O liberalismo designa exactamente o quê?


Jean-Claude Michéa (*)

 

Um movimento anticapitalista radical (espero que me seja perdoada a utilização de uma terminologia tão “arcaica”) arrisca-se a permanecer estéril – ou, pior ainda, a corromper-se historicamente – se os seus alvos não forem identificados com toda a clareza requerida. Ora, trata-se de um trabalho político que os actuais desenvolvimentos da sociedade liberal complicaram consideravelmente. Com efeito, o capitalismo contemporâneo funciona hoje muito mais pela sedução do que pela repressão – como Guy Debord soubera compreendê-lo avançando o conceito de “Sociedade do Espectáculo” (1). Não é, evidentemente, por acaso se a indústria publicitária (à qual será lógico acrescentar as da “diversão” e da mentira mediática) representa actualmente o segundo posto da despesa mundial, logo a seguir ao armamento. E a marcação quotidiana que esta curiosa indústria exerce hoje sobre o imaginário dos indivíduos modernos (sobre o seu “tempo de cérebro disponível”) revela-se infinitamente mais profunda do que a das antigas religiões ou das velhas propagandas totalitárias (A). Não pode, porém, dizer-se que as organizações que pretendem - ainda hoje – “lutar contra o capitalismo”, tenham apreendido a real natureza destes novos dados. Infelizmente, torna-se excessivamente claro que a resistência aos efeitos culturais, psicológicos e morais humanamente devastadores da lógica liberal, não constitui, a seus olhos, uma tarefa política prioritária (supondo que essa tarefa ainda pudesse ter sentido no seio dos seus dispositivos ideológicos actuais).

Todavia, não basta constatar que “sociedade do espectáculo” representa a verdade consumada do liberalismo realmente existente. É ainda necessário ser capaz de tirar a conclusão lógica e reconhecer que este já não pode reproduzir as condições do seu “desenvolvimento duradouro” sem contar, de modo permanente, com a cumplicidade mais ou menos activa de cada um de nós. Ou, noutros termos, sem que trabalhe no sentido de transformar cada indivíduo (começando, preferencialmente pelo mais novos (2)) em carrasco de si mesmo, capaz de colaborar sem hesitações (e, por vezes, até com entusiasmo) na desmontagem da sua própria humanidade. Este ponto é de uma importância política crucial. Com efeito, não é possível continuarmos a reduzir o sistema capitalista a uma simples forma de organização da economia (a um simples “modo de produção e troca”) de que bastaria, em suma, uma “mudança dos modos de distribuição e dos gestores, no seio de um modo de vida aceite por todos os participantes” (3). O capitalismo contemporâneo constitui, na realidade, uma forma de “civilização” perfeitamente coerente, com ramificações múltiplas e variadas, que se encarna nos modos quotidianos de viver (que a mundialização tem precisamente por finalidade universalizar) e sem as quais o Crescimento – isto é, a acumulação do Capital – se afundaria subitamente.

Sublinhemos, de passagem, que parece muito difícil descrever ou explicar estes novos desenvolvimentos da civilização liberal sem tomar apoio, de uma maneira ou de outra, sobre os conceitos filosóficos de falsa consciência e de alienação. Ora, como é facilmente verificável, estes conceitos – que se encontravam, outrora, no cerne da crítica radical – desapareceram misteriosamente, há alguns decénios, de todas as grelhas de leitura da nova esquerda (e, por via de consequência na nova extrema esquerda) (B). Não se trata evidentemente de uma coincidência.

II

Um dos principais objectivos do meu livro L’Empire du moindre mal (Flammarion, Paris, 2007) era o de contribuir para a necessária reactualização da crítica anticapitalista, regressando, para isso, às próprias origens do pensamento liberal. A minha hipótese fundamental, com efeito, é a de que o pensamento liberal - que, presentemente projecta a sua sombra sobre todos os aspectos da nossa vida - representa o único desenvolvimento realmente coerente dos axiomas fundadores da Modernidade. Dito de outro modo – para retomar os termos de Castoriadis – deste imaginário que, desde o século XVII, sustenta o processo de transformação histórica das sociedades ocidentais. A génese deste imaginário só se torna plenamente inteligível se a relacionarmos primacialmente ao contexto dramático da guerras de religião, isto é, das guerras civis ideológicas que devastaram a sociedade do tempo com uma duração, uma amplitude e uma brutalidade desconhecidas nos séculos precedentes (C). Só à luz do profundo traumatismo histórico provocado por estas guerras, desmoralizante, em todos os sentidos do termo (D), é possível compreender a dupla convicção que acabou por estruturar o imaginário político moderno e, por consequência, o do próprio liberalismo.

Primeira convicção: a ideia de que a última razão de ser de uma organização social e politica já não deve ser a de realizar um ideal filosófico ou religioso particular (ou impor, por exemplo, uma certa concepção da salvação da alma ou da “vida boa”). É, antes de mais, a de tornar definitivamente impossível o regresso das guerras civis ideológicas, assegurando a cada um dos seus membros uma protecção permanente contra todas as tentativas de realizar a sua felicidade, sem o consultar (seja que essas tentativas provenham do Estado, de uma associação privada - seita, partido ou Igreja – ou de outros indivíduos). Visto que, no paradigma moderno, fundado sobre as ideias de desconfiança generalizada e de dúvida metódica, os vizinhos e os próximo constituem, como de vê muito bem em Hobbes, uma ameaça potencial pelo menos equivalente à que representam as instituições políticas ou religiosas (E).

Segunda convicção: a ideia de que o único modo racional de atingir este objectivo voluntariamente mínimo de instituir um “poder axiologicamente neutro” (ou seja, que não assente a priori em nenhuma religião, moral ou filosofia determinada), poder cuja única preocupação seria a de garantir a liberdade individual – ou seja, o direito de cada um a viver em paz segunda a sua definição privada da vida boa - sob a única reserva de que esta liberdade não prejudique a liberdade dos outros (F).

