem pediu o empréstimo e em nome de quem? Quem emprestou e qual foi o seu papel? Como o Estado foi comprometido, através de que decisão, tomada a que título? Como é que dívidas privadas se transformaram em dívidas “públicas”? Quem assumiu projectos inadaptados, quem forçou essa via, quem lucrou com isso ? Foram cometidos delitos ou crimes com esse dinheiro? Porque não são estabelecidas as responsabilidades civis, penais e administrativas?
(…) Uma auditoria da dívida pública não tem nada a ver com a sua caricatura que a reduz a uma simples verificação de cifras feitas por contabilistas rotineiros. Os partidários das auditorias invocam sempre duas necessidades fundamentais da sociedade: a transparência e o controlo democrático do Estado e dos governantes pelos cidadãos. Trata-se de necessidades que se referem a direitos democráticos elementares, reconhecidos pelo direito internacional, apesar de serem violados permanentemente.
O direito de vigilância dos cidadãos sobre os actos daqueles que os governam, de informação sobre tudo o que diga respeito à sua gestão, seus objectivos e suas motivações, é intrínseco à própria democracia, uma vez que ele emana do direito fundamental dos cidadãos de exercer o seu controle sobre o poder e de participar activamente nos assuntos da comunidade. (…) Esta necessidade permanente de transparência nos assuntos públicos adquire, na época do neoliberalismo mais selvagem e da corrupção mais desabrida (sem precedente na história mundial), uma enorme importância suplementar. Ela se transforma numa necessidade social e política absolutamente vital.
O exercício dos direitos democráticos dos cidadãos, antes considerados como elementares, é visto pelos governantes quase como um declaração de guerra ao seu sistema, feita por aqueles que se situam em baixo na escala social. E naturalmente, ele é tratado em conformidade, isto é, de maneira repressiva (…). A auditoria à dívida pública adquire uma dinâmica socialmente salutar e, politicamente, quase subversiva. A utilidade de uma auditoria não pode se resumir unicamente à defesa da transparência e da democratização da sociedade. Ela vai muito mais longe, pois abre caminho a processos que poderiam ser considerados como “extremamente perigosos” para o poder estabelecido e potencialmente libertadores para a esmagadora maioria dos cidadãos! Efectivamente, ao exigir-se a abertura e a auditoria dos livros da dívida pública (e, melhor ainda, abrindo e auditando esses livros) o movimento da auditoria cidadã ousa o impensável: penetrar na zona proibida e sagrada do sistema capitalista, onde, por definição, nenhum intruso é tolerado!
Compreendida desta forma, a revindicação da auditoria da dívida e o início da sua concretização pela criação de “comités” (como instâncias populares onde as provas da ilegitimidade seriam reunidas e debatidas) constituiriam uma ferramenta formidável de re-democratização” (11).
Tratando-se dos detentores da dívida pública, a questão da defesa da pequena poupança é frequentemente levantada, como problema importante quando não como obstáculo determinante. Ela não colocaria, porém, nenhum problema. Aquando das declarações de imposto directo, os bancos calculam com exactidão os montantes relativos a diferentes formas de poupança das famílias. Elas lhes seriam garantidas, uma vez que não representam mais que uma parte minúscula do total reclamado.
A anulação das dívidas públicas não pode obviamente ser uma medida isolada. Colocaremos inicialmente o acento sobre dois aspectos. O primeiro é a apropriação social dos bancos e sua reconfiguração, de forma a restaurar as suas funções essenciais de criação de formas determinadas e limitadas de crédito e a colocá-las ao serviço exclusivo da economia. O segundo é a reconfiguração da fiscalidade, a qual deve cessar de pesar acentuadamente sobre os assalariados e as camadas populares. Os sindicatos, SNUI (sindicato dos impostos) e Sud Trésor, tem sobre isso propostas elaboradas. Também importante é a utilização que é feita do imposto, seja ele recebido nacionalmente ou localmente. Actualmente, o controlo democrático do uso do imposto tornou-se puramente formal.
