Cuba: cerrar caminhos ao capitalismo e abri-los ao novo socialismo

 

 

 

 

Narciso Isa Conde (*)

 

 

 

Introdução

 

As transições de uma formação económico-social a outra e os modelos económicos e sistemas políticos existentes dentro dessas formações são muito variados.

 

A história do capitalismo regista muitos modelos económicos e um grande número de modelos políticos e formas institucionais, assim como múltiplas combinações entre eles, por fases e períodos: capitalismo de livre concorrência, capitalismo monopolista e oligopolista com predomínio da propriedade privada, capitalismo monopolista de Estado, capitalismo de Estado de desenvolvimento médio, capitalismo dependente, modelo liberal, modelo neoliberal, democracia representativa liberal, fascismo, ditaduras militares, tiranias, democracias burguesas monárquicas, democracias restringidas, semi-ditaduras...

 

Em termos históricos, o socialismo ainda não ultrapassou a sua infância e seria absurdo pretender para ele uma evolução ou desenvolvimento linear; isto é, com um único modelo de transição, com um sistema político único, com uma institucionalidade uniforme e inalterável.

 

Os processos anti-imperialistas e anticapitalistas de orientação socialista têm sido e hão-de ser muito variados, com transições distintas, com combinações diferentes, com modelos diferentes, com diversos graus de democracia e formas de participação, com modelos institucionais e evoluções contraditórias, com projectos de maior ou menor profundidade, permenentemente submetidos à prova do acerto e do erro.

 

É certo que a enorme gravitação da U.R.S.S. e do estatismo-burocratismo em que lamentavelmente derivou o seu processo de transição ao socialismo, admirável no começo, influiu mais tarde negativamente nos outros países que puderam saír da cadeia capitalista, cerceando a diversidade, impondo fórmulas, reduzindo a necessária socialização e negando a democracia como poder do povo.

 

Cuba, ainda que em permanente luta contra a dogmatização, não foi excepção. Progressivamente cedeu, até finalmente sucumbir a decalcar não poucas das estruturas económicas, formas institucionais e componentes do sistema político próprios do modelo estatista euro-oriental.

 

Que esse modelo não funcione não é igual a dizer que o socialismo não serve

 

Por estes dias, difundiu-se em grande escala que Fidel afirmou que o modelo económico cubano “já não funciona”, mas que depois assinalou ter sido mal interpretado.

 

Entendo que afirmar que “o modelo cubano já não funciona” não equivale a dizer que o socialismo não serve, como se apressaram a difundir de forma mal-intencionada os inimigos da revolução cubana e partidários do capitalismo, para semear a confusão e fomentar a chantagem mediática.

 

Na verdade, não era sequer necessário, em relação ao “modelo cubano”, o desmentido de Fidel que se plasmou nos seguintes parágrafos, onde ressalta bem a sua negação do capitalismo:

 

«Num outro momento da conversa, Goldberg conta: “perguntei-lhe se acreditava ainda que o modelo cubano era algo que valia a pena exportar.” É evidente que essa pergunta tinha como implícita a teoria de que Cuba exportava a revolução. Respondi-lhe: “o modelo cubano já não funciona sequer para nós próprios”. Exprimi-o sem qualquer amargura ou preocupação. Divirto-me agora ao ver como ele interpretou a minha resposta ao pé da letra, tendo consultado, ao que diz, Julia Sweig, a analista do CFR que o acompanhou, tendo eleborado a teoria que expus. A realidade, porém, é que a minha resposta significava exactamente o contrário do que ambos os jornalistas norte-americanos interpretaram sobre o modelo cubano.

 

«A minha ideia, como toda a gente conhece, é que o sistema capitalista já não serve nem para os Estados Unidos nem para o mundo, ao qual conduz de crise em crise, que são cada vez mais graves, globais e repetidas, e das quais não pode escapar. Como poderia servir um semelhante sistema para Cuba?.» (Fidel Castro, Mensagem de apresentação do livro ‘La contra-ofensiva estratégica’, La Habana, 10.9.2010).