A grande originalidade do liberalismo foi a de ter sabido conferir a esta dupla convicção moderna a forma mais radical e mais perfeita. Com efeito, ele não propõe nada menos do que a privatização integral de todas as fontes de discórdia e de sedição que representam necessariamente, segundo ele, a moral, a religião ou a filosofia. É esta ambição perfeitamente desmesurada que explica, de passagem, que a doutrina liberal (que se quer, por definição, estranha a toda a ideologia) tenha encontrado sempre dois apoios metafísicos privilegiados, por um lado, no relativismo moral e cultural (a cada uma sua verdade, ”as cores e os gostos não de discutem”) e, por outro lado, no culto positivista da Ciência e da ”Razão” – isto é, no culto das únicas instâncias capazes de fundar discursos sem sujeito e, portanto, livres de toda a implicação filosófica. Não será difícil reconhecer aqui os dois eixos principais do paradigma “estruturalista” e dos curiosos prolongamentos “pós-modernos” que se tornaram hoje o fundamento mediático e universitário obrigatório das famosas “novas radicalidades”.

É, portanto, totalmente legítimo comparar a função do Estado de Direito liberal à do código da estrada. Tal como este, a sua preocupação principal não é a de impor a cada um destino preferencial, mas simplesmente evitar os choques e as colisões entre as liberdades concorrentes, sendo que cada uma deverá doravante organizar-se, segundo um “princípio de vida particular”, como dizia Engels. É esta preocupação puramente prática – ou “processual” – que explica que a política contemporânea já não se defina (salvo, evidentemente, por ocasião das diversas comédias eleitorais, quando as facções rivais das classes dirigentes entendem dever afogar o rigor do seu programa liberal numa retórica mais compatível com a common decency das classes populares) como uma forma de governo dos homens que repouse sobre escolhas filosóficas de base que poderiam ser debatidas com seriedade. Ela apresenta-se sempre, pelo contrário, como uma simples “administração das coisas” que releva primacialmente da competência de peritos, gestores ou técnicos, à imagem, daqueles que agem com a competência que se conhece, no seio das diversas instituições do capitalismo internacional (Banco Central Europeu, OMC, FMI, OCDE, etc.).

Para utilizar a linguagem introduzida em 1975 pelo relatório da Comissão Trilateral sobre a “crise da democracia”, chamaremos “liberal” a todo o poder político que pretende substituir às antigas interrogações ideológicas e “partidárias” sobre a natureza da sociedade boa ou decente, o único problema concreto da governabilidade das sociedades contemporâneas. Problema que, no entender dos ideólogos liberais, se reduz fundamentalmente a uma simples questão de cálculo racional e de gestão “técnica”, alheia, por princípio, a toda a preocupação moral ou filosófica (4).

Na forma sob a qual o exponho aqui, o liberalismo original pode, no entanto, apresentar algo de atraente para um espírito anarquista. Em qualquer caso, uma sociedade onde cada um seria finalmente livre de viver “como entende” possui evidentemente aspectos realmente emancipadores. E, de facto, nem um só instante me passa pela cabeça negar o papel fundamental que os primeiros liberais políticos (designadamente Benjamin Constant ou John Stuart Mill) desempenharam na defesa e promoção de um certo número de liberdades incontestavelmente essenciais e que, de resto, figuram em lugar de destaque em todas os programas do movimento operário original (pensemos, por exemplo, nas reivindicações dos Cartistas ingleses). Qualquer anarquista achará sempre um Estado liberal do tipo europeu mais aceitável humanamente do que a Coreia de Kim Jong II ou o Cambodja de Pol Pot.

Toda a dificuldade resulta do facto de que a execução efectiva deste programa à primeira vista tão sedutor se encontra inteiramente suspensa de um critério filosófico cujo manejo prático se revela extremamente problemático - desde que se mantenha o quadro constrangente de “neutralidade axiológica” liberal. Com efeito, como estabelecer que o exercício de uma liberdade particular não prejudica a liberdade de outrem se eu sou obrigado a abster-me de todo o juízo de valor quando se trata de arbitrar um conflito?

Consideremos, por exemplo, para nos atermos a um caso familiar e de actualidade, a questão da coexistência pacífica entre fumadores e não fumadores nos lugares públicos. Notemos, em primeiro lugar, que se trata de um entre os numerosos problemas que, não há muito tempo, se resolvia segundo as regras habituais de civilidade – ou da simples convivialidadesem que o Estado tivesse que intervir. A partir do momento, porém, em que a “opinião” (esta criatura ambígua dos institutos de sondagem e do lobbying associativo) é levada a pensar que compete, doravante, ao Direito e aos tribunais a regulação deste tipo de diferendos (e a aparição, ligada à erosão regular da civilidade comum pelo modo de vida capitalista, de novos tipos de comportamentos individuais, provocadores de um lado, queixosos do outro – torna esta deriva inelutável) devemos logicamente esperar uma multiplicação de micro conflitos e um desenvolvimento contínuo de formas cada vez mais modernas da guerra de todos contra todos (5). Ora, se quiser resolver este género de conflitos, sem sair do quadro definido pelos axiomas positivistas, o Direito liberal não tem outra solução racional (já que é evidentemente impossível satisfazer simultaneamente duas reivindicações contraditórias) que não seja a de decalcar a sua decisão final sobre as relações do força que trabalham a sociedade no momento dado. Quer dizer concretamente sobre as relações de força que existam entre os diferentes grupos de interesses que falam em nome da sociedade e cujo peso é essencialmente função da superfície mediática que conseguem ocupar (ou que o Sistema julgou útil conceder-lhes). As variações perpétuas destas relações de força bastam para explicar o paradoxo que se tornou constitutivo da sociedade liberal moderna.

Como é verificável quotidianamente, esta sociedade é inexoravelmente conduzida, em nome do direito de cada um a realizar-se livremente, a alargar incessantemente o império da Lei e do Regulamento e, portanto, a multiplicar as proibições e as censuras (inclusivamente, como hoje se observa, em relação ao que se escreve e ao que se diz); e tudo isso, como é bom de ver, ao sabor das novas reivindicações que cada comunidade é permanentemente convidada a depositar aos pés dos tribunais, em nome do que se lhe ensinou ser como que a definição não negociável da sua própria liberdade e a condição indispensável do seu orgulho particular (6).

