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Crise sistémica e resistência dos povos A função latente do aparelho militar do Estado burguês
Ronaldo Fonseca (*)
Desde Setembro de 2008, com o rebentamento da bolha financeira nos Estados Unidos, o neoliberalismo (forma actual do capitalismo) entrou em processo de crise profunda a partir dos seus centros hegemónicos.
Surpreendidos, no início, pela extensão da crise e pelo papel desempenhado pelos grandes bancos no seu eclodir, alguns dirigentes político/financeiros dos países centrais chegaram a aludir à regulação dos mercados financeiros como forma de estabilização do sistema e contenção da crise. No entanto, com o passar dos meses, os diversos governos, em concertação com os mercados financeiros, vieram a adoptar (como “saída” para a crise) a continuação e mesmo uma intensificação das políticas neoliberais que a ela tinham conduzido.
Na Europa, a crise da dívida pública, consequência do enfraquecimento financeiro dos Estados provocado por décadas de políticas económicas de privatização, de desregulamentação, de liberalização das operações financeiras através dos paraísos fiscais, de permanente favorecimento fiscal do grande capital financeiro e permissividade face aos seus processos fraudulentos, viria a “justificar”, por parte da União Europeia, as políticas de “austeridade” que intensificam a demolição dos serviços públicos e a transferência massiva de rendimentos das classes trabalhadoras e das camadas médias para as elites financeiras. Na realidade, a União Europeia e o Banco Central Europeu são entidades cuja actuação está inteiramente ao serviço do grande capital financeiro privado, justificando, nomeadamente, a sua acção especulativa contra os Estados periféricos europeus.
No plano social, as consequências das políticas de austeridade dos governos neoliberais tem sido gravíssimas com a intensificação do desemprego e da precariedade, o aumento do custo de vida e os cortes dramáticos nos ordenados, nas pensões e nas prestações sociais de sobrevivência.
Face a este quadro de agressão social (anestesiada pelo papel manipulador desempenhado pelos grandes “media”), as classes trabalhadoras e camadas intermédias (nomeadamente os seus sectores mais organizados e conscientes) intensificaram a sua resistência e em alguns países desenvolveram formas de luta radicalizadas.
A situação na Grécia (ano de 2010)
Na Grécia, país intervencionado já há largos meses pelo FMI e pelo Fundo Europeu a pedido do governo do Pasok, foram aplicadas medidas brutais de aumento de impostos, de cortes nos salários, nas pensões e nas prestações sociais, além de novas privatizações de empresas públicas, gerando um empobrecimento generalizado das populações trabalhadoras e de sectores das camadas médias.
A batalha social, convocada pelo movimento sindical mais coerente e pelos partidos da esquerda anti-capitalista, foi tomando proporções cada vez mais vastas. Uma série de greves gerais de 24 horas, extremamente combativas, foi sendo periodicamente desencadeada, abrangendo praticamente todos os sectores, desde a indústria e o comércio aos transportes e comunicações. Manifestações de rua, englobando movimentos de jovens, com afrontamentos cada vez mais contundentes com as forças policiais, tornaram-se uma constante na vida quotidiana do país.
Mas apesar desse processo de radicalidade que dura há largos meses e do sentimento de brutal injustiça que predomina em amplos sectores da população (obrigados a pagar por uma crise à qual são alheios) há que constatar que o Estado capitalista e suas instituições não deram mostras de se desarticular, mesmo que parcialmente. O aparelho repressivo policial, apesar da dureza de alguns confrontos, vai cumprindo o seu papel, com maior ou menor dificuldade. As forças armadas permanecem estáveis, como guardiões latentes do Estado, não sendo contagiadas pelo movimento. O aparelho ideológico mediático vai exercendo a sua missão de anestesiar as maiorias silenciosas, incutindo-lhes o fatalismo e o conformismo.
Em Portugal e Espanha também foram realizadas importantes greves gerais e manifestações de protesto mas sem atingir o nível conflitual da Grécia.
O movimento popular na França (Outubro 2010)
Na França, o governo de Sarkozy assumiu desde o início a missão de acelerar as contra-reformas neoliberais, a começar pelo enfraquecimento e demolição progressiva dos serviços públicos. Aliás, uma nota divuldada por Wikileaks revela que Sarkozy (ainda como candidato presidencial) teria dito ao embaixador norte-americano que a França necessitava passar por um período semelhante àquele de que foram protagonistas Thatcher e Reagan em seus países…
A resistência popular que pontualmente já se manifestava há vários meses, se adensaria finalmente contra o projecto governamental de prolongamento da idade da reforma e aumento das quotizações, questão muito sensível em França. No mês de Outubro, a resistência (impulsionada pelos partidos da esquerda coerente e pelos grandes sindicatos, nomeadamente a CGT) desembocou numa série de greves gerais e enormes manifestações que varreram o país. Calcula-se que tais manifestações englobaram, a cada vez, mais de 3 milhões de pessoas, pelas diversas cidades da França. A partir de meados de Outubro, os jovens das escolas secundárias das grandes cidades aderiram em força às manifestações, paralisando os estabelecimentos escolares. Com a radicalização do movimento desencadearam-se greves permanentes no sector das refinarias e dos transportes. As acções de bloqueio dos trabalhadores começaram pelas refinarias e se estenderam aos aeroportos, às estações de caminho de ferro, às estradas, gerando confrontos violentos com as forças policiais que usaram todos os meios repressivos a seu dispor. No auge da acção popular (que durou mais de um mês) o país esteve semi-paralisado. As sondagens de opinião revelavam um apoio maioritário ao movimento, superior a 60%.
Apesar da intensidade e das consequências desse movimento para a vida do país, o Estado capitalista em nenhum momento deu mostras de desarticulação, apenas se registaram certas declarações contraditórias de alguns ministros no auge da crise de abastecimento de combustíveis. Os aparelhos ideológicos do Estado, nomeadamente os grandes “media” desempenharam em permanência o seu papel de oposição ao movimento e de manipulação das maiorias silenciosas. As forças policiais exerceram o seu papel de repressão permanente, embora não tenham conseguido impedir uma série de ocupações e bloqueios populares a sectores estratégicos. O grande bastião do Estado capitalista, o exército, manteve-se estável, não sendo minimamente contagiado pelo descontentamento popular. Aliás, recorde-se que durante o Maio de 68, um movimento popular grevista ainda mais poderoso, socialmente abrangente e generalizado, que durou um mês e meio, tendo paralisado muitas instituições, o exército manteve-se igualmente intacto, estável e disciplinado.