 

De todos os modos, creio – independentemente do que disse e/ou reformulou o respeitado e admirado dirigente histórico dessa revolução e do que pensem os meritórios governantes cubanos – que o modelo estatista-burocrático que predominou desde há algumas décadas em Cuba está esgotado e necessita de ser substituído, preferivelmente por um socialismo participativo com democracia integral.

 

Porquê?

 

Porque é isso que pode evitar tanto o que aconteceu na U.R.S.S. e na Europa de Leste como o que se está passando na China.

 

Porque nas transições socialistas do século XX predominou – repito – o modelo estatista-burocrático, mal chamado de “socialismo real” ou “socialismo de Estado”, e a sua crise na Europa oriental desenbocou em restauração capitalista à ocidental e na China num capitalismo de Estado sui generis.

 

Mudar o modelo ratificando a via socialista

 

O tema do estancamento, a crise do estatismo e a necessidade de mudança de modelo em Cuba vêm sendo apresentados já há algum tempo entre muitos militantes marxistas, socialistas, comunistas; sem que isso signifique renegar o socialismo, tudo pelo contrário. Pela minha parte, tenho-os defendido já há décadas – e em muitas ocasiões – a partir de uma perspectiva socialista revolucionária.

 

Quero aqui transcrever alguns parágrafos do artigo que escrevi a propósito do 50º aniversário da revolução cubana:

 

A opção desejável do ponto de vista revolucionário, a que falta ainda tratar, é a socialização progressiva do estatal, através da autogestão e da cogestão pelos trabalhadores, através da cooperativização e/ou colectivização das pequenas e médias empresas produtivas e de serviços, da combinação de variadas formas de propriedade e gestão social, e de diversas formas de usufruto social da propriedade pública, com conversão progressiva da economia de mercado em economia de equivalência (na qual rege o valor dos produtos e não o seu preço).

 

A opção desejável numa óptica revolucionária é avançar para uma autêntica democracia socialista, separando as funções do partido das do Estado e também as funções das organizações sociais das do mesmo Estado, dando vida real ao poder popular, à participação, aos princípios da revocabilidade, ao controlo dos cidadãos sobre as instituições, à liderança social e política, separada ou não dos cargos governamentais, à renovação geracional.

 

Trata-se de acelerar o trânsito para um socialismo autogestionário, participativo, rejuvenescido, rumo a uma democracia integral. E Cuba conta com grandes reservas culturais e políticas para o conseguir, o que para além do mais desarmaria politicamente a hipócrita campanha dos seus adversários a favor da democracia.

 

Trata-se também de retomar a partir da sociedade política e civil as linhas de solidariedade a favor da nova independência e da revolução continental, separando com clareza a diplomacia estatal do necessário internacionalismo revolucionário, do antilhismo e latinoamericanismo consequentes. E isto ajudaria a acelerar e a aprofundar o processo transformador que tem hoje lugar na nossa América, em direcção ao trânsito para uma democracia participativa e um novo socialismo.” (Cuba, Cincuenta años de revolución: viejas herejías reclaman otras nuevas – 30 de Dezembro de 2008).

 

A estas ideias gerais acrescentei, noutros trabalhos, a necessidade de assumir com maior profundidade a erradicação da cultura machista patriarcal, o adultocentrismo (concepção que exclui, menospreza e subordina as gerações jovens), a homofobia e o racismo em todas as suas expressões; assim como a necessidade de assumir o tema do meio ambiente na sua real dimensão emancipadora e de criar um sistema de meios de comunicação geradores de democracia socialista. Todas estas metas são inseparáveis de um autêntico projecto socialista.

 

É claro, também, que esses eixos de socialização podem assumir diferentes modalidades, graus, velocidades, combinações e formas institucionais, dando lugar a modelos específicos em constante mutação.

 

Superar o atraso e descartar as opções pró-capitalistas

 

Lamentavelmente, o estancamento prolongou-se demasiado e só agora se fazem tíbias tentativas de reformas e de rectificações, sem que estas apontem para a socialização do estatal e a democratização a fundo da sociedade cubana.

 

Em Cuba não se esgotou o socialismo, mas sim a falta de socialismo no caminho para ele, determinada pelo facto de que a expropriação do capital privado e transnacional transferiu o poder de decisão para as mãos de um super Estado proprietário ineficiente e burocratizado, e não para o povo trabalhador e para a sociedade organizada. Isto dito sem negar o seu destacado papel em matéria de redução das desigualdades, saúde pública, educação, desporto... ainda que dentro de significativas precariedades e sem esquecer que é muito mais fácil transitar da estatização à socialização do que da privatização ao socialismo.

