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Teoria social e trabalho docente: Ivonaldo Leite (*)
A singularidade que, estatutariamente, caracteriza o trabalho docente requer, do ponto de vista sindical – no que se refere à definição da posição de classe do professor – que se estabeleça uma conexão com os sectores intermediários das classes, onde é de se notar nomeadamente a presença de extractos pequenos burgueses. Historicamente, de modo geral, tais segmentos – embora não só eles – têm dado corpo ao trabalho docente, isto é, deles são oriundos os profissionais do ensino. Como decorrência desse facto, emerge uma questão central: Pode o professor ser considerado um trabalhador? A propósito, numa demonstração do que, sociologicamente, caracteriza as oscilações desses segmentos, um estudo que se tornou clássico, realizado em França, mostra como os mesmos ora tendem a assumir posições progressistas, nomeadamente no contexto da função pública, ora tendem a encampar posições conservadoras, designadamente no âmbito da vida privada (1). Em O Capital, como se sabe, Marx foca a temática das classes em poucas linhas que ficam interrompidas. Por outra parte, há abordagens no campo da análise social em que o conceito de classe está virtualmente ausente, tendo-se também que, mesmo entre os que reconhecem a sua relevância, há concepções diferentes sobre o lugar que ele deve ocupar numa teoria social mais ampla. Entretanto, apesar da heteregoneidade de posições, não me parecem contestáveis as motivações que impulsionam os debates em torno da formulação do conceito de classes, isto é, a existência de divisões estruturais na sociedade, com raízes sócio-económicas e culturais, que fundam a desigualdade entre os segmentos sociais, configurando um quadro classista marcado pelo antagonismo social. Assim sendo, no que se refere à posição de classe do professor, revela-se extremamente pertinente conceptualizá-la a partir de uma perspectiva gramsciana, de par com a genealogia categórica trabalho intelectual e trabalho manual (2), para defini-lo como um trabalhador intelectual que é funcionário de um organismo da sociedade (a escola, a universidade) implicado na tarefa de socialização da cultura. Isto é, o trabalho docente, transformando professor e aluno, afirma-se como uma acção intelectual, mas não se limita a isso, na medida em que, como demonstração da sua dimensão teórico-prática, só se efectiva se estiver relacionado com a realidade em que o acto pedagógico se desenvolve. Quer dizer, a actividade docente pressupõe que o professor, como trabalhador intelectual, “desenvolva um trabalho prático de transformação estrutural da organização escolar, que se integra na transformação mais ampla da sociedade da qual ele participa, tanto mediante sua acção, como cidadão, como pela educação da consciência que a acção pedagógica produz” (3). E, portanto, sob pena de não levar adiante as suas perspectivas, ele precisa se organizar enquanto categoria, ou seja, em sindicatos. Mesmo que, em princípio, os professores apareçam como situados numa posição social contraditória, do ponto de vista da sua pertença de classe, a verdade é que a forma como o seu trabalho está delineado pela estrutura sistémica, sobretudo atualmente, faz com que a tendência a sua proletarização se acentue. Numa época de crise, como a que vive o sistema nos últimos tempos, onde os impasses relativos à acumulação e os défices de legitimação são dois dos elementos a serem retidos, a tendência é de se aprofundar a proletarização do trabalho e se intensificar os seus mecanismos de gestão, no sentido de extrair o máximo possível de produtividade – seja em jornadas flexíveis, reduzidas, etc. É a clássica lógica operacional de obtenção de mais-valia dando as cartas. O contexto educativo não está imune a esse quadro, pelo contrário, cada vez mais, por exemplo, são adoptados nas escolas os mecanismos de gestão tipicamente oriundos da esfera da produção material, bem como, de forma ascendente, o modo como são definidos os procedimentos administrativos para tratar da profissão docente são tipicamente fabris. Como decorrência disso, os professores têm estado envolvidos numa ampla e cada vez maior reestruturação das suas funções, donde consta: a) a imposição constante de procedimentos de controlo técnico no currículo das escolas, onde se tem uma integração instrumental de sistemas administrativos; b) currículos redutores de orientação comportamental; c) “competências” de ensino