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A revolução democrática panárabe
Ângelo Novo (*)
Nos últimos meses, como num súbito capricho atmosférico, a história tomou uma inesperada aceleração no mundo árabe. Primeiro, uma juventude em profundo desespero de vida tomou o destino em mãos e saíu para as ruas, na Argélia e na Tunísia. Neste último país, passadas algumas semanas de sublevação popular em constante atrito com o temível aparato repressivo deste Estado policial, o ditador Ben Ali põs-se em fuga, com o seu séquito familiar mafioso, a 14 de Janeiro. É uma autêntica revolução popular, um espectáculo totalmente imprevisto e inédito no mundo árabe, em várias gerações. O partido do poder foi dissolvido e estão marcada para Julho eleições para a Assembleia Constituinte que instituirá um regime político democrático. De imediato, a primeira onda de choque chegou ao Egipto, à Jordânia e ao Iémen. Há manifestações nas ruas também em Marrocos, Oman, Iraque, na Arábia Saudita, Mauritânia. Verdadeiros levantamentos populares estão neste momento em curso no Iémen, Bahrein, Síria e Líbia, tendo este último desenbocado numa guerra civil com intervenção imperialista.
No Líbano, uma imunda conspiração imperialista pseudo-judiciária foi desmantelada, arrastando nisso a queda do próprio governo pró-“ocidental” de Saad Hariri, que estava de visita a Washington para receber instruções. Perante a mais completa surpresa e a paralisia incrédula da vigilante potência ianque, um novo bloco nacional emerge - a partir do próprio parlamento eleito segundo as viciadas regras “étnicas” em vigor - fazendo aceder pela primeira vez o Hezbollah e a resistência nacional ao poder. O estado sionista está inteiramente mobilizado para a guerra na sua fronteira Norte, mas sabe que esse movimento – quer no simples confronto directo com o Hezbollah e o exército nacional libanês, quer numa possível escalada que envolva a Síria e/ou o Irão - lhe acarretará riscos existenciais incomportáveis. O preço da continuada e impenitente arrogância sionista é que a parada da próxima guerra será sempre de vida ou de morte. Dentro de cinco a dez anos, pode bem já não existir essa chaga aberta que Israel constitui no Médio Oriente, com reverberações em todo o mundo.
Entretanto, a cadeia televisiva Al Jazeera, certamente a mando do anafado emir do Qatar Hamad bin Khalifa al-Thani (um dos mais ambíguos e influentes personagens do Médio Oriente actual) aproveita esta ocasião para avançar o seu próprio momento wikileaks, com a divulgação em parceria com o diário britânico ‘Guardian’ dos “papéis palestinianos”. Trata-se de cerca de 1.700 documentos – memorandos, mapas, minutas de reuniões secretas, e-mails, apresentações em power point, etc. - com milhares de páginas datadas de 1999 a 2010, descrevendo em detalhe o que tem sido discutido no famigerado “processo de paz” israelo-palestiniano, sob patrocínio norte-americano, para além de outras questões relacionadas com a colaboração da Autoridade Palestiniana (AP) na ocupação sionista. Ao contrário das revelações da wikileaks, estas são verdadeiramente chocantes e absolutamente demolidoras, indo muito para além daquilo que era possível imaginar sobre os assuntos em causa. Ficamos a saber que a AP traíu da forma mais completa, sem qualquer vergonha ou rebuço, sobre os colonatos sionistas, sobre al-Quods (incluindo o Monte do Templo, Haram al-Sharif), sobre o direito de retorno dos refugiados. Sobre tudo, enfim. Traíu sem qualquer sentido político, por simples vício e venalidade, pois que os sionistas registaram bem, mas não aceitaram nenhuma destas rendições, querendo sempre mais. Para além disso, a AP colaborou e executou mesmo, por encomenda israelita, assassinatos de resistentes palestinianos, tendo incitado e participado no bloqueio e na guerra de extermínio movida contra o povo de Gaza. Quando a poeira assentar melhor, e de forma mais completa, sobre estas espantosas revelações, o aparato político e administrativo da AP ficará completamente desacreditado, tanto perante a população palestiniana como a nível regional. O “processo de paz” e, de uma forma mais geral, toda a solução do tipo “dois Estados” ficarão feridos de morte. No entanto, a AP pretende, ainda este ano, iniciar uma ofensiva diplomática de proclamação unilateral da independência palestiniana.