O governo de Sarkozy negou-se a qualquer negociação, como pretendiam os sindicatos (nomeadamente a CFDT), fazendo aprovar pelo parlamento e pelo Senado (onde tinha maioria) a sua lei das aposentadorias. O movimento foi se esgotando aos poucos, embora não se possa propriamente falar de uma derrota popular pois, para muitos participantes, as motivações do movimento iam para além da questão da idade da aposentadoria, abrangendo o modelo global de sociedade, o modo de vida que é imposto pelo neoliberalismo, face ao qual é necessária uma disponibilidade subjectiva permanente para resistir. O descontentamento e a combatividade social mantiveram-se em geral, após o fim do movimento.
É evidente que sem uma desarticulação, ainda que parcial, dos principais aparelhos do Estado-Burguês (nomeadamente do aparelho executivo governamental e do aparelho repressivo representado pela Polícia e pelas Forças Armadas), que são os guardiões do sistema, não é possível às classes trabalhadoras e seus aliados acederem ao poder e iniciarem um processo de alteração das estruturas económico-sociais da sociedade capitalista, particularmente a propriedade privada dos grandes meios de produção e de financiamento.
Exemplos históricos
Constatamos que na história dos movimentos sociais e revolucionários na Europa, os Estados capitalistas e seus aparelhos ideológicos e repressivos não se desarticularam, excepto em situações de guerra.
A estabilidade dos aparelhos de dominação do Estado-burguês e a impermeabilidade hierárquica das suas Forças Armadas, na Europa, é uma consequência da antiguidade e consequente sedimentação das instituições burguesas no continente, embora em graus diferentes, conforme se trate dos países nucleares da revolução industrial e da “democracia” institucional burguesa ou dos países europeus mais ou menos periféricos.
Nas referidas situações excepcionais de guerras inter-imperialistas, ocorria, ao fim de alguns anos, em alguns países ou regiões, o desgaste profundo, a desarticulação, e mesmo um princípio de desagregação dos aparelhos de Estado face à derrota de alguns exércitos, o que tornava teoricamente possível levantamentos populares com acesso ao poder. Foi, nomeadamente, o que sucedeu na Comuna de Paris (em plena guerra franco-prussiana), na revolução russa de 1917 (durante a primeira guerra mundial), na resistência e revolução jugoslava de 1944-45 (durante a 2ª guerra mundial) ou no movimento da república húngara dos conselhos de 1919 (de curta duração), este último beneficiando das condições de permanência de um desmoronamento parcial do poder, no fim da guerra de 1914-18. As guerras inter-imperialistas acabavam por criar as condições para o enfraquecimento e divisão interna de vários Estados do continente, gerando vagas de profundo descontentamento popular, embora as situações propriamente revolucionárias apenas se tenham manifestado em alguns países.
O processo revolucionário em Portugal (1974-75)
O único movimento popular revolucionário que teve acesso (embora mediatizado) ao poder no quadro de uma desarticulação parcial do Estado-Burguês, na ausência de uma guerra sobre o seu território europeu, foi o processo revolucionário português de 1974-75. Mas nesse caso havia uma guerra de libertação nas colónias portuguesas de África que vinha se desenvolvendo há 13 anos, provocando sérios desgastes materiais, humanos e psicológicos no exército português. Os jovens oficiais de patentes intermédias foram os que mais depressa tomaram consciência dos sacrifícios inúteis no quadro de uma guerra sem saída, face à combatividade, determinação política e legitimidade histórica dos Movimentos de Libertação Nacional. Compreendendo a incapacidade do regime ditatorial e decadente português em assumir uma solução que passasse pelo fim da guerra e pela concessão da independência aos povos das colónias, um conjunto de jovens oficiais, apoiados por dois oficiais superiores, prepara um Golpe de Estado para derrubar o regime. A acção se processa quando esses oficiais se encontravam em unidades militares da metrópole após terem cumprido 4 anos de “comissão militar” em África, aguardando eventualmente uma nova chamada para cumprir outro período na guerra colonial.
A decadência do regime e a incapacidade dos antigos oficiais em mobilizar tropas em sua defesa, aliada à audácia e planificação dos oficiais revoltosos, permitiu que o Golpe de Estado se realizasse com sucesso e quase sem derramamento de sangue.
Foi constituído um movimento militar (o MFA, vulgarmente conhecido por “Movimento dos Capitães”) que assumiu o poder político-militar com um programa democrático-reformista e uma firme decisão de colocar fim imediato à guerra colonial, reconhecer os movimentos de libertação e a independência das colónias. Assumiu também o compromisso de realizar eleições gerais para uma Assembleia Constituinte em Portugal, dentro de um ano. O MFA englobava fundamentalmente oficiais do exército mas também se estendia à Marinha e aos fuzileiros navais, sectores onde o PCP possuía significativa influência.
O Movimento militar teve o apoio explícito dos partidos e movimentos de esquerda que saíam da clandestinidade e também do Partido Socialista, o qual, até então, praticamente só existia no estrangeiro, nomeadamente em França.
No início, nomeou-se, transitoriamente, para a presidência da república, um general (António de Spínola) o qual tinha anteriormente assumido, teoricamente, posições favoráveis a negociações de paz com os Movimentos de Libertação africanos. Formou-se um governo dirigido por Palma Carlos, personalidade próxima da chamada “oposição liberal” (e legal) ao regime fascista. O MFA dirigia as Forças Armadas e iniciou a sua depuração, através da passagem compulsiva à reforma, de um certo número de altos oficiais fieis ao regime. Assumiram também a direcção das forças policiais, afastando ou neutralizando os comandos comprometidos com a repressão dos opositores ao regime. Posteriormente os policias de “manutenção da ordem” foram desarmados. A PIDE (polícia política do regime) foi dissolvida e foram encarcerados uma série de responsáveis mais graduados. Iniciava-se, assim, um processo muito complexo de desarticulação parcial do Estado capitalista ditatorial, conduzido por um conjunto de oficiais imbuídos de uma visão geral democrático-progressista da sociedade, no seio dos quais havia uma série de elementos ideologicamente de esquerda. Sua consciência havia sido forjada através de contactos que foram tecendo nos anos anteriores com elementos da resistência clandestina ligada ao PCP e, já em África, através do diálogo que haviam mantido com figuras ligadas aos Movimentos de Libertação.
