|
Michael A. Lebowitz (*)
Os dois documentos seguintes são apresentações feitas ou preparadas para diferentes fins, na Venezuela. O primeiro ("O Espectro da barbárie e sua alternativa: oito teses”) foi apresentado em uma conferência de intelectuais venezuelanos organizada a 1 de outubro de 2009 pelo Centro Internacional Miranda (CIM), em Caracas, sobre «A nova situação internacional e a construção do socialismo no século 21». Este documento aponta simultaneamente para a luta internacional e (perifericamente, nesta ocasião) para a luta interna. A segunda intervenção ("A Responsabilidade dos intelectuais revolucionários na construção do socialismo") foi apresentada em uma conferência do CIM, intitulada «Intelectuais, Democracia e Socialismo», em 2 de Junho de 2009 - uma conferência em Caracas composta em grande parte pelos principais intelectuais da Venezuela, que gerou muita controvérsia, por causa das críticas públicas ao "processo" lá feitas. Apesar da minha garantia de que esta apresentação foi "geral e não específica para a Venezuela", foi mesmo assim declarada como sendo um ataque ao PSUV (Partido Socialista Unido de Venezuela) por uma facção chavista ligada ao ministério do petróleo.
Tese Um. A crise econômica capitalista não acabou.
Embora a crise financeira imediata pareça ter sido resolvida, todos os fatores subjacentes (que são o resultado da sobreacumulação a que o capitalismo é propenso e que torna tão vulnerável o capital fictício) ainda estão presentes. O desequilíbrio comercial incrível da economia dos EUA não tem sido tratado, o défice sem precedentes do orçamento federal dos EUA está a aumentar, a sobre-extensão do crédito ao consumo paira sobre a economia, o desemprego está a aumentar e, assim, a confiança do consumidor e a procura provavelmente não voltarão ao que foram em alturas anteriores. O quadro geral indica que a economia dos E.U.A., a economia dominante no mundo, continuará a perder a hegemonia. Quando os comentadores realçam sinais de recuperação, é fundamental lembrar que este padrão não difere em nada do que existiu de 1929 para 1933 - em outras palavras, o período entre a queda do mercado bolsista e as falências de bancos - um período anterior ainda à depressão década de 1930. Na melhor das hipóteses, embora o capitalismo em si possa se recuperar, a perspectiva é de uma significativa reestruturação geográfica dos capitais a nível internacional, o que exigirá um ajustamento doloroso para a economia dos E.U.A. – um ajustamento que envolve a aceitação de estagnação continuada ou o declínio dos rendimentos para a massa de pessoas.
Tese Dois. A crise de recursos / alimentos / água / clima / ambiente está se aprofundando.
Todos estes elementos estão ligados. Há uma crise alimentar que reflete, entre outras coisas, a seca como resultado da mudança do clima e o desvio de alimentos para a produção de biocombustíveis. Apesar de existir neste momento capacidade para produzir alimentos suficientes para o mundo, a distribuição desigual significa fome para muitos e tem-se reflectido nos motins de alimentos, sobre o preço de produtos básicos como o arroz. Há um processo em curso de assalto à terra, no qual países como a China, Índia, Coreia do Sul e Arábia Saudita estão em vias de arrendar terras em África, Paquistão, Filipinas, entre outros lugares, com a finalidade de garantir alimentos (especialmente grãos) e combustíveis. Por exemplo, a Daewoo da Coréia do Sul firmou um contrato de arrendamento de 99 anos sobre 3.000.000 hectares de terras em Madagascar (metade de todas as terras aráveis no país), para fins de produção de milho e óleo de palma. Da mesma forma, o Paquistão ofereceu meio milhão de hectares de terras e prometeu aos investidores do Golfo que, se eles se inscreveram, contratará uma força de segurança de 100 mil para proteger o seu patrimônio. Um aspecto significativo desses contratos que garantem a terra arável para os investidores estrangeiros é que eles são uma forma de lidar com a iminente crise de escassez de água. E esse problema está se tornando cada vez mais grave, com o derretimento de glaciares, por exemplo, no Tibete e nos Andes - que afetará a disponibilidade de água não só para o consumo e a agricultura, mas também para a energia hidroelétrica. Este problema, o problema do excesso de expansão da atividade econômica em relação aos recursos existentes, sob o capitalismo, só vai piorar, à medida que a Índia e a China, em particular, tentem imitar os padrões de consumo dos países desenvolvidos do Norte.
Tese Três. A correlação interna atual de forças políticas nos Estados Unidos e outros países capitalistas avançados não é favorável ao avanço das forças progressistas.