É todavia evidente que uma tal atomização da sociedade pelo Direito liberal (e a correspondente reaparição da guerra de todos contra todos que ela implica) só poderia conduzir a prazo a tornar impossível toda a vida em comum. Uma sociedade humana só existe na medida em que consegue reproduzir em permanência um vínculo, o que supõe que ela repouse sobre um mínimo de linguagem comum entre todos aqueles que a compõem. Ora se esta linguagem comum deve ser, de acordo com as exigências do dogma liberal, axiologicamente neutra (já que toda a referência “ideológica” reintroduziria as condições da guerra civil) só resta uma maneira coerente de resolver o problema, Ela consiste em fundar a coesão antropológica sobre o único atributo que os liberais sempre tiveram como comum ao conjunto do homens: a sua disposição “natural” para agir segundo seu interesse bem compreendido. É por isso muito logicamente sobre a troca interessada (o famoso “toma lá, dá cá” que funda a racionalidade das relações mercantis) que deve repousar definitivamente a tarefa filosófica de organizar a coexistência pacífica dos indivíduos que, por outro lado, tudo separa ou deverão ser considerados segundo a formulação de John Ralws como “mutuamente indiferentes”.

Tal é a razão principal pela qual a Economia se tornou por toda a parte a religião das sociedades modernas (7). Se estamos convencidos a priori de que não existe nenhum valor universalizável, isto é, susceptível de ser compreendido e aceite por todos os membros de uma comunidade livre, a única maneira concebível de ligar (religare) os indivíduos assim atomizados é remeter para os mecanismos de Mercado que se supõem “neutros” e unânimes; noutros termos, contar, cruzando os dedos, com as consequências antropológicas positivas de um Crescimento ilimitado. É porque o Direito puramente processual dos liberais não pode desenvolver o conjunto das suas virtualidades sem dividir e separar os homens (quaisquer que sejam as intenções pacificadoras iniciais) que a economia de mercado aparece, num momento ou noutro, como a única instância “axiologicamente neutra” capaz de uni-los de novo sem atentar contra a sua liberdade. O Mercado representa, na realidade, a única base de sustentação filosófica de que dispõe o liberalismo político e cultural. Ele é o Deus ex-machina que pode permitir-lhe escapar aos seus próprios demónios.

O apelo a desenvolver sem limites filosóficos assinaláveis as “liberdades individuais” (que na sua compreensão liberal - e consequentemente mediática – formalizam menos os direitos do sujeito autónomo do que os do indivíduo atomizado) não é por acaso que se encontra correlacionado com a actual expansão mundial das relações mercantis (sabemos que na estratégia dos Estados ocidentais, a artilharia pesada da livre troca e dos “ajustamentos estruturais” é sempre precedida ou acompanhada pela cavalaria ligeira da “aventura humanitária”). Estes dois processos que os liberais consideram, aliás, como igualmente inelutáveis, constituem, na realidade, duas faces do mesmo problema. Se a vocação de cada indivíduo moderno é a de se recolher sobre o seu princípio de vida particular, exigindo da colectividade, não o simples reconhecimento deste princípio (o que seria eventualmente legítimo), mas a sua aprovação entusiástica em nome da sua auto-estima e do seu orgulho particular, não será possível conjurar o regresso inevitável da guerra de todos contra todos, a não ser deslizando na sua forma de humanidade que um liberal considera realmente universalizável: a do consumidor “cool”, “hype” e nómada”, treinado pera desejar tudo e o seu contrário ao sabor das circunstâncias sempre mutáveis do mercado mundial (G).

III

Para terminar esta conferência, gostaria ainda de precisar dois pontos fundamentais. Em primeiro lugar, quando critico a utopia liberal de uma ordem “axiologicamente neutra” (ou que pudesse ser concretizada de modo puramente “técnico”) não estou a fazer um convite à restauração de qualquer “ordem moral” ou a defender aquilo a que chamei “uma ideologia do Bem” (ou uma “ideologia moral”) afim, precisamente, de a distinguir do que Orwell chamava “common decency”. Uma ideologia do Bem apresenta-se, com efeito, como uma construção sábia (geralmente elaborada em ligação com os dogmas de uma Igreja ou a linha de um partido) que se supõe enunciar um certo número de “verdades” metafísicas sobre a vontade divina, o sentido da História ou as finalidades últimas da Natureza. A principal função deste tipo de construção é, antes de mais, definir uma série de comportamentos concretos – considerados como naturalmente “piedosos”, naturais” ou “politicamente correctos” – que poderão ser impostos lá do alto às pessoas comuns – e muitas vezes contra a suas convicções mais arreigadas. Uma ideologia moral poderá, assim, afirmar entre mil outras abstrusidades metafísicas, que a homossexualidade representa um “pecado” contra a vontade divina (variante islamo-cristã), um sintoma de “decadência” e de “esgotamento vital” (variante fascista) ou ainda um “desvio pequeno-burguês” (variante estalinista). Vemos claramente, por este exemplo, que este tipo de afirmação arbitrária visa essencialmente legitimar práticas de exclusão e de perseguição - dito de outro modo, práticas de poder. Neste sentido, e segundo uma fórmula de Nietzsche, uma ideologia do Bem aparece, em primeiro lugar, como uma “metafísica de carrasco”. Isso será suficiente, de uma vez por todas, para a distinguir do que Orwell chamava a common decency.