No entanto, o decorrer dos meses mostrou que o general-presidente queria impor aos Movimentos de Libertação um projecto neocolonial em África, uma espécie de independência tutelada, o que gerou inevitavelmente uma nova conflitualidade e o risco de reinício da guerra que havia entretanto sido interrompida. Por sua vez, a governação em Lisboa rapidamente gerou conflitos entre as opções políticas conservadoras do primeiro ministro e as opiniões dos membros do governo oriundos dos partidos de esquerda. Palma Carlos, apoiando-se em Spínola, tenta um golpe palaciano para instaurar um novo executivo totalmente conservador, mas o MFA opõe-se a tal manobra.
Diante do fracasso deste primeiro governo provisório, o MFA decide assumir a responsabilidade do executivo, nomeando um seu membro destacado (o coronel Vasco Gonçalves) para o lugar de primeiro-ministro, formando uma nova equipa com figuras mais identificadas com o processo democrático em curso. Decide também acompanhar mais de perto o processo de negociação para a descolonização. O general Spínola ficava, objectivamente, mais limitado na sua influência sobre o poder e mais isolado na presidência.
Recusando desistir dos seus objectivos que visavam instituir uma governação conservadora e elitista em Portugal e buscar uma saída neo-colonial em África, Spínola procura organizar uma corrente política de direita no centro e norte do país para pressionar o governo do MFA. Uma ambiciosa manifestação de força é organizada para fins de Setembro de 1974 que consistiria numa deslocação a Lisboa de populações arregimentadas(e armadas) naquelas regiões do país para realizar um grande comício onde Spínola discursaria e onde seriam reivindicados poderes especiais para o presidente.
Percebendo o risco para o processo progressista ainda frágil, que representaria essa manifestação arregimentada, as organizações populares, sindicais e partidárias organizam barreiras em todas as entradas de Lisboa, com o apoio das guarnições militares do MFA na capital, revistando e desarmando os manifestantes. O general Spínola, sem tropas, nada pode fazer para impedi-lo, o que revelou a sua fragilidade real. Esta acção, foi altamente desmobilizadora da manifestação que pretendia ser uma demonstração de força e que acabou por se traduzir num fracasso. Poucos dias depois o general Spínola se demitiria da presidência com um discurso catastrofista sobre o futuro do país, retirando-se aparentemente da cena política.
Abriu-se, então, um novo contexto no qual produziu-se uma interacção dialéctica entre as estruturas de poder militar e governamental do MFA e o amplo movimento popular das classes trabalhadoras, das camadas médias progressistas e dos camponeses sem terra do Alentejo. Este movimento limitava-se efectivamente a um terço do território nacional mas englobava a região mais estratégica na medida em que abrangia a capital do país e suas periferias industriais e as regiões de Setúbal e do Alentejo, dispondo ainda de algum apoio na cidade do Porto. Tratava-se de um movimento multifacetado, ao mesmo tempo reivindicativo e político, defendendo a melhoria das condições de vida das massas populares, regalias sociais como o salário mínimo, o subsídio de férias e subsídio de Natal, a nacionalização dos monopólios industriais e financeiros que se formaram à sombra do fascismo, a colectivização dos latifúndios, a reforma da comunicação social, a punição rigorosa dos agentes da polícia política do regime salazarista, o aprofundamento da depuração nas Forças Armadas, etc..
O movimento popular teve a capacidade de compreender a complexidade do processo, a disponibilidade ideológica geral dos oficiais do MFA e a existência no seu seio de uma série de oficiais de esquerda, aliados das classes trabalhadoras. Por isso mesmo, atento à evolução deste processo complexo, o movimento popular, ao mesmo tempo que pressionava e colocava reivindicações ao governo do MFA, nunca contestou a legitimidade progressista deste mesmo governo. Viria mesmo, mais tarde, a adoptar a expressão “Aliança-Povo-MFA”, nunca cedendo, por mais difícil que fosse o processo, à palavra de ordem anarco-obreirista e politicamente suicidária de “abaixo o MFA”. Nem à argumentação segundo a qual “se era verdade que haviam oficiais de esquerda nos órgãos dirigentes do MFA, esses deveriam então abandonar estes órgãos para juntarem-se ao povo”. O movimento popular, na sua essência, percebeu perfeitamente que não se transformam as estruturas de um país sem dispor de aliados com as armas na mão!
Durante este processo interactivo “sui generis”, os oficiais dos órgãos dirigentes e do governo do MFA acentuaram a sua evolução político-ideológica: alguns polarizaram-se à volta dos elementos claramente de esquerda, outros evoluíram para posições socialdemocratizantes, embora não ligados à Social Democracia internacional. Mas um tal processo evoluía sem rupturas, mantendo-se a unidade do MFA numa altura em que o essencial era impedir um retorno da direita fascizante e acelerar as negociações para a descolonização em África.
No entanto, a direita civil e militar não desistira e vai conspirando nas sombras. Spínola e seus aliados congeminam um golpe militar contra-revolucionário que é desencadeado em 11 de Março de 1975, utilizando nomeadamente uma unidade de paraquedistas que consegue tomar o aeroporto de Lisboa por algumas horas e atacar uma das unidades militares do MFA mais comprometidas com o processo, o RALIS.
A tentativa de golpe de direita é derrotada em algumas horas pela pronta acção das unidades militares do MFA em Lisboa, apoiadas por uma determinada mobilização popular. O vasto leque de partidos e organizações de esquerda popular condena a tentativa golpista e exige medidas de consolidação do processo.
