A coragem do presente

 

 

 

Alain Badiou (*)

 

 

O tempo presente, num país como o nosso, desde há quase 30 anos, é um tempo desorientado. Quero dizer: um tempo que não propõe à sua própria juventude e particularmente à juventude popular, nenhum princípio de orientação da existência.

Em que consiste, precisamente, a desorientação? O que é certo é que uma das suas operações mais importantes consiste em tornar ilegível a sequência anterior, sequência esta que, no essencial, estava orientada de forma clara. Esta operação é característica de todos os períodos reactivos, contra-revolucionários, como este que nós vivemos desde o fim dos anos 1970.

Podemos, por exemplo, notar que o que foi característico da reacção thermidoriana, após a conspiração do “9 do Thermidor” e a execução sem julgamento dos jacobinos mais importantes, foi justamente o facto de tornar ilegível a sequência robespierrista anterior. Por outras palavras, a redução desta à patologia de alguns criminosos, interditando toda e qualquer compreensão política. Esta visão das coisas perdurou durante décadas e ela visava desorientar duravelmente o povo, que era (e é) considerado como virtualmente revolucionário.

Tornar um período ilegível é muito mais do que simplesmente condená-lo. Isto porque, um dos efeitos da ilegibilidade é o de interditar que se encontre no período em questão os próprios princípios aptos a remediar os seus impasses. Se o período é declarado patológico, então não há nada a retirar dele para a nossa própria orientação, e a conclusão (da qual nós constatamos todos os dias os efeitos deletérios), é que devemos resignar-nos à desorientação, como se de um mal menor se tratasse.

Digamos, por conseguinte, no que concerne a uma sequência anterior e visivelmente encerrada da política de emancipação, que ela deve manter-se legível para nós, independentemente do juízo final que façamos sobre ela.

No debate a respeito da racionalidade da Revolução Francesa, sob a IIIª República, Clemenceau pronunciou uma frase célebre: “A Revolução Francesa forma um bloco”. Esta fórmula é notável porque ela declara a legibilidade integral do processo, quaisquer que tenham sido as peripécias trágicas do seu desenvolvimento.

Hoje, torna-se claro que é a propósito do comunismo que o discurso ambiente transforma a sequência anterior em patologia opaca. Sinto-me, portanto, autorizado a dizer que a sequência comunista, incluindo todas as suas cambiantes, tanto no poder como na oposição, que se reivindicavam da mesma ideia, forma também um bloco.

Qual pode ser, hoje em dia, o princípio e o nome de uma orientação verdadeira? Eu proponho chamar-lhe, por fidelidade à história das politicas de emancipação, a hipótese comunista.

Notemos de passagem que os nossos críticos pretendem lançar às ortigas a palavra “comunismo” sob pretexto de que uma experiência de comunismo de Estado, que durou setenta anos, fracassou tragicamente. Que anedota! Quando se trata de derrubar o domínio dos ricos e a hereditariedade do poder, que duram há milhares de anos, vêm-nos objectar com setenta anos de tentativas, de violências e de impasses! Na verdade, a ideia comunista apenas percorreu uma porção ínfima do tempo da sua verificação, da sua efectivação.

O que é ao certo esta hipótese? Ela  baseia-se em três axiomas.

Em primeiro lugar, a ideia igualitária. A ideia pessimista do senso comum que domina novamente os tempos actuais, é que a natureza humana está votada à desigualdade e que é pena que seja assim mas, depois de derramar algumas lágrimas sobre o assunto, é necessário convencermo-nos e aceitar a situação. A esta argumentação, a ideia comunista responde, não pela proposição da igualdade como programa (“realizemos a igualdade imanente à natureza humana”), mas declarando que o princípio igualitário permite distinguir, em toda acção colectiva, aquilo que é homogéneo em relação à hipótese comunista (e portanto tem um valor real), e aquilo que a contradiz, remetendo-nos portanto a uma visão animal da humanidade.

Em segundo lugar, a convicção de que a existência de um Estado coercitivo separado dos povos, não é necessária. É a tese (comum aos anarquistas e aos comunistas) do desvanecimento progressivo do Estado. Houveram sociedades sem Estado e é racional postular que possam vir a existir outras. Mas, sobretudo, pode-se organizar a acção política popular sem que ela seja submetida à ideia do poder, da representação no Estado, das eleições, etc..

O impulso libertador da acção organizada pode exercer-se do exterior do Estado. Nós temos disso numerosos exemplos, inclusive recentes: a potência inesperada do movimento de Dezembro de 1995 fez atrasar por vários anos as medidas anti-populares a respeito das aposentações. A acção militante com os trabalhadores sem papéis não impediu uma série de leis absurdas, mas permitiu que eles fossem amplamente reconhecidos como uma componente da nossa vida colectiva e política.