Utilizando esta noção, Georges Orwell entendia referir-se apenas a um conjunto preciso de virtudes tradicionais – como a honestidade, a generosidade, a lealdade, a bondade ou o espírito de entreajuda; virtudes que as pessoas comuns, acrescentava ele, respeitam, com toda a evidência, muito mais do que os intelectuais das classes abastadas e que podem reconduzir-se, sem grande deturpação do sentido, às capacidades psicológicas, morais e culturais de dar, receber e retribuir que constituem, como mostrou Marcel Mauss no seu Essai sur le don, o solo fundador das relações humanas. Ora, é evidente que estas disposições práticas para a reciprocidade (quer se fundem no sentido do outro, da honra ou do simples costume) são absolutamente independentes da orientação sexual do sujeito. Podemos ser um “heterossexual” egoísta e narcísico disposto a tudo para enriquecer, tornar-se famoso e fruir do seu poder sobre outro ou, pelo contrário, um “homossexual” atento aos seus semelhantes e capaz se comportar para com eles de forma simples e humana (8). É por isso que uma sociedade decente (segundo a palavra que Orwell utilizava para designar uma sociedade socialista) não tem, por princípio, nenhuma posição moral ou política particular a fazer valer sobre este tipo de questões. Ela tem apenas que cuidar que todos os que desejem debater filosoficamente possam naturalmente fazê-lo com toda a liberdade (isto é, sem temer, como nas sociedades liberais desenvolvidas, qualquer processo por feitiçaria ou uma interdição profissional).

A arte pode revelar-se neste domínio um guia mais eficaz do que a filosofia. A Vida dos outros - o admirável filme de Florian Henckel von Donnersmarck – oferece uma ilustração perfeita de tudo o que separa a common decency do homem comum destas ideologias do Bem que os ideólogos ávidos de poder (de Torquemada a Mao) sempre foram excelsos a construir e impor pela força. Com efeito, é porque o agente Wiesler não pode impedir-se de fazer a única coisa que a decência comum exige (comportar-se como um ser humano e não como uma simples rodinha de uma máquina totalitária) que vai encontrar progressivamente a coragem moral para afrontar (independentemente das consequências para a sua carreira) o poder político perverso cujas ordens havia executado até aí. Deste ponto de vista, A Vida dos Outros aparece como uma encenação particularmente eficaz do eterno conflito ente a decência dos homens comuns (a sua preocupação diária, escrevia Spinoza, de praticar a “justiça e a caridade”) e as exigências potencialmente assassinas de toda a ideologia do Bem. Não é exagerado dizer que se trata de um filme profundamente orwelliano (tanto mais que a emoção estética desempenha um papel tão decisivo na tomada de consciência moral do agente Wiesler, como na decisão de Winston Smith, o herói de 1984).

A minha segunda precisão incidirá sobre a própria essência da filosofia anarquista. Eu sublinho, na última parte do meu ensaio, que o ponto cego de todos os empreendimentos revolucionários foi sempre o problema posto pela existência - provavelmente inevitável, seja qual for o tipo de sociedade – de um certo número de indivíduos habitados por uma necessidade patológica de exercer um domínio sobre os outros (quer seja um domínio intelectual, psicológico, físico ou político). A preocupação de neutralizar a vontade de poder deste género de indivíduos é evidentemente uma das origens da sensibilidade anarquista. Mas esta crítica não deve conduzir apenas a desenvolver uma crítica dos limites do “regime representativo” e a lutar, portanto, pela construção de instituições realmente democráticas. Como Stendhal objectava a Fourier (que, aliás, admirava muito), devemos igualmente compreender que se não tivermos cuidado, as melhores instituições políticas do mundo (tal como as ideias generosas que são o seu fundamento) poderão ser sempre pervertidas e desviadas do seu sentido original pelo simples facto da vontade de poder de alguns. Mesmo e sobretudo quando estes alguns conseguem inclusivamente ser capazes de não ver o desejo de poder que os anima, mesmo nas suas manifestações mais evidentes: como, por exemplo, o seu desejo infantil de ser admirado (e a dificuldade correlativa de aceitar a contradição), a sua aptidão de conseguir tudo que querem culpabilizando os outros, ou ainda o seu gosto pronunciado pela má fé polémica, as excomunhões e repetidas cisões (9). É um fenómeno que a maior parte dos militantes conhecem muito bem (pelo menos enquanto não pensam eles mesmos alçarem-se às cúpulas da organização revolucionária). Não será certamente por acaso que seja este o problema que preocupa Orwell e a que ele deu uma descrição literária e política magistral no Animal Farm.

É certamente deste lugar preciso que devemos partir se quisermos compreender realmente porquê e como, ao longo de toda a história, tantas ideias políticas generosas foram pervertidas e tantas revoluções foram traídas. Ser capaz de apreender intelectualmente a essência do capitalismo constitui, como sublinhava no início desta conferência, a primeira condição de uma política radical eficaz. Mas saber reconhecer a vontade de poder de uns e outros, onde quer que ela se manifeste e seja qual foi a forma da sua manifestação (inclusivamente em nós mesmos), eis uma condição pelo menos tão decisiva como a primeira. É verdade que esta segunda condição envolve um trabalho sobre si mesmo complexo e moralmente exigente, de que muitos militantes oficialmente “dedicados à causa” têm excelentes razões pessoais para querer ser dispensados (sob o pretexto de que ele os “desviaria das exigências da acção” ou testemunharia de um “psicologismo” politicamente suspeito). Continuo, no entanto, convencido de que enquanto este trabalho prévio – que deveria implicar cada um de nós como sujeito singular – não tiver sido efectuado, nenhuma sociedade decente poderá ver a luz do dia. E este repetido fracasso (que Sartre tão bem descreveu em L’Engrenage) continuará a ser a lei de ferro dos empreendimentos revolucionários. Não é aos meus amigos anarquistas que irei ensiná-lo. Pelo menos, assim o espero (10).

 

 

ANOTAÇÕES

(A)

“Shanghai está hoje mais crivada de slogans publicitários e de logos de empresas do que estava, há uma geração atrás, com slogans de propaganda comunista e de bandeirolas em honra do partido único” (Benjamin Barber, Comment le capitalisme nous infantilise, Fayard, 2007, p. 299). Há nesta observação uma base de explicação possível para o que os Alemães chamam ostalgia - palavra mala destinada a designar a espantosa nostalgia do anterior regime por parte das populações do ex-império soviético. O sentimento que experimentam estas populações (e que todo o viajante que conheceu o estado anterior destes países pode igualmente compreender) não remete para uma presença desaparecida e chorada. Trata-se, em vez disso, da falta de uma ausência: a das formas mais invasoras e mais agressivas da sociedade de consumo.