Nessa mesma noite reúne-se a Assembleia do MFA. O sector de esquerda dentro deste órgão lidera os trabalhos com a sua influência reforçada pela alteração na correlação de forças subjectiva e objectiva causada pela tentativa golpista da direita e pela derrota desta mesma tentativa. Após análise da situação, o primeiro-ministro e membro da Assembleia, Vasco Gonçalves, afirma que só com um salto qualitativo no avanço para o socialismo poder-se-ia consolidar o processo e cortar as bases financeiras dos sectores contra-revolucionários. É decidido avançar imediatamente para a nacionalização da banca e dos principais grupos económicos, desenvolvidos à sombra do fascismo e que dominavam a economia portuguesa. É também aprovada a elaboração de uma lei da reforma agrária no Alentejo e Ribatejo, colectivizando os latifúndios, legalizando uma série de ocupações já efectuadas e criando uma vasta zona de cooperativas agrícolas e unidades colectivas de produção (UCPs). É decidida também a responsabilização judicial dos golpistas presos; no entanto, os principais cabecilhas do golpe (Spínola incluído) tinham-se refugiado na Espanha franquista.
Nas semanas e meses seguintes, o panorama sócio-económico do país muda radicalmente. A banca e os grandes grupos económicos são nacionalizados, passando a ser geridos por novos quadros ligados ao processo revolucionário, são criadas pelos trabalhadores comissões de controlo operário, co-gestão (e mesmo auto-gestão em certos casos) as quais foram prontamente legalizadas entrando em actividade efectiva nas empresas. No Alentejo e Ribatejo, a vaga de ocupações impulsionada pelos sindicatos agrícolas generaliza-se, fundam-se as primeiras cooperativas, aguardando-se a lei da reforma agrária que seria promulgada semanas depois pelo governo. Num espaço temporal de pouco menos de dois meses, cerca de 60% da economia portuguesa foi nacionalizada com significativa participação dos trabalhadores na gestão de centenas de empresas industriais, financeiras e agrícolas. A maioria dos “mass media” passa a ser gerida por jornalistas progressistas e identificados com o processo. A construção do socialismo como meta fundamental do país é proclamada pelo governo e pelos órgãos dirigentes do MFA. A palavra de ordem unitária passa a ser a “Aliança Povo-MFA.”
Para os partidos burgueses, nomeadamente o PS e o PSD, que apenas pretendiam instalar uma democracia burguesa pró-ocidental em Portugal, a acentuação da linha de esquerda e as transformações estruturais socializantes eram motivo de grande preocupação. Há que notar ainda que no governo de esquerda pós-11 de Março, presidido por Vasco Gonçalves, participaram, além de alguns oficiais, várias figuras da esquerda civil, ligadas ao PCP mas também a sectores normalmente considerados mais radicais. Por exemplo, o ministro da economia (considerado “o ministro da nacionalizações”) era Mário Murteira, um economista ligado ao Movimento de Esquerda Socialista (MES).
Em 25 de Abril de 1975 realizam-se as eleições para a Assembleia Constituinte, tal como havia prometido o MFA. O PS e o PSD haviam feito uma intensa campanha eleitoral, nomeadamente nas populosas regiões Norte e Centro do país, regiões ideologicamente conservadoras ou “moderadas” (pró-ocidentais) devido ao forte peso da pequena propriedade rural na formação da sua estrutura e também à influência da igreja católica, sobretudo nas zonas rurais e nas pequenas cidades. O PS de Mário Soares, reivindicando-se como partido representativo da “Europa democrática”, fez a sua campanha, sobretudo nas maiores cidades do Norte e do Centro do país, criticando o modelo de socialismo “ditatorial” que “os comunistas e os militares” queriam impor ao país, prometendo em troca a social-democracia (ou “socialismo democrático”) e o apoio das principais potências europeias (onde trabalhavam alguns milhões de imigrantes dessas regiões) ao desenvolvimento de Portugal. A sua mensagem era claramente de rejeição do caminho já percorrido pelo movimento popular em direcção ao socialismo.
Os resultados dessa eleição traduziram-se numa maioria do PS e do PSD, graças às suas fortes votações nas populosas regiões do Norte e Centro do país, particularmente nas áreas rurais, no caso do PSD. A votação dos partidos de esquerda ligados ao processo revolucionário teve expressão essencialmente na capital e na região sul do país. Apoiando-se nos seus resultados o PS e o PSD começaram a exigir para si a direcção política do país e a paragem do processo revolucionário.
No entanto, o governo liderado pelo MFA prosseguiu com as medidas que havia traçado visando a transição ao socialismo, nomeadamente a legislação laboral, imbuída de importantes direitos reivindicados pelos trabalhadores, a instalação de organismos planificadores da economia, etc.. Além disso, invocava o MFA que as eleições (que tinham dado a vitória a um partido cujo programa preconizava, teoricamente, o “socialismo”) eram apenas eleições para uma Assembleia Constituinte destinada a elaborar uma constituição para o país e não eleições para a formação de um governo. Estas só seriam realizadas dentro de um ano.
Face a esta situação, os partidos burgueses pró-ocidentais (PS e PSD, articulados com o CDS, partido ligado à extrema direita) lançaram uma campanha generalizada para denegrir e bloquear o projecto “Povo - MFA”, acusando-o de “ditatorial”. Nesta campanha intervieram abertamente em Portugal líderes políticos da Europa Ocidental em apoio a Mário Soares e à liderança do PS. Os grandes “media” europeus não cessavam de alertar para o “perigo de um regime comunista em Portugal”. Os Estados Unidos enviaram Frank Carlucci (conhecido pelas suas ligações à CIA) para embaixador em Lisboa. Os partidos e grupos mais à direita, com refúgio na Espanha franquista, desencadearam nas cidades e vilas da região Norte acções violentas de cariz fascizante, como o incêndio dos centros de trabalho dos partidos de esquerda e dos sindicatos, o assassinato de militantes, etc.. A NATO, à qual Portugal pertencia, passou a intervir directamente no processo, convocando os militares portugueses para manobras que seriam efectuadas na costa portuguesa e no rio Tejo, em frente à capital. O objectivo imediato era dividir o MFA, fracturando a sua frente de unidade com o movimento popular.