De uma maneira geral, a questão principal é aquela definida neste documento grego, a saber, a criação de uma dinâmica politica na qual aqueles e aquelas que demonstraram, repetidamente, uma forte capacidade de mobilização, encarariam a campanha para a anulação como algo de essencial que condiciona o futuro.
Na França, mas também em toda a Europa, os assalariados são confrontados com as questões cruciais do emprego e da precariedade. A solução desses problemas passa pelo controlo social do investimento. Não pode continuar a depender das estratégias de maximização dos lucros das grandes empresas. A satisfação de necessidades sociais urgentes tem por contexto a crise ecológica em todas as suas dimensões. É indispensável que ela se baseie em profundas transformações nos modos técnicos de produção, na indústria como na agricultura. O financiamento seria assegurado pelo imposto e pelo crédito bancário controlado. A “sobriedade energética” e a desmercantilização seriam os complementos necessários.
A liberalização das trocas, cujo custo ecológico é imenso, é uma base do capitalismo financeirizado. O controle social do investimento permitiria a relocalização de numerosas actividades e um encurtamento das cadeias de aprovisionamento, de produção e de comercialização. A anulação das dívidas nos países onde os povos se mobilizassem para a sua imposição, criaria assim as condições para uma verdadeira saída da crise.
Aproveitar a oportunidade de um combate num conjunto de países.
A campanha contra a dívida não pode se fazer “por procuração”. O povo grego não pode fazê-la por outros povos europeus.
As agências de notação ainda não se encarniçaram contra a França; esta ainda não sofre de diferenças de taxas de juros significativas. A pressão da “dívida a honrar” não deixa entretanto de pesar intensamente sobre a situação económica e social e sobre a vida política francesa. O governo, bem como os dirigentes da UMP, do Partido Socialista e dos partidos ditos centristas, repetem a cada dia que a decência exige dos cidadãos que estes “aceitem os sacrifícios” a fim de que a França pague as suas dívidas. Não divergem senão sobre a melhor maneira de o fazer, sobre o melhor receita política para o efeito.
A dívida bloqueia o futuro, em particular o das classes populares, é claro, mas também o de toda a sociedade. Fazer campanha pela sua anulação não é algo que esteja além da capacidade do movimento social francês. A mobilização que centenas de milhares de pessoas fizeram no último Outono coloca as associações, os sindicatos e os partidos franceses numa situação de responsabilidade particular. A recusa dos trabalhadores franceses em pagar a dívida seria também o apoio internacionalista mais eficaz que eles poderiam levar aos trabalhadores da Grécia, de Portugal e da Irlanda. Uma campanha popular conduzida por comités para uma moratória imediata e pela auditoria da dívida, prepararia o movimento social para os novos episódios da crise financeira.
Os publicistas e os responsáveis políticos que hoje preconizam a reestruturação da dívida da Grécia e da Irlanda reconhecem que os riscos que invocam os adversários desta medida são reais. A vulnerabilidade do sistema financeiro europeu, e também a do mundial, torna possível uma nova crise. A falência de sectores do sistema bancário não está excluída. Nos países onde o pagamento da dívida tenha sido posto em causa pelo movimento social, os trabalhadores e os jovens voltados, de diversas maneiras, para as questões políticas, estarão preparados para essa situação, pelo menos um pouco melhor.
Um dos grandes argumentos dos partidários da saída do euro é o de que aqueles que apostam num movimento social europeu perseguem uma quimera. Mas a questão é a de aproveitar o momento para o fazer nascer. Vários países estão confrontados duramente com o problema da dívida. Outros o estarão mais cedo ou mais tarde. Todos estão submetidos às políticas económicas e monetárias pró-cíclicas. Mesmo a Confederação Europeia de Sindicatos foi obrigada a se demarcar da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu.