Aqui podemos simplesmente observar as vitórias recentes da direita nas eleições na Alemanha, Itália e França, na União Europeia, bem como as perspectivas de uma derrota esmagadora do governo trabalhista na Inglaterra. É claro que é distorcer as coisas pensar nessas derrotas da social-democracia como sendo derrotas das forças progressistas; no entanto, o que é evidente é o fracasso da esquerda, das organizações sindicais e movimentos sociais para gerar ganhos significativos, neste momento de crise capitalista. A isso, é ainda importante acrescentar a mobilização de forças muito bem sucedida nos Estados Unidos contra a reforma da saúde. O que é surpreendente é a composição desta oposição de massas: o chamado movimento "Tea Party" tem estado a atacar não só Obama, não apenas o governo intervencionista e o socialismo, mas também Wall Street e as grandes empresas - e muitos daqueles que marcharam descrevem-se a si próprios como membros da classe trabalhadora. Não há nenhuma mobilização comparável da classe trabalhadora a partir da esquerda nos Estados Unidos.
Tese Quatro. Num contexto de escassez de recursos, a luta para controlar o fornecimento de recursos se tornará intensa. Essa luta não é susceptível de ser resolvida na forma pura da dominação de mercado ou financeira. Em vez disso, a força bruta vai decidir. Esta é uma faceta do espectro de barbárie que temos perante nós.
Tese Cinco. Na ausência de fortes movimentos políticos da esquerda, a resposta à crise nos Estados Unidos, em particular, e em outros países capitalistas avançados, é provável que seja uma resposta cuja análise será melhor deixar aos psicólogos.
Por exemplo, nos Estados Unidos (onde é uma questão de fé que «este é o maior país do mundo»), a reação à mudança na economia mundial capitalista será uma tendência para o protecionismo, a xenofobia (que se manifesta em especial contra os muçulmanos), rápidas soluções militares, racismo e ataques contra imigrantes que são vistos como ladrões de bons empregos. Em suma, a resposta provavelmente será a busca de bodes expiatórios - os responsáveis por roubar os direitos de nascimento dos verdadeiros americanos. Como podemos ver já na Europa (por exemplo, nos ataques fascistas sobre a população cigana na Hungria), esta é uma outra faceta do espectro da barbárie.
Tese Seis. Os velhos conceitos de socialismo, as características do socialismo do século 20, nunca irá prevalecer sobre a psicologia de massas que domina nos países capitalistas avançados.
Se existe alguma coisa clara na reação das massas, nos países capitalistas desenvolvidos, ao surgimento inicial desta crise do capitalismo, é que o conceito de um estado interventor, de verticalismo, de interferência por entidades distantes (e aqui é não apenas o governo central, mas também as grandes empresas) é precisamente o que as pessoas não querem. Para elas, esse é justamente o inimigo.
Tese Sete. O conceito de socialismo para o século 21, com a sua ênfase nos conselhos comunais e conselhos de trabalhadores, é a única via capaz de fazer algum caminho de convencimento sobre a classe trabalhadora dos países capitalistas avançados neste momento.
Aquilo a que as pessoas reagem favoravelmente é à ideia de um processo decisório local, à capacidade de tomar por si próprios as decisões que afectam as suas vidas - precisamente porque essa opção foi removida nos países capitalistas avançados. Estes são precisamente os elementos necessários para a batalha das idéias, a fim de lutar contra a barbárie.
Tese Oito. Neste momento, apenas a Venezuela oferece a visão que pode armar militantes em todo o mundo na batalha de idéias na luta contra a barbárie. Por isso, uma especial responsabilidade recai sobre a Venezuela. Ela não deve apenas lutar contra a dominação do Estado e o verticalismo e pelo desenvolvimento dessas instituições protagonísticas populares que são as únicas que podem transformar as pessoas. Esta luta é essencial para a saúde da revolução venezuelana. No entanto, o sucesso dessa luta também é essencial para fornecer um exemplo a nível internacional a fim de derrotar o espectro da barbárie.
________________________________________
Quando falamos de intelectuais, temos de reconhecer, é claro, que existem muitas variedades de intelectual. Então, deixem-me ser mais específico. Eu não estou falando sobre os intelectuais tradicionais, nem sobre os acadêmicos. Estou a falar de intelectuais que estão empenhados em construir o socialismo. Além disso, meus comentários não são dirigidos especificamente aos intelectuais da Venezuela - o que seria inapropriado, para mim, como um visitante. Portanto, os meus comentários são gerais e não específicos para a Venezuela.
"Socialismo para o século 21 ... uma combinação de propriedade social dos meios de produção, produção social organizada pelos trabalhadores e pelas comunidades e uma sociedade baseada na solidariedade, que é orientada no sentido da produção para as necessidades e objectivos comunitários."
No que eu quero concentrar-me aqui é nos intelectuais revolucionários - pessoas que estão empenhados em construir o socialismo para o século 21. E eu tenho em mente algo muito específico - uma combinação específica de elementos. Então, quando eu falo do socialismo para o século 21, eu tenho em mente uma combinação de propriedade social dos meios de produção, a produção social organizada pelos trabalhadores e comunidades, e uma sociedade baseada na solidariedade, que é orientada no sentido da produção para as necessidades comunitárias e os objectivos comunitários.