Efectivamente, essa poderosa pressão multifacetada das forças do imperialismo ocidental, levada a cabo durante meses a fio, acabaria por intimidar uma parte significativa (e mais imatura politicamente) dos militares do MFA os quais passariam a defender o projecto do PS com a argumentação de que Portugal, pertencendo à Europa Ocidental e à NATO, não poderia enveredar por um modelo de “socialismo radical”. Os oficiais de esquerda do MFA, antes muito influentes, foram ficando mais isolados, apesar do apoio do movimento popular. Além disso, com o fim da guerra colonial, regressaram a Portugal um número importante de oficiais e soldados estacionados em África que não haviam participado no processo revolucionário na metrópole e que, sem qualquer formação política, aderiram ao MFA com o beneplácito da tendência dos “moderados”, agora maioritários nas estruturas do MFA. Esses oficiais e soldados recentemente regressados de África, constituíram uma base de apoio para aqueles que pretendiam diluir e isolar a esquerda do MFA, renunciando ao processo revolucionário concreto.
O primeiro grande objectivo do grupo dos chamados “oficiais moderados” era retirar do posto de primeiro-ministro a Vasco Gonçalves, o principal dirigente da esquerda militar e o mais carismático dos líderes populares. As condições para um tal desiderato foram reunidas em princípios de Setembro de 1975, na reunião da Assembleia do MFA em Tancos, cuja composição fora fortemente alterada pela inclusão de numerosos oficiais chegados de Angola e que foram facilmente ganhos para as posições dos “moderados”. Note-se que a Assembleia do MFA tinha poderes para nomear e para alterar o governo.
Colocada em minoria a esquerda militar, Vasco Gonçalves é afastado (não sem antes denunciar o projecto dos “moderados” e seu significado) e o seu governo demitido. Estavam abertas as portas para a instalação de um governo que iniciasse a aplicação de projecto desejado pelos partidos burgueses e pela Europa Ocidental. O qual implicava, obviamente, a recuperação da economia de “livre” mercado e a destruição progressiva das medidas de transição ao socialismo adoptadas pelos governos de esquerda. O novo primeiro-ministro, almirante Pinheiro de Azevedo, constituiu o seu governo com base nos oficiais “moderados” e em personalidades afectas ao novo projecto. No entanto, este governo encontrou grandes dificuldades para a aplicação do seu programa, chocando-se com a resistência do movimento popular. Por outro lado, a esquerda militar, afastada do governo e em minoria nos órgãos dirigentes do MFA, ainda conservava força nas principais unidades militares da região de Lisboa e nos fuzileiros navais. Entretanto, no Centro e no Norte do país, os comandos das regiões militares haviam sido alterados em favor dos “moderados”.
Constatada a dificuldade do novo governo em se impor ao movimento popular, é preparado um novo golpe de estado por uma série de oficiais apoiantes dos “moderados”, golpe este que mobilizaria tropas recentemente regressadas de África (entre as quais se encontravam oficiais ideologicamente de direita) e as regiões militares do Centro e Norte do país. O golpe visava afastar definitivamente a esquerda militar de qualquer influência sobre o processo, reprimir ou isolar o movimento popular e deixar o terreno preparado para a destruição das conquistas da revolução.
Desta feita o golpe foi preparado em conjunto com a CIA e a NATO, a qual deveria colocar vasos de guerra nas águas portuguesas na data prevista. O golpe foi também coordenado com o exército espanhol que disponibilizou uma forte brigada heli-transportada para intervir em Portugal em apoio aos golpistas, se necessário. Convém ainda realçar que este golpe tinha uma componente civil de coordenação política, constituída por quadros do PS e da direita.
Em 25 de Novembro de 1975 produziu-se o golpe de Estado tal como previsto, sem que se verificasse uma resistência significativa por parte das unidades de esquerda do MFA que ainda restavam operacionais em Lisboa, nem tão pouco por parte do movimento popular. Este desfecho era já inevitável. Analisada a correlação de forças extremamente desfavorável a nível nacional e internacional, a esquerda militar e civil constatou que não havia condições para uma resistência minimamente bem sucedida, a não ser na cidade de Lisboa, durante poucos dias. Seria a “Comuna de Lisboa”, a qual se veria rapidamente isolada e esmagada e deixaria um saldo ainda mais negativo para a esquerda, nos planos humano e político.
Consolidado o golpe burguês contra-revolucionário de 25 de Novembro, os militares de esquerda foram presos, as suas Unidades reestruturadas e o poder político transitório entregue a uma aliança dos “moderados” com o PS e o PSD.
Todo o esquema institucional burguês foi sendo reconstituído, as nacionalizações foram objecto de privatizações progressivas ou de devolução pura e simples aos antigos proprietários, a reforma agrária ainda levou algum tempo a ser completamente destruída devido à resistência dos camponeses do Alentejo. As forças policiais, novamente com as suas antigas chefias, regressaram ao seu papel repressivo tradicional. As direcções progressistas que estavam à frente da maioria dos “media” foram destituídas e a comunicação social voltou a desempenhar o papel que a burguesia sempre lhes reservou como formatadores da opinião pública. Porém, a descolonização em África já estava consumada e era irreversível.
Em conclusão poderemos dizer que o processo revolucionário português foi o único que (na Europa Ocidental) logrou efectivamente uma desarticulação do Estado burguês e alterou relações de produção com a nacionalização (participada pelos trabalhadores) dos grandes grupos económico-financeiros capitalistas e a colectivização dos latifúndios. No seu auge (que durou alguns meses), grande parte da economia estava socializada e as classes trabalhadoras e seus aliados detiveram alavancas fundamentais do poder. A derrota da revolução portuguesa e a restauração capitalista não se deveu, na nossa perspectiva, a nenhum erro fundamental do movimento popular e de suas lideranças nem à estratégia da aliança Povo-MFA desenvolvida a partir de uma certa fase do processo. Qualquer “alternativa” de tipo anarco-obreirista que fosse tentada, só poderia conduzir, naquele contexto concreto, ao bloqueamento do processo, ao isolamento do movimento dos trabalhadores e à impossibilidade de se atingir o ponto culminante do movimento unificado, isto é, as grandes conquistas revolucionárias e anti-capitalistas. O processo revolucionário foi finalmente derrotado como consequência da evidente desproporção ao nível da correlação de forças nacional e internacional contra um pequeno país periférico da Europa, cujas forças progressistas e revolucionárias, a partir de um certo momento, tiveram contra si (de forma activa e organizada) a contra-revolução interna, toda a Europa capitalista, os Estados Unidos, a Espanha franquista e o poder de pressão da NATO. Somente a eclosão de um processo popular-revolucionário na Espanha (que não se verificou apesar dos esforços de mobilização de algumas organizações da esquerda espanhola) poderia criar as condições para uma vitória que teria necessariamente que abranger os dois povos vizinhos. Mas as situações objectivas dos dois países não eram comparáveis, nomeadamente no plano militar.