A oportunidade está criada de construir entre os cidadãos dos países da Europa, uma verdadeira união. A solução progressista não é a saída do euro. A solução está em ajudar à convergência das lutas sociais e políticas, conduzidas hoje de forma dispersa, para um objectivo de controlo social e democrático comum dos seus meios de produção e de troca, e portanto, igualmente, do próprio euro. É necessário tomar o controle dos bancos, incluindo o BCE, em todos os países onde o movimento social tenha para isso a força suficiente.
A campanha pela anulação das dívidas públicas europeias deve ser acompanhada, obviamente, da anulação da dívida dos países do Sul detida pelos bancos e pelos fundos de investimento europeus. Para os povos dos países europeus esta campanha é uma passagem obrigatória e também um trampolim. Passagem obrigatória porque nenhuma política minimamente progressista no plano social, bem como no plano ecológico, poderá ser conduzida (nem qualquer grande investimento efectuado), enquanto a hemorragia do serviço dos juros da dívida continuar. Trampolim, porque toda vitória arrancada nesse terreno constituiria um sismo para o capitalismo mundial. A anulação das dívidas modificaria profundamente a relação de forças entre o trabalho e o capital. Ela libertaria os espíritos para o “horizonte do possível”.
Quando uma ocasião como esta se apresenta, torna-se fundamental não desperdiçá-la.
(*) François Chesnais é um destacado economista marxista, professor associado da Universidade de Paris 13. Faz parte do Conselho Científico do ATTAC-França, é diretor da revista Carré rouge e colaborador habitual de ‘O Comuneiro’. No passado fez parte do coletivo ‘Socialisme ou barbarie’ de Cornelius Castoriadis e militou em pequenas organizações trotskistas. Desde a sua fundação, em 2009, aderiu ao Nouveau Parti Anticapitaliste. Entre as suas obras anteriores destacam-se La Mondialisation du capital, Syros, 1994 (primeira edição); Actualiser l’économie de Marx, Actuel Marx Confrontation, Presses Universitaires de France, Paris, 1995; La mondialisation financière: genèse, coûts et enjeux (diretor de publicação e dois capítulos), Syros, Collection Alternatives économiques, Paris, 1996; La finance mondialisée: racines sociales et politiques, configuration, conséquences – sob a direção de François Chesnais, La Découverte, 2004. A tradução deste artigo é de Ronaldo Fonseca.
__________________ NOTAS:
(1) Robert Guttmann, How Credit-Money Shapes the Economy, M. E. Sharpe, Armonk, New York,1994, página 33.
(2) FMI, Rapport sur la stabilité financière dans le monde, Note intérimaire, Janvier 2011.
(3) FMI, Global Financial Stability Report, Abril de 2011, capítulo 1, quadro 1.1..
(4) Observações de José Vinals citadas por Martine Orange, Mediapart, 15 de Abril de 2011.
(5) Frédéric Lordon, «Ne pas détruire les banques: les saisir!».
(6) Vide dette odieuse no sítio do CADTM.
(7) Leia-se Global Economic Growth Report, Toronto, Julho de 2003.
(8) “Prêts toxiques: les élus s’allient pour attaquer les banques”, Le Monde, 9 de Março de 2011.
(9) Voir Eric Toussaint, «Face à la dette du Nord, quelques pistes alternatives», 19 de Janeiro de 2011.
(10) Yorgos Mitralias, «Face à la dette: l’appetit vien en auditant!...» 12 de Abril de 2010. O autor é o principal animador do Comité grego contra a dívida. A declaração fundadora deste comité foi publicada no nº 11 de ‘O Comuneiro’.
(11) Em oposição à desdemocratização nascida do neoliberalismo, ver Wendy Brown, Les Habits neufs de la politique mondiale, trad. de Christine Vivier, Les prairies ordinaires, Paris 2007, bem como Pierre Dardot et Christian Laval, La nouvelle raison du monde. Essai sur la societé néolibérale, La Découverte, Paris, 2009, páginas 457-468. |
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