Estes intelectuais revolucionários são pessoas, em suma, que estão comprometidas com um projeto revolucionário - com um processo de trabalho revolucionário no qual o objetivo (o socialismo para o século 21) é claro, e onde o que se exige é disciplina para atingir essa meta. Em outras palavras, um intelectual revolucionário deve ser disciplinado, a fim de realizar o projeto revolucionário. Deixem-me dar mais um passo nesta mesma lógica. O intelectual revolucionário deve ser sujeito à disciplina do partido revolucionário, um partido dedicado à construção do socialismo para o século 21. O intelectual revolucionário deve aceitar a direção deste partido revolucionário.
No entanto, antes que esta minha exposição gere uma saraivada de sapatos jogados contra mim, deixem-me tornar aqui uma coisa bem clara. Precisamos distinguir claramente entre o partido revolucionário e o partido do momento. Estou usando aqui o termo "momento" com o seu sentido dialético - uma etapa, uma fase, um ponto de paragem momentânea que é e deve ser superado no decorrer do curso progressivo.
Assim, a distinção que eu estou fazendo é entre o partido revolucionário, o partido do futuro socialista e o partido do momento. É em relação ao primeiro que os intelectuais revolucionários devem ser disciplinados. Afinal, o partido do momento pode não estar comprometido com o projeto socialista. As forças dominantes no partido do momento podem ser orientadas para uma estrutura de comando hierárquica semelhante à das experiências infelizes do século 20. Elas podem ter pouco interesse ou compromisso com a construção de um processo de gestão dos trabalhadores que é essencial para o desenvolvimento das capacidades dos trabalhadores, e podem também acreditar que um enfoque voltado para conceber a produção na base de uma outra coisa qualquer que não o interesse próprio egoísta é algo de irremediavelmente utópico. Devem os intelectuais revolucionários disciplinar-se a um tal partido? (Falo aqui, aliás, como alguém que trabalhou durante muitos anos em um partido social-democrata).
Em outras palavras, temos de reconhecer que haverá um desencontro entre o conceito de um partido revolucionário orientado para a construção do socialismo para o século 21 e o partido do momento. E um tal desencontro é inevitável. Como Marx (e como ele qualquer pensador dialético) reconheceu, as novas formas emergem sempre no seio das velhas, e por isso inevitavelmente reproduzem os vícios destas últimas. Além disso, o novo emerge necessariamente de uma forma inadequada. Hegel comentou uma vez que, quando queremos ver um carvalho com o seu tronco vigoroso, seus ramos frondosos e suas folhas, não ficamos satisfeitos sendo-nos mostrado uma bolota em sua vez.
Então, como podemos nós responder a esse desencontro inevitável, como intelectuais revolucionários? Uma posição possível é a de ficar de fora e criticar a inadequação da forma que surgiu. A outra, a resposta do revolucionário, é a luta para fazer real aquilo que é ainda apenas potencial. A Victor Serge foi perguntado, em certo momento, se as sementes de Stalin estavam já presentes em Lênin, ao que ele respondeu: "havia muitas sementes em Lênin”. Eu sugiro que a responsabilidade dos intelectuais revolucionários é nutrir a semente revolucionária. E fazê-lo em todos os lugares possíveis. É comunicar a visão do socialismo para o século 21 às massas, porque, como sabemos, as idéias se tornam uma força material quando conseguem cativar a mente colectiva das massas. E é tentar também convencer dessas mesmas idéias e dessa visão àqueles que estão assegurando a liderança do processo.
É claro, nós compreendemos que ao empenharmo-nos à disciplina do partido revolucionário do futuro e não à disciplina do partido do momento, isso pode ser visto como uma crítica ao partido do momento. E aqueles que estão menos voltados para a construção do socialismo para o século 21 serão os mais ansiosos por evitar tais expressões. No entanto, penso que todos devemos estar conscientes das conseqüências de abandonar a visão do socialismo. Se tiverem de ser fiéis ao projeto de construção do socialismo para o século 21, os intelectuais revolucionários devem colocar sobre a sua bandeira o comentário de Marx sobre a importância da crítica, que é tão pouco temerosa dos resultados a que chega como de entrar em conflito com os poderes instalados.
E, se esta é a responsabilidade dos intelectuais revolucionários, há também a responsabilidade dos revolucionários no seio do partido do momento. Se o partido do momento verdadeiramente pretende explorar o processo de construção do socialismo para o século 21, ele irá garantir que há espaço para os intelectuais revolucionários seguirem a disciplina do partido revolucionário. Não fornecer esse espaço e não incentivar o cultivo das sementes revolucionárias é permitir que as ervas daninhas avancem.
(*) Michael A. Lebowitz é professor emeritus de Economia na Universidade Simon Fraser, em Vancouver, no Canadá, e autor do livro ‘Beyond Capital: Marx’s Political Economy of the working class’ (1992), ‘Build it now: Socialism for the twenty-first century’ (2006). Actualmente vive em Caracas, na Venezuela, onde é director do programa ‘Práctica Transformadora y el Desarrollo Humano’ do Centro Internacional Miranda . O seu mais recente livro é ‘The Socialist alternative: Real human development’, Monthly Review Press, Nova Iorque, 2010. |
||||
|
|||||