As Forças Armadas na periferia latino-americana
Na América Latina a situação das Forças Armadas é historicamente diferente daquela da Europa. Elas foram criadas principalmente como instrumento de garantia da ordem (colonial) estabelecida e de eventual repressão interna ao serviço dos países colonialistas e de seus aliados nacionais, isto é, ao serviço do estrangeiro. É uma razão pela qual as Forças Armadas, e nomeadamente o exército, não desfrutavam de uma legitimidade e uma aceitação popular como ocorria na Europa.
Após as independências políticas nos séculos XIX e XX, os países latino-americanos entraram nas esfera de dominação neo-colonial ou imperialista da Inglaterra e, posteriormente, dos Estados Unidos. As Forças Armadas dos diversos países mantiveram, no essencial, as suas características de forças ao serviço da dominação estrangeira. A partir das primeiras décadas do século XX os seus oficiais passaram, em grande medida, a ser formados nas academias militares dos Estados Unidos.
No entanto, este carácter de dominação, directa ou indirectamente ao serviço do estrangeiro, não gerou apenas a obediência e eventualmente a intervenção militar interna contra movimentos populares e revolucionários e a instalação de regimes ditatoriais de direita pró-imperialista. Em muitos casos, sobretudo durante o século XX, surgiram movimentos de oficiais nacionalistas no seio dos exércitos latino-americanos, oficiais que, imbuídos de um ideário patriótico, tinham tomado consciência do papel de guardas pretorianos ao serviço da ordem imperialista que lhes era reservado. Alguns desses movimentos nacionalistas e tendencialmente progressistas vieram a triunfar durante um certo período em alguns países. Se nos referirmos apenas à segunda metade do século XX, deveremos mencionar os movimentos nacional-progressistas de Jacobo Arbenz na Guatemala nos anos 50, de Omar Torrijos no Panamá nos anos 60 e 70, de Juan Torres na Bolívia, de Velasco Alvarado no Peru nos anos 70 e de Hugo Chavez na Venezuela nos anos 90 e 2000. Todos esses movimentos militares acederam ao poder, reformaram parcialmente os seus exércitos, e encetaram alterações sócio-económicas de cariz nacionalista e socializante, gerando amplos movimentos populares em seu apoio. Todos eles (salvo na Venezuela) viram finalmente interrompido o seu percurso progressista pela intervenção militar directa dos Estados Unidos ou pela intervenção indirecta da CIA, provocando golpes de Estado contra-revolucionários.
Na actual Venezuela bolivariana estamos a assistir a um processo nacional-progressista (incluindo reformas estruturais de transição ao socialismo) e de democracia popular participativa liderado por Hugo Chavez, um oficial do exército venezuelano que, no ano de 1992, tinha dirigido uma acção de revolta contra a política repressiva e pró-imperialista da oligarquia no poder. Após anos de prisão, e num novo contexto de grande crise, de descrédito das lideranças políticas tradicionais e de enorme descontentamento popular pelas políticas neoliberais que vinham sendo aplicadas, Chavez candidata-se à presidência da república apoiado por uma série de movimentos sociais e logra ser eleito, como consequência da aguda consciência popular anti-oligárquica e anti-imperialista. O grande apoio e mobilização à volta da sua candidatura e as adesões de que dispunha dentro do exército inviabilizaram medidas administrativas da parte do poder visando impedi-la. O movimento à volta de Hugo Chavez reivindicava-se de uma actualização do exemplo libertador da figura histórica de Simón Bolívar.
Uma vez empossado presidente, Hugo Chavez, como medida inicial, nomeou para comandantes das Forças Armadas oficiais da sua confiança situados no campo patriótico. Desta forma, participando no próprio sistema eleitoral burguês-oligárquico, num contexto de profunda crise, um oficial anti-imperialista lograva iniciar, por dentro, a desarticulação da coesão das Forças Armadas burguesas, principalmente a nível do exército. Da mesma forma, desarticulou a coerência burguesa e pró-imperialista do aparelho executivo, constituindo um governo formado por personalidades progressistas. Ainda mais fundamental foi a vitória no referendo que promoveu (no sulco da sua vitória presidencial) para uma nova Constituição de cariz democrático, soberanista e socialmente progressista do país. Naturalmente que isto era apenas um começo. Um longo processo seria necessário para ir desmontando os aparelhos do Estado capitalista na sua generalidade. Mesmo dentro do exército, a mudança dos comandos superiores não significava uma transformação completa desta instituição militar. O próprio Hugo Chavez evoluiu e aprofundou sua concepção histórica durante os anos seguintes, em contacto com a realidade social do país e tendo que enfrentar a pressão constante das classes dominantes sobre o governo visando fazê-lo voltar ao antigo rumo. Aos poucos, Chavez e o seu movimento foram compreendendo que só a adopção de um projecto económico de transição ao socialismo poderia efectivamente consolidar a soberania nacional, face ao peso e à pressão das grandes empresas e bancos imperialistas. Ao sentir que a direcção bolivariana não cedia às suas pressões, as elites dominantes, articuladas à CIA norte-americana, prepararam um golpe de Estado apoiando-se na influência que ainda detinham sobre sectores do exército e da polícia.
Em Abril de 2002 o golpe foi desencadeado e logrou um certo êxito nas primeiras horas, conseguindo inclusive a detenção do Presidente da República. Porém, a irrupção nas ruas das massas populares, cercando o palácio de Miraflores e locais estratégicos da capital, inverteu a correlação de forças objectiva e subjectiva, abrindo espaço para a intervenção dos sectores leais e progressistas do exército, fazendo fracassar o golpe. Este golpe de Estado da direita e o contra-golpe das massas populares e dos oficiais progressistas introduziu um factor não-institucional (e não-eleitoral) no processo venezuelano. Chavez retomava o poder fortalecido pela derrota do golpe e pelo desmascaramento da “oposição democrática”, podendo assim desencadear um novo e mais profundo processo de depuração e transformação nas Forças Armadas, tendo em conta o que se passara durante a tentativa golpista. O processo bolivariano ganhou nova força popular e experiência político-militar.