predeterminadas de forma inteiramente exógena; d) respostas dos alunos igualmente predeterminadas, com mecânicas avaliações prévias e posteriores (tanto as avaliações da aprendizagem como as chamadas avaliações institucionais). Pode-se afirmar, portanto, que a escola tem sido um locus que ocupa cada vez mais pessoas, e em maior tempo, como instância necessária ao sistema para a realização da mais-valia. Nesse sentido, a atividade que ela abriga define-se como um trabalho sintonizado com a mesma lógica do trabalho produtivo da esfera económico-material. Isto é, a atividade docente assume a padronização e a segmentação como características centrais. Nesse particular, cabe razão a João Bernardo, quando assinala que, sem tais características, o sistema não pode equiparar sob a mesma rubrica quantitativa trabalhos que, qualitativamente, são diferentes. De facto, a padronização e a segmentação são requisitos determinantes para transformar o exercício de qualquer profissão em dispêndio de tempo de trabalho. Por ser desse modo, os docentes perderam o controlo não só sobre a matéria que lecionam, mas principalmente sobre o seu próprio tempo de trabalho. Todavia, o produto da acção do professor tem, relativamente a todos os outros, uma especificidade: o de ser produtor. “Assim, aquilo que em termos de input constitui tempo de trabalho aparece, em termos de output, como qualificações” (4). Numa terminologia sugestiva, tem-se então que o aluno é um “trabalhador-input, porque está a receber inputs de tempo de trabalho resultantes da actividade dos professores e dos demais agentes de ensino. Acabado o tempo da sua formação, o trabalhador-input transformar-se em trabalhador-output, capaz de converter as suas qualificações em dispêndio de outputs de tempo de trabalho. Nessa acepção, o processo escolar consiste na produção de trabalhadores-input (os alunos) graças aos trabalhadores-ouput” (5). Possivelmente, dentre outras, possa-se invocar duas objecções à abordagem sobre a posição de classe do professor que aqui realço: uma oriunda do esquerdismo (a velha doença infantil...) e outra advinda de uma perspectiva liberal ou do liberalismo social-democrata. Neste segundo caso, o que, por certo, colocar-se-á em relevo é o conceito de categoria social, conforme a tradição teórica que, ao fim e ao cabo, remonta sua filiação à formulação de Mannheim sobre a chamada intelligentsia “livremente flutuante”, ou seja, os intelectuais (na situação em foco, os professores) que, como grupo “autónomo”, estariam acima de condicionamentos sociais. No primeiro caso, a cantilina repisada é mais antiga do que a Sé de Braga: os professores não ocupam um lugar no processo de produção material, não se encontram vinculados a ele directamente. Ora, como bem assinalou Lukács, de resto repetido de forma recriada por Lucien Goldman (6), todo o conhecimento da sociedade está estreitamente relacionado com a estrutura social onde ele é produzido, no sentido de que os seus produtores estão ligados à consciência de uma determinada classe ou grupo. Isto não significa, claro está, que inexista um espaço de autonomia relativa para a elaboração científica, mas que, como bem ressaltou Goldmann, o cientista, aquele que se encontra empenhado no trabalho intelectual (como o professor, assinalo eu), é um indivíduo com relações de classe – seja a de pertença originária, seja outra com a qual ele se identifica). Portanto, a ideia de intelligentsia “livremente flutuante”, de trabalho intelectual autónomo, livre de influência ideológica, não tem sustentação lógica nem empírica. No que concerne à objecção que recusa a posição de classe do professor aqui delineado sob o argumento de que ele não ocupa um lugar no processo de produção material, ela tem uma dupla inconsistência teórica. Por um lado, ignora as configurações do capitalismo contemporâneo, onde a funcionalidade da estrutura escolar/de formação profissional, como pusemos em evidência, torna-se cada vez mais orgânica à sobrevivência e reprodução do sistema. Dessa forma, provavelmente também ignora que, as novas formas de organização do trabalho, repõem sob novas bases as leis de circulação da mercadoria. A segunda inconsistência da referida objecção, por outro lado, diz respeito a uma compreensão não-dialéctica das classes. Entendamo-nos. A teoria social marxista não elabora categorias gerais (o económico em geral, o político em geral, as classes em geral, etc.). Portanto, não há o espectro do economicismo a rondar a compreensão