Último axioma: a organização do trabalho não implica a sua divisão, a especialização de tarefas e, em particular, a diferenciação opressiva entre trabalho intelectual e trabalho manual. Devemos perspectivar, essencialmente, uma polimorfia do trabalho humano. É esta a base material do desaparecimento das classes e das hierarquias sociais.

Estes três princípios não constituem um programa, mas antes linhas de orientação que qualquer um de nós pode investir como operatórias, com vista a avaliar o que se diz e se faz, pessoal ou colectivamente, na sua relação com a hipótese comunista.

A hipótese comunista conheceu já duas grandes etapas, e eu sugiro que estamos a entrar agora numa terceira fase da sua existência.

A hipótese comunista se instala numa vasta escala entre as revoluções de 1848 e a Comuna de Paris (1871). Os temas dominantes são os do movimento operário e da insurreição. Depois, há um longo intervalo de cerca de quarenta anos (entre 1871 e 1905), que corresponde ao apogeu do imperialismo europeu e à sua dominação de várias regiões do globo. A continuação, que vai de 1905 a 1976 (Revolução Cultural na China), é a segunda sequência de efectivação da hipótese comunista.

Seu tema dominante é o tema do partido com o seu slogan principal (e indiscutível): a disciplina é a única arma daqueles que nada tem. De 1976 até hoje, aparece-nos um segundo período de estabilização reactiva, no qual ainda estamos e durante o qual assistimos à desagregação dos regimes socialistas de partido único criados durante a segunda sequência.

A minha convicção é que uma terceira sequência histórica da hipótese comunista vai abrir-se inelutavelmente e ela será diferente das duas precedentes. No entanto, paradoxalmente, ela será mais próxima da primeira do que da segunda. Efectivamente, esta sequência terá, em comum com a sequência que prevaleceu no século XIX, o facto de ter por base a própria existência da hipótese comunista, hoje em dia massivamente negada. Podemos definir - eu e outros temos tentado fazê-lo - os trabalhos preliminares para a re-instalação da hipótese comunista e o desenvolvimento da sua terceira época.

Temos necessidade, neste início da terceira sequência de existência da hipótese comunista, de uma moral provisória para um tempo desorientado. Trata-se de manter minimamente uma figura subjectiva consistente, sem ter para isso ainda o apoio da hipótese comunista, a qual não está para já reinstalada em vasta escala. É preciso encontrar um ponto real e nele aguentarmo-nos custe o que custar, um ponto “impossível”, que não esteja inscrito na lei da situação actual. É preciso manter um ponto real deste tipo e organizar as consequências.

A testemunha–chave de que as nossas sociedades são ostensivamente desumanas é hoje o proletário estrangeiro sem papéis: ele é a marca, imanente à nossa situação, de que existe apenas um mundo. Tratar o proletário estrangeiro como vindo de um outro mundo, eis aí a tarefa específica atribuída ao “ministério da identidade nacional”, o qual dispõe da sua própria força policial (a “polícia de fronteira”). Afirmar, contra um tal dispositivo de Estado, que qualquer trabalhador sem papéis é do mesmo mundo que nós próprios e daí tirar as consequências práticas, igualitárias e militantes, eis aí um exemplo típico de moral provisória, uma orientação local homogénea à hipótese comunista, no meio da desorientação global face à qual somente a reinstalação da referida hipótese poderá ser efectiva.

A virtude principal da qual temos necessidade é a coragem. Não é essa uma situação universalmente válida: em outras circunstâncias, outras virtudes podem ser requeridas de modo prioritário. Assim, na época da guerra revolucionária na China, a paciência foi promovida por Mao como virtude cardeal. Mas nos dias que correm, a coragem é incontestavelmente a virtude principal. A coragem é a virtude que se manifesta (independentemente das leis do mundo), pela persistência no impossível. Trata-se de defender o ponto impossível, sem para isso ter que levar em conta a situação no seu conjunto: a coragem, uma vez que se trata de manter o referido ponto enquanto tal, é uma virtude local. Ela releva de uma moral do lugar, tendo por horizonte a lenta reinstalação da hipótese comunista.

 

 

 

(*) Filósofo, dramaturgo e escritor. Nascido em 1937, professor de filosofia na École Normale Supérieure de Paris, articula o pensamento formal e o texto literário, a argumentação conceptual e a intervenção política. Publicou nas Nouvelles Editions Lignes, ‘De quoi Sarkozy est-il le nom?’ (2007), ‘L’Hipothèse communiste’ (2009) e dirigiu, recentemente, com o filósofo Slavoj Zizek, o volume ‘L’Idée du communisme’. Este artigo foi publicado na edição de 14 de Fevereiro de 2010 do diário francês 'Le Monde'. Tradução de Ronaldo Fonseca.