Combinando o papel dos sindicatos e dos órgãos de democracia popular de base (Conselhos Comunais) que foram se desenvolvendo, obtendo vitórias nas eleições para os diversos órgãos do poder, o processo foi avançando com medidas socializantes (nacionalizações, formação de cooperativas, avanços na reforma agrária, etc.), ao mesmo tempo que se iam transformando por dentro as instituições do Estado capitalista. Uma tarefa que ainda está longe de estar terminada, pelas próprias reminiscências do regime anterior e das antigas estruturas mentais, mesmo entre alguns sectores vinculados ao processo.
Trata-se, obviamente, de um processo muito diferente do da revolução cubana, durante o qual formou-se, nas montanhas do interior do país, um exército guerrilheiro alternativo ao exército do regime. Ao fim de alguns anos de combate, o exército alternativo derrotou e dissolveu o exército oligárquico ocupando o seu lugar. A questão da transformação desta instituição militar ficou imediatamente resolvida. Da mesma forma que os outros aparelhos repressivos e ideológicos do Estado burguês oligárquico foram desmantelados e substituídos à medida que a revolução ia dispondo dos seus próprios quadros.
Na Venezuela, a forma historicamente concreta em que se deu o acesso das forças populares ao poder manifestou-se por uma combinação de factores entre os quais o factor eleitoral (num contexto de grave crise do Estado) desempenhou um papel muito importante. A experiência de lutas patrióticas anteriores teve obviamente um peso significativo no processo e nas opções das lideranças. Esta forma histórica (institucional) de ocupação do poder executivo pelas classes subalternas e de transformação (necessariamente progressiva e “por dentro”) dos aparelhos do Estado capitalista, teria que ser obviamente lenta e ao ritmo de actos eleitorais durante os quais as forças populares foram ganhando posições e introduzindo transformações nas estruturas sócio-económicas e politico-culturais do país. Já Gramsci dizia que “a realidade pode produzir combinações das mais bizarras e compete então aos teóricos revolucionários, penetrando construtivamente nesta bizarrice (e não rejeitando-a por “purismo”), traduzir em linguagem teórica os elementos da vida da história concreta”.
Hoje, o processo nacional-popular de transição ao socialismo na Venezuela, que, como referimos, é uma combinação de factores institucionais e não institucionais, continua a progredir, com importante participação popular organizada apesar da resistência das forças oligárquicas internas e da constante e multifacetada pressão do imperialismo no plano internacional.
Na Bolívia produziu-se um processo com algumas semelhanças, de acesso ao poder por parte das classes subalternas. Mas o líder do processo não foi um militar e sim um representante dos povos indígenas que representam cerca de 60% da população do país. O seu acesso ao poder, apoiado por fortes movimentos sociais e indígenas que já tinham derrocado o presidente anterior (de tendência neoliberal e pró-imperialista) se dá num contexto de grande convulsão nacional em que o exército oligárquico não se sentiu capaz de instaurar uma ditadura e impedir as eleições que viriam a dar a vitória a Evo Morales Ayma e seu movimento.
Iniciou-se então um processo de ultrapassagem do neoliberalismo e de instauração de um modelo de transição a um “socialismo comunitário”, isto é, um socialismo impregnado das tradições e da cultura dos seus povos indígenas. Grandes avanços já foram realizados nesse sentido, apoiados em vitórias eleitorais do MAS, “Movimiento al Socialismo”. Mas aí, como na Venezuela, o movimento não tem sido puramente institucional e eleitoral. Os sectores de direita articulados com o imperialismo norte-americano lançaram campanhas separatistas em certas regiões possuidoras de grandes riquezas naturais, campanhas que foram revestidas de grande tensão e violência. A mobilização das massas populares e a acção equilibrada mas firme do governo impediram que os objectivos contra-revolucionários fossem atingidos. Mas verificou-se uma certa ambiguidade na atitude dos comandos do exército face às acções violentas da direita, embora a mobilização popular travasse qualquer veleidade intervencionista. Ao contrário do processo venezuelano (onde houve transformações dentro das Forças Armadas operadas pela liderança nacional-popular, também ela de origem militar), na Bolívia, o exército mantém-se ainda pouco transformado e sua atitude futura, em caso de tensões internas, permanece uma incógnita. Apesar do esforço paciente do poder político em formar jovens quadros militares dentro do ideário nacional-popular.
Devemos ainda referir que, num outro país, ex-colonizado, da periferia mundial, a Tunísia, um recente levantamento popular massivo contra a ditadura de direita que dominava o país há mais de duas décadas, conseguiu neutralizar politicamente o exército, cujos oficiais acabaram por recusar o acatamento das ordens do poder político no sentido de uma repressão violenta sobre o povo. Também no Egipto, o exército, apesar de profundamente enfeudado ao imperialismo norte-americano (que o financia e equipa, em grande parte), tomou uma atitude neutral perante a revolta popular contra o ditador Mubarak, o que acabou por forçar a sua deposição. Em ambos estes países, o exército conseguiu manter-se coeso e disciplinado, obedecendo à hierarquia estabelecida, o que já não aconteceu na Líbia. Em diversos outros países árabes estão neste momento em curso movimentos populares de aspiração democrática em cujo desfecho terá influência decisiva a atitude e a solidez institucional das suas Forças Armadas. As realidades são aí distintas, de país para país. Nalguns países (p. ex., a Argélia), o exército regular é um esteio do próprio regime político, participando activamente no seu núcleo duro, enquanto noutros essa tarefa recai mais sobre a polícia política e corpos militarizados especiais, libertando as Forças Armadas para um papel mais descomprometido de garante, em última instância, da ordem social vigente, a qual, até ao momento, não foi ainda seriamente posta em causa.