É notável, aliás, que Debord tenha sabido sublinhar, desde 1957, os efeitos das novas técnicas publicitárias sobre a própria estrutura do debate intelectual: “A decomposição – escrevia Debord - apoderou-se de tudo. Não se trata do emprego massivo da publicidade comercial influenciar cada vez mais os juízos sobre a criação cultural, o que era um processo já antigo. Chegámos a um ponto de ausência ideológica onde já só age a actividade publicitária com exclusão de todo o juízo crítico prévio, mas sem deixar de arrastar um reflexo condicionado do juízo crítico. O jogo complexo das técnicas de venda acaba por criar automaticamente, e com a surpresa geral dos profissionais, pseudo temas de discussão cultural. É a importância sociológica do fenómeno Sagan-Drouet, experiência que teve lugar em França nos três últimos anos e cuja repercussão chegou a ultrapassar os limites da zona cultural centrada em Paris” (Rapport sur la construction des situations et sur les conditions de l’organisation et de l’action de la tendance situationniste internationale, Junho 1957). Nos nossos dias, pelo contrário, os intelectuais de esquerda não se contentam em manifestarem-se activamente pela manutenção da propaganda publicitária nos canais de “serviço público”. Querem inclusivamente levar ao ecrã a vida exemplar de Françoise Sagan.

 

(B)

Entendo por “nova extrema-esquerda” – seria mais exacto dizer extrema nova esquerda – aquela que progressivamente foi substituindo no seu discurso e nos seus modos de actuação, a figura outrora central do proletário (quer dizer o trabalhado directamente explorado pelo Capital) em proveito da figura - muito mais periférica - do excluído (de que os sem abrigo e sem papéis constituem a incarnação mediática privilegiada); quando não é, como nalguns casos, em proveito do Lumpen - para retomar o termo que Marx utilizava para designar esta “corja se indivíduos corrompidos de todas as classes que tem o seu quartel-general nas grandes cidades” (note-se, de passagem, que este conceito marxista desapareceu misteriosamente do vocabulário da sociologia contemporânea). Deste ponto de vista, não é inútil lembrar que o primeiro recentramento da questão política moderna à volta da problemática de exclusão foi obra de René Lenoir, secretário de Estado para a acção social, sob a presidência de Giscard d’Estaing, de 1974 a 1978. Seria igualmente interessante analisar o modo exemplar com a figura do trabalhador imigrado (que exercia um papel redentor de primeiro plano na teologia da “Esquerda Proletária”) cedeu progressivamente o seu lugar ao imigrado enquanto tal (época da formação do “SOS Racisme”) e mais tarde, ao do imigrado clandestino (ou o “sem papéis”) que se tornou a única figura messiânica autorizada no catecismo nas novas radicalidades.

Esta nova extrema-esquerda (que conservou sobretudo, da antiga, a retórica extremista e as posturas psicológicas correspondentes) encontra seguramente as suas condições de possibilidade ideológicas em certos aspectos da cultura dita de Maio 68 (mesmo se é certo que ela só pôde encontrar as condições do seu florescimento efectivo, designadamente as condições mediáticas e financeiras, no quadro particular da estratégia mitterrandeana e do seu mestre sala, então oficial, Jacques Attali). Uma vez recordada esta evidência, ainda não progredimos nada do ponto de vista teórico, porque continua por responder a única verdadeira questão: de que é que Maio 68 é o nome?

A ideia de que poderia tratar-se de uma realidade homogénea e bem definida (que poderia ser abençoada ou amaldiçoada em bloco em função das exigências de posicionamento jornalístico ou da a indústria comemorativa) representa o exemplo típico da ilusão retrospectiva. Com efeito, é impossível ignorar, sobretudo depois dos trabalhos de Kristin Ross, que os “acontecimentos de Maio 68” representaram o ponto de telescopagem política entre dois movimentos sociais de origem distinta e cuja unificação a posteriori sob uma categoria mediática comum aparece singularmente problemática: de um lado, um poderoso movimento operário e popular (“a maior greve da história da França”), do outro, uma revolta das elites estudantis cuja lógica e reais motivações (para lá da falsa consciência que caracterizava a maior parte dos protagonistas) tinha uma natureza completamente diferente, como é abundantemente atestado pela evolução pessoal ulterior da maior parte dos seus quadros dirigentes. Que poderia haver de comum entre a vontade dos camponeses do Larzac de conservar o seu direito de viver na região e vontade de um Daniel Cohn-Bendit - o futuro deputado europeu – convidando os estudante parisienses a abolir todas as fronteiras e a celebrar o poder emancipador de todas as formas de “desterritorialização”?

Estas observações seriam demasiadamente sumárias se não acrescentarmos de imediato que cada um destes dois Maios 68 foi, por seu turno, atravessado por toda uma série de divisões secundárias opondo, sucessivamente, e sob formas específicas, um pólo radical, que a ideologia dominante iria apressar-se a marginalizar por todos os meios (que se pense, por exemplo, nas críticas do consumismo e nas diferentes experiências de auto-gestão de vida comunitária e de retorno ao mundo rural) e um pólo liberal-libertário que iria muito rapidamente tornar-se, na construção mediática dominante, a verdade oficial deste acontecimentos múltiplos e contraditórios. É esta estrutura dialéctica complexa que explica que, por exemplo, a sequência Lukacs - Escola de Frankfurt - Socialisme et Barbárie – Henri Lefèbvre – Internationale Situationiste (sequência que era portadora de uma crítica intransigente e dificilmente recuperável, do modo de vida capitalista) tenha sido tão rapidamente eliminada da vida intelectual oficial (e, portanto, pela mesma ocasião, da memória de muitos indivíduos) em prol da sequência Althusser – Bourdieu – Deleuze – Foucault – Derrida, cujas conceitualizações elegantes e bizantinas ofereciam, evidentemente, a vantagem de ser muito mais solúveis no novo espírito do capitalismo (trazendo, por esse facto, a toda uma nova geração de universitários um fundo de comércio ideológico particularmente rentável).