das classes como categorias economicamente determinadas. Como conceito, elas se aplicam a situações nas quais a distribuição social das pessoas, tendo como referência a organização da produção, é, por certo, o critério central para a estruturação das camadas da população. Mas, isso não é algo que se basta a si, na medida em que é necessário considerar o condicionamento de duas outras instâncias regionais: a política e a ideologia (a outra, tenho até pudor de repisar essa obviedade, está implícita nas linhas anteriores – é a economia). O condicionamento não ocorre a partir das instâncias isoladas, mas como um “feixe”, decorrente da tripla articulação entre elas, pelo que, assim sendo, as mesmas não podem ser niveladas às categorias gerais que a teoria social marxista põe de parte. A conceptualização das classes sociais consubstancia um corpo categorial que indica os efeitos do conjunto das estruturas, da matriz de um modo de produção ou de uma formação social sobre os agentes que constituem seus aportes. Indica, assim, os efeitos da estrutura global no domínio das relações sociais. Quer dizer, a classe social não pode ser apreendida teoricamente como uma estrutura regional ou parcial da estrutura global, nos mesmos termos, por exemplo, em que as relações de produção, o Estado ou a ideologia efectivamente constituem estruturas regionais (7). De resto, nunca é demais (re)lembrar que a constituição, e portanto a própria definição das classes, das fracções, das camadas e das categorias, não pode ser feita senão tomando-se em consideração o factor dinâmico das classes e grupos em luta, pois a delimitação da estrutura classista não se reduz apenas a uma espécie de descrição estática das estatísticas. Ela depende do movimento do processo histórico. Não me parece necessário invocar outros elementos em apoio à abordagem sobre a posição de classe do professor levada a efeito neste texto, a exemplo da arquiconhecida formulação em torno da consciência em si e da consciência para si. Até porque, para as mentes versadas nos jogos do espírito, fica sempre subentendido que as teses são propostas cum grano salis. O labor, tendo uma dimensão abstracta e concreta, tanto no âmbito da produção material como não-material, como é o caso da actividade docente, faz com que homens e mulherestornem-se conscientes de determinadas finalidades e de determinados meios que os remetem para a esfera da acção colectiva (sindical), para o conhecimento da realidade em que estão inseridos. Realidade a ser decomposta e novamente recomposta, à maneira dialéctica (indo do abstracto ao concreto), numa perspectiva que supera o mundo da pseudo-concreticidade e assimila a realidade como concreto pensado. Tendo uma posição de classe definida, o professorado deve redimensionar a sua atuação sindical no sentido de levar a cabo uma acção que, transpondo a ideológica ideia de perpetuidade do presente, mobilize corações e mentes para uma nova ontologia do ser social.
(*) Ivonaldo Leite tem Licenciatura em História, com Especialização em História Económica e Social, e Mestrado pela Universidade Federal da Paraíba/Brasil; é Doutorado em Ciências da Educação pela Universidade do Porto; docente e investigador actualmente da Universidade Federal de Pernanbuco (UFPE)/Brasil. Tem publicado diversos trabalhos em Portugal, sendo o último o livro Educação, Formação, Trabalho e Políticas Educativas (Porto, Profedições, 2007). ________ NOTAS: (1) Cf. BOLTANSKI, Luc, Les Cadres: la formation d’un groupe social, Paris: Editions de Minuit, 1982. (2) Entendendo-se, porém, que, em qualquer trabalho físico, “há actividade intelectual criadora”, cf. GRAMSCI, António, Os intelectuais e a organização da cultura, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira: p. 7. (3) RIBEIRO, Maria Luísa S. (1984), A formação política do professor de 1o e 2º graus, São Paulo: Cortez, 1984, p. 51-52. (4) BERNARDO, João (1998), Estado: a silenciosa multiplicação do poder, São Paulo: Escrituras Editora, 1998, p. 34. (5) Ibidem, p. 35. (6) Ver LUKÁCS, George, História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista, São Paulo: Martins Fontes, 2003; GOLDMANN, Lucien, Filosofia e Ciências Humanas, São Paulo: Difel, 1986. (7) A propósito, ver os seguintes trabalhos de Nicos Poulantzas: Poder político y clases sociales en el Estado capitalista (México: Siglo XXI, 1970) e Las clases sociales en el capitalismo actual (México: Siglo XXI, 1990)
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