Numa réplica imediata da revolução tunisina, o brutal sátrapa imperialista Hosni Mubarak caíu também, no Egipto, perante uma constante e intrépida arremetida popular. O levantamento iniciou-se a 25 de Janeiro e, em quatro dias de combates, no Cairo, Alexandria, Suez, Mansoura, Tanta, Zagazig, Beni Suef, Ismaília e no Sinai, foi por completo varrido das ruas um dos mais temíveis, extensos e sofisticados aparelhos policiais alguma vez erguidos em qualquer país do mundo, com milhão e meio de efetivos (1 por cada 30 habitantes). Para a história ficarão a batalha da ponte Kasr al-Nil, a tomada popular e defesa da Praça de Tahrir, no Cairo, que funcionaria durante semanas como o epicentro da revolução. Com o colapso da ordem repressiva civil, o exército tomou as ruas, envolvendo os populares numa posição supostamente neutral, que funcionaria depois como garante da “transição ordeira” pretendida pelo imperialismo, assim que viu perdidas todas as esperanças na manutenção do seu ditador.
Com a intervenção moderadora e neutral do exército, as forças políticas em confronto ficaram numa posição de precário equilíbrio no terreno. Nem Mubarak conseguia fazer-se obedecer na sua ordem de reprimir os manifestantes a tiro, nem os revolucionários arriscaram fazer avançar a oficialidade democrática intermédia para, num golpe de mão decisivo, derrubar o regime, prendendo ou pondo em fuga o ditador. Sabe-se hoje que o movimento da juventude “6 de Abril”, grande impulsionador do levantamento, tinha contactos que lhe permitiriam tomar esta opção, mas isso foi terminantemente proibido pela “Associação Nacional pela Mudança”, encabeçada por Mohamed el-Baradei e englobando a Irmandade Muçulmana, para quem esteve sempre completamente fora de questão qualquer movimento que pusesse em causa a coesão e integridade da cadeia de comando das Forças Armadas.
Com a polícia fora de combate, perante este impasse e paralisia militar, em inícios de Fevereiro deu-se uma interessantíssima desescalagem nas armas em confronto. Mubarak fez então uma coisa imensamente estúpida. Lançou a sua matilha de torcionários e bufos, alguns a cavalo ou em camelo, sobre os manifestantes concentrados na Praça Tahrir, esperando dispersá-los a chicote e acabar com tudo. Simplesmente, os esbirros do regime só foram temíveis, durante décadas, nas suas esquadras e salas de interrogatório subterrâneas. Lançados em campo aberto, não atemorizaram ninguém. A juventude egípcia (ainda que muito ligeiramente politizada) tinha certamente muito mais agilidade, força muscular, valentia, criatividade, inteligência e alegria combativa. Os paus e as pedras começaram a ditar a lei do dia, numa curiosa disputa territorial urbana, com trincheiras, barricadas e check-points. Fizeram até catapultas para lançar as pedras mais pesadas. A batalha desequilibrou-se muito rapidamente, uma vez mais. A “rua árabe” era território livre para a manifestação continuada a ira popular. A 11 de Fevereiro Mubarak partiu de helicóptero para Sharm-el-Sheik e mandou dizer pelo seu “vice” que se demitia.
O desfecho político definitivo que emergirá desta revolução ainda não é totalmente claro. Irá certamente passar por intensas manobras de bastidores e novas batalhas de rua, nas quais o movimento dos trabalhadores faz também já sentir a sua presença. O poder e o processo político de reformas está neste momento entregue a uma Junta Militar nada revolucionária, encabeçada pelo velho jarrão mubarakista marechal Mohamed Hussein Tantawi, cada vez mais abertamente contestado nas ruas. A constituição política foi remendada e referendada à pressa, em Maio, para permitir a realização de eleições presidenciais em Outubro ou Novembro. Para estas, perfilam-se neste momento como candidatos favoritos Mohamed el-Baradei e Amr Moussa, dois experientes diplomatas muito conhecidos nos corredores internacionais do poder e insuspeitos, para já, de hostilidade para com o imperialismo.