Bastará, de resto, reler o texto incrivelmente profético de Mustapha Khayati (De la misère en milieu étudiant, 1966) para nos apercebermos da dimensão efectiva desta verdadeira contra-revolução na revolução que, a partir dos anos setenta, permitiu às “novas esquerdas” europeias liquidar progressivamente a contestação anticapitalista e substituir, por toda a parte, à velha questão social (tida agora por cinzenta e arcaica) o único combate festivo e multicolor pela “evolução dos costumes” e pelo “fim de todas as discriminações”.

Estas precisões permitem lançar uma primeira luz, tanto sobre a genealogia política real da nova extrema-esquerda “cidadã” (segundo a excelente fórmula de René Riesel) que ocupa actualmente o proscénio mediático, como sobre as razões pelas quais, sob o nome decorativo de “pós-modernismo” - ou de French theory –, ela acabou por exercer um poder determinante no campo académico contemporâneo e nos seus diversos prolongamentos mediáticos e “associativos”. Sobre esta última questão (e através do exemplo singularmente revelador da “impostura Foucault” podem encontrar-se observações extremamente pertinentes na obra de Jean-Marc Mandosio (D’or et de sable, edições da Encyclopédie des Nuisances, Paris, 2008).

 

(C)

Um dos melhores livros sobre a questão é o de Olivier Christin (La Paix de religion, L’autonomisation de la raison politique au XVI siècle, Seuil, Paris, 1997). Depois de ter lembrado que a guerra civil ideológica foi vivida pelos seus contemporâneos “como o mal absoluto, ao mesmo tempo aniquilação de toda a sociedade política, dissolução das solidariedades tradicionais (Estado, colectividade, ofícios, família) libertação das paixões egoístas e perversão do corpo social”, o autor sublinha que para sair destes conflitos descivilizadores, o método adoptado foi primeiramente o dos colóquios (como, por exemplo, os de Haguenau, de Worms, de Ratisbone ou de Poissy). Estes colóquios, organizados segundo as regras das disputatio medievais, reuniam teólogos e humanistas (as mais das vezes erasmianos) preocupados, acima de tudo, em encontrar um acordo filosófico fundado sobre bases intelectuais, religiosas e morais comuns. Tendo fracassado este primeiro método, os teólogos e humanistas acabaram por ceder progressivamente o lugar aos “políticos” e aos “juristas” (de onde, a célebre máxima da época: “bom jurista, mau católico” – máxima de que existe evidentemente uma versão protestante). Estes últimos abandonaram rapidamente o projecto de entendimento baseado em valores filosóficos comuns em proveito da ideia, considerada mais “realista”, segundo a qual o problema teológico-político só poderia ser resolvido desde que cada um aceitasse submeter-se apenas às exigências da “razão de Estado”, da “necessidade” e do equilíbrio de forças. É este o sentido desta “paz de religião” (como as de Cappel, Augsbourg ou Amboise) que vai constituir o verdadeiro ponto de partida da modernidade europeia (e, portanto, a esse título, a origem mais longínqua do projecto liberal.

Esta distinção indispensável entre os dois processos de pacificação ideológica, encarados sucessivamente, convida a relativizar seriamente a ideia segundo a qual existiria uma continuidade histórica essencial entre o humanismo da Renascença e o liberalismo moderno. Como observa, com razão Olivier Christin, “a história da paz de religião não se confunde com aquela - muito mais florescente - da tolerância. Se os grandes artesãos das pacificações de meados de século XVI, aderiram talvez às aspirações irenistas de certos humanistas, e designadamente a um ideal complexo de concórdia, o próprio texto das grandes regulações de 1531, 1555, 1562-1563, e 1576 nada deixa transparecer. Aquilo que está em jogo, e os próprios actores da Paz de Religião, não coincidem com os grandes debates da primeira metade do século e os correspondentes colóquios senão de forma marginal; os recursos teóricos, as formas argumentativas, os procedimentos de conciliação que convocam as duas vertentes opostas da negociação pacificadora entre confissões diferentes divergem muito profundamente. Como sublinhava H. Guggisberg, “a ideia de tolerância sofre uma inflexão sensível na segunda metade do século, encontrando novos defensores entre os juristas, os detentores de cargos públicos e políticos, que renunciam aos valores de compaixão e de reconciliação religiosas em proveito de outros argumentos onde convivem aspirações sinceras, cálculos políticos e interesses mercantis”, p. 37. Deste ponto de vista, o “modernismo” representa, logo no seu princípio, um anti-humanismo teórico. E isto vale tanto para as variantes de esquerda como de direita.

 

(D)

Poderíamos pôr em paralelo as etapas decisivas do desenvolvimento do pensamento liberal e o modo como este traumatismo original foi filosoficamente reactivado de cada vez que a experiência histórica aportava um material comparável ao das antigas guerras civis de religião: massacres de Setembro e Terror jacobino, para Benjamin Constant, Tocqueville e o segundo liberalismo, Guerra da Secessão para o liberalismo americano, totalitarismo moderno e Guerra-fria para os liberais do século XX. Seria igualmente interessante estudar, nesta perspectiva, o papel histórico desempenhado em França no final de 1970, pelo movimento dos novos filósofos e pela sua critica (muito pouco orwelliana) do “goulak” e do totalitarismo. Foi realmente este movimento ideológico (poderosamente mediatizado) que, ao tornar conceptualmente possível a passagem do “momento 1968” ao “momento 1981” preparou com maior eficácia os espíritos de hoje para esta abordagem puramente “humanitária” e “cidadã” das questões políticas – abordagem hoje dominante no “novo movimento social” – na qual se reconhecerá sem grande dificuldade e sob uma simples roupagem mediática nova, o velho ideal liberal de “neutralidade axiológica” Os grotescos activistas da Arche de Zoe (cujo gourou tinha feito os seus primeiros treinos na muito anti-capitalista Federation française de 4x4) representa sem duvida a forma (provisória) mais aberrante desta deriva indissoluvelmente ideológica e patológica.