 

Não se deve perder de vista que a vigência prolongada deste modelo deu lugar à sua aguda crise estrutural, aproveitável pelos seus inimigos, tanto abertos como dissimulados, que aspiram a restaurar o capitalismo em qualquer das suas variantes.

 

Por isso, juntamento com os planos e os esforços efectivos em favor da superação do modelo existente, é necessário dispor-se a barrar o passo a todas as variantes de capitalismo, privado ou de Estado, em tosco ou maquilhado, da mafia de Miami ou “achinesado”.

 

No meio desta crise de modelo, há os que se aprestam a substituir o estatismo por um modelo capitalista à ocidental, dando rédeas soltas à privatização em todas as suas vertentes; e há também os que propõem reformas económicas pró-capitalistas ao “estilo chinês”: um modelo em que o estatismo modernizado se combina com as privatizações e a ampliação das concessões ao capital transnacional.

 

Estas duas opções – aqui o reitero – são sumamente negativas.

 

- A primeira porque é entreguista, re-colonizadora, drasticamente contra-revolucionária e altamente traumática.

 

- A segunda porque, ainda que menos traumática, mais nacional e desenvolvimentista, é no fim de contas capitalista e, por consequência, promotora da exploração, das desigualdades e das injustiças sociais.

 

As duas conduzem, em termos relativos – e com vulnerabilidades maiores em Cuba – a situações indesejáveis (ainda que distintas em muitos aspectos), hoje presentes na Europa de Leste e na China.

 

Socialismo ou barbárie

 

Como dissemos já muitas vezes antes, esta disjuntiva não é fatal. Existe uma outra opção, uma terceira opção para superar o status quo em crise.

 

Se há uma outra via, ela pode resumir-se assim: socializar o estatal com autogestão e cooperativização, promover a iniciativa autónoma e a pequena propriedade estimulando a sua associação, incorporar novas formas de propriedade social e de gestão e cogestão democráticas, impulsionar a economia de equivalências, a descentralização e a democratização política, até à democracia participativa, cultural e de género, até ao novo socialismo.

 

Pode resumir-se assim e arrancar ou desenvolver-se com criatividade, com constante esforço superador, com formas cambiantes, com intensidades e ênfases distintos.

 

Entre estas três opções (enunciadas em traços largos e sem descartar que outras surjam do engenho e da criatividade socialistas) é preciso escolher a mais conveniente para a colectividade cubana, com determinação. Pela minha parte, não vacilo em favorecer o caminho da nova democracia e do novo socialismo, com as particularidades e modulações de lugar.

 

Um caminho que parte da análise crítico-construtiva das experiências socialistas falhadas do século XX e do devir negativo dos processos de restauração capitalista na Europa e na Ásia, para revitalizar o ideal socialista, recuperar o seu carácter popular-democrático expresso na origem e nas fases iniciais das revoluções proletário-camponesas e de libertação nacional do século passado, registar as mutações ocorridas no capitalismo e no imperialismo na sua fase senil e assumir as contribuições teórico-práticas aportadas ao longo das últimas décadas, recriando uma proposta socialista à altura do século XXI.

 

Assumo esta opção porque estou hoje convencido de que é mais certo do que nunca: ou criamos um novo socialismo, no rumo do comunismo, ou espera-nos o caos, a destruição e a barbárie.

 

Santo Domingo, 12-09-2010

 

 

 

(*) Narciso Isa Conde (n. 1943) é um conhecido militante comunista da República Dominicana, combatente contra a ditadura de Trujillo e as invasão ianque de 1965, tendo sido então membro do governo insurrecto presidido pelo herói nacional Francisco Caamaño Deñó. Sofreu prisões, perseguições e exílio pelas suas convicções. É actualmente dirigente do Movimiento Caamañista Dominicano. Tem publicados numerosas obras e ensaios políticos. Dirige e apresenta no seu país um programa televisivo intitulado ‘Tiro al Blanco’.