De todo o modo, mesmo estas perspectivas políticas limitadas, resultado de uma revolução amordaçada - com as classes trabalhadoras longe da esfera do poder e uma posição internacional, agora sim, verdadeiramente “moderada” - serão sempre um enorme avanço. Implicarão, desde logo, um grande alívio para o povo palestiniano de Gaza, que deverá ver levantado o bloqueio a que está sujeito. A revolução egípcia de 2011 pode ainda vir a revelar-se um momento de viragem decisivo no mundo árabe. Daqui pode partir a boa nova de uma segunda vaga nacionalista, pós-colonial, democrática, progressista, auto-centrada e valorizadora dos recursos e tradições próprios. É a possibilidade de uma primavera dos povos árabes, que leve à derrocada das suas ditaduras submissas e clientelares, com a passagem a um certo não-alinhamento desenvolvimentista, diversificando as suas relações internacionais, em colaboração com os novos países emergentes do terceiro-mundo, dos quais até já há exemplos no mundo muçulmano (Turquia, Irão, Malásia, Indonésia). Para um rumo destes, o Egipto será o país chave, aquele que pode sinalizar a mudança, pela sua dimensão, pelo seu peso cultural e político e até pela sua localização geográfica no eixo entre o Magrebe e o Machrek.
Tudo isto não pode deixar de causar importantes fricções com o imperialismo ianque (e europeu), sendo desde logo um enorme pesadelo para o Estado sionista de Israel. Fará com que se agudize o complexo de cerco do “mundo ocidental”, com acréscimo da sua histeria xenofóbica e, em particular, islamofóbica. São estes os ventos que sopram na história. Para tentar contrariá-los, o imperialismo apoia veladamente a repressão na península arábica e tenta jogar a cartada da intervenção na guerra civil da Líbia.
O levantamento popular na República do Iémen surgiu também como réplica imediata da revolução tunisina. A primeira grande manifestação ocorreu na capital, Sanaa, a 27 de Janeiro. Desde então o povo tem estado na rua todos os dias a reclamar a queda do ditador Ali Abdullah Saleh. Este já foi percorrendo a recorrente via crucis de “cedências” dos ditadores árabes assediados: demitiu o seu governo, anunciou não se “recandidatar”, não designar seu filho como sucessor, enfim, tudo menos aquilo que se lhe exige, que é resignar, pura e simplesmente, com efeitos imediatos. Para se manter aferrado ao poder absoluto, depois de ter perdido os mais importantes apoios tribais e mesmo o de uma facção maioritária do exército, não hesita em recorrer ao assassinato em massa e à ameaça de guerra civil.
A obstinação de Saleh só parecerá demencial para quem não conhece o forte e intransigente apoio que lhe é dado pelo imperialismo norte-americano. Há vários anos já que o Iémen é palco de uma guerra suja conduzida pelos E.U.A., a pretexto de luta contra a fabulosa “al-qaeda”. Trata-se de um teatro de operações militares actualmente em curso, grande parte delas secretas, com constantes assassinatos e massacres encomendados. O Pentágono não permitirá que se mexa no poder existente, conivente e partícipe nesta intervenção contra o seu próprio povo, sobretudo quando um dos motivos da revolta popular é, precisamente, a insatisfação com a interferência agressiva conduzida do exterior. Para Washington, antes a guerra civil (que significará a prossecução das operações por outros meios, mais amplos e desinibidos) que qualquer cheiro inoportuno de paz e soberania popular.
Também no Bahrein, os ideais democráticos de Toqueville e Thomas Jefferson são pouco recomendados pelas potências ocidentais. Para esta pequena ilha e arquipélago do Golfo Pérsico, onde está acomodada a V Frota da Armada dos E.U.A., a monarquia (mais ou menos “constitucional”) exercida pela pequena elite sunita sobre as oprimidas massas populares xiitas é um facto indiscutível. A revolta democrática, apodada de sedição iraniana treinada pelo Hezbollah (!), será esmagada por todos os meios, inclusive com recurso à intervenção militar da vizinha Arábia Saudita. Os tanques do Conselho de Cooperação do Golfo em Manama, não têm obviamente nada a ver com os do Pacto de Varsóvia em Praga. Basta ver quem os fabrica, vende e dá luz verde para a sua manobra.
A revolta democrática na Líbia deflagrou a 15 de Fevereiro, com grande adesão popular. Fazendo uso de implacáveis medidas de repressão, de carácter militar, o regime de Muammar Gadaffi conseguiu controlar a situação em Trípoli, a capital, mas perdeu toda a metade Leste do país (a Cirenaica) e também, no Oeste (Tripolitânia), grandes cidades como Zawiya e Misurata, no litoral, ou Zintan, Yefrem e Nalut, no interior. Infelizmente, a extensão, dispersão e fraca densidade populacional do país, conjugadas com a sua incipiência institucional, a pronta brutalidade da reacção de Gadaffi e a prevalência de fenómenos de lealdade tribal, não permitiram que a revolução triunfasse prontamente em todo o país. Deflagrou então uma guerra civil sangrenta mas, também ela, inconclusiva, até ao momento.