 

(E)

“A liberdade política num cidadão – escreveu Montesquieu – é esta tranquilidade de espírito que provém da opinião que cada um tem da sua segurança, e para que se tenha esta opinião é preciso que o governo seja tal que um cidadão não possa temer um outro cidadão” (L’Esprit des Lois, XI, 6). É, de resto, bastante sintomático que um representante da extrema-esquerda “pós-moderna” tenha podido considerar a família e o bairro (dito de outro modo, estas formas de sociabilidade face a face - às quais os primeiros socialistas atribuíam uma importância decisiva na formação da consciência política) como “as formas de sensibilidade mais reaccionárias” que possam conceber-se e que se opõem à necessidade de progredir “para formas de pertença cada vez mais abstractas nas quais o egoísmo não é negado mas se reconhece fora de si mesmo” (Pierre Zaoui, Le Libéralisme est-il une sauvagerie?, Bayard, 2007, p.169). Esta estranha fobia dos vizinhos e de tudo o que é próximo (que encontra sem dúvida algumas das suas chaves psicológicas na historia pessoal dos seus representantes, os primeiros próximos sendo, por definição, os pais) explica, não apenas a dificuldade recorrente que esta nova esquerda extrema ressente em compreender a teoria maussiana do dom ou a análise orwelliana da common decency (e, portanto, a ideia de que o universal não tem sentido se não entroncar as suas raízes num solo particular); ela esclarece igualmente o seu fascínio pela “cibercultura” e de um modo geral por todas as tecnologias modernas que encorajam a colocação entre parêntesis do corpo e a neutralização das intimidantes relações face a face. Sobre os fundamentos filosóficos desta “cibercultura” - e designadamente as teorizações nebulosas dos “libertários da Net” como Hakim Bey e o Critical art Ensemble – poderemos reportar-nos às criticas corrosivas de Jean-Marc Mandosio na obra já citada.

 

(F)

De um ponto de vista liberal, a “liberdade” designa, ante de mais, o poder de viver em paz (“a fruição tranquila da sua independência privada”, como escreve Constant). Encontra-se aqui a raiz principal do conflito filosófico que há muito tempo opõe liberais e republicanos. Para estes últimos, cujo pensamento se inscreve, à partida, na tradição do humanismo cívico florentino (do que John Pocock chama o “momento maquiavélico”) não há liberdade possível sem a participação activa de todos nos negócios da Cidade (o que inclui, entre outras coisas, um elogio da dedicação à pátria e a obrigação de usar armas). A tradição republicana original é inseparável de uma teoria da “virtude” e da soberania popular, radicalmente oposta às apologias liberais da tranquilidade egoísta e ao pacifismo constitutivo dos Modernos.

No século da Luzes, a luta entre estas duas correntes filosóficas tomou a forma do célebre debate sobre as capacidades socializadoras respectivas da “virtude política” e do “doce comércio”. Desempenhou igualmente um papel central na Revolução Francesa como mostra muito claramente o pequeno livro de Lucien Jaume Échec au liberalisme. Les jacobins et l’État (Kimé, 1990). Assinalemos enfim um certo número de traços (importância do patriotismo, da religião civil, das comunidades de base, armamento individual do cidadão, legitimação rousseauista da pena de morte, etc.) que não seriam compatíveis com o liberalismo (visto que se opõem radicalmente à sensibilidade liberal) se esquecêssemos o papel maior que a tradição republicana desempenhou na obra dos Pais Fundadores (o livro de John Pocock – Le moment maquiavelique traz sobre este ponto uma luz decisiva. Podem encontrar-se uma série de traços análogos no caso da Suiça moderna.

 

(G)

É necessário acrescentar aqui que, se a forma filosoficamente vazia do Direito liberal não pode desenvolver-se logicamente sem se apoiar, num ou noutro momento, sobre o conteúdo antropológico que lhe oferece a economia de mercado (sabemos que, em França, o diário Libération representa, desde há tempos, a forma mais perfeita desta síntese inelutável), a inversa não é totalmente exacta. É assim que von Mises, em 1927, e mais tarde Hayek, numa entrevista concedida em 1981 ao ‘Mercurio’ – o quotidiano da junta chilena – pôde defender tranquilamente a ideia de que em determinadas circunstâncias, o desenvolvimento de comércio livre poderia muito bem acomodar-se com instituições ditatoriais (von Mises referia-se à experiência do fascismo italiano, enquanto que Hayek, estrénuo defensor das liberdade individuais – proclamava a sua admiração filosófica pelo Chile de Pinochet). De um ponto de vista liberal, só pode tratar-se de “soluções de urgência” (segundo a expressão do próprio Hayek). Contrariamente às ideias desenvolvidas por uma Wendy Brown (que acreditava ainda, como boa discípula norte-americana de Foucault, que os valores “neo-conservadores” são o complemento espiritual de uma sociedade capitalista moderna) é evidente que a acumulação do Capital (ou Crescimento) não poderia prosseguir durante muito tempo se tivesse que acomodar-se com a austeridade religiosa, o culto dos valores familiares, a indiferença à moda e o ideal patriótico. Basta abrir os olhos sobre o mundo que nos rodeia para verificar, pelo contrário, que o crescimento não pode encontra as suas bases psico-ideológicas reais senão numa cultura do consumo generalizado, isto é, neste imaginário “permissivo”, “fashion”, “rebelde” e cuja apologia permanente se tornou a principal razão de ser da nova esquerda (e que constitui paralelamente o princípio mesmo da indústria da diversão, da publicidade e da mentira mediática) Como sublinha Thomas Frank (Pourquoi les pauvres votent à droite, Agone, 2008, p. 184) “é o mundo dos negócios que, a partir dos palcos da televisão e sempre sob o tom histérico da insurreição cultural, se nos dirige, chocando as pessoas simples, humilhando os crentes, corrompendo as tradições e ensurdecendo o patriarcado. É por causa da nova economia e do seu culto da novidade e da criatividade que os nossos banqueiros se pavoneiam de “revolucionários” e os nossos correctores de bolsa pretendem que a posse da acções é uma arma anti-conformista que nos faz entrar no milenário rock’n’roll”. É porque uma “economia de direita” não pode funcionar duradouramente senão com uma “cultura de esquerda” que as ditadura liberais só podem ter uma função limitada e provisória: a de “recolocar a economia sobre os carris”, afogando eventualmente no sangue (segundo o modelo indonésio ou chileno) os diferentes obstáculos políticos e sindicais à acumulação do Capital. A termo, é, no entanto, o regime representativo (cujo engenhoso sistema eleitoral, fundado sobre o principio da alternância única, constitui um dos ferrolhos mais eficazes contra a participação autónoma das classes populares no jogo político) que aparece como o quadro jurídico mais apropriado ao desenvolvimento integral de uma sociedade espectacular e mercantil; dito de outro modo, de uma sociedade em perpétuo movimento na qual, com escrevia Marx, “tudo o que tinha solidez e permanência se dissolve em fumo e tudo o que era sagrado é profanado”.