Conclusão
A teoria marxista e leninista demonstra que, o Estado burguês é um complexo instrumento ao serviço da organização e manutenção da ordem político-sócio-económica do capitalismo, nomeadamente a propriedade privada dos grandes meios de produção e de financiamento, que torna possível a extracção da mais valia e a produção do lucro privado. O Estado burguês é composto por um conjunto de aparelhos organizativos, repressivos e ideológico-mediáticos cuja função é a manutenção e a reprodução do sistema de classe capitalista-imperialista em cada elo da cadeia do sistema-mundo. O aparelho decisivo, aquele que, de forma latente ou interventiva, está destinado, pelo seu poder, a assegurar (em última instância) a perenidade do sistema são as Forças Armadas, nomeadamente os exércitos. Se este conjunto de aparelhos está intacto e a funcionar com eficácia, torna-se impossível às classes subalternas e suas organizações alterar a estrutura sócio-económica da sociedade na perspectiva de um projecto de transição ao socialismo.
A transformação socialista só é possível num quadro de crise geral (engendrada por divisões internas e por conflitos, conjugados com a acção resistente das classes subalternas à opressão) suficiente para provocar um debilitamento e uma desarticulação da coerência dos aparelhos do Estado burguês-imperialista (ou pró-imperialista). Nessas condições, a correlação de forças entre classes dominantes e classes dominadas se altera (total ou parcialmente) e torna-se possível a acção por um projecto socialista, seja ela por via revolucionária ou por via institucional-eleitoral (ou, muito provavelmente, por uma combinação específica das duas vias), conforme as circunstâncias concretas num dado momento. Um tal processo não se produz transversalmente aos Estados mas sempre à escala de um Estado-Nação, local específico de condensação de uma cultura, de contradições sócio-económicas específicas e relações de força entre suas classes dominantes e dominadas, uma escala onde podem se cristalizar as condições objectivas e subjectivas de uma transformação estrutural. Naturalmente que um Estado-Nação em processo revolucionário pode influenciar outros, de cultura e tradição semelhantes.
Como vimos nos recentes exemplos de intensas lutas sociais na Grécia e na França, a situação de crise parcial do Estado burguês, de greves gerais e de manifestações de enorme descontentamento popular, não foram suficientes para provocar uma desarticulação e uma contaminação ideológica dos aparelhos do Estado e ainda menos a nível das Forças Armadas, que se mantiveram intactas e disciplinadas, como força de intimidação latente.
Esta solidez e estabilidade dos Estados burgueses e seus aparelhos, na Europa Ocidental, deve-se à antiguidade do seu capitalismo e de suas estruturas, à sedimentação das instituições burguesas e sua capacidade de adaptação a novas circunstâncias. E ao facto de que tais países nunca foram colonizados, isto é, as suas instituições e aparelhos estatais não se constituíram historicamente ao serviço de uma país estrangeiro, de uma potência colonial. O que também contribuiu historicamente para lhes conferir uma certa credibilidade aos olhos da população. Não existe globalmente uma questão nacional (no sentido de nações oprimidas) a nível dos países da Europa Ocidental. O que existe são minorias nacionais no interior de certos países - como a Espanha -, cujos povos desenvolvem formas de resistência específicas.
Vimos que, até hoje, apenas em situações de guerra os aparelhos de Estado dos países da Europa Ocidental se desarticularam (ou entraram em processo de desmoronamento), perdendo a sua coerência interna, abrindo então hipóteses de acesso ao poder político e alteração da estrutura sócio-económica por parte das classes subalternas e seus aliados. A única excepção relativa, a revolução portuguesa de meados dos anos 1970, produziu-se também num contexto de guerra envolvendo as Forças Armadas nacionais, mas esta guerra desencadeada por Movimentos de Libertação em África, desenvolveu-se fora do território português europeu. Na Europa, o Estado burguês só abrirá algumas brechas significativas na sua coerência num contexto de crise mais generalizada e de radicalização popular mais intensa.
Já no mundo periférico, em particular na América Latina, o passado colonial e neocolonial desses países fez com que, historicamente (tal como referimos), as instituições e os aparelhos dos Estados burgueses-oligárquicos tenham se constituído (estrutural e ideologicamente) para servir e manter a ordem existente ao serviço de potências coloniais e neocoloniais estrangeiras. O que desde logo reduziu a sua legitimidade aos olhos de largas massas da população, incluindo as camadas médias. Mesmo depois das independências políticas, a questão nacional, em tanto que projecto latente de independência económica do domínio imperialista, permaneceu bem viva e manifesta-se (por oposição) inclusive a nível da consciência cívica de agentes dos aparelhos de Estado, particularmente as Forças Armadas tal como verificamos. A questão nacional constitui uma poderosa alavanca ideológica e material, e uma plataforma de transição para projectos progressistas e socializantes.
Como Ruy Mauro Marini, André Gunder Frank e outros demonstraram na Teoria da dependência, a emancipação destes povos da dominação imperialista (agora globalizada) apenas é possível centralizando os recursos naturais e os principais meios de produção e de financiamento em mãos de um Estado popular de transição ao socialismo, que implemente uma política de planificação económica visando a desconexão dos mecanismos estruturais de dominação imperialista, impulsionando uma política económica de desenvolvimento nacional equilibrado e comércio multilateral. Esta orientação deve ser acompanhada de uma redistribuição permanente de rendimentos no plano interno, sob a forma de salários dignos, formação profissional e construção de serviços públicos de qualidade ao nível da educação, saúde e segurança social, possibilitando a criação de amplos mercados internos, os quais abrirão campos de investimento produtivo, nomeadamente para as pequenas e medias empresas industriais e agrícolas. Somente um bloco no poder constituído por representantes das classes subalternas, dos povos nativos e de sectores das camadas intermédias da população, será capaz de conduzir com êxito um tal processo, tal como podemos já hoje constatar, progressivamente, em vários países da América-Latina.
(*) Ronaldo Fonseca é um ensaísta marxista de origem brasileira (Minas Gerais), residente em Portugal desde 1975. É licenciado em Ciências Sociais pela Universidade de Praga e tem o mestrado em Sociologia na Universidade de Paris-Nanterre e o doutoramento de 3º ciclo em "Economia e Sociedade" na Universidade de Paris-VIII (Vincennes). Foi professor na área de História e Ciências Sociais na Universidade do Minho até à contra-reforma educativa dos anos 1980. É autor de várias obras, entre as quais 'A Questão do Estado na Revolução Portuguesa' (Livros Horizonte, 1983) e 'Marxismo e Globalização' (Campo das Letras, 2002).
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