Gadaffi está instalado no poder há mais de quarenta anos, sendo ainda um sobrevivente da vaga nacionalista árabe de inspiração nasserista. Com a sua “revolução verde” e todas as suas excêntricas idiossincrasias pessoais, chegou a tomar posições anti-imperialistas com alguma consistência, as quais se foram contudo esbatendo com o tempo. A partir de 2005, o regime de Gadaffi estava já completamente reconciliado e congraçado com todas as potências imperialistas ocidentais, de nenhum modo se justificando que pudesse ser ainda considerado um aliado por quenquer que se empenhe em combatê-las.
As potências ocidentais, essas, por puro cálculo cínico, foram capazes de perceber os sinais e tentar posicionar-se do lado certo da história. Depois de observar cuidadosamente o deflagrar da guerra civil líbia, no seio de toda a sua envolvente estratégica, decidiram abandonar Gadaffi e intervir militarmente contra ele. Com isso e com a tutela que exercem ainda sobre as Forças Armadas egípcias, esperam poder domesticar o movimento democrático árabe, destituindo-o, tanto quanto possível, de todo o seu potencial conteúdo radical, patriótico e emancipatório.
A revolução líbia está, para já, infelizmente, perdida. O que há agora neste país é uma guerra civil agravada por uma intervenção externa, intervenção esta que deve ser combatida por todos os meios, sem contudo, com isso, virar as costas ao povo líbio (de um e do outro lado da sua artificial divisão) nas suas legítimas aspirações a uma genuína liberdade, dignidade e independência. Esmagado o levantamento popular no Oeste, não é possível, nem desejável, um triunfo “democrático” que signifique o domínio de uma parte do país (os Wafallah da Cirenaica) sobre a outra (os Meghabra da Tripolitânia), ainda por cima sob o penhor de uma ajuda militar decisiva fornecida pelas potências coligadas na NATO. Uma vitória de Gadaffi ou o esgotamento recíproco dos dois lados num longo conflito armado, seriam também desastrosos para toda a causa democrática árabe. Neste momento, um cessar-fogo imediato, como o proposto pela União Africana, é o que deve ser exigido, seguindo-se negociações políticas e uma completa revitalização – em bases desmilitarizadas, desterritorializadas e destribalizadas - do movimento popular democrático líbio, livre de qualquer compromisso com o “ocidente”.
Também o regime do partido Baas e do presidente Bashar al-Assad, na Síria, este sim, um regime árabe com alguma consistência nacionalista, está neste momento a responder com repressão a uma intensa e persistente rebelião popular. As vítimas civis mortas a tiro pelas forças de segurança contam-se já pelas centenas. Todavia, as potências ocidentais e Israel, em particular, não parecem muito interessadas em forçar aqui qualquer “mudança de regime”, avaliando que qualquer mudança só pode ser para pior, do seu ponto de vista, oferecendo ao Irão um acesso directo ao Mediterrâneo e contactos facilitados com o Hezbollah libanês. Um regime títere do imperialismo é uma completa impossibilidade, neste país. É por isso que não se nota na grande imprensa a histeria anti-síria que seria de esperar, noutras condições e dadas as circunstâncias.
A revolução democrática panárabe em curso está ainda na sua infância, sendo impossível estabelecer desde já quais serão os seus resultados e fazer o seu balanço estratégico. Mais regimes vão cair, enquanto outros sofrerão certamente reformas profundas. Todavia, o sentido geral que lhe podemos detectar é inegavelmente positivo, do ponto de vista dos povos em luta, em todo o mundo, pela sua liberdade, desenvolvimento, auto-determinação e afirmação cultural genuína. Este movimento deve pois ser apoiado no seu conjunto e com respeito pela sua lógica e coerência total, ainda em desenvolvimento. As massas populares árabes em luta devem ser saudadas, encorajadas a ir sempre mais longe, a desconfiar dos amigos de ocasião, a empenharem-se sempre de forma mais profunda e exigente na via da autonomia nacional, reservando uma expressão política própria, dentro dela, para as forças organizadas do trabalho.
(*) Ângelo Novo (n. 1961) é co-editor de ‘O Comuneiro’ e um ensaísta português independente, autor de ‘O Estranho caso da morte de Karl Marx’, Edições Mortas, Porto, 2000. Os seus escritos principais podem ler-se em linha na sua página pessoal na rede.
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