 

 

 

(*) Jean-Claude Michéa (n. 1950) é professor de filosofia no liceu Joffre em Montpellier e autor de vasta obra ensaística, de pendor anticapitalista, influenciada por George Orwell e pelo antropólogo Marcel Mauss. O presente ensaio começou por ser o texto de uma conferência apresentada na Universidade de Montpellier. Uma primeira versão foi publicada no nº de Maio de 2008 da revista ‘Réfractions’ (transcrição que foi depois retomada no nº do 2º semestre de 2008 de ‘Révue du MAUSS’). Hoje constitui o segundo capítulo do seu último livro de ensaios ‘La double pensée. Retour sur la question libérale’ publicado em Outubro de 2008 na Flammarion, colecção Champs. Tradução de João Esteves da Silva. A adesão do autor a ideais anti-autoritários leva-o, infelizmente, a participar ao seu modo particular, malgré lui même, no coro liberal ocidentalóide (tantas vezes abertamente sinófobo) de patologização demonológica da revolução chinesa e de Mao Zedong, em particular, com o que não podemos deixar de exprimir o nosso desacordo.

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NOTAS:

(1) “A aceitação da ordem social pelas populações ocidentais é hoje garantida menos pela repressão do que pela sedução. Os dados macro económicos dependem largamente da micro economia efectiva – a famosa «moral do lares» - da manipulação dos seus sonhos e das suas aspirações”. Mona Chollet, La morale des ménages in Fabrique du conformisme (Manières de voir, 96, Dezembro 2007).

(2) É sintomático que, em França, a mais importante manifestação política da juventude deste trinta últimos anos seja a de Dezembro de 1984 (um milhão de participantes) organizada em apoio à Rádio NR, com a ajuda de uma agência de publicidade e a colaboração das estrelas do show-biz.

(3) Anselm Jappe, ‘La Princesse de Clèves aujourd’hui’. Lignes, Novembre 2007.

(4) “Isto não é um relatório nem um estudo, mas um modo de emprego para reformas urgentes e fundadoras. Não é partidário nem bi-partidário - é não partidário”. Jacques Attali, Commission pour la libération de la croissance française, La Documentation Française, 2008, p. 11.

(5) Se queremos ter uma ideia mais precisa das forma concretas que pode assumir esta nova guerra de todos contra todos (na qual Engels via, em 1845, a essência da sociedade liberal) bastará observar os efeitos antropológicos induzidos pela transformação capitalista do ser humano em automobilista.

(6) Algumas associações anti tabaco vão até a ponto de exigir um controlo estatal das práticas familiares, em nome dos direitos das crianças. Quanto à luta “contra todas as formas de discriminação” parece que um dos seus avatares mais recentes seja a exaltante cruzada de um universitário escocês para fazer reconhecer a “calvície avançada” como um objecto de discriminação inaceitável (Marianne, 26 de Abril de 2008). É verdade que na Carolina do Norte exista já, desde 1974, uma Bald-headed Men of America (BHMA) que anuncia vários milhares de aderentes e cuja Bald Pride (que deverá ter um aprumo invejável) desfila todos os anos aos gritos de “Bald is Beautiful!” “Bald is bold!” e “The Few! The Proud! The Bald!”. É, aliás, de temer que a ocultação destes gloriosos combates pela “extrema-esquerda” parisiense (que andará a fazer Éric Fassin?) seja o sinal de uma alopéciofobia assaz duvidosa e merecedora de uma rápida desconstrução.

(7) É conhecida a fórmula límpida que Voltaire emprega na sua carta a Me. d’Epinal: “quando se trata de dinheiro toda a gente tem a mesma religião”.

(8) E inversamente, como é bom de ver. Quando Chomsky escreveu, após o seu célebre debate com Foucault, ”o que me impressionou nele foi o seu completo amoralismo. Nunca tinha encontrado ninguém que fosse a tal ponto destituído de moralidade” (entrevista com James Miller de 16 de Janeiro 1990), a sua crítica não incidia, evidentemente, sobre a sexualidade de Foucault. Chomsky queria significar, simplesmente, que Foucault não pertencia ao universo moral de um Pier Paolo Pasolini.

(9) Ao definir a prática do homem da corte pelo triplo hábito de pedir, receber e tomar (Le Mariage de Fígaro) Beaumarchais põe admiravelmente em destaque o vínculo que liga o fascínio pelo poder e o desprezo pela decência comum (e a sua tripla obrigação de dar, receber e retribuir). Um dos primeiros sintomas da vontade de poder, isto é, esta necessidade obsessiva de verificar a todo o momento o seu poder sobre os outros é, com efeito, a tendência para lhes pedir sempre algo e muito depressa e de lhes pedir sempre mais (não é por acaso que a sabedoria popular, também aí muito maussiana, ensina que pedir é feio e que a moralidade dos homens se mede, em primeiro lugar, pela sua capacidade de ajudar e de dar). A figura do que dá palmadas (que se difunde ao ritmo exponencial do desenvolvimento capitalista e das práticas educativas que o acompanham) é apenas o elo inicial de uma longa cadeia que conduz inexoravelmente à do explorador.

(10) Sobre todos estes problemas podem encontrar-se análises apaixonantes na obra de Martin Breaugh, L’Expérience Plébéienne, Payot, 2007.